UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA IRANDO ALVES MARTINS NETO ESTRATÉGIAS DE LEITURA: RELAÇÕES ENTRE AS CONCEPÇÕES DO MATERIAL LINGUAGENS, CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS: LÍNGUA PORTUGUESA E A PRÁTICA DOCENTE Presidente Prudente – SP 2015 IRANDO ALVES MARTINS NETO ESTRATÉGIAS DE LEITURA: RELAÇÕES ENTRE AS CONCEPÇÕES DO MATERIAL LINGUAGENS, CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS: LÍNGUA PORTUGUESA E A PRÁTICA DOCENTE Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP/Campus de Presidente Prudente, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza Presidente Prudente – SP 2015 FICHA CATALOGRÁFICA Martins Neto, Irando Alves. M344e Estratégias de leitura : relações entre as concepções do material Linguagens, Códigos e suas tecnologias: língua portuguesa e a prática docente / Irando Alves Martins Neto. - Presidente Prudente: [s.n], 2015 159 f. Orientador: Renata Junqueira de Souza Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Estratégias de leitura. 2. Material didático. 3. Prática docente. I. Martins Neto, Irando Alves. II. Souza, Renata Junqueira de. III. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. IV. Estratégias de leitura : relações entre as concepções do material Linguagens, Códigos e suas tecnologias: língua portuguesa e a prática docente. Dedico esta dissertação a minha querida mãe, mulher pobre e guerreira que abandonou suas vontades individuais em favor de uma maior (e alheia): o crescimento intelectual de seus três filhos. AGRADECIMENTOS Sei que é verdade que não conseguirei nomear todas as pessoas que me ajudaram a realizar esta pesquisa. E isso é natural, uma vez que a elaboração da problemática partiu de inquietações surgidas já na graduação, mas meu trajeto até a realização deste estudo de mestrado foi construído ao longo de toda a vida. Portanto, optei por mencionar aquelas pessoas que participaram mais diretamente da pesquisa e de minha formação durante o curso de mestrado bem como os familiares que, sem dúvidas, contribuíram no processo. Inicio agradecendo aos sujeitos participantes da pesquisa, sem os quais não seria possível sua realização: ao autor do material do Currículo do Estado de São Paulo entrevistado, por responder seriamente às questões, mostrando preocupação com o ensino da leitura e sendo extremamente respeitoso para com o pesquisador; à professora observada, por me permitir examinar, do ponto de vista de pesquisador, o seu trabalho, mesmo em uma sala de aula com condições desfavoráveis para um ensino de qualidade. À minha orientadora, professora doutora Renata Junqueira de Souza, por todas as discussões e indicações de leitura que foram (des)construindo conceitos e formas de ver o objeto de estudo; pela confiança, liberdade de expressão e apoio que me foram dados em todos os momentos da pesquisa: desde a elaboração dos objetivos até a escrita desta dissertação. Aos professores Divino, Alberto, Yoshie e Tuim, que possibilitaram a construção de novos conhecimentos durante a minha formação como mestre em Educação no que diz respeito à Filosofia e à metodologia de pesquisa. Ao professor Odilon, bakhtiniano apaixonado pela Linguística, por suas reflexões acerca da linguagem, sem as quais não seria possível um trabalho consistentemente fundamentado; por ler meu projeto de pesquisa, fazendo apontamentos riquíssimos, na ocasião do Seminário de Pesquisa em Educação. Aos professores Paulo Raboni, Dagoberto Arena e Max Butlen, pelas grandiosas contribuições e questionamentos, tornando possível uma análise mais ampla e crítica dos dados coletados durante a pesquisa. A todos os integrantes do grupo “Formação de Professores e as relações entre as práticas educativas em leituras, literatura e avaliação do texto literário”, por incitarem discussões fundamentais para a valorização da pesquisa sobre leitura e literatura. Às queridas pessoas do CELLIJ (Ana Laura Garro, Cristine Reis, Davi Matos – God rest his soul – Edna Mara, Flávia Ferreira, Gislene Barbosa, Izabele Dias, Josany Leme, Marlon Silva, Paula Dantas, Silvana Ferreira, Taisa Andrade), com quem aprendi muito sobre leitura, escrita, literatura, biblioteca e contação de histórias. À Juliane Motoyama, pelas horas de estudos e desabafos; pela companhia nas viagens a eventos; pelo apoio nos momentos de ceticismo em relação à pesquisa; pelos cafés filosóficos. À Vania Belão, pelas discussões e inquietações levantadas sobre estratégias de leitura; pelas incontestáveis contribuições dadas a meu projeto, na ocasião do Seminário de Pesquisa em Educação; À Berta Lúcia Feba, professora e amiga, pelo incentivo à pesquisa e pelo exemplo de docente a ser seguido. Ao Bruno Marini, pelas conversas presenciais e via Skype e pelo apoio em seguir em frente. À Valéria Santos, pelas dicas sobre questões burocráticas da universidade bem como pela companhia em Belém do Pará, na ocasião do IV Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários. À Thaís Borella, por me ouvir e me animar nos momentos em que precisei falar. À Marta Quadros, por contribuir com questões metodológicas da minha pesquisa. Ao querido ex-chefe, Ricardo Sonvezzo, que sempre se dispôs a remanejar meus horários de aula, adequando-os às necessidades do curso de mestrado. A minha mãe, Maria Ferreira, por me apoiar incondicionalmente aos estudos; por compreender que o crescimento intelectual está em primeiro lugar; por estar sempre presente. A minha irmã, Camila Martins, por ouvir as queixas da pesquisa, dando-me as forças necessárias para seguir em frente. Ao meu irmão, Rômulo Martins, pelas dicas de escrita no texto final. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo auxílio financeiro importantíssimo, principalmente durante as observações de aula e entrevista com elaborador do material analisado, quando precisei me locomover em busca dos dados. Toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma em que ela se dê). Mikhail Bakhtin RESUMO Neste estudo, vinculado à linha de pesquisa “Infância e Educação” do Programa de Pós- graduação em Educação da FCT/Unesp, campus de Presidente Prudente, preocupamo- nos com a relação entre a prática docente e a teoria adotada pelo material utilizado nas escolas estaduais do Ensino Fundamental II e Ensino Médio do Estado de São Paulo, mais precisamente, Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa (2013). Como o material não explicita a vertente teórica em que se fundamenta para o ensino de estratégias de leitura, nossa hipótese era que tal teoria pudesse ser incongruente com a concepção que o professor tem a respeito de estratégias, bem como incoerente com sua prática. Portanto, buscamos compreender as relações entre a prática e as concepções de um professor do 6.º ano e o material Linguagens, Códigos e suas tecnologias: língua portuguesa (2013) no que diz respeito às estratégias de leitura. A partir disso, propomos um trabalho sistematizado que possa solucionar algumas dificuldades enfrentadas pelo docente na utilização do material. Para tanto, tornou-se necessário, em primeiro lugar, desvelar qual a vertente teórica que sustenta as estratégias de leitura presentes no material como também identificar e caracterizar quais estratégias são propostas. Posteriormente, evidenciamos em qual perspectiva teórica o professor se fundamenta para o ensino de estratégias de leitura, verificando se ele tem consciência ou não disso para, então, podermos comparar a teoria adotada pelo material com a utilizada pelo professor em sala de aula. Nesse sentido, utilizamos como metodologia o estudo de caso a partir de uma abordagem qualitativa e como instrumentos de coleta de dados a análise documental, a entrevista semiestruturada e a observação. Os resultados não confirmam nossa hipótese inicial, pois tanto a docente observada como o material têm concepções convergentes acerca de estratégias. No entanto, ambos apresentam inconsistência teoria. O material não sistematiza um trabalho específico para o ensino de estratégias, mas as propõe de maneira aleatória sempre como pretexto para outros fins. A docente segue as propostas executando intervenções relativamente pertinentes com o material, fazendo com que parte dos alunos resolva as questões propostas. Todavia, também não enfatiza o ensino de estratégias de compreensão leitora. Palavras-chave: Estratégias de Leitura. Material Didático. Prática Docente. ABSTRACT This research, joint to Universidade Estadual Paulista‟s Post-graduate Program in Education, aims to comprehend, regards to reading strategies, the relations between practices and conception of a teacher and Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa (2013), a set of materials used in public Elementary and High Schools in São Paulo State. From this relation, a systematically planned class was suggested, in order to solve some problems faced by the observed teacher when using the material. Firstly, the theoretical branch which grounds the reading strategies present in the material was revealed, as well as the strategies were described. Later, the teacher‟s perspective regarding reading strategies was evidenced through lesson observations and, afterwards, it was checked whether the teacher whose lessons were observed was aware of the theory used in practice. After comparison of theory adopted by the material to the one used by the teacher, a systematic planned lesson was suggested, in order to present some solutions for the problems identified in the relation teacher‟s practice vs. material concepts. This is a study case of qualitative approach whose tools for data collection were: documental analysis, open-ended interviews and lesson observations. Outcomes show that both teacher and material have similar concepts regards to reading strategies. However, both of them are theoretically incoherent. Material does not plan a specific work for teaching reading strategies, since they appear randomly, always as a pretext for other ends. Teacher follows the activities, doing interventions relatively appropriate to the material, so as students could solve the questions proposed. On the other hand, the focus is not on reading strategies either, but on other contents, once the reading strategies are also a pretext. Kewords: Reading Strategies. Textbook. Teachers‟ Practice. LISTA DE QUADROS Quadro 1- Levantamento de teses e dissertações em universidades públicas do Estado de São Paulo ....................................................................................................................... 18 Quadro 2- Levantamento de teses e dissertações sobre estratégias de leitura em Programas de Pós-graduação ......................................................................................... 22 Quadro 3- Levantamento de teses e dissertações sobre estratégias de leitura em Programas de Pós-graduação em Educação .................................................................. 23 Quadro 4- Síntese das ações e procedimentos metodológicos da pesquisa ................... 29 Quadro 5- Quantidade de volumes e Situações de Aprendizagem ................................ 36 Quadro 6- Gêneros discursivos contemplados pelo material ........................................ 46 Quadro 7- Estratégias de leitura e seus objetivos .......................................................... 61 Quadro 8- Estratégias para compreensão da tipologia .................................................. 62 Quadro 9- Análise do texto narrativo ............................................................................ 66 Quadro 10- Estratégias para compreensão do gênero ................................................... 71 Quadro 11- Análise do suporte ...................................................................................... 72 Quadro 12- Estratégias para compreensão do discurso ................................................. 80 Quadro 13- Síntese do capítulo “A questão teórica das estratégias de leitura no Currículo do Estado de São Paulo: fundamentação ou intuição?” ................................ 87 Quadro 14- Transcrição parcial da aula 7 ...................................................................... 97 Quadro 15- Transcrição parcial da aula 15 .................................................................... 99 Quadro 16- Estratégias e metodologias contempladas pela docente durante a leitura do conto “Meu tio Jules” .................................................................................................. 108 Quadro 17- Transcrição parcial das aulas 15 e 16 ....................................................... 116 Quadro 18- Síntese do capítulo “As paredes têm ouvidos? Pseudodialogismo em aulas de um 6.º ano” .............................................................................................................. 122 Quadro 19- Gráfico organizador para elaboração e checagem de previsão: antes de ler ...................................................................................................................................... 132 Quadro 20- Miniaula sobre os sentidos de “ostra” ...................................................... 134 Quadro 21- Gráfico organizador para identificação das ideias principais do conto: durante a leitura ........................................................................................................... 135 Quadro 22- Leitura do conto “Meu tio Jules” – Parte I ............................................... 135 Quadro 23- Leitura do conto “Meu tio Jules” – Parte II ............................................. 137 Quadro 24- Leitura do conto “Meu tio Jules” – Parte III ............................................ 138 Quadro 25- Leitura do conto “Meu tio Jules” – Parte IV ............................................ 139 Quadro 26- Gráfico organizador para elaboração e checagem de previsão: depois de ler ...................................................................................................................................... 140 Quadro 27 – Gráfico organizador para identificação das ideias principais do conto: depois da leitura ........................................................................................................... 142 SUMÁRIO Introdução: da inquietação do pesquisador aos procedimentos metodológicos .... 14 1. O ensino da leitura nas concepções do Estado: na prática, a teoria é outra? .... 34 1.1 Sobre o Programa São Paulo Faz Escola (SEE-SP) ................................................ 34 1.2 Linguagem, texto e leitura em Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa: concepções e ensino .................................................................................. 38 2. A questão teórica das estratégias de leitura no Currículo de São Paulo: fundamentação ou intuição? ....................................................................................... 51 2.1 Inferir, levantar hipóteses, resumir: habilidades ou estratégias? ............................. 56 2.2 Estratégias para compreender a tipologia ................................................................ 62 2.3 Estratégias para compreender o gênero ................................................................... 71 2.4 Estratégias para compreender o discurso ................................................................. 79 2.5 Para encurtar a conversa .......................................................................................... 87 3. As paredes têm ouvidos? Pseudodialogismo em aulas de um 6.º ano ................. 90 3.1 “Só sei que eu coloquei na prática essa teoria aí que dá certo”: estratégias de compreensão ou estratégias de atenção e concentração? ............................................... 99 3.2 “O que isso tem a ver com a história?” Valores teóricos e práticos no ensino da ideia principal do texto.......................................................................................................... 115 3.3 Das relações prática e discurso docente x material e discurso do elaborador ....... 122 4. Práticas educativas para o ensino das estratégias de leitura ............................. 127 4.1 Estratégias de leitura e ensino na perspectiva da metacognição ........................... 128 4.2 Determinado o que é mais importante: sumarização/identificação das ideias principais do conto “Meu tio Jules” ............................................................................ 130 Considerações finais .................................................................................................. 143 Referências ................................................................................................................. 146 Apêndice A ................................................................................................................. 151 Apêndice B .................................................................................................................. 155 14 Introdução: da inquietação do pesquisador aos procedimentos metodológicos O meu percurso até a escolha do tema deste trabalho, “estratégias de leitura em material didático”, não se resume à problemática evidenciada no início do curso de mestrado, mas remonta também a experiências pessoais e profissionais construídas nas relações com o „outro‟ por meio da linguagem e em minhas relações com a própria linguagem. Portanto, peço licença ao meu leitor e ouso começar esta dissertação sintetizando um acontecimento de infância. Arrisco-me a afirmar que „tudo‟ começou aos meus onze anos de idade. Lembro- me do dia quando, voltando para casa com a minha mãe, soube de sua admiração pelo fato de o Papa (João Paulo II, em 1999) falar vários idiomas. Na semana seguinte, revelei aos meus pais a minha vontade de ingressar em um curso de inglês. Minha mãe precipitou-se com uma indagação inesperada do ponto de vista de que é comum que os pais incentivem seus filhos aos estudos. De maneira severa, perguntou-me se realmente estava interessado ou se era apenas empolgação instantânea, completando que me inscreveria em uma escola, mas que me tiraria caso eu não estivesse levando a sério. De certa forma, sua pergunta fazia sentido: seria vontade própria de aprender um novo idioma ou uma tentativa de um filho do meio de chamar atenção de uma mãe com olhos voltados ao primogênito e de um pai exclusivo da caçula? Seja lá o que for, o fato é que realizei, já em 1999, o meu então mais recente sonho: começar a aprender inglês. Não foi necessária mais de uma aula para eu decidir que aquilo era o que eu queria. Aos quinze anos, indicado por um professor do Ensino Médio, comecei a lecionar algumas aulas particulares a três graduandas em Letras que tinham dificuldades com a língua. Muito embora minhas alunas insistissem que eu tivesse o “dom” (termo usado por elas) de ensinar, eu teimava, de outro lado, que professor eu não queria ser, quando, na verdade, já estava sendo. Queria ser, repetia eu, tradutor! Aos dezesseis anos, quando finalizei a educação básica, saí do curso de inglês para ingressar em um de Tradutor/Intérprete. Todavia, por razões financeiras, precisei abandonar, com muita angústia, o curso, e voltar para a minha cidade. De meados de 2005 a meados de 2008, trabalhei e lecionei, esporadicamente, algumas aulas particulares enquanto resolvia o que estudar. Como na região onde moro não há graduação em Tradução, decidi ingressar, em agosto de 2008, no curso de Letras da 15 Faculdade de Presidente Prudente (FAPEPE). Afinal de contas, quem faz Letras não precisar atuar como professor; pode ser também tradutor. Desde o primeiro semestre, fiquei encantado com as aulas de Linguística e Literatura. Era incrível compreender a formação da linguagem e a habilidade de certos falantes de usar a palavra para transformar o „outro‟, aquele que os lê ou os escuta. Mesmo que eu fosse apaixonado por gramática, vê-la como apenas uma parte da língua (parte relativamente pouco complexa, quando comparada ao caráter dialético, dialógico e interacional das manifestações enunciativas) fez-me ainda mais entusiasmado com o curso de Letras. Ver e compreender a Literatura além da linha do tempo desenhada pela professora do Ensino Médio e dos “-ismos” que definiam, de maneira descontextualizada, as características dos movimentos literários era salutar. Estava decidido: eu queria ser professor! Em 2009, fui convidado a participar do projeto “Bolsa Escola Pública e Universidade na Alfabetização”, uma das ações do “Programa Ler e Escrever”, que contrata estudantes universitários para atuar como alunos-pesquisadores, auxiliando os professores alfabetizadores nas escolas públicas da rede do Estado de São Paulo. Além da ida diária de quatro horas à escola onde atuava, discutíamos, os outros bolsistas, a professora-orientadora e eu, nossas experiências à luz de teorias sobre letramento duas vezes por mês. Esta etapa não foi apenas crucial para minha formação docente, mas também plantou em mim a semente da pesquisa científica. Infelizmente, por questões burocráticas, a instituição de ensino onde estudava não pôde dar continuidade no projeto. No segundo semestre de 2009, então, fui contratado pela Cultura Inglesa, onde atuei como monitor de inglês até 2011, quando fui promovido ao cargo de professor. Na sala de aula, o desafio e a responsabilidade de ensinar uma segunda língua inquietavam-me e me fazia refletir acerca das possíveis soluções para os problemas cotidianos que surgiam. Como professor, lecionei principalmente em cursos regulares de inglês, para alunos de 09 a 65 anos, o que me permitiu sempre (re)pensar na abordagem de ensino, uma vez que os de idade mais avançada geralmente estavam pouco “abertos” para aulas não embasadas em materiais didáticos. Para eles, a aprendizagem de uma segunda língua deveria ocorrer por meio do ensino de gramática e tradução. O inverso também ocorria: as crianças participavam ativamente das atividades socioculturais, das discussões em grupos, das atividades de leitura e escrita, mas muitas vezes resistiam às tarefas que envolvessem um caráter mais sistemático da língua. 16 Ainda estive à frente de dois projetos envolvendo alunos de escolas públicas. Em ambos, os estudantes da rede (em um deles, discentes da rede estadual e, em outro, da rede municipal) iam à Cultura Inglesa para cursar o idioma durante o ano. A experiência foi singular. Com público diferente, as aulas, embora com abordagem exigiam uma seleção de textos e de temáticas diferentes, pois os alunos tinham um conhecimento de mundo mais limitado em relação a lugares, viagens, livros e filmes, e um repertório mais amplo no que se refere ao trabalho e às diferenças. Além de atuar em curso regular, fui professor de Inglês para Fins Específicos (English for Specific Purpose – ESP), principalmente nas seguintes áreas: médica, jurídica, publicitária e inglês para vestibular. Nesse campo, grande parte das aulas acontecia individualmente, apenas professor e um aluno. A escolha dos textos e de seu tratamento didático dependia, então, do objetivo do aluno: passar em exame de proficiência de pós-graduação, participar de congressos, fazer negócios internacionais, conquistar promoção de emprego, adquirir conhecimentos da área etc. 2011 foi, sem dúvida, cheio de aprendizagem: além do emprego como professor, eu fazia o último ano de graduação e estágio supervisionado. A graduação, nesse período, causou-me a necessidade de ir além, de não finalizar aquelas discussões sobre linguagem, literatura e ensino por ali. O estágio supervisionado, por me permitir evidenciar as tantas problemáticas presentes no ensino de língua na escola, confirmava tal necessidade. Decidi prestar, então, o processo seletivo para tentar ingressar no curso de mestrado em Educação e estudar sobre as Salas de Leitura. Não fui aprovado. Ainda em 2011, fui a um evento oferecido pelo Programa de Pós-graduação em Educação da FCT/UNESP, quando e onde conheci a Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza, orientadora desta dissertação, que me convidou a participar das reuniões do grupo de pesquisa “Formação de professores e as relações entre as práticas educativas em leituras, literatura e avaliação do texto literário”, realizadas semanalmente no CELLIJ. Os integrantes debatiam, à época, acerca das estratégias de leitura, compreendendo estratégias como ações deliberadas a fim de atingir uma meta, nesse caso, de chegar a compreensão textual. O estudo pautava-se na perspectiva da metacognição, ou seja, no conhecimento do próprio conhecimento, de modo que o leitor estratégico pudesse utilizar as estratégias de leitura conscientemente, sendo capaz de auto monitorá-las de acordo com seus objetivos de leitura. 17 As reuniões do grupo de pesquisa são realizadas no Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil (CELLIJ), que conta com três grandes áreas: contação de histórias, estratégias de leitura e formação de professores, todas elas relacionadas com o texto literário. Durante um ano, estive à frente do grupo de estudos “Estratégias de leitura e biblioteca escolar: leitura e formação do leitor”, cujo objetivo principal foi promover ações mediadoras de estímulos à leitura por meio das estratégias de compreensão. Para tanto, o grupo também contava com graduandos do curso de Pedagogia. Juntos, elaborávamos e aplicávamos atividades de leitura em duas salas de aula do 5.º ano de uma escola pública de Presidente Prudente. Tais atividades eram embasadas em teorias sobre leitura, estudadas semanalmente pelos integrantes dos grupos. As estratégias faziam muito sentido para mim, pois conseguia relacioná-lo facilmente com a concepção de linguagem dialógica aprendida na graduação e com a aplicação da teoria das estratégias em sala de aula. E foi o que comecei a enfatizar nas aulas na Cultura Inglesa e no estágio supervisionado da graduação. Durante o estágio na disciplina de Língua Portuguesa, notei que o docente cujas aulas foras observadas fazia, por meio de lições sobre leitura, com que seus alunos utilizassem algumas estratégias de compreensão. No entanto, as lições diziam respeito às tarefas propostas pelo material que o docente adotava. Tal material refere-se aos Cadernos do Professor e do Aluno 1, elaborado e distribuído pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, por meio do Programa São Paulo Faz Escola, cuja intenção principal é a de que todas as escolas da rede tenham um plano de aula comum, para que todos os educandos possam chegar a um mesmo nível de aprendizagem. No entanto, percebi que o material não evidencia em qual perspectiva teórica se embasa no que concerne às estratégias de leitura. Embora elenque algumas (e, ainda assim, não as define tampouco as teoriza), a maioria aparece implícita nos questionários de leitura e nas instruções para o professor. Então, a partir da questão problema “a vertente teórica adotada pelo material em relação às estratégias de leitura converge e/ou 1 Todas as disciplinas recebem os Cadernos, que são elaborados a partir de pressupostos teórico- metodológicos propostos por currículos, também resultado do Programa São Paulo Faz Escola. A disciplina de Língua Portuguesa enquadra-se na área denominada “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. Por isso, neste trabalho referimo-nos ao material estudado como “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa”, uma vez que analisamos a parte do Currículo destinada à disciplina e os Cadernos do Professor e do Aluno. O primeiro capítulo desta dissertação discorre sobre o tema. 18 diverge das concepções que o professor tem a esse respeito?” desenvolvi um projeto de pesquisa e me inscrevi mais uma vez, em 2012, no processo seletivo de mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da FCT/UNESP. Aprovado, desta vez, iniciei com aluno regular em março de 2013. Em 2013, além de cumprir os créditos em atividades complementares e em disciplinas, sob a orientação da Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza, busquei estudos que versam sobre o tema “estratégias de leitura”, sobretudo em programas de pós- graduação em Educação em duas universidades públicas paulistas em um período de dez anos (2003-2012): a Universidade Estadual Paulista (UNESP) e a Universidade de São Paulo (USP). O intuito foi conhecer alguns trabalhos sobre o tema, procurando desenvolver uma pesquisa que fosse relevante, considerando os fenômenos e/ou objetos que já foram compreendidos a respeito de estratégias de leitura. Quadro 1 – Levantamento de teses e dissertações em universidades públicas do Estado de São Paulo Universidade Programa de Pós-Graduação Número total de trabalhos (2003-2012) da Universidade Número de trabalhos sobre “Estratégias de leitura” Percentual de trabalhos sobre “Estratégias de leitura” (%) Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara Educação Escolar 433 0 0,0% Universidade Estadual Paulista, campus de Marília Educação 366 0 0,0% Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente Educação 216 02 0,925% Universidade de São Paulo, campus de São Paulo Educação 1028 01 0,0972% Total 07 2043 03 0,147 Fonte: Consulta aos bancos de dissertações e teses de Programas de Pós-Graduação, 2014. 19 A consulta aos bancos de teses e dissertações foi feita via site das referidas universidades. Após ler cada título dos bancos de dados da UNESP e da USP, realizava a leitura de todos os resumos das teses ou dissertações que tratassem (ou sugerissem tratar) do tema “leitura”, lendo na íntegra apenas os trabalhos que versassem sobre estratégias de leitura, nesse caso, três, dois do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UNESP, campus de Presidente Prudente, e um do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Um dos trabalhos sobre estratégias de leitura desenvolvidos na UNESP é de autoria de Silvana Ferreira de Souza, sendo orientado pela Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza. Defendida em 2009, a dissertação intitulada “Estratégias de leitura para a formação da criança leitora” traz resultados de aplicações de tarefas que privilegiassem o uso das estratégias de leitura apresentadas por Isabel Solé (1998) mediante o texto literário. Souza (2009) aplicou as atividades em aproximadamente 31 horas, separando- as em três momentos, sendo que cada qual contemplava um título infantil e determinadas estratégias. A pesquisa foi desenvolvida em uma 3.ª série do Ensino Fundamental I (4.º ano, hoje) na cidade de Junqueirópolis e contou com a participação de 19 educandos. Além da filmagem das aulas, os dados também foram coletados por meio de “diários de leitura”, material onde os alunos registravam suas impressões, opiniões, sugestões e reflexões sobre os textos lidos. A análise dos dados fez a pesquisadora chegar a três conclusões: 1- o trabalho com estratégias de leitura a partir do texto literário favoreceu o desenvolvimento de práticas compartilhadas, ajudando, por meio de diálogo entre os pares, na inserção daqueles não inseridos socialmente no ato de ler; 2- as estratégias de leitura permitiram que os alunos realizassem diferentes modos de leitura; e 3- as estratégias propostas por Solé (1998) contribuíram para a construção de sentidos ao texto literário. Na dissertação “A leitura através do currículo: uma análise do PCN de Língua Portuguesa – a compreensão em foco”, de Marcela Coladello Ferro, sob a orientação do Prof. Dr. Odilon Helou Fleury Curado e da Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza, também desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP de Presidente Prudente, a pesquisadora preocupa-se em analisar a concepção e o tratamento didático de leitura contemplada pelo PCN de Língua Portuguesa destinado aos quatro primeiros anos do Ensino Fundamental, sobretudo no que diz respeito às estratégias de compreensão leitora. Ferro (2012) conclui que, embora a leitura seja entendida em nível 20 de compreensão pelo material, o documento não fornece suporte para o tratamento didático. Nesse sentido, a pesquisadora considerou importante acrescentar, no trabalho, uma discussão que aprofundasse o assunto, apresentando, com base em estudos sobre o tema, uma articulação entre a proposta do PCN e o ensino das seguintes estratégias de leitura: ativar o conhecimento prévio para se conectar com o texto, criar imagens mentais, fazer perguntas ao texto, antecipar, inferir, sumarizar e sintetizar. A tese de doutorado de Luciana Sedano de Souza, orientada pela Profa. Dra. Anna Maria Pessoa de Carvalho e defendida em 2010 na Faculdade de Educação da USP, apresenta alguns indícios da compreensão leitora em aulas de Ciências. Para tanto, a pesquisadora articulou o ensino das ideias principais do texto com conteúdos da disciplina de Ciências. Souza (2010), partindo principalmente dos pressupostos de Solé (1998), aplicou lições de leitura em uma sala de aula de quarto ano de uma escola pública da cidade de São Paulo, em que os alunos precisavam grifar o que considerassem ser a ideia principal do texto, discutindo, após tal tarefa, seus destaques e o porquê de cada um deles. Apesar da pesquisadora focar na estratégia de determinar as ideias principais do texto, ela confessa que os educandos utilizam outras, como a inferência. Além disso, a transcrição das aulas anexada à tese mostra que a pesquisadora utiliza as estratégias “levantamento de hipóteses” e “ativação de conhecimento prévio” durante aplicação das tarefas, talvez até de maneira inconsciente. Os resultados da pesquisa apontam que aliar determinada sequência didática voltada ao ensino de Ciências à estratégia de grifar a ideia principal de um texto, discutindo sobre o procedimento e sobre a leitura, favorece a construção de relações entre o que se compreende da leitura e o objeto de estudo que tal sequência didática visa ensinar. Buscamos também no banco de teses e dissertações da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) pesquisas entre os anos de 2003 e 2012 que tratassem sobre o tema. Como o sistema de busca não organiza os trabalhos por ano de defesa e as datas de disponibilidade dos textos raramente coincidem com o ano de defesa (por exemplo, há trabalhos que foram disponibilizados em 2007, mas defendidos em 1984), nosso levantamento foi feito com as palavras-chave “leitura” e “estratégias de leitura”. A partir de então, lemos os títulos e alguns resumos que sugeriam tratar do assunto. No entanto, não encontramos nenhuma pesquisa sobre o tema na Faculdade de Educação da referida universidade durante os dez anos citados. Encontramos, porém, dois estudos 21 desenvolvidos no Departamento de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP: um em 2005 e outro em 2007. A pesquisa de Luciana Sales Pires Soares, intitulada “O leitor e os sentidos do texto: o uso de estratégias de raciocínio”, orientada pela Profa. Dra. Eunice Ribeiro Henriques e defendida em 2005, embasou-se na teoria de Johnston sobre as “estratégias de raciocínio” e nas “três intenções” de Umberto Eco, a fim de analisar as estratégias utilizadas por três grupos de leitores: um do Ensino Fundamental, um do Ensino Médio e outro do Ensino Superior. Para tanto, caracterizou e investigou as estratégias, examinando, comparando e contrastando o processo da construção de sentidos em cada grupo. Os resultados apontam que os leitores menos proficientes geralmente utilizam a maneira de leitura bottom-up, por dirigirem sua atenção para palavras isoladas e sentenças e recorrerem a estratégias que refletem sua própria competência linguística. Os leitores mais proficientes, por outro lado, tendem a vislumbrar o texto como um todo, por meio do processo top-down. Além disso, dependendo do tipo de texto, os leitores mais jovens e/ou menos proficientes, tendem a se limitar nas próprias intenções, enquanto os mais velhos e/ou mais experientes geralmente focam na intenção do autor ou do texto. Soares (2005) conclui que é importante identificar as estratégias usadas pelos estudantes e o tipo de intenção que buscam no texto a fim de ajudá-los a chegar à compreensão. O estudo de Luciana Amgartem Quitzau, “Leitura de tirinhas em provas do vestibular UNICAMP: interpretações dos textos e das questões”, objetiva analisar as estratégias de leitura utilizadas por vestibulandos para chegar às respostas a duas questões de Língua Portuguesa da 2.ª fase do vestibular da UNICAMP. No entanto, a autora foca nas estratégias apenas em uma das questões, preocupando-se, na outra, com os aspectos contextuais que determinaram as interpretações dos candidatos. Quitzau (2007) utiliza principalmente as estratégias de processamento apontadas por Kleiman (2004), como: formulação de hipóteses, testagem de hipóteses (para confirmação, refutação ou revisão e depreensão do tema), ativação de conhecimento prévio, associação de conhecimento prévio e elementos formais (visíveis e/ou com alto grau de informatividade), relação entre partes do mesmo texto. Quitzau (2007) evidencia que os vestibulandos utilizam as estratégias de formular hipóteses, associando elementos formais a outros elementos do texto, deixando, todavia, de testar tais hipóteses. A pesquisadora não analisa (ou, pelo menos, não informa o leitor) se o fato dos candidatos 22 não testarem suas hipóteses dificulta ou não a compreensão. Quitzau (2007) nota que os enunciados influenciam nas estratégias utilizadas pelos candidatos, pois os vestibulandos preocupam-se mais com a função social do teste (selecionar) do que com a função social do texto (no caso da tirinha analisada, causar humor), ou seja, as estratégias utilizadas pelos candidatos caminham para o seu objetivo, que é o de ingressar na universidade. Desse modo, respondem de acordo com o que imaginam que o avaliador quer encontrar, focando mais nos enunciados que propriamente em suas hipóteses de leitor. Mais adiante, com o intuito de apresentar um panorama maior da pesquisa sobre o tema, foi feita uma “busca avançada” no banco de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) a partir da expressão “estratégias de leitura”. Foram encontrados 37 trabalhos nos mais variados programas de pós-graduação: Quadro 2 – Levantamento de teses e dissertações sobre estratégias de leitura em Programas de Pós- graduação Programa Quantidade de teses e dissertações Educação 11 Linguística 04 Educação Matemática 02 Inglês: Estudos Linguísticos e Literários 02 Letras e Linguística 03 Letras Neolatinas 02 Língua Portuguesa 02 Ciências da Linguagem 01 Cognição e Linguagem 01 Ensino de Ciências 01 Estudos Linguísticos 01 Letras 01 Letras: Linguística e Teoria Literária 01 Linguística Aplicada 01 Linguística e Letras 01 Música 01 Psicologia 01 Química 01 18 37 Fonte: Banco de dados da Capes, 2014. Dos onze estudos desenvolvidos em Programas de Pós-graduação em Educação, um deles, o de Marcela Coladello Ferro (2012), já foi mencionado nesta dissertação. No quadro a seguir, apontamos os outros dez: 23 Quadro 3 – Levantamento de teses e dissertações sobre estratégias de leitura em Programas de pós- graduação em Educação Título do trabalho Autor Instituição A leitura e as formações discursivas na formação docente: entre o discurso da evolução biológica e as estratégias no ensino de ciências (Dissertação) Leandro Siqueira Palcha Universidade Federal do Paraná A leitura na formação do universitário e suas intervenções nos processos educativos: formas de interação com o meio (Dissertação) Deline Farenzena Universidade de Caxias do Sul As estratégias elaboradas por crianças em processo de apropriação da leitura: uma análise a partir da interação com instrumentos de avaliação em larga escala (Tese) Joyce Carneiro de Oliveira Universidade Federal do Ceará Ler com os ouvidos: concepções e práticas escolares de leitura de professoras na educação infantil (Dissertação) Patrícia Batista Bezerra Universidade Federal de Pernambuco Língua Portuguesa: um olhar sobre a abordagem didática da leitura no Ensino Fundamental (Dissertação) Rosa Maria de Souza Leal Santos Universidade Federal de Pernambuco O eixo letramento no currículo de educação básica do Distrito Federal: Ensino Médio (Dissertação) Roselene de Fatima Constantino Universidade de Brasília O universo fantástico de Rodari nas aulas de língua italiana: construindo leitores (Tese) Stefania Ciambelli Alves Universidade de São Paulo Práticas de ensino de compreensão de leitura e conhecimentos de alunos do último ano do Ensino Fundamental I (Dissertação) Cynthia Cibelle Rodrigues Fernandes Porto Universidade Federal de Pernambuco Representações sociais dos professores de Língua Portuguesa sobre estratégias/práticas de leitura em sala de aula no ensino médio (Dissertação) Marilene Rezende Duarte Universidade Católica de Santos Uso de estratégias metacognitivas de leitura em alunos da disciplina de inglês instrumental (Dissertação) Simara Cristiane Braatz Universidade Federal do Paraná Fonte: Banco de dados da Capes, 2014. A maioria dos trabalhos, no entanto, não tem como objeto de estudo as estratégias de leitura. O termo “estratégias” aparece como: a) metodologia de ensino de leitura; b) metodologia de pesquisa, de modo que as estratégias de leitura foram utilizadas como um meio para investigar outros aspectos da leitura; c) modos de ler; d) estratégias de leitura propriamente ditas, mas sem ênfase no seu estudo; aparece como uma necessidade de ensino dentro de várias outras necessidades. 24 Em recente levantamento de trabalhos sobre estratégias de leitura no Brasil, Karnal (2014) destaca que quando a ênfase dos estudos é as estratégias propriamente ditas eles não estão diretamente relacionados com o ensino. Por sua vez, quando o foco é a pedagogia, a fundamentação teórica principal não se relaciona com estratégias de leitura, embora o título carregue tal rótulo. É o estudo de Braatz (2011) que se preocupa exatamente com as estratégias de leitura como procedimentos para se chegar à compreensão do texto. A autora analisa a consciência metacognitiva de 19 alunos da disciplina de Inglês Instrumental em um curso técnico de uma instituição de ensino federal. Embasando-se principalmente em Kato (1999; 2004) e Kleiman (2004; 2011), o estudo evidencia alta consciência de estratégias de leitura pelos alunos, com predomínio das estratégias de “resolução de problemas”, mas também as estratégias de “suporte à leitura” e das estratégias “globais de leitura”. Quanto à relevância do tema “estratégias de leitura”, ela é apontada por diversos autores (Solé, 1998; Harvey e Gouvdis, 2007; Kopke Filho, 2002; Girotto e Souza, 2010, entre outros), os quais consideram que as estratégias de compreensão leitora devam ser ensinadas. Levando em conta o caráter dialógico-interacional da linguagem, subentende-se que a construção de significados somente ocorre quando há interação, isto é, ação entre interlocutores. Assim sendo, o leitor tem tanta importância quanto o escritor no processo de produção de sentidos, visto que “em graus diferentes de complexidade, um texto é sempre lacunar, reticente. Apresenta „vazios‟ – implícitos, pressupostos, subentendidos – que se constituem em espaços disponíveis para a entrada do outro” (BRANDÃO, 2005, p. 271). Por isso mesmo, não basta saber reconhecer sílabas para compreender, mas é necessária uma série de estratégias que ajudam o leitor a evidenciar o que está subjacente ao texto. De acordo com os estudiosos supracitados, as estratégias são procedimentos aos quais leitores recorrem para chegar à compreensão do material impresso. Para Solé (1998, p. 73), ao lermos, “[...] usamos nossa capacidade de pensamento estratégico, que embora não funcione como „receita‟ para ordenar a ação, possibilita avançar seu curso em função de critérios de eficácia.” No entanto, Solé (1998) aponta que, na sala de aula, depois que as crianças adquirem o domínio do código escrito, o trabalho com a leitura costuma a se restringir a ler o texto e responder a algumas perguntas sobre ele. Para a autora, embora essas atividades de pergunta-resposta sejam categorizadas pelos 25 manuais, guias didáticos e pelos próprios professores como atividades de compreensão leitora, elas referem-se à avaliação da compreensão, pois avaliam o entendimento do texto, isto é, o docente tem um balanço do produto, mas não intervém no processo que conduz a esse resultado. Nesse sentido, com base nas pesquisas desenvolvidas, na relevância do tema e na problemática já anunciada, a de que a vertente teórica adotada pelo material Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa (2013) acerca de estratégias de leitura pode ser incongruente com a concepção que o professor tem a esse respeito bem como incoerente com a sua prática, consideramos, minha orientadora e eu, necessário compreender o material como também sua relação com as concepções e práticas do professor que o utiliza, para que pudéssemos responder a questões como: o material é relevante no quesito estratégias de leitura? O material tem valor para o professor quanto ao ensino de estratégias? Sem a explicitação da vertente teórica, o professor consegue intervir, de forma pontual, na aprendizagem dos alunos em relação ao ensino de estratégias de leitura? É necessária uma teorização das estratégias de leitura presentes no material para posterior formação do docente? O professor tem consciência da teoria que utiliza ou segue, inconscientemente, o passo a passo elaborado pelo material? No entanto, após coleta de dados com vistas a compreender o material e sua utilização em sala de aula no quesito estratégias de compreensão leitora, inquietamo-nos com as fragilidades encontradas (no material e em sua utilização pelo professor) no ensino da leitura, de modo que decidimos sugerir atividades de leitura a partir do ensino das estratégias aos professores usuários desse material. Assim, o objetivo principal deste trabalho foi compreender as relações entre a prática e as concepções de um professor e o material Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa (2013) no que diz respeito às estratégias de leitura, sugerindo uma sistematização no ensino de estratégias. Para tanto, elaboramos os seguintes objetivos específicos:  desvelar qual vertente teórica sustenta as estratégias de leitura presentes no material;  identificar e caracterizar as estratégias de leitura propostas pelo material;  evidenciar em qual perspectiva teórica o professor se fundamenta para o ensino de estratégias de leitura; 26  compreender se o professor tem consciência da teoria que sustenta sua prática docente no que se refere a estratégias de compreensão leitora;  propor, a partir da prática observada, uma atividade de leitura sistematizada mediante o ensino das estratégias de compreensão. A fim de atingir os objetivos acima mencionados, utilizamos a abordagem qualitativa de pesquisa. A pesquisa foi realizada em cinco etapas. A primeira foi a análise documental. Esse instrumento de coleta de dados “pode se constituir numa técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja completando as informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema” (LÜDKE & ANDRÉ, 1986, p. 38). No nosso caso, trata-se da análise qualitativa do material Linguagem, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa (2013) destinado ao 6.º ano do Ensino Fundamental II: os Cadernos do Professor e os Cadernos do aluno. Como há um volume por bimestre, o corpus de análise resulta em um total de oito Cadernos, quatro do Professor e quatro do Aluno 2. Também analisamos a parte do Currículo destinada à disciplina de Língua Portuguesa. Com isso, desvelamos qual vertente teórica sustenta as estratégias de leitura presentes no material, bem como identificamos e caracterizamos as estratégias propostas. Tal análise aconteceu entre novembro de 2013 e março de 2014. A segunda etapa refere-se à entrevista realizada com um dos autores do material pesquisado. Para Lüdke e André (1986, p. 33), a entrevista é “[...] uma das principais técnicas de trabalho em quase todos os tipos de pesquisa utilizados nas ciências sociais”, acrescentando que essa técnica “[...] ganha vida ao se iniciar o diálogo entre entrevistador e entrevistado” (p. 34). Uma das razões dessa entrevista foi por entendermos que os dados coletados contribuiriam na investigação sobre a teoria adotada pelo material didático, iniciada na análise documental. Além disso, ajudaram- nos a compreender como os elaboradores idealizam a relação do professor com o material. 2 A partir de 2014, os Cadernos do Aluno dos primeiro e segundo e dos terceiro e quarto bimestres foram integrados, ou seja, cada educando passou a receber dois volumes por ano, um para cada semestre. Nesse sentido, são disponibilizados, agora, quatro Cadernos por ano: dois do Aluno e dois do Professor. O conteúdo não foi alterado. Neste trabalho, necessitamos manter os oito volumes, visto que nossa análise documental iniciou-se ainda em 2013. 27 Utilizamos a entrevista semiestruturada, pois, embora ela se desenrole a partir de um esquema básico, não é aplicada rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as adaptações necessárias (LÜDKE & ANDRÉ, 1986). Desta maneira, preparamos perguntas principalmente sobre a) o perfil de aluno e professor idealizado na elaboração do material; b) os critérios considerados para a seleção/elaboração de textos e também para elaboração das tarefas de compreensão leitora; c) a concepção de texto e o embasamento teórico em relação às estratégias de leitura; d) as estratégias de leitura contempladas pelo material bem como a metodologia esperada que o professor utilize para seu ensino; e) a utilização ou não pelo professor do manual didático como referência; f) a conscientização ou não do professor sobre a teoria que embasa as estratégias de leitura contempladas pelo material. Essa etapa ocorreu em março de 2014. O registro foi feito por meio de gravação e tomada de notas. A terceira fase diz respeito à observação de práticas educativas. De acordo com Lüdke e André (1986, p. 26), a observação permite “[...] um contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado, o que apresenta uma série de vantagens. Em primeiro lugar, a experiência direta é sem dúvida o melhor teste de verificação da ocorrência de um determinado fenômeno”. Além disso, “a observação direta permite também que o observador chegue mais perto da „perspectiva do sujeito‟” (LÜDKE & ANDRÉ, 1986, p. 26). Nessa pesquisa, observamos 30 aulas de Língua Portuguesa ministradas a um 6.º ano na escola estadual por nós denominada “Mário Quintana”, situada na cidade de Presidente Prudente/SP, a fim de evidenciar em qual perspectiva teórica o professor se fundamenta para o ensino de estratégias de leitura. Embora a pesquisa diga respeito à relação do professor com um determinado material, deixamos claro ao sujeito estudado que ficasse à vontade para continuar seu trabalho a seu modo, mesmo que isso também envolvesse materiais outros que não o analisado. Não houve participação do pesquisador, caracterizando-o, dessa maneira, como “observador total” (LÜDKE & ANDRÉ, 1986). Enfim, foi realizada, durante os meses de abril, maio e junho de 2014, uma “observação sem intervenção”, com registros de tudo o que foi observado. O registro foi feito mediante gravação e anotações. A escola foi selecionada por meio de orientação do Professor Coordenador de Núcleo Pedagógico (PCNP) de Língua Portuguesa da Diretoria Regional de Ensino parceira e a escolha da sala de aula participante foi orientada pela Professora Coordenadora de Apoio à Gestão Pedagógica da referida escola. Chamaremos a professora cujas aulas foram observadas de Lúcia. 28 No quarto momento, entrevistamos a professora cujas aulas foram observadas. Para que tivéssemos mais flexibilidade, foi utilizada a entrevista semiestruturada. Como o objetivo dessa etapa foi compreender se o professor tem consciência da teoria que sustenta suas práticas docentes no que se refere às estratégias de compreensão leitora ou se apenas segue, inconscientemente, as lições do material, fizemos perguntas principalmente sobre a utilização das sugestões do manual do professor como apoio didático, a formação quanto à abordagem utilizada pelo material, o conhecimento da teoria que fundamenta as lições de leitura propostas pelo material, a metodologia utilizada para o ensino de leitura, o conhecimento da metodologia adotada pelo material para o ensino de estratégias de leitura, o trabalho da docente ou não com as estratégias etc. A entrevista aconteceu em junho de 2014, sendo que o registro foi feito por meio de gravação e tomada de notas. Entrevistamos o professor apenas após as observações, para que ele não fizesse tantas alterações em suas aulas, o que poderia prejudicar não somente a pesquisa, mas também, e principalmente, sua prática docente. Isso não significa que deixamos de apresentar os objetivos da pesquisa desde antes da observação, sem comprometer a fidedignidade deste estudo. Além disso, realizar a entrevista após as observações nos ajudou a esclarecer algumas ações da prática da docente, evitando interpretações errôneas. Por fim, propomos, a partir da prática observada, atividades de leitura por meio do ensino de estratégias de leitura. Para tanto, sistematizamos um trabalho antes, durante e após a leitura do conto “Meu tio Jules”, apresentado pelo material analisado e abordado pela docente observada. Para elaboração das tarefas, utilizamos como referencial teórico principalmente Girotto e Souza (2010) e Solé (1998). Como podemos ver, trata-se do caso particular das relações teórico-práticas de um professor e a vertente teórica adotada pelo material que ele utiliza acerca de estratégias de leitura, caracterizando essa pesquisa, desse modo, como um estudo de caso. Nesse tipo de abordagem, como explicam Lüdke e André (1986, p. 18-19), com a “[...] variedade de informações, oriunda de fontes variadas, ele [o pesquisador] poderá cruzar informações, confirmar ou rejeitar hipóteses, descobrir novos dados, afastar suposições ou levantar hipóteses alternativas”. Por essa razão, além da observação de aula, consideramos importante a análise qualitativa dos materiais, a entrevista com o professor e com um dos autores do material analisado, a fim de cruzar as informações 29 obtidas e, com apoio em referenciais teóricos sobre o tema, compreender a concepção acerca das estratégias de leitura adotada pelo material e a utilizada pelo professor, sendo possível propor uma didática do ensino de leitura além daquela sugerida pelo material e/ou realizada pela docente observada, ainda que com base no material Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa. Trazemos, na tabela abaixo, uma síntese da pesquisa no que concerne aos objetivos e à metodologia, para que o leitor envolva-se com cada hipótese e problemática levantada em relação a cada ação do pesquisador: Quadro 4 – Síntese das ações e procedimentos metodológicos da pesquisa ESTRATÉGIAS DE LEITURA: RELAÇÕES ENTRE AS CONCEPÇÕES DO MATERIAL LINGUAGENS, CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS: LÍNGUA PORTUGUESA E A PRÁTICA DOCENTE Questões problemas: O material é relevante no quesito estratégias de leitura? O material tem valor para o professor quanto ao ensino de estratégias? Sem a explicitação da vertente teórica, o professor consegue intervir, de forma pontual, na aprendizagem dos alunos em relação ao ensino de estratégias de leitura? É necessária uma teorização das estratégias de leitura presentes no material para posterior formação do docente? Objetivo geral: Compreender as relações entre a prática e as concepções de um professor e o material Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa (2013) no que diz respeito às estratégias de leitura, sugerindo uma sistematização no ensino das estratégias. Questões problemas: Qual a vertente teórica adotada pelo material no que concerne às estratégias de leitura? Há uma teoria sólida ou as estratégias são apresentadas de maneira intuitiva? Objetivo específico: Desvelar qual a vertente teórica que sustenta as estratégias de leitura presentes no material. Categoria/Indicadores: A(s) vertente(s) teórica(s) adotada(s) no que se refere às estratégias de leitura./Examinar as instruções dadas pelo manual do professor no que diz respeito às tarefas de leitura e compreensão leitora. Examinar as questões de leitura propostas nos Cadernos do Aluno. Verificar os pressupostos teóricos apresentados no Currículo. Interpretar o discurso de um dos elaboradores do material. Fonte: Cadernos do Aluno e do Professor (6.º ano); Currículo; Resposta de um dos autores responsáveis pela elaboração do material e do Currículo. Instrumento/Procedimentos de análise: Análise documental e entrevista semiestruturada (Vide “Apêndice A” – página 149). Questão problema: Quais estratégias de leitura são contempladas pelo material? Objetivo específico: Identificar e caracterizar as estratégias de leitura propostas pelo material. Categoria/Indicadores: Estratégias de leitura implícitas nas instruções (sugestões) dos Cadernos do Professor e nas questões dos Cadernos do Aluno; estratégias de leitura nomeadas pelo material./Interpretar a descrição dos procedimentos de leitura propostos pelo material; explicitar as estratégias de leitura presentes. Fonte: Cadernos do Professor e do Aluno (6.º ano). 30 Instrumento/Procedimentos de análise: Análise documental. Questões problemas: O professor inclui as estratégias de leitura em seu trabalho? Se sim, sob qual perspectiva teórica? Objetivo específico: Evidenciar em qual perspectiva teórica o professor se fundamenta para o ensino de estratégias de leitura. Categoria/Indicadores: Indícios de crenças e teorias acerca do ensino-aprendizagem da leitura na prática docente./Verificar a abordagem e os procedimentos utilizados pelo professor quanto ao ensino da leitura e de estratégias de leitura. Fonte: Aulas de Língua Portuguesa de um 6.º ano. Instrumento/Procedimentos de análise: Observação. Questões problemas: O professor tem consciência da teoria que utiliza no que se refere ao ensino da leitura e de estratégias de leitura? Ou utiliza as estratégias de leitura inconscientemente? Objetivo específico: Compreender se o professor tem consciência da teoria que sustenta sua prática docente no que concerne às estratégias. Categoria/Indicadores: Relação entre discurso docente e prática no que diz respeito ao ensino de estratégias de leitura./Investigar o conhecimento que o professor tem de sua prática, convergindo ou divergindo da realidade. Fonte: Resposta de um docente; aulas de Língua Portuguesa. Instrumento/Procedimentos de análise: Entrevista semiestruturada (vide “Apêndice B” – página 153) e observação de aulas. Questões problemas: Como ensinar as estratégias de leitura diluídas no material de maneira sistematizada, atingindo um número maior de estudantes? Objetivo específico: Propor, a partir da prática observada, uma atividade de leitura sistematizada mediante o ensino de estratégias de compreensão. Categoria/Indicadores: Sugestão de atividade de ensino de estratégias de leitura; Possíveis soluções aos problemas evidenciados nas aulas observadas. Fonte: Cadernos do Aluno e do Professor (6.º ano); Currículo; Resposta de um dos autores responsáveis pela elaboração do material e do Currículo; Aulas de Língua Portuguesa; Resposta de um docente. Instrumento/Procedimentos de análise: Triangulação de dados referentes à relação entre o material analisado e a prática e consciência teórica da professora observada. Fonte: Elaborado pelo autor, 2014. Os dados coletados foram compreendidos de maneira crítica a partir de fundamentos teórico-filosóficos que incluem a leitura como um processo dialógico e dialético de interação, de modo que o homem transforma a linguagem e essa nova linguagem o transforma em um novo homem, como também os sujeitos se transformam e transformam o mundo nas relações sociais mediadas pela linguagem, sendo que esse novo mundo os transforma em novos sujeitos, infinitamente. Então, apoiamo-nos principalmente no conceito de dialogismo, de Bakhtin (2009, 2011). Além desta introdução, este trabalho conta com quatro capítulos e algumas considerações finais. No primeiro capítulo, intitulado “Problemas no ensino da leitura quando „o critério que a gente utiliza cai por terra‟ ou: na prática, a teoria é outra”, 31 apresentamos um exame da perspectiva teórica assumida pelo material em relação à linguagem e ao ensino da leitura, bem como apontamos o objetivo principal de sua elaboração a partir do Programa São Paulo Faz Escola. Para tanto, trazemos uma análise documental do Currículo e dos Cadernos do Professor e do Aluno como também dados coletados em entrevista com um dos elaboradores do material. Em “Fundamentação ou intuição?: a questão da inconsistência teórica em relação ao uso do conceito „estratégias de leitura‟”, segundo capítulo, discutimos, com foco nas estratégias de compreensão, como se concretiza a proposta do ensino de leitura nas tarefas elaboradas pelo material. Aqui, abordamos dois de nossos objetivos específicos, a saber: 1- desvelar qual vertente teórica sustenta as estratégias de leitura presentes no material; e 2- identificar e caracterizar as estratégias de leitura propostas pelo material. Nesse sentido, a partir de análise do Currículo e dos Cadernos do Professor e do Aluno do 6.º ano bem como de entrevista com um dos elaboradores do material, respondemos às questões: qual a vertente teórica adotada pelo material no que concerne às estratégias de leitura? Há uma teoria sólida ou as estratégias são apresentadas de maneira intuitiva? Quais estratégias de leitura são contempladas pelo material? No terceiro capítulo, cujo título é “„As paredes têm ouvidos?‟: pseudodialogismo em aulas de um 6.º ano”, focamos em outros dois de nossos objetivos específicos, quais sejam: 1- evidenciar em qual perspectiva teórica o professor se fundamenta para o ensino de estratégias de leitura; e 2- compreender se o professor tem consciência da teoria que sustenta sua prática docente no que concerne às estratégias. Mediante observação de 30 aulas e entrevista com a docente cujas aulas foram assistidas, respondemos às seguintes indagações: o professor trabalha com estratégias de leitura? O professor tem consciência da teoria que utiliza no que se refere ao ensino da leitura e de estratégias de leitura? Ou utiliza as estratégias de leitura inconscientemente? Além disso, trazemos um levantamento acerca das convergências e divergências encontradas entre prática e o discurso docente e o material analisado, a fim de compreender as relações entre a prática e as concepções de um professor e o material Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa (2013) no que diz respeito às estratégias de leitura. Desse modo, respondemos às questões: o material é relevante no quesito estratégias de leitura? O material tem valor para o professor quanto ao ensino de estratégias? Sem a explicitação da vertente teórica, o professor consegue intervir, de 32 forma pontual, na aprendizagem dos alunos em relação ao ensino de estratégias de leitura? É necessária uma teorização das estratégias de leitura presentes no material para posterior formação do docente? Em “Ensino das estratégias de leitura”, quarto capítulo, sugerimos propostas para o ensino da compreensão leitora, a fim de repensar a prática da docente observada, apresentando uma sistematização do ensino das estratégias de leitura que abarque tanto a questão das estratégias em si (procedimentos necessários para se chegar à compreensão) como aspectos didáticos. Para tanto, partiremos de um dos textos presentes no material analisado e trabalhado pela docente observada, na tentativa de trazer possíveis soluções para os problemas detectados no material e nas aulas da professora. Para finalizar, nas considerações finais, retomamos o conteúdo central do texto, buscando refletir sobre a relevância do material no que concerne às estratégias de leitura e sua relação com a prática da docente observada. Além disso, apresentamos de maneira explícita o modo como compreendemos o fenômeno estudado, voltando à problemática evidenciada no início da investigação, e apresentando uma leitura crítica a seu respeito. Ademais, pretendemos elencar tantas outras indagações que o fenômeno, compreendido de maneira crítica, nos apresenta. Nos capítulos que seguem esta introdução, tomamos a palavra do „outro‟ muitas vezes de maneira indireta, dada a impossibilidade de buscar a complexidade da nossa base teórico-filosófica em citações precisas e pontuais. Além disso, a defesa da tese de Bakhtin acerca do dialogismo, pautada em uma filosofia da linguagem, permite-nos justificar tal característica de nosso texto, uma vez que: A experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados individuais do outro. Em certo sentido, essa experiência pode ser caracterizada como processo de assimilação – mais ou menos criador – das palavras do outro (BAKHTIN, 2011, p. 294). De acordo com o filósofo russo, a linguagem é polifônica e, também, intersubjetiva, sendo que essa “intersubjetividade é anterior à subjetividade, pois a relação dos interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores de textos” (BARROS, 2011, p. 29). Mesmo quando a palavra do outro se torna anônima, quando ela se “monologiza”, ainda 33 assim “o discurso do indivíduo nunca deixa de estar impregnado das vozes de que foi originariamente constituído” (GARCEZ, 1998, p. 53). Como os capítulos que compõem este trabalho têm um tratamento teórico- analítico, contemplamos a teoria de Bakhtin em contextos muito particulares. Nesse sentido, e por uma questão de “assimilação” de conceitos, necessitamos, por vezes, ousar da liberdade estilística da escrita, a fim de discorrer sobre nosso material de análise. Com a compreensão de nosso leitor a esse respeito, passamos, agora, ao primeiro capítulo. 34 1. O ensino da leitura nas concepções do Estado: na prática, a teoria é outra? Não é à toa que o ensino da leitura perpassa os anos inicias da educação básica. Defender o compromisso que a escola tem de contemplar o ensino da leitura até o último ano do Ensino Médio é concordar com a complexidade de formar leitores amplamente desenvolvidos. Isso significa que o ato de ler, como atividade complexa, poderia ser trivial para a maior parte da população brasileira, sobretudo para os professores, mas não é sempre o que ocorre. Clichês como “eu odeio ler” ou “eu nunca leio” evidenciam a compreensão que uma parcela das pessoas tem da leitura, geralmente relacionando-a tão somente à literatura, esquecendo-se, todavia, da leitura cotidiana que medeia suas atividades, funções e relações sociais. É possível hipotetizar, inclusive, que a própria cultura escolar construiu e eterniza tal conceito de leitura. Por outro lado, documentos oficiais voltados ao ensino da língua materna afirmam a importância da leitura, definindo-a como fenômeno além da transposição de grafemas em fonemas, como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, p. 69), segundo os quais ler “não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra”. No que se refere especificamente ao Estado de São Paulo, o Currículo Oficial elaborado por meio do Programa São Paulo Faz Escola - parte de nosso corpus de análise - apoia-se, assim como os PCNs, em conceitos atuais da linguagem ao tratar da função da leitura na escola, como em Bakhtin (2003; 2006), Orlandi (2006) e Koch (2003). No entanto, uma análise crítica dos materiais de Língua Portuguesa que complementam o Currículo, os Cadernos, nos permitiu enxergar características que, por razões especialmente de ordem política, desconsideram, em alguns momentos, a essência do conceito que se diz adotar: o dialogismo. Desse modo, apresentamos a perspectiva teórica assumida pelo material em relação à linguagem e ao ensino da leitura, como também apontamos o objetivo principal de sua elaboração a partir do Programa São Paulo Faz Escola. Para isso, trazemos uma análise documental do Currículo e dos Cadernos do Professor e do Aluno bem como dados coletados durante entrevista com um dos elaboradores deste material. 1.1 Sobre o Programa São Paulo Faz Escola (SEE-SP) 35 Na tentativa de desenvolver as habilidades de leitura dos educandos, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo elabora uma série de documentos dirigidos aos professores e gestores de toda a rede escolar. No que diz respeito aos conteúdos e objetivos a serem desenvolvidos pela escola, era disponibilizada, até meados de 2007, a Proposta Curricular, que propunha aos responsáveis pela educação estadual conteúdos a serem trabalhados em cada ano (série). Em agosto de 2007, o governo do Estado de São Paulo criou o Programa São Paulo Faz Escola, cujo foco é a implantação de um único currículo pedagógico a todas as escolas da rede estadual. O Programa envolve o Ciclo II do Ensino Fundamental e o Ensino Médio3. Tal medida não apenas prevê uma educação de base comum a todos os educandos da rede, como também evita o grande prejuízo corrente, até então, aos alunos que precisavam mudar de escola, os quais muitas vezes deixavam de aprender determinado conteúdo ou reviam conteúdos já aprendidos na instituição de ensino anterior. O Currículo (2011) se completa com um conjunto de materiais didáticos, dirigidos especialmente a gestores, professores e alunos, que consideram exatamente as habilidades, as competências, os objetivos e os conteúdos exigidos para cada disciplina. Esses materiais - os Cadernos do Gestor (2009), Cadernos do Professor (2013) e Cadernos do Aluno (2013) - são organizados por área, disciplina, ano e bimestre. Os Cadernos do Gestor têm por objetivo principal subsidiar a ação dos gestores. São quatro4 volumes que, em geral, priorizam: 1) os procedimentos para a construção da Proposta Pedagógica da escola, com ênfase na implantação da Proposta Curricular e na organização dos processos de avaliação; 2) a análise e elaboração de planos de aula (aqueles que fazem parte do material do professor); e 3) a adequação da Proposta Pedagógica para a identidade de cada escola em particular. Já os Cadernos do Professor e os do Aluno são os materiais didáticos5 utilizados em sala de aula. Trata-se de materiais bimestrais, distribuídos, por sua vez, em quatro 3 Concomitantemente, foi criado o Programa Ler e Escrever, destinado ao Ensino Fundamental I. Do mesmo modo, o objetivo é implantar uma base curricular comum ao ensino. 4 Há, também, edições especiais. Em 2010, por exemplo, foi distribuída uma edição sobre o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP). 5 Preferimos utilizar, neste trabalho, o termo “material didático” ou “material” referindo-nos ao Caderno do Professor e/ou Caderno do Aluno, a fim de evitar equívoco com relação ao livro didático distribuído 36 volumes, sob o título Caderno do Aluno, para cada aluno de todo ano escolar. Na mesma lógica, cada professor recebe quatro volumes, intitulados Caderno do Professor, por ano em que leciona. Os materiais são divididos em quatro grandes áreas (Ciências da Natureza; Ciências Humanas; Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; e Matemática), cada qual engloba as disciplinas específicas do campo, todas em consonância com os conteúdos e objetivos propostos pelo Currículo. A disciplina de Língua Portuguesa faz parte da área denominada “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. O Caderno do Aluno traz atividades de leitura, análise de textos, análise linguística, análise de gêneros e estudo de tipologias. Abarca ainda atividades de “Lição de casa” e dicas de estudo. Ao passo que o Caderno do Professor serve para auxiliar o trabalho do docente no ensino dos conteúdos disciplinares específicos e na aprendizagem dos alunos. Esses conteúdos, habilidades e competências são acompanhados de orientações para a gestão da aprendizagem em sala de aula. O material oferece sugestões de métodos, estratégias de trabalho para as aulas e avaliação. Cada volume inicia com uma orientação sobre os conteúdos contemplados, especificando seus conteúdos gerais bem como os que serão desenvolvidos a longo prazo. Todo volume é dividido em unidades, chamadas de Situação de Aprendizagem. No caso do material elaborado para o ensino de língua materna, cada volume consta de, em média, cinco Situações. No material do 6.º ano - nosso corpus de análise - há vinte Situações de Aprendizagem, distribuídas conforme mostra a tabela abaixo: Quadro 5 – Quantidade de volumes e Situações de Aprendizagem Número do Volume Quantidade de Situações de Aprendizagem Volume 1 (primeiro bimestre) 06 Volume 2 (segundo bimestre) 05 Volume 3 (terceiro bimestre) 05 Volume 4 (quarto bimestre) 04 Total de 4 volumes Total de 20 Situações de Aprendizagem Fonte: Dados da pesquisa, 2014. pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Nas escolas, é também chamado de “caderninho”, “apostila” ou “material do Currículo”. 37 As Situações de Aprendizagem trazem o objetivo geral, o tempo previsto para sua realização em número de aulas, conteúdos e temas, competências e habilidades, estratégias, recursos e avaliação e o roteiro para aplicação da Situação (passo a passo). Das 20 Situações de Aprendizagem presentes no material do 6.º ano, 15 contêm um item denominado “estudo da língua”. Ao final dos volumes 2, 3 e 4, há considerações sobre expectativas de aprendizagem e grade de avaliação. Da mesma maneira, ao final de todos os volumes, há uma proposta de questões para aplicação em avaliação, uma proposta de situações de recuperação e recursos para ampliar a perspectiva do professor e do aluno para a compreensão do tema (inclusive contendo sugestões de referenciais que subsidiam a prática docente). Para organizar esse material, a Secretaria Estadual da Educação convidou uma professora doutora aposentada na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), que, por sua vez, formou uma equipe responsável por toda preparação. Um desses elaboradores, que foi por nós entrevistados, tem bacharelado em Linguística e Português pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), licenciatura em Português pela FE-USP, especialização em Psicopedagogia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e mestrado e doutorado em Educação pela FE-USP, ambos com ênfase em produção de textos. Os autores do material fizeram reuniões diárias com a professora responsável e também participaram de encontros com o pessoal da Secretaria, que dava as orientações e parâmetros bases que deveriam ser considerados. Nesta pesquisa, nossa análise documental contemplou os oito Cadernos destinados ao 6.º ano para a disciplina de Língua Portuguesa bem como as páginas do Currículo de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias” que abarcam a mesma disciplina. Portanto, quando mencionamos o material “Linguagem, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa”, referimo-nos ao conjunto de materiais elaborado pelo Programa São Paulo Faz Escola para a disciplina de língua materna. Tal análise compreendeu, em primeiro lugar, as concepções de linguagem e texto em que o material se fundamenta, para, então, adentrarmos na especificidade da leitura e de estratégias de leitura, sequência essa que se inicia no próximo item deste capítulo. 38 1.2 Linguagem, texto e leitura em Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: língua portuguesa: concepções e ensino Embasadas nos postulados propostos por Bakhtin em sua Filosofia da Linguagem (2009, 2011), as novas vertentes da Linguística incluem a explicação da língua como um processo de interação, uma vez que a compreensão de textos (orais e escritos) resulta de um trabalho árduo tanto por parte do escritor/falante quanto do leitor/ouvinte. Nesse sentido, a leitura deixa de ser considerada apenas identificação de signos linguísticos por meio dos quais os indivíduos se expressam e se comunicam e passa a ter carácter dialógico e dialético. Não se trata, pois, tão somente de um dialogismo superficial, conversação estabelecida entre duas ou mais pessoas. Para além disso, diz respeito também à atitude responsiva ativa do interlocutor e, em última instância, às diversas vozes impregnadas no discurso de quem escreve (fala), à polifonia, a um texto dialogando com outros textos. Ora, o próprio fato de o enunciador adequar seu texto ao público esperado já pode ser considerado dialógico, uma vez que o leitor potencial influencia na produção do escritor. Ou seja, este dialoga com aquele, ainda que hipoteticamente, realizando uma avaliação social que permitirá o produtor escolher o gênero discursivo e o grau de formalidade que utilizará, dentre outros aspectos linguístico-discursivos. Tal produtor dialoga, ainda, consigo mesmo, buscando nas experiências anteriores sucessos e insucessos de produção textual como parâmetros para uma interação verbal sem grandes desencontros de sentidos entre aquilo que o leitor (ouvinte) compreende e a intencionalidade do escritor (falante). Compreendendo a linguagem de maneira ainda mais complexa, para Bakhtin (2011, p. 333), “cada diálogo ocorre como que no fundo de uma compreensão responsiva de um terceiro invisivelmente presente”, pois “a natureza da palavra [...] sempre quer ser ouvida, sempre procura uma compreensão responsiva e não se detém na compreensão imediata mas abre caminho sempre mais à frente (de forma ilimitada)” (Idem). É dialética porque, por meio dela, o sujeito transforma o mundo e esse mundo novo o transforma em um novo sujeito, infinitamente. Ademais, o homem constrói a linguagem e vice-versa. Nessa perspectiva, a língua é produto histórico-social e, portanto, embebida de ideologias. Sobre o tema, Bakhtin (2009, p. 31) postula que “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia” 39 (grifos do autor), da mesma forma que sem ideologia não existem signos, pois ideologia e signo são interdependentes e a interação entre ambos é também dialética. É notório lembrar que o pensador russo, ao evidenciar a existência do “signo interior” (a psique, a atividade mental, o pensamento) e do “signo exterior” (o ideológico, o social), afirma: O signo ideológico tem vida na medida em que ele se realiza no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do suporte ideológico. A atividade psíquica é uma passagem do interior para o exterior; para o signo ideológico, o processo é inverso. O psíquico goza da extraterritorialidade em relação ao organismo. É o social infiltrado no organismo do indivíduo. E tudo que é ideológico é extraterritorial no domínio socioeconômico, pois o signo ideológico, situado fora do organismo, deve penetrar no mundo interior para realizar sua natureza semiótica [...]. Desta maneira, existe entre o psiquismo e a ideologia uma interação dialética indissolúvel: o psiquismo se oblitera, se destrói para se tornar ideologia e vice-versa. O signo interior deve libertar-se de sua absorção pelo contexto psíquico (biológico e biográfico), ele deve parar de ser experimentado subjetivamente para se tornar signo ideológico. O signo ideológico deve integrar-se no domínio dos signos interiores subjetivos, deve ressoar tonalidades subjetivas para permanecer um signo vivo e evitar o estatuto honorífico de uma incompreensível relíquia de museu (BAKHTIN, 2009, p. 65-66, grifos do autor). Nesse contexto de linguagem dialógica e dialética, o significado é tanto social (ideológico) quanto individual, de modo que a compreensão de o que se lê é construída a partir das vivências de ambos os interlocutores (escritor e leitor) participantes de dada situação sócio-comunicativa. Ora, quando um signo exterior (seja falado ou escrito) é compreendido e assimilado por determinado sujeito - ou seja, quando se torna signo interior e poderá ser, a qualquer momento, replicado6 (exteriorizado, enunciado) – será sempre compreendido dentro de certo contexto social. Assim sendo, um mesmo signo pode ter vários sentidos. A título de exemplo, imaginemos o signo “vaca”. O termo tem um efeito de sentido para um carnívoro e outro para um vegetariano, da mesma forma em que brasileiros e indianos têm representações bastante distintas de tal signo. Pensemos, agora, em um texto sobre o tema vaca escrito por um açougueiro brasileiro e lido por um religioso indiano. A construção de sentidos elaborada pelo leitor exemplificado provavelmente terá altos graus de discordância, mantendo o sentido de “vaca” internalizado em situações sociodiscursivas anteriores, pois “o sujeito da 6 O conceito de réplica, aqui, vai além da responsividade ativa do leitor (ouvinte), estendendo-se à ordem dialógica do discurso, no sentido de que a produção do escritor (falante) não é inédita (tanto no que diz respeito à estrutura da língua como no que se refere aos enunciados), mas baseada em discursos anteriores, de modo que é, também, resposta a tais discursos, ou seja, uma “réplica” ou uma “compreensão responsiva de efeito retardado”. 40 compreensão enfoca a obra com sua visão de mundo já formada, de seu ponto de vista, de suas posições” (BAKHTIN, 2011, p. 378). Por outro lado, há a possibilidade de o leitor ressignificar o signo, concordando com seu interlocutor ou discordando, mas compreendendo-o como plurissignificativo. Como afirma Bakhtin (2011, p. 378), “o sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade de mudança e até de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento”. Ainda segundo o autor supracitado, “ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito”. (BAKHTIN, 2011, p. 316). Assim, o leitor ativo e não dogmático está sempre ressignificando suas representações mentais da realidade, olhando-a a partir de outro ponto de vista e permitindo que essa nova realidade o transforme em um sujeito mais aberto a novas possibilidades. Neste ponto, é possível afirmar que as transformações sociais são mediadas pela linguagem em um processo retroalimentativo. A leitura, então, é mais que a compreensão de um discurso, mas a compreensão do próprio mundo, do “outro” e de si mesmo. Sobre a concepção de ensino na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (incluem-se, aqui, as disciplinas de Artes, Educação Física, Língua Estrangeira Moderna – Inglês e Espanhol – e Língua Portuguesa), o Currículo (2011), pautado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), considera que a razão de qualquer ato de linguagem seja a construção de sentidos. Assim, define as linguagens como meio para o conhecimento, afirmando que “o homem conhece o mundo por meio de suas linguagens e de seus símbolos. À medida que ele se torna mais competente nas diferentes linguagens, torna-se mais capaz de conhecer a si mesmo, a sua cultura e o mundo em que vive” (SÂO PAULO, 2011, p. 27). Para tanto, o documento apresenta três níveis de contextualização da linguagem na área: sincrônica, diacrônica e interativa: • A contextualização sincrônica, que ocorre num mesmo tempo, analisa o objeto em relação à época e à sociedade que o gerou. Quais foram as condições e as razões de sua produção? De que maneira ele foi recebido em sua época? Como se deu o acesso a esse objeto? Quais as condições sociais, econômicas e culturais de sua produção e recepção? Como um mesmo objeto foi apropriado por grupos sociais diferentes? • A contextualização diacrônica, que ocorre através do tempo, considera o objeto cultural no eixo do tempo. De que maneira aquela obra, aquela ideia, 41 aquela teoria se inscrevem na história da Cultura, da Arte e das ideias? Como certa obra, por exemplo, foi apropriada por outros autores em períodos posteriores? De que maneira ela se apropriou de objetos culturais de épocas anteriores a ela própria? • A contextualização interativa, que permite relacionar o objeto cultural com o universo específico do aluno. Como ele é visto hoje? Que tipo de interesse ele ainda desperta? Quais as características desse objeto que fazem com que ele ainda seja estudado, apreciado ou valorizado? (SÂO PAULO, 2011, p. 29, grifos do autor). Notamos que tais contextualizações consideram o texto (verbal ou não verbal) como produção histórica e cultural carregada de valores sociais, políticos, econômicos e ideológicos, de modo que o aluno, leitor ou contemplador da obra, interaja com tal texto e construa significados “próprios”, a partir de suas experiências e do contexto histórico ao qual pertence. Percebemos, assim, que há diálogo entre os interlocutores e que a intencionalidade do produtor é também levada em conta. No capítulo dedicado exclusivamente à disciplina de Língua Portuguesa, o Currículo apresenta o texto sob dois aspectos: • Ele será compreendido em sentido semiótico, podendo, assim, estar organizado a partir da combinação de diferentes linguagens, não apenas a verbal (uma foto, uma cena de telenovela, uma canção, entre muitas outras possibilidades, serão compreendidas como textos). • O estudo do texto terá ainda como premissa sua inserção em dada situação de comunicação – podendo, dessa forma, ser entendido como sinônimo de enunciado. Ele não será visto como objeto portador de sentido em si mesmo, mas como uma tessitura que, inserida em contextos mais amplos, materializa as trocas comunicativas. Esse resultado não deve ser analisado apenas como uma organização de frases e palavras, mas como forma de representação de valores, tensões e desejos de indivíduos, inseridos em diversos contextos sociais, em um momento histórico determinado. (SÂO PAULO, 2011, p. 36). Como podemos notar, o texto é visto como qualquer manifestação da linguagem, sendo tal manifestação entendida como uma enunciação, uma comunicação social e discursiva que pressupõe um interlocutor. Quando indagado em qual concepção de texto se fundamenta, um dos elaboradores do material confirma: Eu acho que a grande referência que a gente tem é o Bakhtin. Ele aparece ali muito forte e, a partir dele, os outros autores que entram são autores que, na verdade, já comentam o trabalho do Bakhtin, mas eu acho que a grande referência que a gente utilizou ali foi o Bakhtin. (ELABORADOR DO MATERIAL, 2014). 42 Fica evidente, até aqui, a consonância entre o documento analisado e as novas vertentes da Linguística e da Linguística Aplicada. Quanto ao emprego da linguagem, Bakhtin (2011, p. 262), considerando que os diferentes campos da atividade humana estão vinculados ao uso da linguagem, postula que ele “efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo”. Continua Bakhtin (2011, p. 263): “evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados”. E são esses enunciados que o pensador russo nomeia de “gêneros do discurso”, os quais se compõem, necessariamente, por seu “conteúdo temático”, seu “estilo de linguagem” e sua “construção composicional”. Sobre o conteúdo temático, Medviédev (2012, p. 197) defende: [...] as formas do todo, isto é, as formas do gênero, determinam substancialmente o tema. O tema realiza-se não por meio da frase, nem do período e nem por meio do conjunto de orações e períodos, mas por meio da novela, do romance, da peça lírica, do conto maravilhoso, e esses tipos de gêneros, certamente, não obedecem a nenhuma determinação sintática. O conto maravilhoso, em si, não se forma, de modo algum, a partir das orações e dos períodos. Como consequência, a unidade temática da obra é inseparável de sua orientação original na realidade circundante, isto é, inseparável das circunstâncias espaciais e temporais. Assim, entre a primeira [a primeira orientação refere-se ao espaço e tempo real, ao contexto imediato de produção] e a segunda orientação da obra na realidade (orientação imediata a partir de fora e temática a partir de dentro), estabelece-se uma ligação e uma interdependência indissolúveis. Uma é determinada pela outra. A dupla orientação acaba por ser única, porém, bilateral. No que tange à estilística, Bakhtin explica: Todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso. Todo enunciado [...] é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual. Entretanto, nem todos os gêneros são igualmente propícios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual (BAKHTIN, 2011, p. 265). Cabe lembrar que o filósofo russo utiliza os termos “estilo geral” e “estilo da língua” para se referir ao estilo relativamente estável que cada gênero específico possui, dependendo não apenas da especificidade do campo da atividade humana, como também da questão da língua nacional na linguagem individual, ou seja, dos fenômenos 43 linguísticos experimentados e validados em situações reais de uso. De outro lado, nomeia “estilo individual” aquele que não seja requisito dos padrões de determinado gênero, aquele que não tem a ver diretamente com a estrutura do enunciado, aquele que seja, de certa forma, subjetivo, individual. A construção composicional, por sua vez, diz respeito aos elementos que caracterizam determinado gênero como tal. Tais características, incorporadas ao gênero por meio de práticas sociais de interação verbal, são inseparáveis do estilo geral e podem até se (con)fundir, pois a construção dos gêneros ocorre socialmente a partir das necessidades comunicativas de certos sujeitos em determinado contexto. Koch e Elias (2010, p. 109-110) apontam que “do ponto de vista da composição dos gêneros, deve- se levar em conta a forma de organização, a distribuição das informações e os elementos não verbais: a cor, o padrão gráfico ou a diagramação típica, as ilustrações”, ou seja, a estruturação própria de cada gênero. Haja vista a variedade dos campos da atividade humana e, desse modo, a infinitude dos gêneros, entendemos perfeitamente a complexidade das atividades de produzir e compreender textos específicos a cada propósito e situação. Em se tratando de textos escritos, então, há maior exigência aos interlocutores da situação enunciativa, pois a produção de sentidos pode ser dificultada pelas distâncias temporal, espacial e cultural existentes entre escritor e leitor. Para Bazerman (2007), uma vez que em textos escritos não são dadas muitas dicas explícitas para orientar a interpretação, há um grande risco de que haja falhas na comunicação. Felizmente, os gêneros podem ajudar nessa confusão ao assinalar a situação e a ação, projetando o contexto invisível. “O leitor e o escritor precisam do gênero para criar um lugar de encontro comunicativo legível da própria forma e conteúdo do texto” (BAZERMAN, 2007, p. 23). Por essa razão, ler não é entendido como tarefa fácil, tanto do ponto de vista de quem aprende quanto do de quem pretende ensinar. Bakhtin (2011) atenta-nos para a importante diferença entre os gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos). Ao afirmar que não se trata de uma diferença funcional, o autor explica que os gêneros discursivos secundários (predominantemente os escritos: romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) nascem nas experiências culturais mais complexas e relativamente muito desenvolvidas e organizadas. Tais gêneros incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (formados nas condições da comunicação 44 discursiva imediata, cotidiana) “e é por isso mesmo que a natureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio da análise de ambas as modalidades”, além do mais, “a própria relação mútua dos gêneros primários e secundários e o processo de formação histórica dos últimos lançam luz sobre a natureza do enunciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da relação de reciprocidade entre linguagem e ideologia)” (BAKHTIN, 2011, p. 264). Para o Currículo (2011, p. 32-33): Os gêneros textuais são, ao mesmo tempo, eventos linguísticos e ações sociais. Funcionam como paradigmas comunicativos que nos permitem gerar expectativas e previsões ao elaborarmos a compreensão de um texto. E, embora sejam definidos tanto por aspectos formais como funcionais, não há dúvidas, entre os estudiosos, de que a função é mais importante do que a forma. Os gêneros textuais são artefatos linguísticos construídos histórica e culturalmente pelas pessoas para atingir objetivos específicos em situações sociais particulares. Notamos que o material apresenta-se apenas parcialmente coerente com o referencial no qual diz embasar-se. Os gêneros são considerados produtos sociais e históricos, com formas e funções comunicativas produzidas a partir das necessidades dos usuários de uma língua. Além disso, são vistos como ações sociais, isto é, a interação verbal (que apenas ocorre por meio de gêneros discursivos) é uma atividade, já que o sujeito utiliza-se da linguagem como instrumento para satisfazer suas necessidades. Por outro lado, utiliza o conceito de “gênero textual” e não de “gênero do discurso”, aproximando-se mais dos estudos recentes da Linguística e menos na Filosofia da Linguagem. Sobre o ensino dos gêneros, autores como Bronckart (2003), Schneuwly (2011) e Marcuschi (2010), seguindo os conceitos apresentados principalmente por Bakhtin, privilegiam, em geral, a situação de produção mais imediata como: propósito comunicativo ou finalidade, posição/papel social dos interlocutores, estilo, suporte, campo da atividade humana, domínio discursivo ou domínio social de comunicação, construção composicional, avaliação social. Mesmo que os estudos sobre ensino dos gêneros não contemplem, em geral, as condições histórico-sociais mais amplas, de cunho ideológico, limitando-se a abordagem das condições de produção mais imediatas, ainda assim, é possível afirmar um grande avanço em relação ao ensino da língua materna. Isso porque, como nos lembra Brait (2000, p. 15), “o conceito de gênero discursivo vem, ultimamente, atraindo 45 o interesse de professores e pesquisadores, conforme se pode constatar nas propostas de ensino de línguas apresentadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais”, o que outrora era incomum. Apesar de os autores supracitados defenderem o ensino da língua por meio dos (e sobre os) gêneros, não negligenciam a importância dos tipos textuais. Pelo contrário, Schneuwly (2011), por exemplo, sugere o ensino dos gêneros em agrupamentos tipológicos, nomeando os tipos (ou “capacidades de linguagem dominantes”) em: narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações. Ainda que com terminologias parcialmente diferentes, Marcuschi (2010, p. 23) explica os tipos textuais na mesma perspectiva, afirmando que servem “para designar uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas)”. (grifos do autor). No que diz respeito à diferença entre tipo e gênero do discurso e ao ensino da tipologia e dos gêneros para o material analisado, um de seus elaboradores explica: O tipo textual, na verdade, é o que vai organizar ali toda a estrutura do texto e vai dar, assim, uma cara para esse texto. A tipologia [...] é o que faz a amarração. Essa é a grande diferença em relação aos gêneros textuais [...]. Quando se trabalhava com a tipologia, se trabalhava com uma ideia muito antiga de narração, dissertação e descrição e não se desenvolvia o que é que é a narração, a descrição e