Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara GUERRA CONJUGAL: O CINEMA ANTROPOFÁGICO DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE Douglas de Magalhães Ferreira Araraquara – SP 2015 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara GUERRA CONJUGAL: O CINEMA ANTROPOFÁGICO DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE Douglas de Magalhães Ferreira Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/FCLAr, da Universidade Estadual Paulista/UNESP, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Araraquara – SP 2015 de Magalhães Ferreira, Douglas Guerra conjugal: o cinema antropofágico de Joaquim Pedro de Andrade / Douglas de Magalhães Ferreira — 2015 154 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) — Universidade Estadual Paullista "Júlio de Mesquista Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan 1. Adaptação. 2. Antropofagia. 3. Pornochanchada. 4. Joaquim Pedro de Andrade. 5. Dalton Trevisan. I. Título. Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Douglas de Magalhães Ferreira GUERRA CONJUGAL: O CINEMA ANTROPOFÁGICO DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/FCLAr, da Universidade Estadual Paulista/UNESP, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Araraquara, 28 de maio de 2015. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________ Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da FCLAr/UNESP ___________________________________________________________________________ Membro titular: Profa. Dra. Sylvia Helena Telarolli Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da FCLAr/UNESP ___________________________________________________________________________ Membro titular: Prof. Dr. Leonardo Francisco Soares Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UFU AGRADECIMENTOS Registro aqui meu entusiástico obrigado – do latim obligare: “ligar por todos os lados, ligar moralmente” – a todos os familiares, amigos, professores, funcionários da FCLAr e instituições que, na esfera de sua competência, me apoiaram incondicionalmente no decurso dessa empreitada. Não pairam dúvidas de que a autoria destas páginas é tão minha quanto deles. Portanto, gostaria de agradecer... À minha mãe, socialista convicta que, aos 46 anos, então já com três filhos, concluiu a graduação em Serviço Social. Sua vida se fez assim, de frequentes demonstrações da necessidade de se perseverar frente às aflições diárias e de se acalentar o sonho existência afora. A seus conselhos e inconfundível brandura, recorri em inúmeras ocasiões. Dizem que é dela que emana todo o amor do mundo... A meu pai, que, sobre as rodas de um caminhão, deparou-se com realidades diversas de todas as regiões brasileiras, delas colhendo experiências e narrativas inimagináveis até mesmo para a melhor das literaturas ou o melhor dos cinemas. Talvez compreenda um dia que nossos mundos não são tão distantes... Com sua simplicidade, disposição e teimosia típicas, sempre supriu todas as exigências familiares. A meu irmão, que, com sua inabalável serenidade e desmesurado talento musical, compôs as trilhas de nossa infância, também conhecida como um dos meus filmes prediletos. Valiosas foram as suas dicas acerca da trilha de Guerra conjugal. À minha irmã, que, com sua vibrante ansiedade e inspiradora ousadia, não se acomodou na condição de caçula e venceu as agruras machistas de nosso tempo. Incontáveis foram os seus socorros em diversos momentos de minha vida, inclusive, durante a redação destas páginas. Promissora arquiteta, é fã de Oscar Niemeyer, que era amigo do Dr. Rodrigo, pai de Joaquim Pedro, cuja obra é objeto deste trabalho... Entenderam? À Maria Luiza ou Malu, Ma, pequena... revolucionária convicta que revolucionou minha vida, bióloga fervorosa que me tomou como cobaia para sua teoria da evolução e me fez de fato evoluir. Com a esperança de “Chega de saudade”, sua canção predileta, combate o meu pessimismo. Dela partiu, inquestionavelmente, o mais determinante impulso para o ingresso no mestrado, após tantos anos de inércia. Determinada, idealista, desapegada, alegre, musical, audaz, companhia ideal para todas as horas, a mais crítica leitora deste trabalho e literal coautora de alguns de seus trechos. Sacrificou-se como ninguém durante a reclusão a que estive submetido nos últimos meses. Se de minha mãe emana todo o amor do mundo, para ela, Malu, converge todo o meu. Aos amigos Luiz Henrique Sampaio Júnior, André Luis Rodrigues Bonelli e Érika Bergamasco Guesse, que, por meio de calorosas prosas, travadas em casa, pelas ruas de Araraquara e Jaboticabal ou ainda durante as longas viagens de ônibus pelos cinco anos de graduação, tornaram a vida suportável. Em diferentes fases, ora menos, ora mais, mas, de alguma forma, sempre presentes, em mim. Integridade, bondade e espírito crítico, nobre tríade de atributos que lhes cai muito bem. À “Kasinha”, exímia pesquisadora, um especial obrigado pelo incentivo de anos. Aos amigos e notáveis pesquisadores Emerson Cerdas, Levi Henrique Merenciano, Lucas Zaffani dos Santos, Ricardo Gomes da Silva, Ana Carolina Caretti, Deborah Garzon e Daniela Aparecida da Costa, com os quais tive e ainda tenho a grata oportunidade de conviver e de dividir, entre cafés, sucos, doses de cerveja e porções de coxinhas de Bueno de Andrada, aflições de ordem pessoal e acadêmica. Ao amigo Rodrigo Martins Ramassote, cujo imperturbável espírito investigativo e cuja habilidade de concatenação de ideias constituem, para mim, inesgotável e inspiradora fonte de admiração. Produtivo servidor do IPHAN, cinéfilo “das antigas” e insigne pesquisador da vida/obra de Antônio Candido, foi ele quem me sugeriu, provavelmente durante uma de nossas tantas revivificadoras perambulações pelas frias noites da cidade de São Carlos, a obra de Joaquim Pedro como objeto de estudo. Aliás, incontáveis são as sugestões e recomendações dele incorporadas às páginas subsequentes. Aos professores, os vivos e os mortos, como no conto de Joyce, porque todos, de uma forma ou de outra, permanecem comigo. Mas especialmente aos professores Luiz Gonzaga Marchezan e Márcia Valéria Zamboni Gobbi (ambos do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da FCLAr), por terem me proporcionado instigantes momentos de discussão, tanto nos (hoje já) saudosos tempos de graduação quanto nas disciplinas cursadas durante o mestrado. Ao primeiro, fico em débito, dentre outras coisas, pela indicação (e empréstimo) da obra de Wilson Martins. À segunda, pelas demonstrações diárias, via seu comprometimento e cordialidade, de que pesquisa acadêmica e postura arrogante não devem ser tomadas como sinônimos, e pela oportunidade oferecida de explorar, em formato de artigo, outro longa-metragem de Joaquim Pedro de Andrade (Os Inconfidentes). Às professoras Anita Simis (do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da FCLAr) e Josette Maria Alves de Souza Monzani (do Programa de Pós-graduação em Imagem e Som da UFSCAr), com as quais tive a grata oportunidade de cursar disciplinas em campos mais específicos – política cultural e as relações entre literatura e cinema, respectivamente –, ampliando, assim, os meus horizontes enquanto pesquisador. Às professoras Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite (do Programa de Pós- graduação em Estudos Literários da FCLAr) e Luciana Sá Leitão Corrêa de Araújo (do Programa de Pós-graduação em Imagem e Som da UFSCAr), cujas contribuições no exame de qualificação – “o que seu trabalho entende por antropofagia?” ou “por que não elege para análise apenas um dos seguimentos do filme?” – foram de fato determinantes para o encaminhamento da pesquisa. À primeira, um especial obrigado ainda pelo aceite em compor a banca de defesa da dissertação. Ao professor Leonardo Francisco Soares (do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UFU), também membro titular da banca de defesa, pela delicadeza de sua arguição e leitura minuciosa, aguda e respeitosa do trabalho. Ao professor José Pedro Antunes (do Departamento de Letras Modernas da FCLAr), cuja solicitude submeteu o texto final desta dissertação a um rigoroso processo de revisão. Nossas instigantes conversas sobre cinema, literatura e o meio acadêmico constituem verdadeiras fontes de inspiração para as ideias desenvolvidas nas páginas subsequentes. À professora Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan – ou, simples e carinhosamente, Ude –, receptiva e solícita a meu primeiro contato, mesmo após quase sete anos terem se passado entre a graduação, quando fui arrebatado por suas aulas sobre Lavoura arcaica e Dom Quixote, e o início do processo de ingresso no mestrado. É afirmar o óbvio que sua orientação, nem tão severa, nem leniente em excesso, salvou o trabalho. A ela recorri, por e-mail ou pessoalmente, em diversos momentos de angústia acadêmica, quando os problemas da pesquisa pululavam e pareciam insolucionáveis. Para além das atribuições que lhe competem enquanto orientadora, sou muito grato pela recepção, incentivo, autonomia concedida e crédito de confiabilidade. Aos funcionários do Departamento de Literatura, da Pós-graduação, da Biblioteca e de todos os demais setores da FCLAr, que, em trabalho silencioso, seja por meio da expedição de documentos, disponibilização de materiais ou geração de condições físicas de estudo, viabilizam trabalhos das mais variadas linhas. À agência de fomento Capes, pela seriedade de seu compromisso com a pesquisa acadêmica, tendo, definitivamente, viabilizado a elaboração das páginas seguintes. Às divindades, não posso agradecer. Os céus têm suas preocupações, a terra tem outras, muito mais prosaicas por vezes. Contudo, antes de me acusem de demasiado ceticismo, recorro ao mantra sagrado Nam-myoho-rengue-kyo, que, em tradução bastante particular e nada confiável, porém mais afeita a nossa formação cultural, significa Oxalá! A ideia de paz universal não pode ser sufocada pelo amor- próprio egoísta de nações e países prontos a abrirem mão da felicidade universal em nome de sua avidez individual. O cinema, a mais avançada das artes, deve estar em posição avançada nesta luta. Que ele indique aos povos o caminho da solidariedade e da unanimidade no qual devemos nos mover. Sergei Eisenstein (2002, p. 13) RESUMO O campo de pesquisa no qual este trabalho se insere é o das intricadas relações entre literatura e cinema, e seu objeto de estudo é Guerra conjugal (1975), adaptação cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade, um dos expoentes do Cinema Novo, para alguns contos de Dalton Trevisan, um dos mais importantes escritores em língua portuguesa. Tomando-se o esforço adaptativo por tradução crítica e, portanto, nada afeito à exigência de fidelidade à obra original, o objetivo deste trabalho consiste em demonstrar, mediante análise do seguimento narrativo fílmico dedicado à decadente figura vampírica de Nelsinho, a orientação antropofágica que (1), em sentido positivo, norteia o método criativo do cineasta, cuja obra mantém estreito e fértil diálogo com a literatura nacional, mas sem a ela se submeter; e (2), agora em chave negativa, permeia as batalhas amorosas registradas em Guerra conjugal, em sua declarada intenção de dominar, impor-se, enfim, devorar o outro através do sexo, em tratamento que alinha o filme a ao menos duas grandes tendências do cinema de então: o sexo como bandeira política e o retrato da decadência via crônica da vida privada. Para a consecução de tal objetivo, procurar-se-á identificar os contos-base de Dalton Trevisan utilizados para a composição da trajetória de Nelsinho no longa-metragem, bem como os principais expedientes da literatura do escritor curitibano, sem deixar de considerar o contexto de explosão do gênero conto no Brasil entre as décadas de 1960-1970. Em seguida, analisar- se-á pormenorizadamente a narrativa do filme-resultado, procurando-se evidenciar o modo como Joaquim Pedro traduziu os contos, ao reelaborar a literatura de Trevisan no interior de um gênero cinematográfico de amplo apelo popular, a pornochanchada, a cujos traços mais recorrentes o cineasta adere, em princípio, apenas para subvertê-los na sequência. Palavras-chave: Guerra conjugal; adaptação; antropofagia; pornochanchada; Joaquim Pedro de Andrade; Dalton Trevisan. ABSTRACT The research field in which this work can be inserted in is that of the intricate relations between literature and cinema, and its subject matter is Guerra conjugal (1975), a film adaptation by one of the exponents of Cinema Novo in Brazil, Joaquim Pedro de Andrade, for some short-stories by Dalton Trevisan, one of the most important writers in Portuguese. Taking the adaptive effort as a critical translation and not at all accustomed, therefore, to the requirement of fidelity to the original work, the objective of this research is to demonstrate, by the analysis of the filmic narrative sequence dedicated to the decadent vampire figure of Nelsinho, the anthropophagic orientation that (1), in a positive sense, guides the creative method of the filmmaker Joaquim Pedro, whose work holds closely and fruitful dialogue with the Brazilian literature, but without undergoing the books; and (2), now in a negative way, permeates the loving battles of Guerra conjugal, which characters’ intentions are to dominate, to impose, finally, to eat each other through the sexual experience, in a choice that lines up the film to at least two major inclinations of the cinema from that decade: sex as a political banner and the picture of decay through the chronic of private life. To achieve this goal, efforts will be made to identify the short-stories by Dalton Trevisan used for the composition of Nelsinho's path along the film as well as the main literary expedients of the writer from Curitiba, while considering the context of growth of the short-story in Brazil between the decades 1960-1970. Then it will be tried to analyze in details the narrative of the film adaptation, in a way to highlight how Joaquim Pedro translated the short-stories to the screen, rewriting Trevisan’s literature in a filmic genre of a broad popular appeal, the pornochanchada, to which recurring features the filmmaker adheres in principle just to subvert them after. Key-words: Guerra conjugal; film adaptation; anthropophagy; pornochanchada; Joaquim Pedro de Andrade; Dalton Trevisan. LISTA DE FIGURAS Figura 01 – Capa da primeira edição de O Vampiro de Curitiba....................................... 79 Figura 02 – Capa da oitava edição de O Vampiro de Curitiba............................................ 79 Figura 03 – Nelsinho (Carlos Gregório) em Guerra conjugal............................................ 79 Figura 04 – A dançarina Mata Hari..................................................................................... 86 Figura 05 – Greta Garbo como Mata Hari (1931)............................................................... 86 Figura 06 – Lúcia (Maria Lúcia Dahl) em Guerra conjugal............................................... 86 Figura 07 – Nelsinho e Neusa (Cristina Aché) em Guerra conjugal.................................. 98 Figura 08 – Detalhe da mão de dona Gabriela (Elza Gomes) em Guerra conjugal.......... 98 Figura 09 – Nelsinho e Maria (Zélia Zamir) em Guerra conjugal................................... 101 Figura 10 – Nelsinho e a Gorda (Wilza Carla) em Guerra conjugal............................... 101 Figura 11 – Nelsinho e Lúcia sobre a cama em Guerra conjugal..................................... 104 Figura 12 – Nelsinho e a Prostituta (Maria Veloso) em Guerra conjugal...................... 104 SUMÁRIO Introdução............................................................................................................................... 12 1 Para além dos “relacionamentos fiéis” entre literatura e cinema................................... 23 1.1 Um percurso teórico: literatura e cinema...................................................................... 23 1.2 Um percurso antropofágico: o cinema de Joaquim Pedro de Andrade...................... 41 2 Mordidas em série: recursos recorrentes na literatura do vampiro de Curitiba.......... 58 3 Guerra conjugal: o cinema antropofágico de Joaquim Pedro de Andrade.................... 92 Considerações finais............................................................................................................. 133 Referências bibliográficas................................................................................................... 137 Obras consultadas................................................................................................................ 145 Filmografia de Joaquim Pedro de Andrade...................................................................... 150 Anexos................................................................................................................................... 152 12 INTRODUÇÃO Logo após o seu florescimento – nas experiências de Auguste e Louis Lumière, como também de Max e Emil Skladanowsky1 –, o cinema foi buscar na literatura algumas de suas primeiras inspirações. Assim, outro francês, Georges Mèliés, realizador de mais de quinhentos curtas-metragens, inspirou sua Viagem à lua (1902) nas páginas de Júlio Verne e H. G. Wells, tendo o filme, como sua mais célebre cena, a do foguete a atingir um dos imaginados olhos do satélite de nosso planeta2. Também D. H. Griffith, outro pioneiro no estabelecimento da linguagem cinematográfica, voltou-se para a literatura no controverso O Nascimento de uma nação (1915), baseado no romance/peça teatral The Clansman (1905), de Thomas Dixon Jr. Para Aumont (1995, p. 91), a busca pela superação do estatuto de simples atração de feira exigiu “[...] que o cinema se colocasse sob os auspícios das ‘artes nobres’ [...]” – entre o fim do século XIX e o século XX: o teatro e o romance – e “[...] passasse, de certo modo, pela prova de que poderia também contar histórias dignas de interesse”. Portanto, o ímpeto inicial do cinema em edificar seus alicerces sobre a literatura e o teatro (bem como sobre a pintura ou a fotografia) pode ser creditado à exigência de reconhecimento enquanto arte, exigência, na verdade, imposta a todas as manifestações artísticas em florescência, que, no desejo de se firmarem perante os desconfiados olhos de seu tempo, investem em direção ao passado e travam diálogo constante, ainda que, muitas vezes, dissidente, com as manifestações predecessoras. No caso específico da expressão cinematográfica, a percepção integral desse processo é obliterada por sua juventude. Se o cinema fosse tão velho quanto a literatura, o teatro, a música e a pintura, formas de expressão já fundidas à própria história, “[...] sem dúvida veríamos mais claramente que ele não escapa às leis comuns da evolução das artes” (BAZIN, 1991, p. 42). Contudo, se nossa argumentação (artes mais jovens alicerçam-se nas já consagradas) é válida, ela não dá conta, por exemplo, da insistência do cinema em buscar na literatura temas e formas de narrar. Afinal, como bem se sabe, mesmo depois de ter elaborado a plena consciência das especificidades de sua linguagem e ter obtido o estatuto de arte, o cinema não cessou sua relação com a literatura; ao contrário, somente fez intensificá-la. Tampouco nossa argumentação recobre o evidente impacto dos filmes sobre os livros, uma vez que, como não 1 Irmãos alemães que projetaram publicamente, em seu país, os trabalhos realizados com o rudimentar aparelho por eles inventado, poucos dias antes da famosa exibição que seria promovida pelos Lumière na França. Sobre Max e Emil Skladanowsky, cf. Um Truque de luz (1995), do cineasta Wim Wenders. 2 Curiosamente, Martin Scorsese, cento e nove anos depois, também buscaria num romance (de Brian Selznick) a inspiração para retratar parte da vida e obra do mágico Georges Mèliés em A Invenção de Hugo Cabret (2011). 13 se pode negar, os influxos entre literatura e cinema não se dão de forma unilateral, sempre da primeira para o segundo. O problema que se nos revela, portanto, é o da influência recíproca entre as artes, problema que ultrapassa, evidentemente, as preocupações deste trabalho, cujo foco recai sobre o exercício da adaptação, embora não se furte de fazer alguns apontamentos a respeito de outras relações possíveis entre literatura e cinema. Revelado o campo de estudo no qual este trabalho se insere, retomemos o parágrafo inicial e o comentário acerca da produção de Méliès, que, por meio de suas rudimentares adaptações, inaugura também a longeva e poderosa relação entre a ficção científica literária e o cinema. Anos mais tarde, nas mãos, ou melhor, nas imagens de Stanley Kubrick, essa relação renderia ao menos duas obras-primas: 2001: Uma Odisseia no espaço (1968) e Laranja mecânica (1971), filmes elaborados, respectivamente, a partir de um conto de Arthur C. Clarke3 e um romance de Anthony Burgess. Além de Kubrick4, foram muitos os grandes cineastas – alguns, inclusive, dos mais inventivos em seus roteiros originais – que adaptaram obras literárias para o cinema: Orson Welles em O Processo (1962); Godard em O Desprezo (1963); Buñuel em A Bela da tarde (1967); Fellini em Satyricon (1969); Copolla na trilogia O Poderoso Chefão (iniciada em 1972); William Friedkin em O Exorcista (1973); Wim Wenders em O Medo do goleiro diante do pênalti (1972); Werner Herzog em Nosferatu: O vampiro da noite (1979)5; Akira Kurosawa em Ran (1985); Manoel de Oliveira6 em Singularidades de uma rapariga loura (2009), entre tantos outros nomes relevantes. Fenômenos mais recentes a serviço da indústria cultural são exemplos cabais do 3 Na verdade, o próprio Arthur C. Clarke é coautor do roteiro de 2001, redigido enquanto também escrevia o romance de mesmo nome, a partir da ampliação de um conto de sua autoria. 4 Considerável amostra da obra deste diretor, aliás, mantém profícuo diálogo com a literatura (assim como a de Joaquim Pedro de Andrade): seus filmes Lolita (1962), O Iluminado (1980), Nascido para matar (1987) e De Olhos bem fechados (1999) partem todos de obras literárias. 5 O filme de Herzog é baseado no romance epistolar de Bram Stoker (Drácula, 1897), mas presta também homenagem à versão de seu compatriota Murnau, esta realizada sem a devida autorização legal da família do escritor sob o título Nosferatu: uma sinfonia de horrores (1922), um dos marcos do expressionismo alemão. Na verdade, a figura do Conde Drácula (como a de Dom Quixote e outras grandes criações) acaba por transcender os limites da arte, fixando-se no imaginário como uma verdadeira personagem histórica. Desse modo, são incontáveis as aparições (e mordidas) do vampiro no cinema. Christopher Lee, por exemplo, o interpretou diversas vezes nos filmes da produtora Hammer; Copolla escolheu Gary Oldman para o papel em seu Drácula de Bram Stoker (1992); Willem Dafoe o encarnou no interessante A Sombra do vampiro (2000); e mais recentemente, Dario Argento apresentou o seu Drácula 3D (2012). Nessa seleta lista, é claro, não poderia faltar nosso conde Nelsinho, o rebaixado vampiro que saltou da pena de Dalton Trevisan – personagem cujas referências de criação são, sob vários aspectos, também cinematográficas – direto para o campo de registro da câmera de Joaquim Pedro em Guerra conjugal (1975). 6 Grande diretor português falecido em dois de abril de 2015, poucos dias antes da redação final desta dissertação, aos 106 anos de vida, sendo mais de oitenta deles dedicados ao cinema. 14 potencial mercadológico das adaptações7. A trilogia de Peter Jackson, O Senhor dos anéis (2001-2003), adaptada dos livros de J. R. R. Tolkien, faturou quase duas dezenas de prêmios Oscar e bilhões de dólares; o autor Nicholas Sparks já teve oito ou nove – podendo surgir um novo título a qualquer momento – de seus best-sellers levados para as telas; o bruxo Harry Potter, personagem criada pela escritora J. K. Rowling, aventurou-se para além das páginas literárias por oito vezes. No caso do cinema nacional, a relação com a literatura data também de seus primórdios. Não se sabe ao certo qual o primeiro livro brasileiro transposto para as telas, mas é possível afirmar que as adaptações literárias se tornaram uma tendência durante a Primeira Guerra Mundial, quando os estúdios estrangeiros interromperam seus trabalhos e produtores nacionais viram uma oportunidade de aumentar sua ocupação nas salas do país. Para atender essa nova demanda por roteiros, apostou-se em livros como O Guarani (que já havia inspirado um curta-metragem em 1908), Inocência, A Moreninha e Iracema – alguns deles assinados pelo italiano Vittorio Capellaro, importante pioneiro do cinema nacional (GODOY, 2012, p. 15). Em suma, ainda que imprecisa, a relação do cinema brasileiro com a literatura vem de seus primeiros passos e atravessa toda a sua intermitente história, feita de ciclos. Se nos permitem o salto cronológico da década de 1900 para as de 1990-2000, “estima-se que, entre 1995 e 2005, quase 40% dos títulos lançados [de produções nacionais] tiveram matriz literária” (GODOY, 2012, p. 15). Nomes de peso de nosso cinema contemporâneo, como Walter Salles, Fernando Meirelles, Luiz Fernando Carvalho e Beto Brant (em sua longa parceria com Marçal Aquino) são alguns dos cineastas que contribuíram para a definição desses números. Por razões óbvias, o momento histórico do cinema nacional que mais diretamente interessa a este trabalho situa-se entre o final da década de 1950 e meados dos anos 1970, quando os cinemanovistas (ou os realizadores ligados de alguma forma ao movimento) promoveram ativo diálogo com a literatura brasileira, especialmente a modernista, em exercícios adaptativos que iam além da mera busca por enredos já bem estruturados ou por uma garantia de público. Tal diálogo expressa, antes, uma “[...] conexão mais funda que fez o Cinema Novo, no próprio impulso de sua militância política, trazer para o debate certos temas 7 O mercado cinematográfico coopta o literário e ambos alimentam-se mutuamente. Assim, escritores tornam-se sinônimos de robustas bilheterias para Hollywood, tendo seus livros precocemente relançados em edições cujas capas devem trazer, de preferência, uma imagem do filme que inspiraram. 15 de uma ciência social brasileira, ligados à questão da identidade e às interpretações conflitantes do Brasil como formação social” (XAVIER, 2001, p. 19). Impulsionados por essa disposição, significativos projetos inspirados em páginas de nossa literatura vieram então à luz, tais como, entre outros: Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; Ganga Zumba (1964), de Caca Diegues; Menino de engenho (1965), de Walter Lima Jr.; O Padre e moça (1965), de Joaquim Pedro; Capitu (1968), de Paulo Cesar Saraceni8; São Bernardo (1972), de Leon Hirszman; Lição de amor (1976), de Eduardo Escorel; O Casamento (1976), de Arnaldo Jabor. Glauber Rocha, expressão máxima de nosso cinema, embora nunca tenha adaptado uma obra literária em específico, admitia Fogo morto (1943), de José Lins do Rego, como eixo inspirador de seu Deus e o diabo na terra do sol (1964). Dentre os cinemanovistas que se dedicaram ao empreendimento da adaptação, o caso mais notável, tanto pelo aspecto quantitativo quanto qualitativo, parece ser o de Joaquim Pedro de Andrade, cuja filmografia foi chancelada e aquilatada em diversos festivais nacionais e internacionais9. Ao menos metade da produção do diretor, metade correspondente, aliás, à porção mais significativa de sua obra, está diretamente vinculada à literatura. Com efeito, no curta-metragem O Poeta do Castelo (1959), Joaquim Pedro10 trata do cotidiano de Manuel Bandeira. Sua estreia em longa-metragem dá-se com O Padre e a moça (1965), filme inspirado em poema de Carlos Drummond de Andrade. Macunaíma (1969) é a adaptação do cineasta para a rapsódia de Mário de Andrade, enquanto o híbrido roteiro de Os Inconfidentes (1972) funde o relato processual dos Autos da Devassa, versos dos poetas conjurados e o Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles. Em Guerra Conjugal (1975), objeto desta dissertação, são os contos de Dalton Trevisan que ganham as telas. Vereda tropical (1977), fantasia cômico-erótica na qual o protagonista mantém relações sexuais com 8 Sobre as inúmeras (e pouco inspiradas) vezes que a estrela maior da literatura nacional, Machado de Assis, teve seus romances ou contos, parcial ou integralmente, recriados no cinema – totalizando, até o momento, cerca de nove tentativas –, cf. José Carlos Avellar (2007, p. 103-104). 9 A lista não se pretende completa, apenas ilustrativa. Eis alguns dos prêmios obtidos pelos filmes do diretor: Couro de gato (1962) recebeu o Prêmio do III Festival de Cinema Latino Americano de Sestri Levante e Diploma Especial no Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen de 1962 (evento de divulgação do manifesto “O novo cinema alemão”). A Garrincha, alegria do povo (1963), concedeu-se o Prêmio de Melhor Filme Carlos Alberto Chieza, específico para filmes de esporte, no Festival de Cortina d'Ampezzo, Itália. O Padre e a moça (1965) foi premiado como Melhor Fotografia no Festival de Brasília de 1966, enquanto Macunaíma (1969) saiu vitorioso em cinco categorias na edição de 1969 do mesmo festival, além da obtenção do Prêmio de Melhor Filme no Festival de Mar del Plata. Os Inconfidentes (1972) recebeu o Prêmio do Comitê de Artes e Letras no Festival de Veneza de 1972. Guerra conjugal (1975) foi Prêmio de Melhor Direção no Festival de Brasília de 1975. O Homem do Pau-Brasil (1981), Prêmio de Melhor Filme na edição de 1981 do festival. 10 Por conta das diversões menções a Joaquim Pedro de Andrade no decorrer destas páginas, seu nome surgirá, aqui e ali, assim reduzido. O mesmo poderá ocorrer com o de Dalton Trevisan, eventualmente, grafado apenas Dalton ou Trevisan. 16 uma melancia, é uma adaptação do conto homônimo de Pedro Maia Soares. Por fim, seu trabalho de despedida, O Homem do Pau-Brasil (1981), consiste numa radical leitura da obra e vida de Oswald de Andrade. Dada a profusão de projetos concebidos a partir da literatura nacional11, explorar a filmografia de Joaquim Pedro de Andrade por esse viés, o das relações entre literatura e cinema, como o fazem o nosso e a maior parte dos trabalhos empenhados em interpretar sua obra, parece ser o caminho mais óbvio para abordá-la. Mas não se trata apenas de uma questão de obviedade (e, por conseguinte, facilidade), uma vez que essa via de entrada para o estudo da produção do diretor revela-se bastante profícua na observação da atitude antropofágica que tanto impulsiona o próprio método criativo do cineasta quanto motiva muitas das situações e das relações entre as personagens de seus filmes. No primeiro caso, a postura antropofágica é tomada sob o seu aspecto positivo. Na urdidura de suas adaptações, Joaquim Pedro desempenha uma dupla investida em direção à obra original: absorve-a e a devolve em nova configuração, ou, em outros termos, submete-a a um processo de profunda transformação que problematiza alguns de seus aspectos constitutivos. Assim, o cineasta quase sempre toma como ponto de partida uma obra consagrada pela literatura ou um fato consagrado pela História [...] para, através do processo criador, ir contestando, ininterruptamente, aquilo que havia erigido como universo de seu discurso. Prisioneiro da tradição, Joaquim Pedro não pode, no entanto, render-se à leitura respeitosa e submissa do texto (SOUZA, 1980, p. 195)12. Pode-se observar, portanto, na atitude antropofágica do processo criativo do cineasta postura semelhante àquela que, segundo Silviano Santiago (2000), o escritor latino-americano é impelido a assumir diante das imposições políticas, econômicas e culturais dos países hegemônicos. Erigido no “entre-lugar”, o discurso literário latino-americano vive entre “a assimilação do modelo original, isto é, entre o amor e o respeito pelo já-escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue” (SANTIAGO, 2000, p. 25). 11 Provavelmente, Joaquim Pedro discordaria por completo do célebre professor de escrita criativa e um dos principais consultores de roteiros de Hollywood, Robert McKee, para quem o cinema brasileiro carece de “[...] roteiro. Vocês têm ótimos atores, ótimos diretores, vocês têm tudo que os melhores países têm. Se um filme no Brasil é bom, ele geralmente é a adaptação de um livro. Muitas vezes o cinema brasileiro tem que esperar escritores fazerem bons livros que podem ser adaptados. Precisa parar de se 'canibalizar' os romances” (REBINSKI JR., 2012, p. 25). 12 E indaga a autora na sequência: “[...] Será uma forma de amor essa atenção feita de vigilância, recusa ao abandono e agressividade? Ou vingança ressentida de criador, consciente de que a sua imaginação age sempre de maneira parasitária sobre um primeiro discurso autônomo?” (SOUZA, 1980, p. 195). 17 Esse primeiro e positivo sentido aqui atribuído à antropofagia, enquanto ímpeto do método de criação de Joaquim Pedro de Andrade, não está distante também daquele postulado pelo célebre manifesto de Oswald de Andrade13. É Sylvie Pierre (1997), aliás, em artigo de alerta sobre o cuidado com que se deve proceder ao se traçar paralelos entre o Modernismo e o Cinema Novo14, quem aponta a conexão de Joaquim Pedro com o movimento literário de Oswald, Mario e outros. Em nível simbólico, seu nome “reuniu todos os Andrades”, enquanto, de modo mais concreto, sua obra consiste numa “espécie de ressureição, por filiação direta, de tudo o que deu força” ao movimento modernista (PIERRE, 1997, p. 94). Na esteira desse pensamento, podemos encontrar nos trabalhos do diretor diversas tendências que animaram o Modernismo tupiniquim, tais como, a valorização da identidade brasileira diante do colonizador (movimento Pau-Brasil), a inclinação nacionalista e regionalista (Verde e Amarelo) e, por fim, a disposição antropofágica, dadas as várias alusões de seu cinema “[...] à necessidade de devorar e digerir a cultura do outro, e mesmo de devorar seu corpo, no amor” (PIERRE, 1997, p. 95). São precisamente as referências de seus filmes à necessidade de consumir o corpo do outro, via atos canibais mesmo ou, especialmente, via amor – leia-se, ato sexual – que nos fazem abandonar a face positiva da antropofagia em Joaquim Pedro a fim de lidar com seu aspecto negativo. Condenáveis aos olhos da comunidade em O Padre e moça (1965), voláteis ou aferradas a outros interesses em Macunaíma (1969), manifestação de poder em Guerra conjugal (1975)... as relações sexuais na obra do diretor carioca pouco ou nada tem a ver com a obtenção de prazer, permanecendo como exceção, é claro, Vereda tropical (1977). Em nosso objeto de estudo, aliás, como se pretende demonstrar a partir da análise de um de seus seguimentos narrativos, o sexo está a serviço da imperiosa necessidade de imposição de um sobre o outro, numa espécie de diagnóstico rigoroso, via relações íntimas, de uma sociedade 13 Manifesto cuja ideia aparece condensada na seguinte passagem: “A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos” (ANDRADE, 1972, p. 18-19). 14 Para a autora (PIERRE, 1997, p. 101-105), a obra como um verdadeiro manifesto, a implosão das formas, o pensamento antropofágico e o “desejo de criar uma expressão artística, para o conjunto das artes, ou para o cinema, que seja conforme à realidade brasileira, à alma do Brasil” são algumas das aproximações possíveis de se estabelecer entre o Modernismo e o Cinema Novo, a despeito de tantas e evidentes diferenças conceituais e contextuais. 18 em que a palavra de ordem é subjugar o outro. Em síntese, no universo de Guerra conjugal15, devorar o outro pelo sexo, ou, em termos mais grosseiros, comer o outro, significa impor-se. Ademais, se ainda não estamos convencidos da orientação antropofágica do método criativo de Joaquim Pedro de Andrade (sentido positivo) e das relações entre as personagens de seus filmes (sentido negativo), voltemo-nos para a própria biografia do cineasta, que, em certos lances, parece também marcada por uma atitude antropofágica (novamente em chave positiva, diga-se). Como se verá adiante, Joaquim Pedro conviveu, desde os primeiros tempos, com importantes escritores brasileiros, amigos de seu pai que frequentavam a casa da família na cidade do Rio de Janeiro. Cercado por esse ambiente, digamos, literário, chegou mesmo a acalentar o sonho de se tornar ele próprio um escritor, tendo, por fim, enveredado pelo universo da Física, devolvendo toda essa experiência em forma de cinema, racional como pede o universo das exatas, irregular e tumultuosamente humano como exigem as artes. *** Diante dessa exposição preliminar, há de se ter vislumbrado o objetivo deste trabalho. Seu principal propósito é analisar o quarto longa-metragem de ficção de Joaquim Pedro de Andrade, Guerra conjugal (1975), adaptação do cineasta para dezesseis contos de Dalton Trevisan, extraídos de seis livros distintos. A partir da análise pormenorizada de apenas um dos três seguimentos narrativos do filme16 – o seguimento dedicado a Nelsinho, a versão cinematográfica da rebaixada figura vampírica criada pelo escritor paranaense –, pretende-se, mais especificamente, verificar a orientação antropofágica (1) do método criativo de Joaquim Pedro, que, como bom leitor da literatura nacional, reelabora cinematograficamente alguns dos traços mais característicos da obra de Dalton Trevisan ao mesmo tempo em que a insere num espaço, em princípio, completamente adverso ao literário, o da pornochanchada; e (2) das relações amorosas entre as personagens do filme, que, em declarada guerra, impõem-se umas sobre as outras, especialmente por meio do sexo, em generalizado processo de devoração. 15 Eventualmente, em caso de muitas menções ao título de um filme ou obra literária numa mesma seção do trabalho, omitiremos a informação da data de publicação a fim de se evitar desnecessária repetição. 16 De modo geral, o que se disser a respeito da trajetória de Nelsinho em Guerra conjugal, vale também para os demais seguimentos do filme, o do casal senil João e Amália e o de Osíris. A escolha por analisar o seguimento narrativo do vampiro (e não os outros) deve-se a, ao menos, três fatores: (a) permite uma leitura mais vertical de Guerra conjugal, evitando-se, assim, que os esforços se dissipem; (b) o seguimento de Nelsinho é o espaço, por excelência, da atitude antropofágica das relações pessoais retratadas no filme; (c) a figura vampírica, representada por Nelsinho, é ponto chave para o entendimento da obra de Dalton Trevisan. 19 Para a consecução de tais objetivos, a dissertação foi organizada do modo como se segue. O capítulo de abertura, cujo título geral atende por “Para além dos ‘relacionamentos fiéis’ entre literatura e cinema”, constitui-se de duas partes. Na primeira delas (“Um percurso teórico: literatura e cinema”), os esforços estão voltados para a exploração das relações entre os dois meios mencionados, amplo campo no interior do qual esta pesquisa se insere. Tomando adaptação por tradução, nosso ponto de partida será a teoria de Haroldo de Campos, mais detidamente a exposta em gênese no ensaio “Da tradução como criação e como crítica”. Exploraremos seus principais aspectos, procurando estabelecer pontos de toque entre estes e aqueles propostos por Walter Benjamin, em “A Tarefa do tradutor”. Como se pretende demonstrar, os princípios regentes de tais teorias da tradução literária revelam-se igualmente profícuos quando deslocados para a área dos estudos sobre adaptação cinematográfica e concorrem, em nosso caso, para os esforços de compreensão do método criativo de Joaquim Pedro de Andrade em Guerra conjugal, filme erigido a partir de contos da literatura nacional, em prática semelhante à de um autêntico exercício tradutório. Ainda na primeira parte do capítulo inaugural desta dissertação, procederemos à abordagem de trabalhos crítico-teóricos diretamente relacionados à problemática da adaptação e/ou aos demais imbricamentos observáveis entre literatura e cinema, como os de André Bazin, Thaïs Flores Nogueira Diniz, Robert Stam, Randal Johnson e José Carlos Avellar, na medida em que a compreensão de tais estudos revela-se bastante útil não só para a interpretação de Guerra conjugal, um exercício adaptativo stricto sensu, como também dos outros projetos de Joaquim Pedro de Andrade ligados ao universo literário. Alinhamo-nos aqui, portanto, aos estudiosos que não restringem as relações entre os dois meios exclusivamente ao domínio da adaptação, tampouco as concebem de forma unilateral, sempre da literatura para o cinema. Com efeito, da mesma forma que os livros exercem influência sobre os filmes e se veem projetados nas telas e, por assim dizer, “frequentam” as sessões de cinema, muitos filmes devoram as páginas literárias e sobre elas se projetam para lhes devolver os influxos. (Seriam os livros autênticos “cinéfilos”, enquanto os filmes, persistentes “ratos de biblioteca”?). O segundo momento do capítulo um (“Um percurso antropofágico: o cinema de Joaquim Pedro de Andrade”) visa a cotejar os trabalhos do diretor realizados a partir do diálogo com a literatura, aproximando-os pelo princípio antropofágico, na medida em que os textos adaptados para a tela são os mesmos de origem somente em essência, porque reelaborados, por meio do crivo atento do cineasta, este grande leitor da literatura nacional, 20 segundo novos códigos cinematográficos, sem jamais abandonar o discurso crítico sobre o país e a sociedade brasileira. O capítulo dois lida mais de perto com a matéria literária. À breve exposição de alguns dos aspectos norteadores da produção de Dalton Trevisan, autor cuja produção anuncia o boom do gênero conto no Brasil entre as décadas de 1960-70, seguir-se-á a análise das cinco narrativas do escritor paranaense que serviram de base para tramar o seguimento do filme dedicado às (des)venturas do franzino vampiro (do sexo) Nelsinho, a saber: “A velha querida”, de Novelas nada exemplares (1959); “O roupão”, de Cemitério de elefantes (1964); “Na pontinha da orelha”, “Chapeuzinho Vermelho” e “As uvas”, todas de O Vampiro de Curitiba (1965). Tendo sempre como horizonte o trabalho da professora Berta Waldman, a análise a que o segundo capítulo se propõe não contempla uma interpretação integral de cada um dos contos mencionados. Antes, elege e discute alguns dos principais elementos da literatura de Dalton Trevisan, tais como, a repetição, a fragmentação, a linguagem e as situações clichês, a presença do kitsch, a imagem do vampiro e a cidade de Curitiba como personagem. Chegamos, por fim, ao capítulo terceiro, que se debruça sobre o seguimento narrativo de Nelsinho em Guerra conjugal. Considerando Joaquim Pedro um legítimo intérprete – quem, nos moldes postulados por Bosi (1988, p. 286), “é, acima de tudo, um mediador” cuja linguagem deve lembrar “a do tradutor de uma língua para outra”, numa delicada e vigilante operação que visa a “captar as vibrações e o tom da obra” –, indagamos: de que modo o diretor leu/interpretou/traduziu os textos nos quais se baseou? Qual o tom de Guerra conjugal? Sendo o filme um produto cultural e semiótico, de que maneira Joaquim Pedro converteu em imagens a sua experiência social, ideológica e estética? Se nem todas essas indagações obtêm respostas ao longo deste trabalho, o seu último capítulo pretende, ao menos, demonstrar de que maneira o cineasta, em sua reelaboração antropofágica dos contos de Dalton Trevisan, insere a literatura, da ordem da alta cultura, no interior de um gênero cinematográfico popular, a pornochanchada ou a comédia erótica nacional. Assim, se o escritor curitibano lança mão da força poética dos títulos de seus contos e de um estilo marcado pela “linguagem simples e pontual”, dois verdadeiros “cantos de sereia”, para seduzir seu leitor, como postula Temístocles Linhares (1973, p. 85-86), é por meio da aproximação de Guerra conjugal com o universo da pornochanchada que o cineasta atrai e também trai o espetador. É a partir, portanto, da dicotomia atração/traição – dicotomia, aliás, bastante apropriada aos jogos de desejo e infidelidade dos contos de base e do roteiro do filme – que a relação de Guerra conjugal com a comédia erótica se desenvolve. 21 Com efeito, se o longa-metragem adere às regras do jogo, o faz somente na superfície, na medida em que Joaquim Pedro trabalha o gênero cinematográfico em questão de forma crítica, rompendo com ele, ver-se-á, em diversas instâncias17. O sexo, por exemplo, deixa o clima de libertinagem e humor da maior parte das produções da comédia erótica para revelar sua face grotesca e violenta. Em Guerra conjugal, as relações sexuais nada têm de prazerosas, funcionando, antes, como representações íntimas da atmosfera pública: uma sociedade que vivia sob a truculência de um regime militar, em sua fase AI-5. A figura do machão, outro elemento caro à pornochanchada, notar-se-á, tem seu poder esvaziado ao longo da adaptação. De quebra, ao conferir tal tratamento à matéria sexual, bem como retratar relações pessoais pautadas pela imposição de poder, o diretor insere seu filme em duas grandes tendências cinematográficas de então: o sexo como forma de questionamento e o interesse em compor um quadro de decadência geral a partir da encenação da vida privada. Notar-se-á ainda que, apesar do deliberado e legítimo desejo de Joaquim Pedro de modificar o original, o que resulta numa interpretação bastante particular dos contos de Dalton Trevisan18, o cineasta acaba por manter no processo de tradução certos elementos caros à obra do escritor, ao operar, por exemplo, no filme, exercícios de concisão e condensação, em temas que se repetem e se espelham (e assim se renovam a partir da insistência no mesmo), de modo semelhante àqueles maturados pelo próprio Dalton Trevisan no decorrer de sua vasta produção, iniciada oficialmente com Novelas nada exemplares (1959). Nestas páginas introdutórias, cabe ainda um comentário de ordem metodológica. Expressões como “experiência social” ou “fase AI-5” revelam a preocupação deste trabalho com aspectos extrínsecos ao domínio de seu filme-objeto. Contudo, gostaríamos de ressaltar que sua proposta geral de análise é guiada pela orientação metodológica segundo a qual a compressão da obra artística somente se dá [...] fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que 17 É fato que são muitos os filmes enfeixados sob o mesmo rótulo de pornochanchada e que muitos deles acabam por quebrar as “regras” do próprio gênero. Para efeito de comparação entre Guerra conjugal e o universo da pornochanchada, tomaremos alguns dos traços mais recorrentes nas produções do gênero, tendo sempre em mente que existem camadas, variações e desdobramentos. 18 Basta observar o não tão inspirado retorno do vampiro Nelsinho às telas, no média-metragem A Balada do vampiro (2007), de Estevan Silvera, outra adaptação da obra de Trevisan autorizada pelo próprio escritor. 22 desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno (CANDIDO, 2000a, p. 5)19. Como sabemos, “[...] não se deve concluir apressadamente que o cinema [...] é a expressão transparente da realidade social, nem o seu contrário exato” (AUMONT, 1995, p. 99). O real não se representa de modo direto na tela; é, antes, reelaborado pela opacidade do discurso cinematográfico20, que coloca em jogo processos de correspondências, inversões, metáforas e alegorias. *** Como muitas das demais produções de nosso país, cuja negligência com a preservação dos bens culturais e artísticos é assombrosa, a despeito dos esforços de órgãos como o IPHAN e a Cinemateca Brasileira, os filmes de Joaquim Pedro de Andrade encontravam-se, até pouco tempo atrás, em estado calamitoso, conforme publicação do jornal O Estado de São Paulo, “Cinema de Joaquim Pedro está ameaçado” (2002). Felizmente, em projeto encabeçado pelos filhos Alice, Maria e Antônio, toda a sua filmografia (quatorze trabalhos no total) foi submetida a um elaborado processo de recuperação, um árduo trabalho de cerca de três anos que envolveu escaneamento dos originais, restauração digital em 2K e reimpressão de novos negativos em 35mm. Restaurados, os filmes puderam ser lançados no formato de DVD, viabilizando o acesso à obra diretor. Foi um destes preciosos discos que instigou e permitiu a realização desta pesquisa21. 19 A respeito do intricado pensamento de Antonio Candido, cf. o robusto trabalho de Rodrigo Martins Ramassote (2013). 20 Cf. Ismail Xavier (2008), trabalho no qual o professor discute amplamente a questão da transparência e opacidade no discurso cinematográfico por meio da exploração das diversas estéticas identificáveis ao longo da história do cinema. 21 GUERRA conjugal. 1975. 1 DVD (88 min.), son., color. Versão distribuída pelo Vídeo Filmes e utilizada para os apontamentos deste trabalho. 23 1 PARA ALÉM DOS “RELACIONAMENTOS FIÉIS” ENTRE LITERATURA E CINEMA Conforme se adiantou nas considerações preambulares, o capítulo inaugural deste trabalho compõe-se de dois momentos distintos, porém complementares. Assim, os pressupostos teóricos debatidos na primeira parte incidem sobre a segunda, na qual cotejamos os filmes de Joaquim Pedro de Andrade diretamente relacionados ao universo literário, tomando sempre adaptação por tradução, como um legítimo esforço criativo e crítico que recusa por completo a exigência de fidelidade à obra original. Ressalte-se ainda que a investida introdutória na direção de alguns estudos relevantes sobre literatura e cinema tem aqui, sobretudo, o propósito (1) de evidenciar o percurso de nossa pesquisa e (2) de sedimentar as bases sobre os quais se assenta a concepção de adaptação fílmica aqui adotada. No tocante às teorias arroladas, portanto, os leitores – se nos permitem elaborar uma analogia à linguagem cinematográfica – não assistirão a grandes planos (amplas visões de um todo), mas a primeiros planos (recortes mais precisos). 1.1 Um percurso teórico: literatura e cinema Criativa, subversora de lugares-comuns, genuinamente antropofágica... Eis alguns dos atributos da teoria da tradução de Haroldo de Campos, forjada, de um lado, pela leitura de nomes como Max Bense, C. S. Pierce, Walter Benjamin, Ezra Pound e T. S. Eliot, e de outro, pela própria atividade do poeta como tradutor, exercício através do qual, fazendo uso de um termo cunhado por ele, “transcriou” para a língua portuguesa tanto as obras de alguns dos maiores da literatura mundial, tais como Homero, Mallarmé, Maiakovski, Dante e o próprio Pound, quanto certas realizações poéticas negligenciadas pelo cânone literário ocidental. Sempre vinculada à praxe, sua produção teórica repercutiu de forma impactante sobre a historiografia literária brasileira, então redimensionada a partir de tomadas sincrônicas e diacrônicas que [por sua vez] abalam as fronteira entre o internacional e o nacional; resgatam obras antes consideradas menores [...]; atendem às explorações realizadas por cada obra em seu espaço e materiais específicos [...]; implicam a invenção de um corpus crítico-seletivo que interliga criteriosamente os conceitos de tradução poética, operação metalinguística, paródia, carnavalização, intertextualidade, literatura comparada e relações entre diversos sistemas de signos (SANTAELLA, 2005, p. 222). 24 No ensaio “Da tradução como criação e como crítica”, apresentado pela primeira vez num congresso na Universidade da Paraíba em 1962, Haroldo de Campos semeia as bases de sua teoria ao postular a tradução como “recriação crítica”, máxima que seria retomada e aprimorada no decurso da intensa produção do poeta. Suas reflexões partem dos estudos de Albrecht Fabri e, especialmente, Max Bense. Do primeiro, sublinha a “sentença absoluta”, própria da literatura e intraduzível, cujo conteúdo não é outro senão a sua própria estrutura (FABRI apud CAMPOS, 2006, p. 31-32). Do segundo, explora a sua tipologia triádica de informações – a “documentária”, a “semântica” e a “estética” –, sendo possível encontrar, na última, evidentes reverberações da “sentença absoluta”. Sempre na esteira da interpretação do próprio Haroldo de Campos (2006, p. 32), aprendemos que a “informação documentária” é de caráter empírico porque “reproduz algo observável” (como em “A aranha tece a teia”), enquanto a “informação semântica” transcende esse horizonte e acrescenta “algo que em si mesmo não é observável, um elemento novo, como, por exemplo, o conceito de falso ou verdadeiro” (como em “A aranha tece a teia é uma proposição verdadeira”). O traço comum a esses dois primeiros tipos de informação é a possibilidade de arranjos diversos. De fato, diferentes modos de composição poderiam ser prontamente sugeridos para as orações exemplificativas acima. O mesmo não se pode afirmar acerca da “informação estética”, que, de modo análogo à “sentença absoluta”, “não pode ser codificada de outra maneira senão pela forma em que foi transmitida pelo artista” (CAMPOS, 2006, p. 33). Dotada de irreparável fragilidade, a mínima deturpação na sequência de seus signos verbais – a retirada ou inserção de uma pequena partícula de um poema, por exemplo – compromete por completo a tessitura da “informação estética”22. Tal frangível estado instaura, como consequência, aguda impossibilidade de tradução da composição poética, seja ela um poema de fato ou um texto em prosa que lhe equivalha em complexidade, como certas realizações de James Joyce, Oswald de Andrade, Mario de Andrade ou Guimarães Rosa, nas quais se confere especial atenção à palavra enquanto objeto (CAMPOS, 2006, p. 34). Ora, ao se assumir em princípio a inexequibilidade da tradução, engendra-se aí também paradoxalmente uma possibilidade direta e mesmo necessária. Referimo-nos à operação de 22 Não nos parece um desatino aproximar a fragilidade da “informação estética” literária, tal como exposta por Haroldo de Campos, ao rigor da escritura cinematográfica de Eisenstein (2002, p. 113), para quem os planos de um filme devem ser distribuídos “[...] numa sequência de montagem com o mesmo cuidado usado para colocar uma linha de poesia num poema, ou para colocar cada átomo musical no movimento de uma fuga”. 25 recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca. [...] Numa tradução dessa natureza não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim, tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético [...]) (CAMPOS, 2006, p. 35, grifo do autor). Com o intuito de conferir contornos ainda mais precisos à natureza dessa “recriação” ou “criação paralela”, cuja originalidade está na ênfase sobre o aspecto formal em detrimento do conteudístico de outrora, Haroldo de Campos recorre então, em seu ensaio, ao fenômeno químico de “isomorfismo”, verificável entre duas ou mais substâncias diferentes que cristalizam no mesmo sistema com a mesma disposição e orientação dos átomos, moléculas ou íons. A tradução regida pelo princípio isomórfico deverá compor, [...] como quer Bense, em outra língua, uma outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentre de um mesmo sistema (CAMPOS, 2006, p. 34). Após se valer do princípio químico em sua explanação, o poeta conclui seu seminal trabalho ao afirmar que a tradução é necessariamente um exercício de “crítica ao vivo” por ser capaz de penetrar a “[...] fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha” e revelar sua suscetibilidade a “[...] uma vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas para trazê-la novamente à luz num corpo linguístico diverso” (CAMPOS, 2006, p. 43). Num remoçar tipicamente antropofágico, a tradução deglute, portanto, a obra original e a revivifica num novo corpo, o que a torna um princípio avesso ao da literalidade. Como veremos, é precisamente por esse viés – a tradução a regurgitar a obra original em arranjo distinto – que encaramos não só a adaptação-objeto de nosso trabalho, Guerra conjugal (1975), mas todo o esforço filmográfico de Joaquim Pedro de Andrade. Em florescência e aspectos gerais, eis a teoria da tradução de Haroldo de Campos, a qual seria depurada pela revisão teórica e prática tradutória ao longo de toda a sua produtiva vida intelectual, interrompida aos setenta e três anos, em 2003. Antes, porém, ele já havia cunhado os termos “paramorfia”, em substituição ao de “isomorfia”, e os conceitos de natureza verbal “transcriar”, “transluzir” e “transluciferar” como reelaborações do ato tradutório enquanto “recriação crítica”. Aproveitemos, aliás, a ocorrência do neologismo “transluciferar” para abordar o matiz metafísico de sua teoria, traço herdado (e sofisticado) por Haroldo de Campos de Walter Benjamin, pensador e tradutor alemão que, embora em 26 chave teórica mais ampla – suas preocupações se desenvolvem no interior de uma filosofia geral da linguagem –, exerceu incontornável influência sobre o poeta brasileiro. É o próprio concretista, inclusive, quem a assinala ao travar diálogos explícitos com a obra do filósofo, como podemos observar em afirmações da seguinte ordem: “a operação tradutora [...] tende, no limite, ao escopo daquela descrita por Walter Benjamin: liberar, na língua da tradução, a linguagem pura que o original vela, e em relação ao qual o sentido comunicativo [...] é apenas uma referência tangencial” (CAMPOS, 1998, p. 80). Por conseguinte, ser-nos-ia de grande proficuidade explorar o célebre ensaio de Walter Benjamin, “A Tarefa do tradutor”, publicado pela primeira vez em 1923, com a finalidade de melhor compreendermos a gênese da teoria haroldiana e seu desdobramento metafísico “transluciferino”, o que trará maior densidade ao conceito de adaptação aqui adotado e à busca por uma compreensão mais precisa do procedimento criativo de Joaquim Pedro, cineasta responsável pelo objeto de estudo deste trabalho. Para o influente pensador alemão, traduzir não significa comunicar, tampouco imitar. Ora, a primeira definição negativa parece contrariar o princípio mesmo do ato tradutório. Afinal, o que desejam os leitores não familiarizados com a língua na qual a obra original foi concebida senão acessá-la e, consequentemente, estabelecer comunicação via uma transposição para seu idioma? Na verdade, segundo Walter Benjamin (2008, p. 66), “a tradução que pretendesse comunicar algo não poderia comunicar nada que não fosse comunicação, portanto, algo inessencial”. Se reduzida a tal intuito, a tradução fica condenada ao domínio do conteúdo e ronda assim apenas a superfície textual, sem penetrar o essencial da obra, cujos atributos não pertenceriam – pergunta agora o filósofo – exatamente à esfera do inapreensível, do “misterioso” e do “poético” (BENJAMIN, 2008, p. 66)? Logo, traduzir não é comunicar. Para a segunda definição negativa presente no ensaio (tradução não é imitação), parece ainda mais imprudente propor contra-argumentos, posto que “a fidelidade na tradução de palavras isoladas quase nunca é capaz de reproduzir plenamente o sentido que elas possuem no original” (BENJAMIN, 2008, p. 77). Como solucionar, portanto, a (aparente) aporia? De que modo devemos conceber o ato tradutório se ele não deve – ou, ao menos, não deveria – visar à comunicação, tampouco à reprodução fiel? “Seu principal objeto não é [na verdade] o sentido, mas a forma. Se o poeta trabalha na relação língua-sentido, o tradutor trabalha na relação língua-língua” (FURLAN, 1996, p. 101). Na esteira desse pensamento, torna-se necessário o retorno ao original, pois “nele reside a lei dessa forma, enquanto encerrada em sua traduzibilidade” (BENJAMIN, 2008, p. 67). 27 Desse modo, a finalidade do empenho tradutório desloca-se do âmbito da comunicação ou da imitação para o da expressão do “mais íntimo relacionamento das línguas entre si”, relacionamento evidenciado pelo “[...] fato de que as línguas não são estranhas umas às outras, sendo a priori – e abstraindo de todas as ligações históricas – afins naquilo que querem dizer” (BENJAMIN, 2008, p. 69-70). Em outras palavras, a afinidade entre elas é manifesta pelas intenções mesmas de cada uma, o que as complementa. (Já nos aproximamos aqui do objetivo de nossa longa digressão: evidenciar o aspecto metafísico da teoria da tradução de Walter Benjamin, cuja influência sobre Haroldo de Campos é notável). O último momento do ensaio do filósofo é dedicado a uma intrigante composição imagética, por meio da qual, ilustra seus pressupostos e os torna mais acessíveis: Assim como os cacos de um vaso, para poderem ser recompostos, devem seguir-se uns aos outros nos menores detalhes, mas sem se igualar, a tradução deve, ao invés de procurar assemelhar-se ao sentido do original, ir configurando, em sua própria língua, amorosamente, chegando até aos mínimos detalhes, o modo de designar do original, fazendo assim com que ambos sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmentos de um vaso. E precisamente por isso, ela deve abstrair do propósito de comunicar (BENJAMIN, 2008, p. 77). Se o compreendemos bem, são três as imagens suscitadas por esse exercício comparativo entre a investida tradutória e as diferentes configurações de um mesmo e prosaico objeto. Em nossa via interpretativa, a imagem (a) do vaso inviolado em sua indefectibilidade corresponde à abstrata noção de “língua pura”; (b) o vaso estilhaçado, cujas partículas evocam ainda o objeto primitivo23, equivale à obra original, à realização primeira; e, por fim, (c) a imagem derradeira, o vaso reconstruído, representa a tradução de fato. Esta, atenta aos ínfimos detalhes, forja uma peça-resultado cujas trincadelas permitem que se entrevejam simultaneamente tanto a primeira execução (estilhaços reconhecíveis/obra original) quanto a imagem ideal (vaso em estado imaculado/“língua pura”), preservando, assim, essências e não o objeto em si. Não será nada penoso observar, acreditamos, tal procedimento em Guerra conjugal. Na verdade, ele parece ser mesmo o princípio norteador do método criativo de Joaquim Pedro de Andrade, este perspicaz leitor da literatura nacional que soube preservar, em suas adaptações/traduções, elementos caracterizadores (essenciais?) das obras de base, ao mesmo tempo em que empreendia drásticas modificações em função de suas preocupações temáticas, estéticas e ideológicas. 23 Ainda que aos pedaços, é por meio dos próprios estilhaços que o reconhecemos. 28 Retomando, em síntese, Walter Benjamin e, especialmente, a questão do matiz metafísico de sua teoria da tradução, podemos depreender do mencionado ensaio do filósofo, cuja composição imagética acima é engenhosamente esclarecedora, que o confronto de duas línguas, via empenho tradutório, expressa a relação de complementariedade existente entre elas – de modo análogo àquela verificável entre os estilhaços de um vaso e a sua completa reconfiguração – e desvela um sentido antes inapreensível apenas por meio da obra original. Nesse sentido, como no mito bíblico no qual o anjo Gabriel anuncia a Maria a concepção do filho de Deus – o mistério divino se faz carne –, a tradução, segundo Furlan (1996, p. 102), em sua tarefa “grandiosa, messiânica e redentora”, revela a imponderável “realidade da ‘língua pura’ que se reflete nas línguas do original e da tradução, da obra de arte e sua ‘reprodução’”. É novamente Haroldo de Campos quem vem em nosso auxílio, encaminha nossa discussão e explicita a afinidade existente entre o seu pensamento e o do filósofo alemão: [...], no entender do próprio Walter Benjamin, cabe à tradução uma função angelical, de portadora, de mensageira [...]: a tradução anuncia, para a língua original, a miragem mallarmaica da língua pura; ela é mesmo, para o original, a única possibilidade de entrevisão dessa língua pura: – ponto messiânico (ou, em termos laicos da moderna teoria dos signos, – lugar semiótico) de convergências da intencionalidade [...] (CAMPOS, 1981, p. 170). Contudo, se Haroldo de Campos herda, conforme se afirmou, o aspecto metafísico da teoria da tradução de Walter Benjamin, assumindo a possibilidade da língua num idealizado estado de pureza, é certo também que o poeta reelabora a missão angélica da tradução em termos luciferinos: [...] toda tradução que se recusa a servir submissamente a um conteúdo, que se recusa à tirania de um Logos pré-ordenado, é romper a clausura metafísica da presença (como diria Derrida): uma empresa satânica. O contraparte maldito da angelitude da tradução é a Hýbris, o pecado semiológico de Satã, [...], a transgressão dos limites sígnicos, no caso o transgredir da relação aparentemente natural entre o que dicotomicamente se postula como forma e conteúdo (CAMPOS, 1981, p. 180, grifo nosso). Flamejada pelo rastro coruscante de seu anjo instigador, a tradução criativa, possuída de demonismo, não é piedosa nem memorial, ela intenta, no limite, a rasura da origem: a obliteração do original. A essa desmemória parricida chamarei “transluciferação” (CAMPOS, 1981, p. 209, grifo nosso). 29 Por meio de sua poderosa capacidade de “transluciferação”, a tradução torna-se indômita, subversiva e afeita à criatividade. Pode, inclusive, “esquecer-se” da obra original e reacomodar seus aspectos formais na língua de destino. Desse modo, refuta-se a cópia, numa crescente valorização da cultura receptora. A “transluciferação” – neologismo derivado do termo Lúcifer e que nos remete ao mito do anjo caído – configura-se, portanto, como afirmação do matiz metafísico da teoria da tradução do poeta concretista e, ao mesmo tempo, sua superação, na medida em que o grau de liberdade assumido pelo ato tradutório valoriza a cultura de destino e não mais, ou melhor, não somente, a de origem. Com efeito, a tradução [...] nunca acontece num vácuo onde se pressupõe que as línguas se encontram [o vácuo da “língua pura”?], mas no contexto da tradição de todas as literaturas, no ponto de encontro entre os tradutores e os escritores, que é cultural. Os tradutores se apresentam, pois, como mediadores entre as tradições literárias, entre culturas, não com o intuito de trazer o original à tona de maneira neutra e objetiva, mas para torná-lo acessível em seus próprios termos (DINIZ, 1999, p. 36). Trata-se de um procedimento de grande complexidade [...] que envolve também as culturas, os artistas, seus contextos histórico- sociais, os leitores/espectadores, as tradições, a ideologia, as tradições, a ideologia, a experiência do passado e as expectativas quanto ao futuro. Envolve ainda o uso de convenções, de técnicas anteriores ou contemporâneas, de estilos e de gêneros. Traduzir significa ainda perpetuar ou contestar, aceitar ou desafiar (DINIZ, 1999, p. 44). Em suma, acreditamos que, de modo análogo à inversão promovida pela teoria de Walter Benjamin e Haroldo de Campos – o alçamento da tradução a um estatuto tão prestigiado quanto o da obra original24 –, as soluções adaptativas empreendidas por Joaquim Pedro de Andrade de um meio (a literatura) para outro (o cinema) constituam de fato legítimas traduções críticas, tão elaboradas quanto os textos que lhe serviram de base. Em suas “criações paralelas”, o diretor negligencia muitas vezes o conteúdo, em nome de uma sofisticação formal cinematográfica que corresponda em complexidade à literária. Em O Homem do Pau-Brasil (1981), por exemplo, a irregularidade e a descontinuidade telegráfica das sequências desejam dar conta da pluralidade dos recursos da escrita de Oswald de 24 Através da tradução, “o original evolui, cresce, alçando-se a uma atmosfera por assim dizer mais elevada e mais pura da língua [...]” (BENJAMIN, 2008, p. 73). 30 Andrade. Em Os Inconfidentes (1972), apenas para arrolar outro rápido exemplo de sua perspicácia criativa, o diretor carioca faz convergir textos de fontes diversas (poemas, processos jurídicos e ensaios historiográficos), a fim de refletir, através de montagem e mise- en-scène vigorosas e sob o escudo do gênero de filme histórico, sobre a postura de Tiradentes e dos demais poetas conjurados, bem como os impasses vividos pelos intelectuais de seu tempo, então sob a vigilância de um violento estado repressor em seu momento AI-5. Em Guerra conjugal, a concisão e a repetição da escrita de Dalton Trevisan são mimetizadas pela insistência nos planos próximos e desenvolvidos em espaços fechados, sempre a captar relações amorosas pautadas pelo desejo de subjugar o outro, em consistente captação da atmosfera dos tempos militares. Os filmes de Joaquim Pedro são marcados, portanto, por aguda leitura de obras da literatura nacional, “transluciferadas” em intensos exercícios cinematográficos, sem que se abandone a reflexão sobre o país ou a sociedade brasileira, inegável obsessão do cineasta, expressa também de forma contundente na última de suas entrevistas: “Só sei fazer cinema no Brasil, só sei falar de Brasil, só me interessa o Brasil” (ANDRADE, 1988, n.p.). *** Não seria nenhum despropósito afirmar que as postulações teóricas de Walter Benjamin e Haroldo de Campos, a despeito da distância geográfica que os aparta e dos respectivos campos de atuação, alinham-se ao pensamento do cofundador da revista Cahiers du cinéma, André Bazin. (E a partir deste ponto avançamos para os estudos diretamente relacionados à problemática da adaptação e às múltiplas relações possíveis entre literatura e cinema). São excertos, aliás, de um ensaio do próprio crítico francês que permitem os cotejos: Quanto mais as qualidades literárias da obra são importantes e decisivas, mais a adaptação perturba seu equilíbrio, mais também ela exige um talento criador para reconstruir de acordo com um novo equilíbrio, de modo algum idêntico, mas equivalente ao antigo. Considerar a adaptação de romances como um exercício preguiçoso com o qual o verdadeiro cinema, o “cinema puro”, não teria nada a ganhar, é, portanto, um contrassenso crítico desmentido por todas as adaptações de valor (BAZIN, 1991, p. 96, grifo nosso). Ora, a ideia de que um “equilíbrio da obra” pode ser “perturbado” não nos remete à concepção da “fragilidade da informação estética”? A exigência de um “talento criador” para o exercício adaptativo não é semelhante à necessidade de “recriação” imposta ao tradutor de 31 textos literários? As construções “novo equilíbrio” e “de modo algum idêntico” não pedem uma “fidelidade à forma” em detrimento do conteúdo, como orientavam as teorias da tradução discutidas anteriormente? “Cinema puro” e “língua pura”, suposições embasadas em princípios comuns? Para Bazin, o cinema é, por definição, “impuro”, uma vez que, desde seus primórdios mudos, usufruiu dos materiais humano (os intérpretes) e técnicos de outras manifestações, como o circo, o teatro mambembe e a literatura popular, e sua impureza deve ser encarada no interior de um processo de interinfluências comuns às diversas realizações artísticas. “Se o cinema tivesse dois ou três milhões de anos, sem dúvida veríamos mais claramente que ele não escapa às leis comuns da evolução das artes” (BAZIN, 1991, p. 84). Em resumo, sua hipótese é a de que o processo de intercâmbio entre as artes em nada as prejudica; ao contrário, enobrece a cultura geral, a beneficiária direta da permuta de influências. (Aqui, observa-se um ponto de toque com a ideia de valorização da cultura receptora da teoria da tradução de Haroldo). Nesse sentido, “[...] indignar-se com as supostas degradações sofridas pelas obras-primas na tela [...]” configura-se como um verdadeiro disparate, pois, “por mais aproximativas que sejam as adaptações, elas não podem causar danos ao original junto à maioria que o conhece e o aprecia” (BAZIN, 1991, p. 93). (Ressalve-se que, embora o renomado crítico francês legitime a impureza do cinema em seu ensaio, transparece ainda nele, como revela a citação acima, certo ranço da primazia da literatura sobre o cinema, hierarquia valorativa, aliás, também subliminarmente constante ao longo deste trabalho, por mais que a queiramos repelir: atente-se para as suas vinte e cinco ocorrências do sintagma formado pelos vocábulos “literatura e cinema”, em que o termo “literatura” segue sempre anteposto a “cinema”). Além de explorar os paralelismos possíveis entre as teorias de tradução literária de Walter Benjamin e Haroldo de Campos e o modo como André Bazin concebe a atividade adaptativa, interessa-nos ainda outro aspecto de seu ensaio. Referimo-nos à influência exercida pelo cinema sobre a literatura, ou, mais apropriadamente, às complexas formas de imbricamentos observáveis entre os dois meios, não esgotadas pelo exercício adaptativo. Conquanto o objeto de nosso trabalho seja de fato uma adaptação, é salutar que se desenvolva consciência da multiplicidade tipológica das relações entre literatura e cinema. Tal atitude auxilia na sedimentação da ideia de fidelidade como exigência desnecessária e na compreensão da prática filmográfica do próprio Joaquim Pedro de Andrade, cujos exemplos, como veremos em breve, não se encerram ao universo das adaptações. 32 Um das investigações mais instigantes nesse campo foi empreendida por um dos pilares do cinema russo. Em relato do processo de adaptação do romance de Theodore Dreiser, Uma Tragédia americana (1925), por exemplo, Eisenstein (2008, p. 213) afirma categoricamente que o monólogo interior, recurso típico do engenho literário, somente encontraria sua expressão plena através do cinema. Em outro de seus artigos, Eisenstein (2002) recua para uma posição mais tradicional ao rastrear a influência de Dickens sobre Griffith e creditar o método de montagem em ação paralela deste ao escritor inglês. Na verdade, o olhar do cineasta sobre a questão é bastante peculiar, o que um terceiro exemplo, a citação abaixo, pode corroborar. Segundo o cineasta russo, a melhor “adaptação” de Gogol para o cinema é precisamente um filme não baseado em sua obra: Sob o esplêndido poema visual do Dnieper no primeiro rolo de Ivan, Dovjenko, acredito, poderia com sucesso recitar a descrição de Gogol do “maravilhoso Dnieper”, de sua Uma terrível vingança. O ritmo da câmera em movimento – flutuando pelas margens. O corte de imóveis extensões de água. Em sua alternância e mudança estão o truque e a magia do imaginário e das mudanças de discurso de Gogol. [...]. Aqui a literatura e o cinema proporcionam um modelo da mais pura fusão e afinidade (EISENSTEIN, 2002, p. 111). Quem dedica igualmente parte de seus esforços para rastrear as múltiplas inter- relações literatura/cinema é o professor Randal Johnson, em estudo sobre o caso Vidas secas, livro (1938) e filme (1963). Para além das adaptações, pode-se pensar, por exemplo, nas produções documentais e/ou ficcionais sobre escritores, sejam longas ou curtas-metragens (JOHNSON, 2003, p. 37). A filmografia de Joaquim Pedro de Andrade fornece-nos, no mínimo, três exemplares para o caso: os breves documentários sobre Manuel Bandeira (O Poeta do Castelo, 1959) e Pedro Nava (O Tempo e a glória, 1981) e o complexo exercício O Homem do Pau-Brasil (1981). Ao último não cabem os rótulos nem de adaptação (no sentido mais tradicional e restrito do termo) nem de biografia cinematográfica, embora nele sejam de fato representados “certos aspectos da vida e obra de Oswald de Andrade” (JOHNSON, 2003, p. 37)25. De maneira distinta do grupo mencionado acima, outras produções “contêm, dialogicamente, [apenas] alusões ou referências literárias, sejam elas breves ou extensas, implícitas ou explícitas”, orais ou visuais (JOHNSON, 2003, p. 37-38). No tocante à obra de 25 Dentro desse seguimento, poderíamos recorrer também a filmes nos quais escritores fictícios são protagonistas, como o atemorizante O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, adaptado do romance homônimo de Stephen King, ou o virtuoso Adaptação (2002), de Spike Jonze, cujo ponto de partida é o livro de não ficção The Orchid thief (1998), da jornalista Susan Orlean. 33 Joaquim Pedro, Os Inconfidentes (1971) constitui um exemplo apropriado para o caso, uma vez que seu roteiro se vale, além dos textos de processos judiciais, da poesia de Cecília Meirelles e dos poetas participantes da Inconfidência Mineira, cujos versos são citados deliberadamente. (Apenas a título de ilustração, mencionemos outros três exemplos de significativos filmes que trazem referências ou alusões à literatura, prática, na verdade, prolificamente desempenhada pelos cineastas. Ninfomaníaca: volume um (2013), polêmico trabalho de Lars Von Trier, abre seu quarto capítulo com uma epígrafe retirada de A Queda da casa de Usher (1839), de Edgar Allan Poe. Em Clamor do sexo (1961), são os versos de William Wordsworth que irrompem a trama e sintetizam a temática do longa de Elia Kazan, a interdição dos desejos e do amor na juventude26. Por fim, em Uma mulher é uma mulher (1961), de Godard – quem, segundo Coutinho (2010), teria chegado mesmo a realizar literatura através de seu cinema –, o casal protagonista, após tola discussão conjugal, passa a expressar seus desejos e opiniões, por meio dos títulos das capas de livros de suas estantes, numa espécie de “mudo diálogo”). Uma discussão mais ampla sobre os influxos entre literatura e cinema deveria incluir também “uma série de questões envolvendo roteiros, desde escritores que participam de sua elaboração27, até o status literário que alguns roteiros ganham, mesmo em medida limitada, ao serem publicados” (JOHNSON, 2003, p. 38). É o segundo e controverso ponto, o estatuto do roteiro28, que nos interessa mais de perto, pois, como veremos na segunda parte deste capítulo, muito se alardeou a respeito do sabor literário de um roteiro de Joaquim Pedro, O Imponderável Bento contra o crioulo voador, publicado postumamente em 1990. Na abordagem das relações entre literatura e cinema, é preciso considerar ainda o fato de alguns escritores enveredarem pela crítica cinematográfica. A plural obra de Vinicius de Moraes, o poetinha, por exemplo, legou-nos diversas críticas/crônicas sobre cinema, 26 Os versos do poeta conferem ao filme, inclusive, seu título original, Splendor in the grass. Sobre o pungente Clamor do sexo, cf. ensaio de Joaquim Alves de Aguiar (2000-2001). Nele, seu autor lança mão de uma leitura ancorada na conversão das sequências de imagens em análise descritiva que expõe o descompasso existente muitas vezes entre o projeto artístico e sua concretização (no caso, o conformismo final da mensagem do filme de Kazan). 27 Em Hollywood, por exemplo, foram muitos os escritores seduzidos pelo ofício de roteirista, em prática que rendeu todo tipo de trabalho, de obras-primas a banalizações. A lista inclui nomes como William Faulkner, Francis Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, John Fante, Truman Capote e Gore Vidal, entre outros. 28 Se, por um lado, o roteiro guarda semelhanças com outros gêneros canônicos (como o teatro), por outro, ainda é preciso investigar as especificidades que o diferenciam dos demais. Um mero molde, um guia técnico ou uma obra autônoma? (informação verbal). Eis algumas das indagações da exposição oral intitulada “Literatura e cinema: roteiro é literatura?”, proferida pela Prof.ª Dr.ª Maria de Lourdes Ortiz G. Baldan, durante o II Congresso Internacional do PPG-Letras e XIV Seminário de Estudos Literários do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto (IBILCE/ UNESP). 34 posteriormente enfeixadas no volume O Cinema de meus olhos (1991)29. E, se escritores compõem roteiros e criticam filmes, alguns cineastas desejam ocupar não apenas as salas de cinema, como também as estantes das bibliotecas. Assim, enquanto Glauber Rocha, o cinemanovista por excelência, escreveu de fato o romance Riverão suçuarana (1977), Joaquim Pedro, como veremos, ficou apenas a acalentar o desejo de se tornar escritor na juventude30. E [tudo] isso sem mencionar o inegável impacto que o cinema tem sobre a literatura, em termos conceituais, estilísticos ou temáticos. Basta pensar, por exemplo, na prosa cinematográfica de Oswald de Andrade ou Antônio Alcântara Machado, em romances como Operação silêncio (1979), de Márcio Souza, que tematiza o cinema de múltiplas formas, e Camilo Mortágua (1980), de Josué Guimaraes, que usa o cinema como elemento temático e estrutural [...] (JOHNSON, 2003, p. 39). A respeito desse assunto, a influência do cinema sobre a literatura, Antonio Candido também aponta para a “prosa cinematográfica” de Oswald de Andrade. Em “Estouro e libertação” (1992 [1945]), primeiro ensaio sobre o conjunto da produção do escritor modernista, o crítico afirma ser ele o responsável pelo lançamento da técnica cinematográfica na literatura brasileira, aspecto verificável especialmente nos romances Os Condenados (1922), primeiro volume da Trilogia do exílio, e Marco zero I: A Revolução melancólica (1943)31. (Ressalte-se que a proposição de aproximar a obra de Oswald de Andrade e o cinema, embora instigante, é passível de problematização. Quais filmes teriam influenciado o modernista? Ou melhor, haveria um cinema tão sofisticado quanto a sua prosa?). De todo modo, ao se admitir a possibilidade de um trâmite de influxos no sentido oposto ao tradicional, como sugerem os apontamentos de Randal Johnson e Antonio Candido, não podemos nos furtar às postulações de Mikhail Bakhtin (1998) acerca do romance, que, enquanto gênero inacabado, flexível e, portanto, aberto, é capaz de incorporar a si os demais gêneros, bem como as idiossincrasias de cada tempo. Com o advento do cinema, soube também absorver as técnicas cinematográficas e ajustá-las às suas especificidades. 29 O cineasta e escritor Edgardo Cozarinsky fez o mesmo com os artigos de Jorge Luis Borges, organizando-os em Borges em/e/sobre cinema (2000). 30 O caso mais célebre de um grande cineasta que se lançou também à aventura literária parece ser de fato o do italiano Pier Paolo Pasolini. Sobre seus poemas de qualidade inquestionável, cf. Brayner (2008). 31 A partir de posições teóricas distintas, Haroldo de Campos (1971) também ressalta a semelhança do discurso dos romances Memórias sentimentais de João Miramar (e Ulysses) com os procedimentos de montagem do cinema de Eisenstein, em sua fragmentação e no modo de composição por planos não necessariamente contínuos e de cujo contraste emerge uma nova e significativa imagem. 35 Outro dos mais perspicazes trabalhos na exploração do intercâmbio de influências entre literatura e cinema, sem o estabelecimento de hierarquias, tal qual o de Randal Johnson, parece ser O Chão da palavra, de José Carlos Avellar, crítico, ensaísta, roteirista do documentário em curta-metragem A Linguagem da persuasão (1970), de Joaquim Pedro de Andrade, e um dos grandes defensores e divulgadores de nossa cinematografia. Valendo-se de estudos diversos, exemplificações e depoimentos de escritores e cineastas, Avellar (2007) explicita a complexa trama pela qual os dois meios estão enredados e tece sólidas aproximações entre as duas linguagens, de maneira tal que a tentativa de se estabelecer a primazia de uma sobre a outra se revela estéril. Por conseguinte, é mais viável àqueles que lidam com o entrecruzamento literatura/cinema pensar num amplo processo [...] (cujo ponto de partida é difícil de localizar com precisão) em que os filmes buscam nos livros temas e modos de narrar que os livros apanharam em filmes; em que os escritores apanham nos filmes o que os cineastas foram buscar nos livros; em que os filmes tiram da literatura o que ela tirou do cinema; em que os livros voltam aos filmes e os filmes aos livros numa conversa jamais interrompida (AVELLAR, 2007, p. 8). O tautológico discurso do autor, notável na citação acima e nas subsequentes, torna- se revelador e mesmo necessário recurso para o enfrentamento do problema proposto. Em vez da unilateralidade do movimento de influência, sempre da literatura para o cinema, um fluxo contínuo de permuta de técnicas e modos de conceber a criação. “Um romance se desenrola como um filme aos olhos do escritor antes de se transformar em escrita?”, questiona Avellar (2007, p. 86). Ou ainda, em outro recorte: “a literatura teria inventado o cinema sem se dar conta disso? E depois, conscientemente, teria se voltado para o que inventou para se reinventar (escrevendo adaptações literárias de filmes)?” (AVELLAR, 2007, p. 105). Em suma, as relações entre literatura e cinema, como esperamos ter evidenciado através dos textos críticos em discussão e das obras exemplificativas – com amostras colhidas, inclusive, da própria filmografia de Joaquim Pedro de Andrade –, dão-se de formas múltiplas. Muitos trabalhos, como de José Carlos Avellar, exploram-nas no sentido das intersecções e similitudes, ponto para o qual caibam talvez ressalvas. As semelhanças entre os dois meios são de fato flagrantes. A busca por paralelos entre os procedimentos literários e os cinematográficos – aliás, nossa análise de Guerra conjugal move-se por aí – traz, indubitavelmente, resultados inquestionáveis. Contudo, não convém perder de vista as especificidades de cada arte. Nesse sentido, a professora Irina Rajewsky (2012), ao refletir sobre os rumos dos estudos sobre 36 intermidialidade, campo no interior do qual as relações entre literatura e cinema também podem ser contempladas32, argumenta que, não obstante a impureza das diversas artes, faz-se necessário conhecer os limites de cada mídia em particular para a melhor fruição das manifestações intermidiáticas. Com efeito, ao se deparar com uma expressão artística desse tipo, o espectador acessa uma série de conhecimentos prévios que lhe permitem a identificação das artes ali envolvidas. O teatro, por exemplo, que, em sua franca expansão midiática, incorporou, inclusive, o vídeo, jamais deixou de ser percebido enquanto teatro pelo público. “Ele tem, portanto, fronteiras traçadas nos moldes da mídia e fronteiras traçadas nos moldes da convenção (fronteiras que são, por sua vez, sujeitas às transformações históricas [...])” (RAJEWSKY, 2012, p. 55). Ademais, os mesmos exemplos da arte contemporânea, responsáveis pela dissolução ou apagamento das fronteiras entre as diversas mídias – pensamos, especialmente, nas experiências de filmes interativos33, nas instalações de Sound art34 e em certos espetáculos de balé e teatro –, acabam por colocar em evidência os próprios limites de cada arte. A fixação de fronteiras, portanto, longe de ser uma discussão impertinente, viabiliza a manipulação eficaz das diferentes mídias e sua posterior subversão. Em síntese, a pertinência da argumentação de Irina Rajewsky, para o nosso caso, reside, em especial, nos dois seguintes pontos: (1) as formações midiáticas desenvolvem-se segundo padrões próprios e (2), enquanto construtos humanos, suas mudanças são condicionadas historicamente. Desse modo, tendo em vista as convenções do cinema, a tradução de qualquer arte para essa mídia deve ter em perspectiva a existência de recursos especificamente cinematográficos, aos quais nossa análise deverá estar atenta. Como na representação teatral, [tais recursos] também representam sistemas de signos em operação que podem ser agrupados de acordo com algumas variáveis. O primeiro grupo tem relação com o trabalho da câmara. Inclui os planos estáticos (plano de conjunto, plano médio e primeiro plano) e os planos em movimento (plano panorâmico, plano com movimento de câmara e os relacionados à velocidade da filmagem: câmera lenta e plano acelerado). O segundo grupo tem a ver com a ligação entre os planos: a dissolvência, a fusão de imagens, a tela dividida e o corte seco. O terceiro grupo se relaciona ao sistema de signos da edição. Inclui a montagem e o uso da sucessão rítmica de imagens (DINIZ, 1996, p. 320-321). 32 Dentre os fenômenos de práticas intermidiáticas, a adaptação de textos literários para o cinema pertenceria ao grupo de “transposição midiática” (RAJEWSKY, 2012, p. 58). 33 Citemos A Gruta (2008), de Filipe Gontijo, filme inspirado nos contos de Júlio Cortázar e no conceito de jogos de RPG (Role-Playing-Game) cuja estreia foi promovida no Festival de Brasília daquele ano. O espectador podia determinar o seu andamento com o uso de controles remotos. 34 Disciplina artística na qual o som é utilizado como meio. Por conta de suas formas híbridas, o campo de atuação da Sound art está sob o domínio ora das artes visuais, ora da música experimental. 37 *** Diante do percurso teórico acima, talvez seja agora o momento mais apropriado para o enfretamento de um problema mencionado apenas en passant nas páginas anteriores. Referimo-nos à exigência de fidelidade na prática adaptativa, que sobrevive ainda no senso comum e orienta por vezes a crítica do tipo inconsequente. É quase certo que o caro leitor tenha se deparado com resenhas de adaptações para o cinema – pululantes, aliás, em meios como a internet –, ou testemunhado a indignação/desconsolo de um parente, amigo, colega de trabalho, etc., diante da despudorada infidelidade da versão fílmica de seu romance de cabeceira ou histórias em quadrinhos prediletas. E o que fazer, ignorar o fenômeno? Desprezar o senso comum? Talvez não seja esse o caminho mais indicado. A expectativa do senso comum no tocante às adaptações não deve ser, prematuramente, qualificada de absurda. Ademais, não seria ela correlata, ainda que em formulação imatura e imprecisa, à exigência da crítica especializada pela manutenção do “essencial” (no termos de Walter Benjamin) da obra original? De fato, todo exercício adaptativo é regido por princípios de liberdade e cerceamento, na medida em que age sobre um texto primeiro, consagrado em geral, aliás, o que torna as coisas ainda mais confragosas. O descompasso encontra-se, a nosso ver, no descomedido acento que se dá, por vezes, à necessidade de uma reprodução fiel e na inconsciência das diferenças existentes entre os meios. Como é sabido, o processo de adaptação, ou melhor, qualquer processo criativo, envolve escolhas de várias ordens, pautadas por leituras e obsessões pessoais, discussões relevantes de cada tempo, convenções próprias ao meio expressivo, etc. Portanto, um orientado debate sobre o tema pode contribuir para a formação de leitores e espectadores mais críticos e reflexivos, cônscios das distinções (e semelhanças) entre os meios e da obra de arte enquanto manifestação atrelada à história35. No caso específico deste trabalho, explorar o conceito de fidelidade e sondar suas origens, procurando evidenciar as vantagens de seu abandono como critério de avaliação, é de suma importância para uma interpretação mais proveitosa de nosso objeto, uma vez que, como veremos, foram muitas as alterações promovidas por Joaquim Pedro de Andrade em relação aos contos de Dalton Trevisan. A problemática da fidelidade está presente no já mencionado ensaio de André Bazin (1991, p. 96), para quem, [...] “a boa adaptação deve conseguir restituir o essencial do texto e 35 O espaço escolar, aliás, dada a tendência dos livros didáticos em sugerir a apreciação de obras de arte ou filmes relacionados ao tema desenvolvido em aula, pode assumir papel relevante na discussão interartes. 38 do espírito”. Assim, livre das exigências de reprodução exata de um “conteúdo inessencial” (escreveria Walter Benjamin), a adaptação “pode, enfim, almejar a fidelidade – não uma fidelidade ilusória de decalcomania – pela inteligência íntima de suas próprias estruturas estéticas, condição prévia e necessária para o respeito das obras” adaptadas (BAZIN, 1991, p. 98). Nesse sentido, adaptar é, sobretudo, uma tentativa de captação do tom e dos signos da obra literária e sua posterior conversão para a linguagem cinematográfica36. Em Tradução intersemiótica, o professor Júlio Plaza (1987, p. 1) – realizador dos projetos Poemóbiles (1968-1974) e Caixa Preta (1975), ambos em parceria com Augusto de Campos – também afirma que a tradução (por que não ler aqui “adaptação”?) está vinculada à sincronia e nada deve à fidelidade, porque “cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, passado-presente-futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos”. Randal Johnson (2003, p. 42) é categórico a respeito do assunto em questão, ao entender a exigência por uma reprodução fiel ao original como “um falso problema porque ignora diferenças essenciais entre os meios, e porque geralmente ignora a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os meios estão inseridos”. Chegamos, por fim, a um dos mais exaustivos (e combativos) estudos a respeito da fidelidade, com o qual estabelecemos intenso diálogo a partir deste ponto. Na introdução de Literature and film, trabalho editado por Alessandra Raengo e Robert Stam (2004), o último investiga as raízes do insistente preconceito contra as adaptações – preconceito que se confunde, em última análise, com o praticado contra a própria arte cinematográfica –, a começar pelo arsenal vocabular utilizado com frequência pelos detratores do exercício: A linguagem convencional da crítica à adaptação revela-se, com frequência, profundamente moralista e abundante em termos que pressupõem um desserviço do cinema à literatura de alguma forma. Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”, “vulgarização” e “profanação” proliferam no discurso contra a adaptação, com cada palavra investida de sua carga específica de opróbrio (STAM, 2004, p. 3, tradução nossa)37. 36 O pensamento de Milton Hatoum, como se pode atestar por recente declaração sua, assemelha-se ao do crítico francês. “O importante é quando o cineasta encontra uma linguagem que fale da essência do livro”, comentou o escritor amazonense, em matéria de Elaíse Farias (2011). 37 “The conventional language of adaptation criticism has often been profoundly moralistic, rich in terms that imply that the cinema has somehow done a disservice to literature. Terms like “infidelity”, “betrayal”, “deformation”, “violation”, “bastardization”, “vulgarization”, and “desecration” proliferate in adaption discourse, each word carrying its specific charge of opprobrium”. 39 Ao longo de seu