UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus Araraquara - SP BAS´ILELE MALOMALO REPENSAR O MULTICULTURALISMO E O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL: POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS PARA A POPULAÇÃO NEGRA (1995-2009) ARARAQUARA – SP 2 2010 BAS´ILELE MALOMALO REPENSAR O MULTICULTURALISMO E O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL: POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS PARA A POPULAÇÃO NEGRA (1995-2009) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP - Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Sociologia. Linha de pesquisa: Gênero, etnia e saúde Orientador: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca ARARAQUARA – SP 2010 3 BAS´ILELE MALOMALO REPENSAR O MULTICULTURALISMO E O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL: POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS PARA A POPULAÇÃO NEGRA (1995-2009) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP - Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Sociologia. Linha de pesquisa: Gênero, etnia e saúde Orientador: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca Data da defesa: BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca – UNESP/Araraquara Membro Titular: Profa. Dra. Renata Medeiros Paoliello – UNESP/Araraquara Membro Titular: Profa. Dra. Maria Teresa Micelli Kerbauy – UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Kabengele Munanga – USP/São Paulo Membro Titular: Profa. Dra. Vera Lucia Benedito – CLADIN Araraquara/ NEIMB São Paulo Local: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras UNESP - Campus Araraquara - SP 4 Para Patrícia Gabriel do Prado Ilele, minha esposa, ícone do meu Amor e da minha Fé na Diáspora Afro- Brasileira. Para Ilel´a Djoyidjoyi, meu pai, incentivo da minha paixão pelos estudos, pela negritude e pela humanidade. 5 MEUS AGRADECIMENTOS A Nzambi-Olorum À Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Ao meu orientador, prof. Dr. Dagoberto José Fonseca Às minhas amadas famílias Ilele e Prado Ao professor Dr. Kabengele Munanga Aos meus colegas do CLADIN – Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e das Diásporas Negras da UNESP À professora Dra. Vera Lucia Benedito Aos meus professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FCL Á professora Dra. Renata Medeiros Paoliello Ao professor Dr. Marco Aurélio Nogueira À professora Dra. Maria Teresa Kirbauy À professora Dra. Maria Orlanda Pinassi Aos meus amigos do IDDAB – Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil Ao professor Dr. Marcelo Paixão Ao professor Dr. Adilson Marques Gennari A todos e todas as pessoas que me apoiaram. 6 EPÍGRAFE Nunca deixei de repetir que a sociologia, da sociologia, não é uma divisão entre tantas outras da sociologia; que é preciso servir-se da ciência sociológica elaborada para fazer sociologia; que a sociologia, da sociologia, deve acompanhar, sem interrupção, a prática da sociologia. Mas, mesmo sendo uma virtude na tomada da consciência, a vigilância sociológica não é suficiente. A reflexividade só tem a sua eficácia quando se encarna nos coletivos que a incorporaram, de forma a praticá-la, no mundo da reflexividade. Num grupo de pesquisa desse tipo, a censura coletiva é muito poderosa, mas é uma censura libertadora, que faz sonhar ao campo idealmente constituído, que liberaria cada participante dos “desvios” ligados à sua posição e às disposições. Pierre Bourdieu (2001b, p. 220; nossa tradução). Um dos maiores problemas da nossa sociedade é o racismo, que, desde o fim do século passado, é construído com base em essencializações sócio- culturais e históricas, e não mais necessariamente com base na variante biológica ou na raça (p. 5). [...] Grosso modo, eis as duas abordagens essenciais que dividem intelectuais, estudiosos, midiáticos, ativistas e políticos, não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Ambas produzem lógicas e argumentos inteligíveis e coerentes, numa visão que eu considero maniqueísta. Poderão as duas abordagens se cruzar em algum ponto em vez de se manter indefinidamente paralelas? (p. 6). [...] A melhor abordagem seria aquela que combina a aceitação da identidade humana genérica com a aceitação da identidade da diferença (p. 6). Kabengele Munanga (2009). 7 RESUMO Esta pesquisa faz parte dos estudos das relações raciais que têm discutido a questão da integração social do negro no Brasil. Pretende renovar estes estudos numa perspectiva de busca de relações entre a política de ações afirmativas e o desenvolvimento da população negra. Para tanto, fundamentando-se na teoria de campos de Bourdieu que sugere o estabelecimento de um diálogo teórico e metodológico entre as abordagens alternativas do desenvolvimento e do multiculturalismo. No primeiro caso, privilegia-se as teorias do desenvolvimento humano do PNUD, do desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen, do desenvolvimento econômico comunitário de Daniel Champagne, da nova sociologia econômica de Benoit Lévesque, de Louis Favreau e de Jean- Marc Fontan. No segundo caso, volta-se para a teoria do multiculturalismo emancipatório de Boaventura de Sousa Santos. Desse encontro é que se constrói o referencial teórico-metodológico dessa investigação denominado de desenvolvimento econômico multicultural. Este é, também, um instrumento de avaliação, forjado do diálogo feito com a teoria de “avaliação da quinta geração” de Jean-Marc Fontan e Elaine Lachance, que no contexto do Canadá, faz parte das práticas científicas do desenvolvimento econômico comunitário e da nova sociologia econômica. É igualmente esse instrumento teórico-metodológico que nos permite intervir de forma crítica e construtiva no debate atual sobre as políticas públicas de ações afirmativas em curso no país, considerando-se os períodos dos dois mandatos de FHC (1995-2002) e de Lula (2002-2009), como momentos de sua emergência e consolidação no espaço público. A avaliação feita elegeu, pelo menos, uma entre tantas outras ações afirmativas implementadas pelo Estado, pelo setor privado e pela sociedade civil para salvaguardar a complexidade do tema. Buscou-se identificar os avanços e limitações que cada projeto/programa pesquisado comporta. Dentro das análises feitas, o que se verificou é que existe uma relação entre as ações afirmativas e a temática do desenvolvimento emancipatório. Tal vínculo, do ponto de vista teórico, muitas vezes, se apresenta de maneira implícita ou explícita; além disso, nos exige debater, hoje, as políticas de ações afirmativas, não meramente, como uma questão de cotas, pelo contrário, como um debate democrático republicado que tem a ver com o novo projeto do desenvolvimento da nação. Palavras-chave: Multiculturalismo. Ações afirmativas. Desenvolvimento. População negra. Avaliação. 8 ABSTRACT This research is part of the studies about racial relations that have discussed the matter of the social integration of the Blacks in Brazil. It intends to renew these studies into a perspective of linkage between affirmative action policies and the development of the black population. Thus, sustaining itself over the field theory, by Bourdieu, where he suggests the establishment of a theoretical and methodological dialogue between the alternative views on development and multiculturalism. In the first case, it privileges PNUD´s human development theories, the development seen as liberty by Amartya Sen; the community´s economic development by Daniel Champagne; the new economic sociology by Benoit Lévesque, Louis Favreau and Jean- Marc Fontan. As for the second case, the study turns to the theory of emancipatory multiculturalism by Boaventura de Sousa Santos. Out of this encounter the theoretical and methodological referential of this investigation are built, denominating the economical and multicultural development. This is also an evaluation instrument, derived from the dialogue with the theory of “fifth generation evaluation” by Jean-Marc Fontan and Elaine Lachance, that, in the context of Canada, is an art of the scientific practices of community economic development and of the new economic sociology. As well, this theoretical and methodological instrument allows us to critically and constructively intervene on the ongoing debate over affirmative action public policies implemented in the country, considering the presidential mandates of 1995 to 2002 (FHC) and 2002 to 2009 (Lula) as periods in which these policies have emerged. The evaluation made has elected at least one among many affirmative action policies implemented by the State, by the private sector and by the civil society in order to safeguard the complexity of the subject. It sought to identify the developments and limitations that each project/program has. Within the analysis made, it was verified that there is a linkage between the affirmative actions and the thematic of the emancipatory development. Such linkage, from a theoretical point of view, many times presents itself implicitly or explicitly. Besides, the debate over the affirmative action policies must surpass the matter of the quotas, to become a democratic and republican debate that has to do with the new project for the Nation‟s Development. Keywords: Multiculturalismo. Affirmative Actions. Development. Black Population. Evaluation. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO GERAL .................................................................................................................17 PARTE I: POR UMA EPISTEMOLOGIA COMBATIVA ..............................................................21 CAPÍTULO I: DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO MULTICULTURAL COMO REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................................................................22 introdução .......................................................................................................................................22 1. Legado dos mestres..................................................................................................................22 1.1. Crise da ciência ocidental ......................................................................................................22 1.2. Ciência como arma de emancipação ....................................................................................26 1.3 ioepistemologia como socioanálise ........................................................................................ 27 2. Escolhas acadêmicas como escolhas da vida ........................................................................36 2.1. Ponto de partida: superando os reducionismos ................................................................... 37 2.2. Quatro fases dos estudos das relações raciais ...................................................................38 2.3. A urgência de uma nova abordagem ................................................................................... 44 3. Campo do desenvolvimento econômico multicultural.............................................................49 4. Considerações finais .................................................................................................................56 CAPÍTULO II: DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO MULTICULTURAL COMO REFERENCIAL METODOLÓGICO ..............................................................................................58 introdução .......................................................................................................................................58 1. Pesquisa teórica.........................................................................................................................58 1.1. Pesquisa bibliográfica ............................................................................................................59 1.2. Pesquisa documental .............................................................................................................62 2. Pesquisa de campo e campo de pesquisa ..............................................................................65 2.1. Pesquisa de campo ................................................................................................................65 2.2. Campo de pesquisa ................................................................................................................68 2.2.1. Delimitando o meu campo de pesquisa ............................................................................72 3. Pesquisa avaliativa e avaliação dos programas .....................................................................78 3.1. Análise histórica da avaliação ...............................................................................................82 3.2. Avaliação da quinta geração .................................................................................................85 3.3. Avaliação dos programas de ações afirmativas ..................................................................87 4. Análise e organização dos dados coletados ...........................................................................92 5. Considerações finais .................................................................................................................95 10 PARTE II: CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO CAMPO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO MULTICULTURAL ................................................................................................97 CAPÍTULO I: POPULAÇÕES COMO AGENTES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO MULTICULTURAL .........................................................................................................................98 introdução .......................................................................................................................................98 1. Precisando o conceito de raça .................................................................................................99 2. Raça, classe e etnia ................................................................................................................ 102 3. Povo e população ....................................................................................................................105 4. Comunidade e pequenas sociedades ....................................................................................108 5. Considerações finais ...............................................................................................................116 CAPÍTULO II: CULTURA E IDENTIDADE NACIONAL NA MODERNIDADE ........................ 117 introdução ..................................................................................................................................... 117 1. Cultura e identidade nacional .................................................................................................119 2. Identidade nacional e identidade negra .................................................................................123 3. Identidade negra como resistência-projeto ...........................................................................130 3.1. Raça como recurso identitário .............................................................................................132 3.2. Língua e linguagem da cultura negra .................................................................................133 3.3. Movimentos sociais negros como reprodutores da identidade negra ..............................134 3.4. História como elemento identitário ...................................................................................... 137 3.5. Espaço e território e a identidade negra .............................................................................138 3.6. Identidade religiosa negra ....................................................................................................141 4. Considerações finais ...............................................................................................................146 CAPÍTULO III: RACISMO, DESIGUALDADE E SUBDESENVOLVIMENTO .........................148 introdução .....................................................................................................................................148 1. Racismo, preconceito e discriminação racial ........................................................................148 2. Subdesenvolvimento, exclusão social e desigualdade ........................................................ 152 3. Desigualdades sociais e desigualdades raciais ....................................................................159 4. Considerações finais ...............................................................................................................161 CAPÍTULO IV: ESTADO, MERCADO E SOCIEDADE CIVIL COMO AGENTES DO DESENVOLVIMENTO ................................................................................................................. 162 introdução ..................................................................................................................................... 162 1. Estado, governo e política .......................................................................................................163 1.1. Racionalidade estatal e capitalista ......................................................................................165 11 1.2. Estado burguês e o capital como forças de dominação ................................................... 167 2. Uma economia plural: a economia capitalista versus a economia social-solidária ...........169 2.1. Mercado e setor privado ...................................................................................................... 172 3. Sociedade civil como agente do desenvolvimento ............................................................... 174 3.1. Movimentos sociais, terceiro setor e organizações não governamentais ....................... 178 4. Considerações finais ...............................................................................................................186 PARTE III: TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO E DO MULTICULTURALISMO ................188 CAPÍTULO I: GÊNESE E USOS DO CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO .......................189 introdução .....................................................................................................................................189 1. Gênese do conceito “desenvolvimento” nas ciências sociais ..............................................189 2. Desenvolvimento como campo recente ................................................................................. 200 3. Teorias do desenvolvimento numa perspectiva histórica..................................................... 203 3.1. Crise dos grandes modelos ................................................................................................. 204 3.1.1. Desenvolvimento como crescimento econômico............................................................ 204 3.1.2. Teoria da dependência ..................................................................................................... 204 3.1.3. Desenvolvimento como humanismo ................................................................................ 206 3.1.4. Pensamento alternativo do desenvolvimento ................................................................. 206 4. Desenvolvimento econômico multicultural como desenvolvimento alternativo .................. 209 4.1. Teorias do desenvolvimento local e do desenvolvimento econômico comunitário ........211 4.2. Teoria do desenvolvimento humano ...................................................................................212 4.3. Teoria do desenvolvimento sustentável .............................................................................214 4.4. Nova sociologia econômica e o desenvolvimento local e regional ..................................216 4.5. Teorias de desigualdades raciais e desenvolvimento .......................................................219 4.6. Desenvolvimento econômico multicultural como prática teórico-ético-política ...............224 5. Considerações finais ...............................................................................................................225 CAPÍTULO II: TEORIAS E CONCEITOS DO MULTICULTURALISMO ................................. 227 Introdução ..................................................................................................................................... 227 1. Gênese do conceito de multiculturalismo .............................................................................. 227 2. Controvérsias em torno do multiculturalismo ........................................................................235 3. Em defesa do multiculturalismo emancipatório .....................................................................239 4. Considerações finais ...............................................................................................................242 CAPÍTULO III: POLÍTICAS PÚBLICAS DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO MULTICULTURAL .......................................................................................................................243 12 Introdução .....................................................................................................................................243 1. O termo de políticas públicas..................................................................................................243 2. Políticas de desenvolvimento sociocultural e socioeconômico ........................................... 250 3. Multiplicidade de abordagenss de políticas públicas ............................................................ 251 3.1. Políticas de reconhecimento e políticas de redistribuição ................................................ 251 a terceira categoria de policy arena é das “políticas regulatórias”: ......................................... 253 3.2. Política do desenvolvimento econômico multicultural ....................................................... 257 3.3. Políticas de cotas e políticas de ações afirmativas ........................................................... 260 3.3.1. Contexto histórico .............................................................................................................. 260 3.3.2. Definindo políticas de ações afirmativas ......................................................................... 265 3.3.3. Políticas de promoção de igualdade racial e de diversidade ........................................ 270 4. Desenvolvimento econômico multicultural como avaliação crítica e democrática ............. 272 5. Considerações finais ............................................................................................................... 274 CAPÍTULO V: POLÍTICAS PÚBLICAS MULTICULTURAIS E DESENVOLVIMENTO NO BRASIL ......................................................................................................................................... 276 Introdução ..................................................................................................................................... 276 1. Agentes sociais do debate ...................................................................................................... 276 2. Usos e abusos da ciência e do poder .................................................................................... 279 3. Os temas do debate do desenvolvimento econômico multicultural ....................................283 3.2. Identidade nacional e identidade negra ..............................................................................285 3.2.1. Escravidão, segunda abolição e reparações ..................................................................286 3.2.2. A raça negra: os pretos e pardos do ibge ....................................................................... 287 3.2.3. Subdesenvolvimento do negro e da nação .....................................................................289 3.2.4. Desenvolvimento do negro e da nação ...........................................................................293 3.2.4.1. Política colonial do desenvolvimento econômico multicultural ...................................294 3.2.4.2. Política imperialista do desenvolvimento econômico multicultural ............................296 3.2.4.3. Política republicana do desenvolvimento econômico multicultural ............................ 297 4. Em defesa de um novo projeto de nação ..............................................................................303 5. Considerações finais ...............................................................................................................308 PARTE IV: DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO MULTICULTURAL COMO AVALIAÇÃO 309 CAPÍTULO I: PROJETO COR DA CULTURA COMO APLICAÇÃO DA LEI Nº 10.639/03 ..310 Introdução .....................................................................................................................................310 1. Identificação do projeto ...........................................................................................................311 13 1.1. Nome e setor da atuação .....................................................................................................311 1.2. Público-alvo e gestores ........................................................................................................311 1.3. Duração do projeto ...............................................................................................................314 1.4. Princípios e metodologia do projeto ....................................................................................315 1.5. Descrição das atividades desenvolvidas ............................................................................316 1.6. Parcerias e financiamento ...................................................................................................321 2.1. Instituições parceiras e a temática do desenvolvimento ...................................................322 2.1.1. Cidan: a cor da cultura como desenvolvimento com equidade racial ...........................323 2.1.2. Fundações globos: a cor da cultura como responsabilidade social ..............................325 2.1.3. Seppir: a cor da cultura como efetivação da lei 10.639/03 ............................................329 2.2. Impactos do projeto: a avaliação de kappel .......................................................................341 2.3. Considerações finais e recomendações .............................................................................348 CAPÍTULO II: AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS E COTAS NO ENSINO SUPERIOR ...................................................................................................................354 Introdução .....................................................................................................................................354 1. Sociedade civil e políticas de ações afirmativas e cotas ......................................................356 2. Instituições públicas como agentes promotores de ações afirmativas ...............................359 2.1. Diversidade de metodologia e de beneficiados .................................................................360 2.2. Sistema de bonificação e cotas ...........................................................................................363 2.3. Limites na política de ações afirmativas e cotas no ensino superior ...............................365 2.4. Outros sistemas de inclusão social .....................................................................................368 2.4.1. Programa integrado de ações afirmativas para negros e programa diversidade na universidade .................................................................................................................................369 2.4.2. Instituições privadas, prouni e fies ................................................................................... 370 2.4.3. O prouni: luta entre o capital e a igualdade racial .......................................................... 375 3. Política de ações afirmativas na mira do desenvolvimento econômico multicultural ........ 376 3.1. Ações afirmativas como espaço da aprendizagem coletiva ............................................. 377 3.1.1. Aceitação de cotas pela sociedade ................................................................................. 377 3.1.2. Cotas como estratégias de luta contra as desigualdades étnico-raciais ...................... 379 3.1.3. Miscigenação colonialista e miscigenação emancipatória............................................. 379 3.2. Diálogo entre o direito e a ética ...........................................................................................382 3.2.1. Ampliação da noção da justiça: justiça social e justiça histórica ..................................382 3.2.2. Cotas sociais e cotas raciais como princípio de igualdade solidária ............................385 14 3.2.3. Cotas e ações afirmativas como direitos conquistados .................................................386 3.3. Democratização do ensino superior e igualdade de oportunidade ..................................386 3.3.1. Mérito e igualdade de oportunidades .............................................................................. 387 3.3.2. Desempenho dos cotistas como profecia da esperança ...............................................388 3.3.3. Qualidade do ensino público e inclusão étnico-racial .................................................... 392 3.3.4. Política de manutenção: desafio da permanência e cidadania ..................................... 397 3.4.5. Realização profissional e cidadania.................................................................................401 3.3.5. Monitoramento como exercício da cidadania.................................................................. 402 4. Considerações finais ...............................................................................................................404 CAPÍTULO III: UNIPALMARES: PROJETO DE INCLUSÃO DE NEGROS NO ENSINO SUPERIOR ...................................................................................................................................406 Introdução .....................................................................................................................................406 1. Identificação do projeto unipalmares ..................................................................................... 407 1.1. Missão e princípios da instituição........................................................................................410 1.2. Parcerias e financiamentos..................................................................................................412 2. Desenvolvimento e ações afirmativas na unipamares .........................................................416 2.1. Público e objetivos do projeto unipalmares ........................................................................416 2.2. Vestibular com recorte racial ............................................................................................... 417 2.3. Currículo com recorte racial .................................................................................................418 2.4. Atividades extracurriculares .................................................................................................419 2.5. Política de permanência e empregabilidade ......................................................................422 3. Considerações finais ...............................................................................................................425 CAPÍTULO IV: PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO DE AFRODESCENDENTES DO BANCO ITAÚ .............................................................................................................................................. 426 Introdução ..................................................................................................................................... 426 1. Identificação dos programas sobre a diversidade ................................................................ 427 2. Financiamento e investimento ................................................................................................433 3. Relação entre desenvolvimento e programa de capacitação dos afrodescendentes .......435 3.1. Discurso do desenvolvimento sustentável no banco itaú .................................................435 3.2. Programa de capacitação dos afrodescendentes .............................................................442 3.3. Avaliação e impactos do programa .....................................................................................446 4. Considerações finais ............................................................................................................... 451 CONCLUSÃO GERAL ................................................................................................................. 453 15 LISTA DE TABELAS, QUADROS E BOXES TABELA 1: TEMAS TRATADOS NOS CONGRESSOS DE PESQUISADORES NEGROS 2000-2006 .....................................45 TABELA 2: TEMAS DO IV COPENE - 2006 .................................................................................................45 TABELA 3: TEMAS DO V COPENE – 2008..................................................................................................46 TABELA 4: CLASSIFICAÇÃO POR REGISTROS DE PROGRAMAS AVALIADOS ...........................................................64 TABELA 5: PROGRAMAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS PARA A POPULAÇÃO NEGRA URBANA........................................75 TABELA 6: COMUNIDADES QUILOMBOLA IVAPORANDUVA (B) .........................................................................76 TABELA 7: COMUNIDADES QUILOMBOLA CAFUNDÓ (C) .................................................................................76 TABELA 8: CLASSIFICAÇÃO DE CAMPO DE AÇÕES AFIRMATIVAS INVESTIGADAS ...................................................78 TABELA 9: QUADRO TEMÁTICO DE UM DESENHO DE ANÁLISE PARA PROGRAMAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS ...................89 TABELA 10: RELIGIÕES EM NÚMERO, POR RAÇA OU COR – CENSO IBGE – 2000 ...............................................142 TABELA 11: CATEGORIAS DE CAPITAL DE KUNZ ...........................................................................................158 TABELA 12: DESIGUALDADES DE RENDIMENTO ENTRE BRANCOS E NEGROS NO MERCADO DE TRABALHO, POR FAIXA DE ESTUDO .................................................................................................................................... 292 TABELA 13: GESTORES POR UNIDADE DA FEDERAÇÃO .................................................................................313 TABELA 14: PATROCÍNIOS DA PETROBRÁS PARA FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO ...............................................339 TABELA 15: DISTRIBUIÇÃO DOS ESTUDANTES SEGUNDO A COR UFRJ, UFPR, UFMA E UNB ..............................356 TABELA 16: PROUNI – BOLSAS OFERTADAS, POR ANO DE 2005 A 2009 ......................................................... 372 TABELA 17: DISTRIBUIÇÃO DE BOLSAS DO PROUNI POR RAÇANNO PERÍODO DE 2006-2007 ............................... 373 TABELA 18: A SOMA DE BOLSAS - DISTRIBUIÇÃO POR RAÇA DE 2005 A 2009 ................................................... 373 TABELA 19: DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DOS ALUNOS COTISTAS E NÃO-COTISTAS COM COEFICIENTE DE RENDIMENTO ENTRE 5,1 E 10,0 NOS CURSOS DE MAIOR CONCORRÊNCIA NOS DOIS SEMESTRES DO ANO DE 2005...............389 TABELA 20: TAXA DE ESCOLARIZAÇÃO LIQUIDA POR SEXO, SEGUNDO COR/RAÇA E NÍVEL/MODALIDADE DE ENSINO – BRASIL, .....................................................................................................................................403 TABELA 21: CORRELAÇÃO DAS AÇÕES DO ITAÚ UNIBANCO COM OS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO .439 TABELA 22: PERCENTUAL EM RELAÇÃO A NEGROS ADMITIDOS NO PERÍODO DE 2003-2006 ............................. 447 TABELA 23: CLASSIFICAÇÃO DE COLABORADORES DO ITAÚ UNIBANCO 2008 POR RAÇA/COR (AUTODECLARAÇÃO) . 447 TABELA 24: CLASSIFICAÇÃO DOS COLABORADORES DO ITAÚ UNIBANCO 2008 POR SEXO ...................................448 TABELA 25: COMPOSIÇÃO DOS RESPONSÁVEIS PELA GOVERNANÇA CORPORATIVA ............................................448 TABELA 26: CARGOS DE CHEFIA POR RAÇA ...............................................................................................448 TABELA 27: DIVERSIDADE DO PÚBLICO INTERNO DO ITAÚ UNIBANCO POR CATEGORIA .......................................449 16 QUADRO 1: FICHA DE LEITURA BIBLIOGRÁFICA ............................................................................................52 QUADRO 2: FICHA DE LEITURA BIBLIOGRÁFICA .............................................................................................53 QUADRO 3: FICHA DE LEITURA BIBLIOGRÁFICA .............................................................................................55 QUADRO 4: PARCEIROS E FINANCIADORES DO PROJETO A COR DA CULTURA .....................................................321 QUADRO 5: DESENVOLVIEMENTO E CIDADANIA PETROBRAS .........................................................................341 QUADRO 6: PERFIL DOS PROFESSORES .....................................................................................................343 QUADRO 7: PERFIL DOS GESTORES ..........................................................................................................345 QUADRO 8: MUDANÇAS PERCEBIDAS PELOS GESTORES ................................................................................346 QUADRO 9: DESDOBRAMENTOS E CONTRIBUIÇÕES DO PROJETO ....................................................................346 QUADRO 10: DESTAQUE DO PROJETO ......................................................................................................348 QUADRO 11: RECOMENDAÇÕES .............................................................................................................349 BOXE 1: CONCEITO DO PROGRAMA DIVERSIDADE ......................................................................................432 BOXE 2: INVESTIMENTO SOCIAL DO BANCO ITAÚ EM 2005 E PREVISÃO DE 2006 ..............................................433 BOXE 3: NEGÓCIOS E SUSTENTABILIDADE NO BANCO ITAÚ ............................................................................434 BOXE 4: VISÃO TRÍPLICE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ......................................................................436 BOXE 5: RECONHECIMENTO DO BANCO ITAÚ PELAS INSTITUIÇÕES .................................................................438 BOXE 6: RELACIONAMENTO COM FORNECEDORES ......................................................................................440 BOXE 7: AÇÕES FEITAS PELO ITAÚ QUE FAZEM MUITA DIFERENÇA. ...................................................................441 17 INTRODUÇÃO GERAL O tema dessa pesquisa situa-se no quadro dos trabalhos científicos que têm discutido a questão da emancipação ou da integração do negro na sociedade brasileira, onde duas matrizes teóricas têm disputado a sua interpretação dentro das ciências sociais. A primeira, geralmente, associada às obras do sociólogo pernambucano, Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala (FREYRE, 1992) é tomada, nesse contexto, como uma de suas obras de referência. A segunda matriz, oposta à primeira, está, geralmente, atrelada à publicação das duas obras clássicas do sociólogo paulista, Florestan Fernandes: A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca” (1965) e A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era. (1978). No estado atual do debate sobre esse tema, Luciana Jaccoud (2009, p. 62) qualificou a primeira tradição de “paradigma de democracia racial” e a segunda de “paradigma de igualdade racial”. É dentro desse último que se situa essa tese. Trata-se da tradição sociológica fernandiana que foi renovada nos anos de 1980, pelos estudos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (PAIXÃO, 2005), criticando a democracia racial como mito; demonstrando as desigualdades raciais que afetam negros e brancos de formas diferentes, mas com a ressalva de que não se trata, necessariamente, do legado do passado colonial, como defendia Florestan Fernandes. Para eles, o racismo, à brasileira, tinha se configurado a partir da realidade da nova sociedade brasileira capitalista. Entre os anos de 1990 até 2009, o tema da integração do negro na sociedade vem se atualizando com novas abordagens, oriundas do multiculturalismo e, timidamente, dos estudos do desenvolvimento. Dessa forma, ele vem sendo discutido, entre os defensores do paradigma da igualdade racial, em termos de políticas públicas de ações afirmativas. Encontramos, por exemplo, esses dois títulos que traduzem essa visão: Ações afirmativas: Políticas públicas contra as desigualdades raciais (SANTOS; LOBATO, 2003); As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição (THEODORO, 2009). Quando iniciamos esta pesquisa, em 2006, o que muito nos incomodava era a falta de diálogo entre os defensores de políticas de ações afirmativas e cotas. De fato, a falta de diálogo teórico-metodológico tende a criar um muro entre os pesquisadores que investigam este tema na perspectiva dos “estudos culturais” e há um outro grupo, bem menor, que o estuda dentro do paradigma do desenvolvimento (geralmente economicistas): Paixão e Theodoro, por 18 exemplo. Foram nessas circunstâncias que começamos a pensar de que forma poderíamos contribuir nesse debate. O título desse trabalho “Repensar o multiculturalismo e o desenvolvimento no Brasil: Política públicas de ações afirmativas para a população negra (1995-2009)” tem por função pedagógico-investigativa relembrar que a “cultura da resistência negra” (MOURA, 2005), a luta do negro pela sua integração, pela sua liberdade (PAIXÃO, 2006a) situa-se no plano daquilo que as ciências sociais têm procurado capturar a partir das teorias do multiculturalismo emancipatório (SANTOS, 2003) e do novo paradigma do desenvolvimento (PAIVA, 1993; ARBIX, 2001). Entendemos que as discussões acadêmicas e políticas sobre políticas de ações afirmativas e cotas, para negros, exigem uma nova reflexão que contemple as teorias do multiculturalismo e do desenvolvimento. Portanto, esse trabalho pretende investigar, teorica e empiricamente, as relações existentes entre as políticas públicas de ações afirmativas na sua relação com a temática do desenvolvimento econômico e social da população negra brasileira. O contexto histórico em que se desenvolve essa pesquisa é o dos dois mandatos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o do Luiz Inácio Lula (2002-2009). Esse período é impar na história das políticas públicas para negros pelo fato de se manifestar como o momento de sua emergência e estruturação. Este trabalho gira em torno de uma única hipótese que dividimos em duas partes. Entendemos que o desenvolvimento social e econômico do negro exige uma dupla mudança no que diz respeito à política do multiculturalismo e do desenvolvimento nacional. A primeira mudança é de ordem teórica e a segunda de ordem ético-política. Em outras palavras, a mudança teórica exige que o problema do negro seja abordado em termos de problema do “subdesenvolvimento” ou das desigualdades sociorraciais e do desenvolvimento local e nacional, numa perspectiva das teorias alternativas. Para isso, de um lado, deve-se recorrer a uma teoria crítica que trabalhe com a lógica da complexidade conjuntiva ou dos campos. Naturalmente, isto exige uma ruptura com as teorias que visam à integração do negro na sociedade, mas, que ora são contaminadas pela ideologia da democracia racial, ora pelo economicismo, ou pelo culturalismo. Parece-nos que a construção de um quadro teórico elaborado a partir de um diálogo crítico, estabelecido entre a sociologia reflexiva dos campos com as teorias da etnicidade, do multiculturalismo, dos movimentos sociais, dos estudos das relações raciais, o novo paradigma do desenvolvimento e a nova sociologia econômica, auxiliar-nos-ia a discutir o problema do subdesenvolvimento e desenvolvimento do negro, no Brasil contemporâneo, de forma integrada. Por outro lado, faz-se necessária uma mudança ético-política; quer dizer: as políticas de ações afirmativas e de cotas, fundamentadas na 19 lógica do capital e na política da dominação com interesses econômicos e político-eleitoreiros dos governos, das empresas privadas e da sociedade civil (organizações sociais negras ou não negras), devem se transformar em políticas públicas do desenvolvimento sociocultural e socioeconômico emancipatórios. Essa pesquisa persegue três objetivos. Primeiro: construir um referencial teórico- metodológico para subsidiar no debate atual sobre políticas públicas de ações afirmativas no Brasil. Segundo: avaliar algumas políticas públicas de ações afirmativas implementadas pelo Estado, pelo setor privado e pela sociedade civil para entender seus avanços e limitações. Terceiro: analisar as relações existentes entre a política de ações afirmativas e o desenvolvimento da população negra no Brasil. Para tanto, recorremos à metodologia que combina a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental e a pesquisa avaliativa. Esta metodologia tem por bases epistemológicas, entre tantas outras, a sociologia reflexiva dos campos de Pierre Bourdieu, a teoria da complexidade de Edgar Morin (1995), a sociologia das emergências de Boaventura de Sousa Santos e a teoria de “avaliação da quinta geração” da nova sociologia econômica de Jean-Fontan e Elaine Lachance. Dividimos esse trabalho em quatro grandes partes. A Parte I denomina-se “Epistemologia combativa”. Com esta, pretendemos discutir as questões epistemológicas. É o nosso ponto de partida para responder a primeira hipótese. Para tanto, no primeiro e segundo capítulos demonstraremos as bases teóricas e metodológicas dessa investigação, que batizamos de “desenvolvimento econômico multicultural”. Argumentaremos que este é um referencial teórico-metodológico para se pensar a sociedade e avaliar os programas/projetos sociais. As discussões conceituais que faço na Parte II e na Parte III têm por finalidade a ampliação da discussão iniciada na primeira parte. Dentro da parte que denomino de “Conceitos fundamentais do desenvolvimento econômico multicultural” (Parte II), discutimos sobre o uso que faremos desses conceitos: população (Capítulo 1), cultura, identidade, raça (capítulo 2); racismo, desigualdades, subdesenvolvimento (capítulo 3); Estado, mercado e sociedade civil (capítulo 4). Defendemos a teoria de que essa trilogia é responsável pela construção da esfera pública e das políticas públicas. Na mesma perspectiva, na Parte III “Teorias do desenvolvimento e do multiculturalismo”, discorremos sobre uso dos conceitos desenvolvimento (capítulo 1), multiculturalismo (capítulo 2) e políticas públicas (capítulo 3). No capitulo 4, reorientamos a nossa análise conceitual no contexto das políticas públicas no Brasil. Identificaremos nesse 20 ponto, também, os atores envolvidos nesse debate republicano e suas estratégias de luta; a sua concepção sobre a emancipação do negro, no que diz respeito às políticas públicas de ações afirmativas e a sua visão sobre o desenvolvimento. O que nos possibilitará, na Parte IV, utilizar o “desenvolvimento econômico multicultural” como instrumento de avaliação. O enfoque da nossa investigação estará voltado para quatro ações afirmativas: o Projeto da Cor da Cultura (capítulo 1); as políticas das ações afirmativas e das cotas no ensino superior (capítulo 2); o projeto de inclusão de negros na Universidade da Cidadania Zumbi de Palmares (Unipalmares) (capítulo 3) e o programa de Capacitação de Afrodescendentes do Banco Itaú (capítulo 4). No final faremos um balanço geral do que foi discutido para dar coesão as idéias expostas, mostrando seus avanços e suas limitações. 21 PARTE I: POR UMA EPISTEMOLOGIA COMBATIVA Fonte: COPENE, 2008 - Capa. 22 CAPÍTULO I: DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO MULTICULTURAL COMO REFERENCIAL TEÓRICO Introdução Esse capítulo relaciona-se à primeira parte desse trabalho chamada “epistemologia combativa”, que consiste em oferecer as bases epistemológicas sobre as quais se fundamentam o nosso referencial teórico-metodológico: o desenvolvimento econômico multicultural. Para tanto, ele está dividido em três seções: a primeira trata do seu legado; a segunda defende a tese de que as escolhas acadêmicas fazem parte da vida do pesquisador; e, a terceira, apresenta os elementos constitutivos da teoria do desenvolvimento econômico multicultural. 1.Legado dos mestres Vários foram os mestres que me instruíram até chegar à escrita desse trabalho de doutorado. Do ponto de vista da construção de teoria, citarei, apenas, quatro tradições intelectuais: as epistemologias africanas, que descobri desde a minha graduação em filosofia nos anos de 1990 a 1993, e que venho aprofundando a partir da diáspora brasileira, do meu encontro com as sociologias de Bourdieu, Boaventura de Santos Sousa e Morin. A produção do conhecimento, aqui presente, segue as propostas dessas tradições científicas. O ponto comum entre todas é que são parte das epistemologias libertárias, opostas ao que Boaventura de Santos Sousa (2003) chama da “razão indolente”, ou seja, o pensamento totalitário de tendência marxista, liberal ou neoliberal. Proponho-me, aqui, a trazer suas propostas teóricas que fazem parte da construção do objeto e da análise desse trabalho, discutindo a questão da crise da ciência e o seu uso como instrumento da libertação das populações dominadas; neste caso, negros da diáspora brasileira. 1.1. Crise da ciência ocidental Pode-se dizer que a crise da ciência ocidental deu-se em duas direções, uma “interna” e a outra “externa”. A dimensão interna traduz-se pela luta entre o pensamento dominante e o pensamento alternativo. A dimensão externa traduz-se pelo uso político da ciência com finalidades de dominação política e econômica. O termo despolitização da ciência traduziria esta sua crise política. Como fato social, esta crise é parte de uma crise social que se iniciou 23 nos anos de 1970-1980 e se acentuou com o processo da globalização liberal, nos anos de 1990. Despolitização deve ser entendida como uma estratégia consciente ou inconsciente usada pelos agentes do pensamento dominante, da “razão indolente”, que tem por intuito silenciar as propostas alternativas (SANTOS, 2003). Com Bourdieu (1997), diríamos que persiste até uma certa estratégia da denegação, que consiste em negar, pelo discurso, uma prática social existente para perpetuar a sua dominação. Nesse sentido, por exemplo, a economia neoliberal concebe a ciência como uma realidade ahistórica, portanto, não teria nenhuma responsabilidade social, nenhum compromisso à ética. Os adeptos do pensamento dominante acreditam na neutralidade científica, e faz dessa um dogma. Privilegiam o formalismo científico omitindo os efeitos da dominação social da ciência contemporânea (BOURDIEU, 1998a; MÉSZÁROS, 2004). Não existe separação entre a crise política da ciência e a sua crise interna; as duas se complementam. Na realidade, a crise interna é uma luta entre as epistemologias. Cientistas sociais como Ianni (1989), Bourdieu (2001b), Boaventura (2003b), Morin (2005) entenderam a crise interna das ciências sociais em termos do empobrecimento de suas metodologias. Morin (2005) afirma que ela se caracteriza pela cegueira epistemológica, pelo reducionismo da realidade social e pela sua fragmentação. Já, do seu lado, Boaventura de Souza Santos (2003) percebe essa crise pela falta de um diálogo intercultural. Enfim, Bourdieu (2001b) a interpreta em termos da existência de duas posturas diametralmente opostas dentro das ciências sociais: o idealismo ou racionalismo, de um lado; e, o economicismo, do outro lado. Não custa lembrar que, para esses autores, essas crises são prejudiciais à própria ciência e à sociedade. A solução-problema, pois para Morin (2005) trata-se mais de colocação de um novo problema do que a do achamento de soluções, encontrada pelos autores defensores de uma ciência alternativa e renovada é a integração das ciências sociais. Tal proposta já faz parte de seus procedimentos teórico-metodológicos. Para Ianni (1989), falando no contexto da produção das ciências sociais no Terceiro Mundo, a integração das ciências sociais pressupõe a volta aos clássicos, uma vez que em suas obras há essa integração. Trata-se da recuperação de uma visão global em detrimento da visão reducionista. A visão global, para Octavio Ianni manifesta-se nestes termos: O “social,” muitas vezes, transfigura-se no “econômico” ou no “político”, e vice-versa. Ou seja, há manifestações do social que somente se exprimem plenamente no plano das ações políticas ou do comportamento econômico. O problema da metamorfose dos eventos sociais, por exemplo, do econômico em político, é um fenômeno que escapa à observação e à interpretação do sociólogo cego às várias dimensões do real. É claro que aqui estamos, de 24 novo, no âmbito da teoria do conhecimento. (IANNI, 1989, p. 145). De fato, trata-se de um debate no campo da epistemologia das ciências. Tal debate torna-se importante pelo motivo de que, conforme Bourdieu (2001b), a ciência não pode cumprir a sua missão de alcance da verdade com objetividade, sem um autoconhecimento, uma autocrítica. É nesse sentido, que ele entende que a sociologia da sociologia, não é só um capítulo do saber sociológico, mas é parte indispensável de qualquer produção sociológica. No mesmo sentido, deve-se dizer que o período pós-guerra, para Ianni (1989), na América Latina, caracterizou-se pela busca de uma “verdadeira ciência”, isto é, aquela que visa à integração das ciências sociais. Cada disciplina, reconhecendo suas limitações, buscava ampliar a sua visão da realidade social estabelecendo o diálogo com os aportes teóricos e metodológicos de outras disciplinas. Para superar o reducionismo metodológico, Bourdieu (1977, 1994) sugeriu a teoria dos campos que buscava integrar o que ele chama de “economia dos bens culturais”, ou as abordagens culturalistas, com a economia dos bens econômicos, ou igualmente, as abordagens materialistas. O conceito de campo, para nós, é fundamental, porque auxilia na construção do campo de desenvolvimento econômico multicultural passando de uma teoria à outra, de um autor ao outro, sem cair no “ecumenismo metodológico”, ou diga-se, uma mistura de teorias e metodologias sem valor heurístico (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 1983). Na perspectiva da sua epistemologia, Morin sugere a teoria da complexidade na superação das teorias reducionistas. O que é a complexidade? Primeiramente, a complexidade é um tecido (complexus: o que foi teado junto) de componentes heterogêneos inseparavelmente associados: ela coloca o paradoxo do um e do múltiplo. Segundo, a complexidade é efetivamente o tecido de eventos, ações, interações, retroações, determinações, riscos, que constituem nosso mundo fenomenal. Mas de fato a complexidade se apresente com os traços preocupantes de residual, do inextricável, da desordem, da ambigüidade, da incerteza... Por isso, a necessidade, para o conhecimento, colocar a ordem nos fenômenos inibindo a desordem, descartar a incerteza, isto é, selecionar os elementos da ordem, tornar menos ambíguo, esclarecer, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, necessárias para a inteligência, correm o risco de tornar cego se eliminar outros carateres do complexus; e efetivamente, como monstrei, tornaram-nos cegos. (MORIN, 2005, p. 21 tradução nossa). A teoria da complexidade opõe-se ao paradigma de disjunção / redução / unidimensionalidade, e propõe o paradigma de distinção / conjunção, que permite distinguir sem separar, de associar sem reduzir, afirma Morin (2005). Esse paradigma, para esse autor, contém o princípio dialógico e translógico que integram a lógica clássica levando-se em conta, ao mesmo tempo, seus limites de facto (problemas de contradições) e de jure (limites de 25 formalismo). O seu princípio é de Unitas multiplex, que escapa à unidade abstrata do alto (holismo) e do baixo (reducionismo). Boaventura de Sousa Santos (2003a) propõe a “hermenêutica diatópica”. Esta faz parte da teoria da “razão cosmopolita” que se opõe à “razão indolente”. No seu texto, “Sociologia das ausências e emergências”, Santos (2003b) trabalha essa questão a partir dessa pergunta: Para quê traduzir? A resposta é que “traduzir para libertar” significa fazer um trabalho de construção assente na razão multicultural/cosmopolita que objetiva dar sentido ao mundo, às populações humanas em crise de sentido. Esta última pergunta compreende todas as outras. Faz sentido, por conseguinte, responder-lhe na forma de conclusão da argumentação expendida neste trabalho. Muito sucintamente, essa argumentação consiste em que a sociologia das ausências e a sociologia das emergências, juntamente com o trabalho de tradução, permitem-nos desenvolver uma alternativa à razão indolente, na forma daquilo a que chamo da razão cosmopolita. Esta alternativa baseia-se na idéia base de que a justiça social global não é possível sem uma justiça cognitiva global. (SANTOS, 2003, p. 43). Com isso, Santos está respondendo a questão de descoberta dos recursos metodológicos para enfrentar os dois problemas epistemológicos colocados em termos de problemas humanos: o problema da fragmentação e o do sentido de lutar para a transformação do mundo. O trabalho de tradução é o procedimento que nos resta para dar sentido ao mundo depois de ele ter perdido o sentido e a direcção automáticos que a modernidade ocidental pretendeu conferir-lhes ao planificar a história, a sociedade e a natureza. A resposta à pergunta “para quê traduzir?” responde à segunda questão que deixei acima formulada: se não sabemos que um novo mundo melhor é possível, o que nos legitima ou motiva a agir como se soubéssemos? A necessidade da tradução reside em que os problemas que o paradigma da modernidade ocidental procurou solucionar continuam por resolver e a sua resolução parece mesmo cada vez mais urgente. Não dispomos, no entanto, das soluções que esse paradigma propôs, e é essa, aliás, a razão da crise profunda em que ele se encontra. Por outras palavras, na fase de transição em que nos encontramos, confrontamo-nos com os problemas para os quais não temos soluções modernas. (SANTOS, 2003, p. 44). É justamente contra os problemas criados pela razão indolente da modernidade ocidental, que a razão cosmopolita busca encontrar soluções emancipatórias. O trabalho de tradução cria as condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiências [...], assente na sociologia das ausências e na sociologia das emergências, apenas permite revelar ou denunciar a dimensão desse desperdício. O tipo de transformação social que, a partir dele pode construir-se, exige que as constelações, de sentido criadas pelo trabalho de tradução, se transforme em práticas transformadoras. (SANTOS, 2003, p. 45). 26 Esse trabalho representa as grandes linhas da sociologia de Boaventura Santos. Através dela se expressa não somente as subdisciplinas de sociologia da ciência, mas, também, a do multiculturalismo. Ele é um dos pontos de partida de onde se constrói a referência teórico-metodológica dessa pesquisa. Com a tradição intelectual alternativa estamos afirmando que a ciência deve ser usada como uma arma para a libertação dos povos oprimidos. 1.2. Ciência como arma de emancipação Observando-se através da ciência alternativa, pode-se dizer que a crise da ciência traduz a crise do humanismo (MORIN, 1999b). Entre tantas concepções que se tem da ciência, há três que consideramos predominantes: uma primeira do tipo liberal, uma segunda revolucionária e uma terceira reformista. A primeira contenta-se com o status quo; a segunda busca alternativa para a sociedade que considera injusta; e a terceira, tende a reconciliar as duas propostas, ficando, na maioria das vezes, como se diz popularmente, “em cima do muro”, indiferente às mudanças nas suas raízes. As teorias que inspiram esse trabalho fazem parte da segunda tendência; a que considera a neutralidade científica como um mito, e como um instrumento da dominação das populações (MÉSZÁROS, 2004). Esta entende que a ciência tem que se colocar a serviço da sociedade; ser um instrumento da liberdade e da libertação. É a partir dessa visão que os africanos e seus descendentes têm-se apropriado da ciência moderna (GILROY, 1993), usando-a como arma de luta contra o escravismo, o colonialismo, o neocolonialismo, o racismo; e busca transformá-la em meio de desenvolvimento de suas comunidades (SANTOS et al., 2003). Esse modelo de ciência fundamenta-se na valorização da multi e transdisciplinariedade (GUTTO, 2006; MORIN, 1999a). Esta concepção do mundo está presente nos “estudos das africanidades”. O Panafricanismo, os Estudos Africanos, a Negritude, os Black Studies, o Afrocentrismo, os Estudos Afro-brasileiros, Os Estudos culturais, como teorias, programas de estudo, disciplinas, nasceram e se desenvolvem tendo a multi e transdisciplinariedade como um dos princípios metodológicos. Os saberes negros rejeitam o procedimento metodológico monolítico-reducionista do pensamento dominante ocidental que fragmenta o conhecimento. Para o fundador do Center African Renaissance Stuidies, Shadrack Gutto (2006, p. 311), as pesquisas e escritas da História Geral da África ilustram essa busca de fazer ciências a partir de um diálogo estabelecido entre diferentes disciplinas. O Center African Renaissance Stuidies, 27 dirigido por Gutto, incorporou essa abordagem metodológica em seus trabalhos. O Pan-africanismo, nesse centro, é usado como ponto de partida de fazer ciência e pensar o Renascimento Africano e de suas diásporas. A visão do Center African Renaissance Stuidies demonstra o continum histórico e a solidariedade existentes entre os saberes negros, africanos e da diáspora. Para o Center African Renaissance Stuidies somente uma abordagem multi, inter e transdisciplinar é capaz de trazer soluções reais aos problemas existentes, que os africanos remanescentes e da diáspora enfrentam, o do seu desenvolvimento. Enfim, os estudos africanos como parte das teorias alternativas estabelecem-se como armas de libertação da ciência e da sociedade colonizadas politica e epistemologicamente. Nessa seara, a ciência deve ser feita sempre com a “consciência” (KI-ZERBO, 2006). São esses princípios, sobretudo, o da interdisciplinariedade e o do uso da ciência como caminho da libertação de povos oprimidos, que alimentam o referencial teórico desse trabalho. A seguir, fazemos a objetivação da construção da teoria do desenvolvimento econômico multicultural, partindo da minha biografia intelectual. Trata-se de uma bioepistemologia que tem por finalidade revelar aos outros elementos que me auxiliaram na construção do meu referencial teórico-metodológico, obedecendo ao princípio do filósofo Karl Popper (1979) segundo o qual a cientificidade de uma teoria consiste em mostrar as bases de sua falsificação, isto é, limites. Em Bourdieu (2001b), isso é feito a partir da objetivação do próprio pesquisador via a socioanálise. Este processo, além de mostrar os limites da teoria construída, torna-se um instrumento de fortaleza para o pesquisador, isto porque é através dele que se pratica a vigilância epistemológica. 1.3 Bioepistemologia como socioanálise Retomaremos, aqui, algumas palavras feitas sobre mim, durante a minha iniciação à pesquisa da pós-graduação no mestrado (MALOMALO, 2005). Vamos confrontá-las com a minha realidade atual de ativista e pesquisador-doutorando, negro da diáspora africana no Brasil. Tal exercício é chamado, na perspectiva de Bourdieu (2001b; 2002a), de “auto-sócio- análise” ou de socioanálise tout court, que denomino de bio-epistemologia. Tanto esta, como a socioanálise, que consistem na objetivação do pesquisador e do seu campo-objeto de estudo, não são um mero exercício de elegância intelectual, pelo contrário, fazem parte do procedimento metodológico bourdieusiano encourado na dúvida radical, crítica e autocrítica; valorizam a experiência de vida pessoal e coletiva no processo da construção do conhecimento. 28 Este trabalho tem muito a ver com a minha biografia pessoal e intelectual. Tem uma ligação direta com o compromisso dos intelectuais anti-racistas na sua luta contra todos os tipos de racismo e dominação (sexismo, xenofobia, colonização, racismo). A busca de um instrumento científico, para compreender a situação de dominação imperialista e neocolonial, levou-me, em 1993, enquanto estudante de Filosofia, a elaborar uma monografia que cogitava as condições de possibilidade da libertação do povo congolês (ex-zairenses) da ditadura militar mobutista, que foi um dos fatores causadores do seu “subdesenvolvimento” socioeconômico. A minha chegada no Brasil, em 1997, e o nosso trabalho pastoral com os descendentes dos africanos nos colocaram em contato direto com a situação de discriminação racial, que estes sofrem na sua própria pátria. Assim, ao concluir o meu curso de Teologia, em 2002, escrevia uma monografia, que refletia sobre as condições de possibilidades de superação do racismo, numa perspectiva teológica feminista negra. É nessa situação do negro-africano, vivendo na diáspora afro-brasileira, que germinaram, tanto a minha pesquisa de mestrado como a do doutorado, meus trabalhos e contatos, como ativista e intelectual, com as organizações sociais, grupos e ONGs do movimento negro brasileiro, de modo especial, a Pastoral Afro-Brasileira (PAB) e o Instituto do Negro Padre Batista (INPB). Estes possibilitaram o meu ingresso, como pesquisador e estudante, no Centro Atabaque Cultura e Teologia Negra (2003), na Universidade Metodista de São Paulo, na Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião (2003), no Núcleo de Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão (NUPE/2004) e no Centro de Estudos de Línguas e Culturas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) (2007), proporcionando-me oportunidades de amadurecimento de minhas inquietações juvenis, e o tempo necessário de transformá-las em projeto de vida pessoal e intelectual. O objetivo do meu trabalho de mestrado foi uma tentativa de análise das experiências coletivas da diáspora negra brasileira no campo da religião e da política, em plena “modernidade”, que visam transformar a sociedade. Minha preocupação, nessa época, orientou-se para a conservação da rica memória histórica da luta pela etnicidade, que os documentos ligados ao Instituto do Negro Padre Batista (INPB) me proporcionaram. Além disso, tomei cuidado para me apropriar de um instrumento cientificamente legítimo, para analisar os dados coletados, combinando a pesquisa teórica e a pesquisa de campo. O exercício que caracterizou esse trabalho foi a busca do equilíbrio entre o compromisso militante e o científico. Tratando-se do último, o objeto dessa pesquisa foi construído sobre uma conglomeração de teorias das disciplinas da sociologia e da antropologia, cuja síntese levou o nome de “teoria da etnicidade”. Por isso, também, foi dado a 29 esse trabalho o título de “Poder simbólico alternativo e identidade étnica no Brasil: estudo do Instituto do Negro Padre Batista na sua luta pelos direitos de igualdade racial”. A temática desse trabalho girou em torno do campo da religião, da política e da etnicidade ou das organizações sociais chamadas de ONGs. O INPB foi abordado em termos de “campo da etnicidade”. O método adotado, para a construção e a análise do objeto desse estudo, foi denominado “método genético-histórico” ou “método histórico-estrutural” da sociologia reflexiva dos campos de Bourdieu, que se baseia na reconstrução histórica e na análise das relações estruturais do campo-objeto de estudo. Essa pesquisa foi elaborada a partir do procedimento metodológico que combina, como dito, a pesquisa teórica e pesquisa de campo. No primeiro caso, os conceitos recolhidos nas fontes bibliográficas foram usados para entender a questão da etnicidade, tal como vivida na sociedade brasileira, no Movimento negro civil e eclesial e, especialmente, no INPB. Tratava-se, portanto, de um estudo de caso. A segunda abordagem metodológica usada, foi a pesquisa de campo. As estratégias e técnicas utilizadas para a sua execução foram essas: a exploração do campo, feita através de observações do portal do INPB, de visitas, de entrevistas informais e formais, que foram registradas no diário de pesquisa de campo; a coleta dos materiais, tais como revistas, boletins, jornais, folhetos, agendas, panfletos, que foram classificados em documentos primários e secundários; a observação parcial dos eventos considerados relevantes, que foram fotografados e filmados; a aplicação do questionário e das entrevistas semi-estruturadas, realizadas a partir de um roteiro que foi tabulado e analisado. Uma parte do material recolhido nas entrevistas, especificamente as perguntas, foi reformulada para se adequar à linguagem da apresentação de dissertação. O INPB foi identificado, nessa pesquisa, como uma organização social, uma ONG negra, híbrida, que incorpora, na sua estrutura, elementos religiosos e seculares para a recomposição da identidade étnica negra dos seus frequentadores. Dessa pesquisa de campo, cuja abordagem foi a sociologia da cultura, os materiais coletados e a experiência do campo, me levavam a suspeitar que havia uma certa afinidade entre a questão do desenvolvimento e as etnicidades negras. O meu contato pessoal, entre 2005-2006, com o Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca e a minha entrada no NUPE foram momentos marcantes para o amadurecimento dessas suspeitas, e a sua transformação em projeto de pesquisa de doutorado. Ao entrar no NUPE, iniciei as trocas de experiências acadêmicas fora do campo das da teologia e das ciências da religião. Comecei a me aprofundar nas questões das relações raciais, não mais a partir do movimento negro eclesial, mas civil e 30 acadêmico. A publicação e a busca da implementação da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana foram outros acontecimentos que tiveram um grande impacto na minha biografia pessoal e intelectual. Em 2005, encontraria um artigo no Jornal Irohìn (ano X, n. 12, p. 19, ago-set. 2005) com esse título: “O impacto da Lei 10.639 para o desenvolvimento nacional” de Jeruse Romão. Ao lê-lo, logo percebi que minhas suspeitas não eram delírios. Assim, veio-me o desejo, não só de investigar esse assunto, mas de contribuir na luta da população negra, refletindo sobre esse tema que, no meu entendimento, era pouco discutido. Retomaria, dessa forma, o meu projeto de graduação em filosofia sobre o tema do desenvolvimento. Outras atividades, cursos de formação, publicações, palestras, em torno dessa lei, e o debate republicano sobre a temática da integração do negro na atualidade, às quais tivemos acesso, como protagonista ativo ou passivo, têm contribuído na consolidação do meu projeto de doutorado. Ora continuaremos apresentando outros passos da nossa história social servindo-me da objetivação bourdieusiana. As atividades realizadas foram divididas em dois blocos: as disciplinas cursadas e a produção intelectual e outras atividades. Como se verá, suas fontes foram os espaços acadêmicos e os movimentos negros que frequento. O primeiro espaço se define a partir da minha situação de estudante de programa de pós-graduação em Sociologia na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp. O segundo espaço, do seu lado, define a minha identidade a partir da minha inserção no movimento negro acadêmico, civil e eclesial, quais sejam, o NUPE e o CLADIN, o Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, a Pastoral Afro-Brasileira e o Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB) do qual sou um dos fundadores e assumo o cargo de secretário diretor geral. As disciplinas cursadas contribuíram, significativamente, no processo de construção dessa pesquisa. O ritual de institucionalização da identidade de um intelectual-pesquisador, na pós-graduação, passa pelo cumprimento de créditos. Ciente de que o aprendizado não se limita somente na acumulação de créditos, cursei três outras disciplinas para a ampliação de meus conhecimentos em relação ao objeto dessa investigação. Esta seção será dividida em duas partes. A primeira descreve, literalmente, o material ao qual tive acesso durante o cumprimento de créditos em 2006. A segunda retrata alguns elementos essenciais das disciplinas extracurriculares. 31 As duas primeiras disciplinas que cito me ajudaram a desenhar o quadro de dois agentes da teoria do desenvolvimento econômico multicultural: o Estado e a sociedade civil. A disciplina “Poder Local no Brasil”, em 2006, lecionada pela professora, cientista política, Maria Teresa Miceli Kerbauy e o sociólogo, Antônio Sérgio Araújo Fernandes, tinha esses objetivos: A modernização da sociedade brasileira que passa a ocorrer a partir da segunda metade do século XX, traz consigo a urbanização, a democratização do sistema político e o avanço da cidadania. O tema da ampliação da cidadania no Brasil urbano, e sua relação com o poder público local é algo que foi, e é exaustivamente estudado a pelo menos, três décadas. Cabe notar que no Brasil ainda que o tema do poder local tenha recebido um tratamento empírico razoável, torna-se difícil não afirmar uma certa limitação analítica do ponto de vista teórico nesta área, seja pelo excesso de ingredientes normativos e/ou politicamente engajados que comumente se encontra no conjunto desta literatura, seja pela excessiva postura micro-sociológica da grande maioria dos estudos até aqui realizados. Assim, torna-se fundamental para quem realiza ou pretende realizar estudos sobre Poder local no Brasil a compreensão mais acurada sobre as formas de reflexão empíricas e teórico- metodológicas desta área. Este curso tem o objetivo geral de estudar a produção teórico-metodológica e empírica desta importante área de estudo que é o poder local no Brasil, procurando observar seus limites e possibilidades analíticos. Pra tanto, busca-se discutir a evolução das principais abordagens prevalecentes no caso brasileiro acerca dos estudos de poder local, destacando as principais tendências que surgiram nos últimos anos. Essa disciplina possibilitou-me o acesso às ideias e metodologias que apontam a mobilização e participação dos movimentos sociais e dos gestores públicos na construção do espaço público, da democracia e da cidadania. O Grupo de Estudo “Estado e Governo” coordenado pela professora Maria Teresa Miceli Kerbauy, possibilitou-me discutir a implementação de políticas públicas, do ponto de vista institucional. Isto foi de fundamental importância, pelo fato da minha pesquisa discutir a implementação de políticas públicas de ações afirmativas pelo Estado, pela sociedade civil e pelo setor privado. Este último agente do desenvolvimento econômico multicultural, o setor privado ou mercado, foi apreendido a partir das disciplinas que têm por objeto de análise a economia ou o desenvolvimento econômico que abordamos mais adiante. A disciplina intitulada “Teorias Sociológicas Clássicas: Marx Weber” lecionada pelo sociólogo e cientista político, Marco Aurélio Nogueira, em 2006, possibilitou-me construir o conceito de políticas públicas, que é visto aqui como resultado das ações dos três agentes do desenvolvimento econômico multicultural. Os objetivos dessa disciplina aparecem na sua ementa. 32 [...] Partindo do reconhecimento de que a perspectiva e os temas de Weber constituem uma das grandes referências das ciências sociais e têm se reposto continuamente no debate contemporâneo, o curso procurará realizar um balanço preliminar desse fato, de modo a explorar tanto a validade em si e a especificidade das proposições weberianas mais imediatamente políticas, quanto o diálogo (implícito ou explícito) que com elas estabeleceram alguns importantes autores contemporâneos: Lukács, Gramsci, Bobbio, Giddens e Habermas. Entre os temas discutidos nesta disciplina, destacam-se estes: a racionalidade e a compreensão; o tradicionalismo, racionalização, modernidade; a ação social, legitimidade, dominação; o Estado moderno, burocracia, desencantamento do mundo; a liderança carismática; a emancipação racionalidade instrumental e a política; Weber e o Brasil. Weber me ajudou no fundamento do conceito de políticas públicas, pela minha apropriação da sua teoria de ação social. As ações afirmativas são tratadas nessa perspectiva, mas, tomando-se sempre o cuidado de lê-las na sua complementaridade, com as abordagens marxistas. Nesse caso, a teoria dos campos de Bourdieu, que é uma junção do idealismo weberiano e do materialismo marxista, me levou a conceber as políticas públicas do multiculturalismo como práticas sociais construídas com base nas relações de força. No mesmo sentido, a disciplina “A atualidade do universo crítico-conceitual marxiano: a obra de Mészáros”, em 2006, da socióloga, Maria Orlanda Pinassi, foi fundamental. Objetivos: realizar a leitura imanente de parte substancial da obra do filósofo húngaro István Mészáros a fim de apreender os nexos essenciais do seu projeto crítico analítico sobre o capital e suas formas de controle social, bem como da síntese marxiana que realiza para expor as contradições do sistema sócio-metabólico do capital. Essas abordagens marxistas apuraram o meu senso crítico em relação às políticas de ações afirmativas que vêm sendo implementadas no Brasil. Tanto nos debates travados com os colegas marxistas na sala de aula, nos corredores, como a leitura das obras analizadas, possibilitaram-me elaborar as interrogações críticas e autocríticas do tipo: até que ponto as políticas de ações afirmativas visam à emancipação da população negra? Não seriam políticas paliativas? Não estariam compactuando com a lógica do capital? Não seriam reformistas, em vez de serem revolucionárias? A disciplina “Teorias Sobre o Racismo e Discursos Anti-racistas”, do professor Kabengele Munanga da Universidade de São Paulo, foi feita em 2006, tinha esses objetivo: Atualizar a discussão teórica sobre o fenômeno “racismo” nas sociedades contemporâneas, fornecendo aos alunos instrumentos conceituais que lhes permitem analisá-lo no tempo e no espaço. Essa discussão visará tanto às especulações e construções raciologistas e racistas, quanto aos discursos anti-racistas formulados pelos cientistas de vários ramos de saber e pelos ideólogos e movimentos sociais envolvidos. Situando o problema no plano 33 internacional e numa perspectiva histórica, pretende-se proporcionar aos alunos elementos críticos para que possam sair dos lugares comuns, entender melhor a sociedade concreta na qual estão inseridos e analisar o racismo à moda brasileira não como um caso isolado, apesar de suas peculiaridades. Quanto ao conteúdo, foram abordados estes temas: no campo-etno-semântico: usos e sentidos dos conceitos de raça e racismo; alguns panoramas da história do racismo: antiguidade clássica, idade média, modernidade ocidental, mundo árabe e islâmico; sociedades contemporâneas: disciplinas científicas contemporâneas/relações entre grupos e culturas nas sociedades contemporâneas; doutrinas racistas: gobinismo, darwinismo social, nazismo, arianismo; discursos e ações anti-racistas; alguns temas atuais relacionados com o racismo: sexo e racismo, gêneros e racismo, raça e identidade, racismo e multiculturalismo, racismo e políticas de ação afirmativa. Como se percebe, essa disciplina me auxiliou na construção do campo do multiculturalismo. Mas, a concepção da teoria do desenvolvimento econômico multicultural só foi possível graças à combinação dos elementos dessa disciplina com outras que tinham por objeto de análise a economia ou o desenvolvimento. O “Seminário de Pesquisa: Doutorado”, conduzido pela ilustre professora, Maria Teresa Miceli Kerbauy da UNESP, em 2006, foi um momento de teste do projeto dessa investigação, através do confronto de ideias feitas, via exercício escolástico: exposição, questionamentos e respostas. Além das disciplinas obrigatórias para o cumprimento dos créditos, cursei mais três extracurriculares, para ampliar meus conhecimentos em relação ao objeto da investigação. Estas me auxiliaram na compreensão da relação entre a economia e o desenvolvimento. Comecemos pela disciplina da professora economista, Luciana Togeiro de Almeida, “Desenvolvimento socioeconômico”, oferecida aos alunos de graduação, em 2006. Objetivos: Discutir o conceito, indicadores, abordagens e teorias do desenvolvimento econômico. Analisar os determinantes numa perspectiva histórica: da ênfase em capital físico, ao debate sobre escolhas de políticas, tecnologia, capital humano, fatores institucionais. Apresentar o pensamento da CEPAL sobre o desenvolvimento da Periferia e a abordagem da dependência. Discutir a abordagem do desenvolvimento nas propostas do Consenso e Pós-Consenso de Washington. Refletir sobre os desafios de desenvolvimento da América Latina à luz do debate mais geral sobre desenvolvimento. Estruturou-se a partir desses autores e temas: introdução: conceitos e indicadores; 1) Sen: introdução: desenvolvimento como liberdade; a perspectiva da liberdade; os fins e os meios do desenvolvimento; mercados, estado e oportunidade social; Furtado: a profecia do 34 colapso; o mito do desenvolvimento econômico; objetividade e ilusionismo em economia; Daly e Veiga: desenvolvimento sustentável; Pnud; - banco mundial; 2) economia do desenvolvimento: a Cepal versus a doutrina do livre comercio: presbish; Rodrígues; Bielshowsky; 3) dependência e desenvolvimento: Cardoso e Faletto; Haber; Bielshowsky; 4) desenvolvimento em perspectiva histórica: Chang; Abramovay; 5) Consenso e pós-consenso de Washington: Willamson; Banco Mundial; Rodrik; 6) a América Latina na economia mundial: Ricupero; Unctad. A disciplina de “História Econômica do Brasil”, lecionada pelo economista e sociólogo Adilson Marques Gennari, em 2006, para os alunos de Pós-Graduação em Economia da Unesp. Objetivos: Ciclos econômicos, agricultura de exportação e agricultura voltada para o mercado interno. Escravidão e formação do mercado de trabalho livre. Transformações na agricultura; Origens e desenvolvimento da industrialização. Infra-estrutura. Bancos e mercado de capitais. Sindicatos e mercado de trabalho. Estado, grupos sociais e política econômica. A República Velha. A era Vargas. A crise do início dos anos sessenta. A política econômica na era da ditadura militar. Crise da dívida externa e colapso do padrão de financiamento. O combate à inflação inercial e os planos de estabilização. Crise financeira global. Reforma monetária e política cambial. Globalização e neoliberalismo no Brasil. O roteiro da disciplina traz ideias sobre os temas debatidos: apresentação do programa e o sentido da colonização: Caio Prado Jr; a mudança de eixo dinâmico: Celso Furtado; apogeu e crise da primeira República: Winston Fritsch; a particularidade brasileira ou via colonial: Maria Angélica Borges; José Chasin; Florestan Fernandes; a transição capitalista: Sergio Silva; João Manoel Cardoso de Mello; Francisco de Oliveira; o projeto de Getúlio Vargas: Francisco Corsi; o plano de metas: Carlos Lessa; Francisco de Oliveira; José Serra; o modelo de substituição de importações: Maria da Conceição Tavares; Celso Furtado; a crise do desenvolvimento no governo João Goulart: Adilson Gennari; o milagre econômico, salto para o caos, crise e mudança estrutural: Maria da Conceição Tavares; José Serra; Paul Singer; a crise dos anos 1980: o heterodoxo e o pós-moderno: Bier et all; a guinada dos anos noventa, aberturas e desregulamentações: Ricardo Carneiro; Adilson Gennari; reforma monetária e Plano Real: Pérsio Arida e André Lara Resende; Luiz Figueiras; globalização, nova corporação, exército industrial de reserva e ornitorrinco: Adilson Gennari; Francisco de Oliveira; José Carlos de Sousa Braga. Cursei uma outra disciplina intitulada “Estudos comparados sobre desenvolvimento em países emergentes”, com os professores, sociólogos da USP, Álvaro Comin e Glauco Arbix, em 2006. O objetivo deste era analisar, comparativamente, o desenvolvimento nos países 35 emergentes. Eis a estrutura do curso: Bloco I: aula 1: Abertura; enquadramento teórico do curso: objetivos e relevância; apresentação do desenvolvimento como campo disciplinar específico. Introdução à formação das principais escolas; aula 2: teoria clássica e neoclássica (John Martinussen; Robert Wade); a aula 3: neo-institucionalismo (Douglass North; M. Cimoli; R. Nelson; J. Stiglitz); aula 4: Shumpter e sua linhagem; aula 5: estruturalismo, desenvolvimentistas e o Estado planejador (John Martinussen). O Bloco II: aula 6: repensar as políticas de crescimento nos países em desenvolvimento (John William; Dani Rodrik; Johnson Chalmers); aula 7: adesões e trajetórias distintas: Confronto entre América Latina e Ásia (Alice Amsden; Robert Wade; Dajin Peng); aula 8: Heterodoxia versus ortodoxia nos países que mais cresceram: Japão (Johnson Chalmers); aula 9: China (Yingyi Qian; Edwin Lim); aula 10: Coréia do Sul (Alice Amsden; O.Kwo); aula 11: Índia (Dani Rodrik; T. N. Srinivasan); aula 12: México (Juan Carlos Moreno-Brid); aula 13: Brasil (Derthier Stern); aula 14: Pontos para uma estratégia alternativa (Joseph Stiglitz; Peter Hall; David Soskice). Essas três disciplinas e minhas leituras pessoais permitiram-me conceber a teoria do desenvolvimento alternativo, tendo o espaço nacional e internacional como referências. As disciplinas cursadas me possibilitaram ter acesso a um conjunto de material que facilitou a organização da parte bibliográfica dessa pesquisa. Tanto as disciplinas cursadas para obtenção de créditos, como as extracurriculares, convenceram-me da importância de estudar as relações entre políticas de ações afirmativas e desenvolvimento econômico e social. Durante esse período, pude observar uma ausência da população negra nos discursos dos docentes responsáveis das disciplinas, como nas bibliografias apresentadas, exceto na disciplina do professor Kabengele Munanga, “Teorias sobre o Racismo e Discursos Antiracistas”, onde ela é estudada com foco na realidade global e local; da mesma forma ocorreu no “Seminário de pesquisa de doutorado”, onde tive a oportunidade de apresentar o meu projeto de pesquisa. Isto significa que o subsídio recolhido precisou ser reapropriado considerando-se os interesses da minha investigação. Atuei, do mesmo modo, na elaboração dos trabalhos destinados à obtenção de crédito. Em todo caso, foi uma fase importante que contribuiu para a construção do objeto dessa pesquisa. Enfim, devo dizer que no último relatório semestral de bolsistas (2006-2007), entregue ao Programa de Pós-graduação em sociologia, destacava-se o otimismo e a plena confiança que tinha em relação ao andamento da minha pesquisa. Vários fatores contribuíram para a emergência de tal clima, que em momento nenhum significa negar as dificuldades encontradas na sua elaboração, como mostrarei em outros capítulos. As atividades que acabei de descrever nas seções precedentes, certamente, auxiliaram, diretamente. Na ocasião da 36 apresentação daquele relatório dizia que “a estrutura pedagógica do Programa de Pós- graduação em Sociologia, as disciplinas cursadas, a presença do meu orientador possibilitaram-me, até aquele período, desenvolver o meu trabalho de pesquisa”. Não só isso, os debates intelectuais nos eventos científicos, comunitários e o processo de publicações ampararam-me no sentido de testar, cada vez mais, as hipóteses e os objetivos desta pesquisa, assim como o seu amadurecimento. Com tudo isto, quero dizer, que me ajudaram a criar estratégias de construção do objeto dessa pesquisa e a teoria que o sustenta. Antes de apresentar os fundamentos da teoria do desenvolvimento econômico multicultural, gostaria, ainda, de continuar com a socioanálise, focando nos motivos que me levaram a investigar sobre o tema desse trabalho. 2. Escolhas acadêmicas como escolhas da vida Este item “Escolhas acadêmicas como escolhas da vida” é parte da bioepistemologia. Na linguagem acadêmica é geralmente conhecida como o item de “justificativa e revisão da literatura”. O que as normas acadêmicas recomendam, geralmente, é colocá-lo na introdução do trabalho. Pelas minhas convicções epistemológicas e metodológicas quis exercer a minha liberdade no sentido de inseri-lo nesse capítulo. Pois, para mim, tem muito a ver com as bases epistemológicas do referencial teórico desse trabalho. Parto da consideração de Antônio Joaquim Severino de que a justificativa implica também o que chamamos de revisão de literatura para explicar o objetivo desse item. Justificativa: nesse tópico do Projeto, cabe adiantar a contribuição que se espera dar com os resultados da pesquisa, justificando-se assim a relevância e a oportunidade de sua realização, mediante o desenvolvimento do projeto. Este é o momento de se referir então aos estudos anteriores já feitos sobre o tema para assinalar suas eventuais limitações e destacar assim a necessidade de se continuar a pesquisá-lo e as contribuições que o seu trabalho dará, justificando-o desta maneira. É o que denomina a revisão de literatura, processo necessário para que se possa avaliar o que já se produziu sobre o assunto em pauta, situando-se, a partir daí, a contribuição que a pesquisa projetada pode dar ao conhecimento do objeto a ser pesquisado. (SEVERINO, 2008, p. 130). Considero este capítulo como elemento da primeira parte desse trabalho que tem por objetivo oferecer os elementos epistemológico-metodológicos dessa pesquisa. Diferente do item anterior que destacou os motivos de ordem pessoal aqui, quero mais mostrar as razões “científicas” que me levaram a escolher o assunto em pauta. Como se verá, não se trata de fazer uma revisão exaustiva, mas na contingência da minha realidade do ser humano e pesquisador, tento mostrar, fundamentando-me no princípio da teoria do campo de Bourdieu 37 (2004, 2001b) de que é dentro dos limites de cada teoria que nascem novas descobertas científicas, os limites e avanços das produções que precederam essa tese. Além disso, devo confessar que houve uma evolução dos fatos desde o início desta minha investigação em 2006 até o início de 2010. Pois, a sociedade e o campo científico são realidades dinâmicas. 2.1. Ponto de partida: superando os reducionismos “Repensando o multiculturalismo e o desenvolvimento no Brasil: Política públicas de ações afirmativas para a população negra (19995-2009)” é o título desta pesquisa. Mas, por que elaborar um trabalho com esse título? O que isto significa? Qual é a sua justificativa? Uma parte da resposta a essa pergunta foi dada no item que tratou da história de vida do autor desse trabalho. Para repeti-la de outra forma, diria que as desigualdades raciais, entre brancos e negros, reveladas pelo Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) Brasil (2005), Racismo, pobreza e violência, e a maneira como o debate sobre as cotas e as ações afirmativas vêm sendo conduzido, nos interpelaram profundamente. Nesse último caso, o reducionismo caracteriza os posicionamentos em favor ou contra cotas, perdendo-se de vista a complexidade do tema1. Essas observações fazem parte da minha experiência de ativista e pesquisador negro envolvido com esta questão, como indicado na minha biografia. Outros pesquisadores, entre muitos, Marcelo Paixão (2005b, 2006a), Sérgio Costa (2006), Andreas Hofbauer (2006), vêm questionando o debate sobre ações afirmativas e cotas, no mesmo sentido. O quê falta, no momento, é um diálogo entre os estudos das relações raciais, do multiculturalismo e do desenvolvimento na atualidade. Desde a gestação desta pesquisa, em 2005, até o momento, a minha observação dos fatos evocados, acima, vem se confirmando cada vez mais. Entendemos que a temática de políticas de ações afirmativas faz parte da velha questão da emancipação e da integração do negro. Como expressão de liberdade substantiva (SEN, 2000; PAIXÃO, 2005b, 2006a) buscada pelos próprios negros ou pensada pela classe dominante branca, essa velha questão tinha no seu bojo o tema do desenvolvimento dessa população. É dessa forma que se 1A guerra simbólica entre os dois grupos pode se perceber em suas publicações. O ponto comum entre ambos é que se autodeclaram anti-racistas. Os que são contra cotas escreveram, entre outros, esses textos: A ÍNTEGRA DO MANIFESTO CONTRA DIVERSOS DISPOSITIVOS (2006), Não somos racistas: Uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor (KAMEL, 2006), Divisões perigosas: Políticas raciais no Brasil contemporâneo (FRY et al., 2007), A revolução quilombola : Guerra racial, confisco agrário e urbano, coletivismo (BARRETO, 2007); MANIFESTO (2007), ANTICOTAS (2008); as reações dos que estão a favor das cotas expressaram-se nessas obras: MANIFESTO EM FAVOR DA LEI DE COTAS (2006), MANIFESTO PRÓ-COTAS (2008), MANIFESTO EM DEFESA DA JUSTIÇA (2008). Tudo mostra que o grande problema é a questão de cotas. 38 justificam as hipóteses e os objetivos desta pesquisa. Com isto estamos afirmando a urgência da construção de um marco teórico-metodológico que possa auxiliar a sociedade brasileira a pensar, na sua complexidade, as políticas ações afirmativas; todavia, pensá-la na sua dimensão relacional com a temática do desenvolvimento social e econômico. Para tanto, não é preciso delimitar a investigação nos discursos acadêmicos que deram nascimento às ciências sociais brasileiras. É preciso, então, ter em mente, que outros registros não científicos (manifestações e organizações culturais, sociais, políticas e econômicas) produzidos pelos negros e brancos no Brasil, são vestígios históricos para a investigação do objeto deste estudo. Trata-se de uma reviravolta metodológica e conceitual no sentido de Boaventura de Sousa Santos (2003). Na perspectiva, desse autor existe uma pluralidade de produções de saberes e conhecimentos que vão além do quadro acadêmico. 2.2. Quatro fases dos estudos das relações raciais Acabamos de afirmar, acima, que o tema de cotas e ações afirmativas faz parte do debate da emancipação e integração do negro. A questão da emancipação era discutida no Brasil Colônia2 pelos homens políticos e intelectuais como José Bonifácio de Andrade e Silva (2006), e no meio dos abolicionistas por Joaquim Nabuco (2002), Luiz Gama e outros. No século XVIII, José Bonifácio de Andrade e Silva já discutia a abolição progressiva e a concessão de terras para o cultivo, tanto para negros como para os índios, apesar da sua postura colonizadora e racista. Os movimentos abolicionistas também discutiram a questão da reforma agrária e da emancipação de negros pela educação (NABUCO, 2002; CARDOSO, 1965); já com a atuação de Luiz Gama como rábula, estamos na presença das primeiras “ações afirmativas” de assistência jurídica para negros. No período pós-abolição, esse debate girou em torno da temática da identidade nacional. Estávamos na primeira metade da República quando as ciências sociais foram se formando. Já na sua gênese, elas debatem o “problema do negro”. Tem se dividido, geralmente, os estudos sobre o negro, em quatro fases: a fase dos pioneiros (século XIX até 1930), a fase de Gilberto Freyre (1930-1950), a fase de Florestan Fernandes (1950-1980) e pós-Florestan Fernandes (1980 até hoje). Essa divisão não deve ser tratada de uma forma linear, pelo contrário, de uma forma interativa (PAIXÃO, 2005a). A primeira fase é marcada pela discussão entre aqueles que defendiam a mestiçagem 2 Segue-se a periodização da história brasileira de Ianni (2004e): Brasil Colôlia (1500-1822), Brasil Monárquico (1822- 18889) e o Brasil República (1899 a nossos dias). 39 do povo brasileiro e aqueles que eram contra ela. O pensamento desses homens da ciência brasileira fundamentava-se na antropologia física racialista. Os que eram contra, como Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, eram pessimistas, ao mesmo tempo (MUNANGA, 2001); pois, acreditavam que a mestiçagem seria causadora da degeneração do povo brasileiro (PAIXÃO, 2005). “Na história dos nossos estudos das relações de raça, os homens que mais se equivocaram foram Nina Rodrigues e Oliveira Vianna. Ambos se basearam no pressuposto da inferioridade do negro e do mestiço” (RAMOS, 1995, p. 179). Para Ramos, Nina Rodrigues é tratado como apologista do Branco, e a teoria de Vianna como arianizante. Entre aqueles que eram a favor e, obviamente, otimistas em relação à miscigenação, pode-se citar, Sílvio Romero. Mas, a sua teoria não escapou da “ideologia da brancura” (RAMOS, 1995). Retomando Paixão (2005a, p. 248): “o literato sergipano tendeu a ser mais otimista acreditando que desse processo caldeador, resultaria o próprio brasileiro do futuro, ou seja, bran