UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO SEXUAL ALESSANDRA MUNHOZ LAZDAN O QUE OS HOMENS TÊM A DIZER SOBRE AS MULHERES? OS NOVOS POSICIONAMENTOS DE JOVENS DO GÊNERO MASCULINO FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES FEMININAS NAS RELAÇÕES AFETIVAS: UMA LEITURA SOB A ÓTICA DA PSICOLOGIA ANALÍTICA ARARAQUARA - SP 2015 unesp ALESSANDRA MUNHOZ LAZDAN O QUE OS HOMENS TÊM A DIZER SOBRE AS MULHERES? OS NOVOS POSICIONAMENTOS DE JOVENS DO GÊNERO MASCULINO FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES FEMININAS NAS RELAÇÕES AFETIVAS: UMA LEITURA SOB A ÓTICA DA PSICOLOGIA ANALÍTICA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Sexual, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista-UNESP/Araraquara, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de Pesquisa: Sexualidade e educação sexual: interfaces com a história, a cultura e a sociedade. Orientador: Prof. Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro ARARAQUARA - SP 2015 Lazdan, Alessandra O que os homens têm a dizer sobre as mulheres? Os novos posicionamentos de jovens do gênero masculino frente às transformações femininas nas relações afetivas: uma leitura sob a ótica da Psicologia Analítica. / Alessandra Lazdan — 2015 101 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação Sexual) — Universidade Estadual Paullista "Júlio de Mesquista Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Paulo Rennes Marçal Ribeiro 1. Sexualidade masculina. 2. Masculinidade. 3. Relações de gênero. 4. Relações afetivas. 5. Psicologia Analítica. I. Título. ALESSANDRA MUNHOZ LAZDAN O QUE OS HOMENS TÊM A DIZER SOBRE AS MULHERES? OS NOVOS POSICIONAMENTOS DE JOVENS DO GÊNERO MASCULINO FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES FEMININAS NAS RELAÇÕES AFETIVAS: UMA LEITURA SOB A ÓTICA DA PSICOLOGIA ANALÍTICA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista-UNESP/Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação Sexual. Linha de Pesquisa: Sexualidade e educação sexual: interfaces com a história, a cultura e a sociedade. Orientador: Prof. Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro Data da defesa: 18/09/2015 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA : Presidente e Orientador: Prof. Dr. Paulo Rennes Marçal Ribeiro (UNESP – Araraquara) Membro Titular: Prof. Dra. Ana Claudia Bortolozzi Maia (UNESP – Bauru) Membro Titular: Prof. Dr. Guilherme Scandiucci (Mackenzie – São Paulo) Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, à minha mãe e irmã, por todo carinho, apoio e ajuda em todo o período em que estive ausente. Às minhas novas amigas, companheiras e colegas de Mestrado, em especial, Ana Márcia Carvalho, Anne Kariny Lemos Rocha, Fernanda Ruis, Débora Brandão Bertolini, Ana Carolina Pinheiro, que proporcionaram momentos de muito prazer, além de compartilhar experiências, conhecimentos, desabafos, angústias e risadas. Aos meus amigos pessoais Carla Montoril Prado, Marcello Montoril Prado e Eloísa Helena Guines, que pacientemente compreenderam meus períodos de ausência e indisponibilidade. Ao Tiago Giglio, pela amizade e auxílio nas traduções. Ao Marcus Quintaes, pelas provocações incitadoras de novos prismas, além da gentileza da revisão final da literatura junguiana. Ao Paulo Rennes Marçal Ribeiro, pela oportunidade e liberdade oferecida em desenvolver meu tema dentro do meu referencial teórico. À Andreza Marques de Castro Leão e Ana Claudia Bortolozzi Maia, pelas significativas contribuições como membros da Banca de Qualificação. Ao Guilherme Scandiucci, pelas colocações pontuais e substancias como membro da Banca de Defesa. Aos jovens rapazes colaboradores, que confiaram a revelação de sua intimidade a essa pesquisa. RESUMO A tradicional masculinidade vem sofrendo significativas transformações na atualidade devido a uma mudança de perspectiva e paradigma decorrentes do declínio dos moldes que sustentavam o regimento patriarcal, alterações provocadas primordialmente pelas reformas nas políticas femininas. Os posicionamentos das mulheres na sociedade e nas relações afetivas se tornaram mais evidentes e ativos, provocando modificações substanciais nas concepções e relações de gênero. A presente pesquisa objetivou investigar a perspectiva masculina sobre os posicionamentos de homens e mulheres nas relações afetivas e seu reflexo nas atuais configurações de relacionamento, levando-se em conta a transformação que a identidade masculina vem sofrendo em resposta ao reposicionamento das mulheres na sociedade ao longo das últimas décadas. O estudo adotou o método qualitativo para a análise da perspectiva de cinco jovens universitários, de orientação heterossexual, compreendidos na faixa etária entre os 19 e os 22 anos. Utilizou-se como instrumento único uma entrevista aberta semiestruturada. Os resultados foram analisados em categorias previamente estabelecidas com parâmetros na literatura revisada, como seguem: relacionamento afetivo, perspectiva masculina da imagem feminina, afetividade, modelos parentais, sexualidade e educação sexual, intimidade e subjetividade. Os dados foram analisados de acordo com a modalidade temática do método de análise de conteúdo, adotando-se como referencial interpretativo os pressupostos teóricos da Psicologia Analítica de Jung. Os resultados revelaram confluências de paradigmas entre os valores heteronormativos, advindos do modelo patriarcal, com as tendências contemporâneas, abertas à multiplicidade de manifestações de relacionamento. Os posicionamentos masculinos frente às atitudes femininas no campo da sexualidade e relacionamento amoroso se mostraram, em parte, reticentes à falta de um padrão que delimitasse o campo de atuação para homens e mulheres, e em outra, integrados à multiplicidade e liberdade de possibilidades da vivência da própria sexualidade e construção de relacionamento. O que diferiu entre uma postura e outra foi a disponibilidade de cada indivíduo em rever os próprios valores e sustentar a multiplicidade de configurações e desejos existentes dentro de si mesmo, para, numa atitude de alteridade, dialogar com as ambiguidades das revelações femininas. Palavras-chave: Sexualidade masculina. Masculinidade. Relações de gênero. Relações afetivas. Psicologia Analítica. ABSTRACT The traditional masculinity has undergone significant changes currently due to a change of perspective and paradigm resulting from the decline of the molds that sustained the patriarchal regiment, caused primarily by changes in women's policies reforms. The women's positions in society and personal relationships have become more apparent and active, causing substantial changes in concepts and gender relations. This research intended to investigate the male perspective on the men and women positions in the emotional relationships and its reflection on the current relationship configuration, taking into account the transformation that male identity is undergoing in response to the repositioning of women in society over the last decades. The research adopted the qualitative method to analyze the perspective of five young university students with heterosexual orientation, between 19 and 22 years old. It was used as the only tool one semi-structured open interview. The results were analyzed in categories previously established with parameters in the revised literature, as follows: affective relationship, male perspective of the female image, affection, parental models, sexuality and sexual education, intimacy and subjectivity. Data were analyzed according to the thematic modality of content analysis method, adopting as an interpretative point of reference the theoretical assumptions of Analytical Psychology of Jung. The results revealed confluences of paradigms between the heteronormative values, coming from the patriarchal model, with contemporary trends, open to the multiplicity of relationship demonstrations. The male positioning in front of the women's attitudes regarding sexuality and loving relationship is shown part reluctant to the lack of a standard that delineate the field of men and women actuation, and other part integrated to the multiplicity and freedom of possibilities of their own sexuality experience and relationship building. What differed between one position and another was the availability of each individual to review their own values and sustain the multiplicity of configurations and desires within himself, in an attitude of otherness, dialogue with the ambiguities of the female revelations. Keywords: Male sexuality. Masculinity. Gender relations. Affective relationships. Analytical Psychology SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7 1 MASCULINIDADES .......................................................................................................... 10 1.1 Breve histórico .................................................................................................................. 10 1.2 A ascensão feminina ......................................................................................................... 15 1.3 Masculinidades atuais: perspectivas e trajetórias ......................................................... 19 1.4 A representação da mulher na perspectiva masculina ................................................. 25 1.5 O novo homem .................................................................................................................. 26 2 AS RELAÇÕES AFETIVAS: RESGATE HISTÓRICO ATÉ A CONTEMPORANEIDADE ........ 31 2.1 Histórico: as relações conjugais nas diferentes épocas ................................................. 31 2.2 Pesquisas sobre as relações amorosas ............................................................................. 36 3 A PSICOLOGIA ANALÍTICA E OS ESTUDOS DE GÊNERO ................................... 44 4 OBJETIVOS ........................................................................................................................ 55 5 MÉTODO ............................................................................................................................. 56 6 RESULTADOS E DISCUSSÃO ........................................................................................ 58 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 87 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 91 APÊNDICE 1 .......................................................................................................................... 96 APÊNDICE 2 .......................................................................................................................... 98 7 INTRODUÇÃO Desde as últimas décadas, evidencia-se o desenvolvimento do potencial feminino para além das atividades domésticas com a saída das mulheres do âmbito familiar em busca de um lugar no mercado de trabalho. O que antes, na era patriarcal, era bem delimitado – o homem como provedor da família e a mulher como dona do lar e cuidadora dos filhos – na atualidade não é possível visualizar tal fronteira de forma tão clara. As atitudes exclusivamente femininas nas mulheres foram, gradativamente, abrindo espaço para novos potenciais – correspondentes às dimensões masculinas, de acordo com os referenciais da Psicologia Analítica – desenvolvidos ao ampliar seu exercício no mundo competitivo do mercado de trabalho. Por outro lado, os homens parecem ainda não ter acompanhado essa transformação feminina. A tradicional masculinidade vem sofrendo uma crise de identidade e sendo transformada na atualidade devido a uma mudança de perspectiva e paradigma necessários para uma renovação da consciência, que não se sustenta mais baseada na antiga postura unilateral da rigidez masculina. O homem contemporâneo tem se transformado, mas ainda não tem forma definida (Tacey, 2011, Nolasco, 1993). A masculinidade da era patriarcal não tem mais seu lugar tão expresso no mundo contemporâneo. O homem, com o desenvolvimento da consciência masculina na mulher, desafia-se em desenvolver sua consciência feminina, em sua maior parte resguardada por conta das exigências do patriarcado. Para a Psicologia Junguiana, os elementos femininos e masculinos estão presentes na natureza de homens e mulheres, porém, a dimensão feminina tem sido melhor desenvolvida nos dias atuais na consciência masculina. Para uma postura mais saudável seria necessária a mistura do melhor da tradicional masculinidade com a sensibilidade e introspecção mais adequadas para os dias de hoje. É claro que esta não é uma tarefa simples. Harmonizando-se com o feminino, os homens precisam também reconfigurar sua relação com a energia fálica original. O falo, para a psicologia arquetípica, tem a conotação de ação e de penetração a esferas desconhecidas. Seria o elemento agente da iniciativa humana. Corresponderia à vitalidade masculina. Associado à consciência feminina, os homens podem lidar com o poder do falo com mais leveza, sem a obrigação de se mostrarem potentes a todo tempo, já que o feminino lhes permite momentos de passividade e receptividade. Esta exposição convida a uma reflexão sobre as novas formas de relações da atualidade. O interesse da presente pesquisa debruçou-se na investigação da atual perspectiva 8 masculina sobre os posicionamentos de homens e mulheres nas relações afetivas e seu reflexo nas atuais configurações de relacionamento. A demanda por tais questionamentos surgiu a partir da prática clínica psicológica, perante a observação do crescente número de pacientes masculinos no consultório, segundo minha experiência profissional. Tendo estudado profundamente as questões femininas em tempos anteriores, seja por necessidade da clínica, seja pelo aprendizado no início da carreira profissional, quando ingressei em Aprimoramento Profissional na Clínica Obstétrica no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP em 2003, as novas demandas me exigiram a buscar por maiores conhecimentos da condição masculina. Ao contrário da facilidade encontrada na obtenção de literatura para os estudos femininos, houve menor abundância de material no campo das masculinidades, ao menos na área da Psicologia. A soma dessas conjunturas me estimulou a entrar na área da pesquisa e formular conjuntamente com a literatura científica, norteadores e delineamentos para as novas condições masculinas. Optou-se por pesquisar o público jovem dado o interesse em conhecer de que forma a sexualidade1 e atitudes masculinas têm se constituído nos relacionamentos afetivos considerando sua construção já inserida num panorama sociocultural de transformação da estrutura patriarcal. Badinter (1993) afirma que os jovens da atualidade já são herdeiros de uma geração em transformação. Suas mães são mais viris e seus pais mais femininos, havendo, inclusive, dificuldade em se identificar com os mesmos. A presente pesquisa buscou avaliar a existência desta realidade nos discursos dos jovens entrevistados. Antes de nos aprofundarmos nas problemáticas dos universos femininos e masculinos, faz-se necessário esclarecermos dentro de qual amplitude essas temáticas estão subjacentes. Estamos nos referindo ao campo conceitual de gênero. Embora a maior parte dos autores pesquisados não tenha ponderado sobre a diferenciação entre as terminologias sexo e gênero, atentamo-nos ao uso da segunda, acatando as proposições trabalhadas por Scott (1995), Louro (1997) e Bereni, Chauvin, Jaunait e Revillard (2010). De acordo com Louro, gênero se refere à construção social e histórica em torno dos sexos. É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. (Louro, 1997, p.21). 1 Sexualidade será por nós compreendida dentro da perspectiva pós-estruturalista, que a considera como um processo construído social e politicamente, com sua vivência e manifestação modificada de acordo com os valores de determinada cultura e período histórico (Louro, 2000). 9 Gênero veio a ser empregado para distinguir do termo sexo e de suas concepções biológicas para apontar as diferenças sociais entre homens e mulheres. Antes disso, de maneira indiferenciada, a terminologia “sexo” embutia conceitos sociais ao sexo anatômico, como na concepção de “sexo frágil”, por exemplo. O diferencial do emprego do termo gênero é especificar a questão social como um elemento autônomo, dotado de uma causalidade própria que não se vincula às leis biológicas (Bereni et al., 2010). O termo gênero escapa do essencialismo que o termo sexo pode eventualmente conduzir, se tomarmos as diferenças biológicas como argumentos para a reprodução das desigualdades nas relações entre os indivíduos. Scott (1995) e Louro (1997) salientam o aspecto relacional que envolve o primeiro conceito, “[...] já que é no âmbito das relações sociais que se constroem os gêneros.” (p.22). Isso implica dizer que as relações entre homens e mulheres são igualmente sujeitas a constantes transformações, de acordo com as representações que lhe são conferidas em cada período histórico. Gênero envolve também uma conceituação plural, por agregar diversas representações sobre os sujeitos, diferindo não apenas entre as sociedades e tempos históricos, mas igualmente dentro de uma mesma sociedade, ao se levar em conta a diversidade de grupos – étnicos, religiosos, de classe – que a contempla. No entanto, tais particularidades dentro da construção de cada gênero terminam por ser, de certa forma, discriminadas em decorrência das relações de poder da sociedade. Contextualizando a discussão para o campo das masculinidades, aqueles que destoam dos padrões masculinos hegemônicos costumam ser especificados como diferentes ou representados como o outro, estando muitas vezes segregados daqueles que compartilham daqueles padrões (Louro, 1997). Embora o conceito de gênero, tal como trabalhado pelas autoras supracitadas, se desprenda da dualidade masculino-feminino e considere outras possibilidades de manifestações (como os transgêneros, neutros e cisgêneros), mantivemos nesta pesquisa a terminologia do gênero masculino e feminino, considerando as construções históricas, sociais e a multiplicidade de formas presente dentro de cada concepção. A escolha pela manutenção destas terminologias se deve ao fato de nossos colaboradores do sexo masculino se identificarem com as significações atribuídas ao gênero masculino, campo que será detalhadamente explanado na seção 1. Na seção a seguir, veremos quais tem sido os padrões masculinos propagados ao longo da cultura patriarcal e as transformações pelas quais eles vêm passando em decorrência, principalmente, das conquistas femininas. 10 1 MASCULINIDADES A preferência pelo título em plural “masculinidades” se deve ao fato deste conceito se apresentar de formas múltiplas, não sendo possível restringi-lo a uma classe uniforme. Embora o estudo teve o intuito de traçar as características mais relevantes do campo masculino, Welzer-Lang (2004) esclarece que os homens não são um grupo homogêneo, e mesmo o que faz deles um grupo, como os privilégios e poderes conferidos a eles, não é suficiente para explicar as relações entre eles. Dessa forma, masculinidades se constitui como um conceito plural. Partimos das explanações da historiadora feminista Badinter (1993) sobre o que venha a ser homem para uma compreensão inicial do campo das masculinidades. Para esta autora, tornar-se homem requer um esforço que não ocorre com as mulheres. Diferentemente do lado feminino, no qual a natureza se incumbe de transformar a menina em mulher na ocorrência da primeira menstruação, para o homem é necessário provações de virilidade. Ou seja, não é algo dado a priori, mas uma condição a ser conquistada. A questão que se impõe aos homens desde o final do séc. XX é que este ponto de referência já não se sustenta mais como norteador para a construção da identidade masculina. Badinter (1993) não faz distinções entre as identidades de gênero e orientação sexual. Porém, é notória sua inclinação para a identidade masculina heterossexual, campo o qual nos debruçaremos. 1.1 BREVE HISTÓRICO Uma vez que a construção dos gêneros se faz de forma relacional, nos pautaremos nas origens da divisão sexual e suas repercussões para a compreensão da constituição das masculinidades. Badinter (1986) explica que as mudanças climáticas afetaram muito as condições de vida na pré-história, podendo ter influenciado também na relação entre homens e mulheres. E, portanto, é preciso ter consciência que qualquer elaboração em torno deste assunto é conjetural e aproximativa. A divisão do trabalho entre a caça e a coleta engendrou não somente a distinção dos gêneros, mas provavelmente inteligências igualmente distintas. Contudo, considerando a dependência mútua dos elementos da sociedade em torno destes dois recursos, houve, então, 11 uma relação de complementaridade e provável igualdade entre homens e mulheres. A interpretação em torno do fato é que foi distinta e conflitante entre estudiosos e estudiosas ao longo dos anos. Pesquisadores anteriores das décadas de 1970 e 1980 analisaram aquele período de forma hierárquica, entendendo que a caça masculina proporcionava o desenvolvimento de maior inteligência e perspicácia. O trabalho de coleta feminino, assim como o cuidado com os filhos, foram entendidos como uma escala rebaixada da sociedade. Algumas antropólogas rebateram tal análise, exaltando o tipo de inteligência e aptidões necessárias para a execução das funções femininas. Não é difícil concluir, junto com a autora, que as hipóteses formuladas estiveram sujeitas a projeções pessoais ou tiveram como norteador o modelo de sociedade em que viviam. O fato é que “[...] a complementaridade foi muito mais pensada em termos de hierarquia e dominação do que em termos de igualdade e simetria.” (Badinter, 1986, p.39). Fisher (1994) também descreve este período pautado na ausência de submissão de poderes, tendo este cenário alterado com o advento da agricultura. Sendo necessário o uso da força física, os homens se sobressaíram, momento em que se introduz o desnivelamento de poder. “A agricultura com arado trouxe consigo a subordinação feminina, dando início ao panorama da vida sexual e social do Ocidente.” (Fisher, 1994, p.307). No fim do séc. XIX, Bachofen e Morgan (citados por Badinter, 1986, Fisher, 1994) defenderam a hipótese da existência de uma sociedade matriarcal baseada na concepção do desconhecimento da ascendência paterna. A partir do conhecimento desta, os homens teriam dominado o poder da família e sociedade. Fisher (1994) também aponta a instituição da monogamia e de preceitos religiosos como fatores para o declínio do matriarcado, uma vez que limitaram a mulher na relação com a sociedade mais ampla sacrificando-a nos limites do casamento. Badinter (1986) completa explicando que o casamento surge como regulador da dominação do sistema patriarcal. A mulher é tida originalmente como objeto de troca do pai e permanece objeto de seu marido. Para este, a esposa lhe confere promoção social e tem a função de distraí-lo e lhe dar filhos. A hipótese do matriarcado se mostrou inconsistente para muitos estudiosos por não ter sido esclarecido as formas de poder da mulher e o período preciso da pré-história em que pode ter ocorrido. Igualmente, não acharam convincente o lugar reduzido dos homens naquela civilização, levando-se em conta a relevância dos caçadores para a sociedade e economia. Outros teóricos como Tiger, Fox e Morin apostaram em uma sociedade originalmente patriarcal. Para Badinter (1986), nenhuma das teorias é satisfatória, acreditando na 12 possibilidade das sociedades pré-históricas terem partilhado dos poderes de forma diferente da que conhecemos. Premissas de equilíbrio na relação entre homens e mulheres são melhor embasadas em dados documentais do período do IV milênio a.C. até o fim do II milênio a.C. Existem indícios de um sistema semipatriarcal, no qual havia o reconhecimento dos poderes do pai e da mãe. A mulher era chamada a participar de diversas tarefas e funções. Após esse período, o patriarcado toma seu lugar, com duração de três ou quatro milênios (Badinter, 1986). O início desse sistema ocorreu também devido a motivos econômicos, com a necessidade do homem expandir seu patrimônio, protegê-lo e comercializar seus bens. Discursos biológicos intensificaram o poder masculino com a justificativa de que a força masculina associada com sua parcela biológica (a influência da testosterona, que auxiliaria no sacrifício da segurança, afeto e prazer em nome do posicionamento social, autoridade e poder) pareciam mais favoráveis à evolução e expansão da sociedade (Fisher, 1994). Porém, a autora aponta dados que contradizem a hegemonia desta dominação dentro do período histórico em que existe o consenso sobre o patriarcado, relatando sociedades nas quais existia o equilíbrio de poder entre os gêneros e outras nas quais havia registros de menosprezo ao poder masculino. Sua análise aponta para uma destituição do poder feminino em muitos povos após a invasão e instituição da cultura patriarcal europeia. Como consequência, poucas sociedades conseguiram permanecer com seu poder intacto findando com a imagem feminina denegrida e generalizada para o resto do mundo. O patriarcado parte de um ponto de vista dualista, no qual feminino e masculino se colocam como antagônicos e hierarquizados. Nas sociedades patriarcais, os contrários se transformaram em excludentes. A relação dual ganhou caráter tenso: o Um tem como oposto o Outro, inimigo, ou o Bem e de outro lado o Mal. “A oposição, fundada sobre uma teologia ou uma mitologia, tornou-se tão radical, tão cheia de tensões, que a ideia de comunidade, de semelhança dos sexos ficou gravemente ameaçada.” (Badinter, 1986, p.134). Se do lado dominante, segue a autora, existia o homem, para a mulher, o “outro lado”, lhe restou toda a sorte de qualidades ruins que deveriam ser controladas e vistas com desconfiança. A sexualidade feminina esteve como principal alvo, sendo vista como desenfreada e insaciável. Os padres da Idade Média corroboravam tal discurso. Fisher (1994) revela outras tonalidades de conceitos pejorativos em torno dos gêneros, baseados em argumentos biológicos, como a crença de que os homens são mais predispostos ao sexo e ao adultério e as mulheres castas, 13 dependentes e fracas. As ideias trazidas por ambas as autoras corroboraram para a amplificação e intensificação da divisão sexual e submissão de poderes entre os gêneros. As qualidades da força masculina atravessaram os séculos com diferentes nuances. Por exemplo, a virilidade compunha os referenciais masculinos do século XII, ressaltando-se características agressivas como nas figuras do guerreiro, do caçador e do predador. Um homem demonstrar sinais de medo era comparado a uma mulher e, desta forma, rechaçado. Naquela época, além da função do guerreiro, os homens podiam pertencer a outros dois grupos com funções específicas: a dos padres e dos camponeses. As mulheres eram apenas as esposas desses homens e sua função era a de servir e ser submissa. As habilidades de leitura e canto também se orientavam para o entretenimento dos maridos. O homem era polígamo e podia devolver a esposa (juntamente com seu dote) caso ela demorasse a lhe dar filhos ou ele encontrasse partido melhor (Duby, 1992). Como se pode observar, o homem vivia em plena evidência, com as circulações de poder tanto na sociedade como nas relações pessoais centrando-se exclusivamente no gênero masculino. No final do séc. XVIII a família burguesa se consolidou como um modelo a ser seguido, dando forma à figura paterna que se propaga ainda hoje em alguns núcleos, a qual se pauta na figura do provedor e chefe de família, mas ausente das atividades domésticas (Souza, 2010). No que tange ao aspecto comportamental, tornou-se padrão de conduta burguesa o domínio dos afetos, emoções e a contenção da espontaneidade. O sucesso do recato favoreceria na adaptação à sociedade e o rendimento no trabalho. Quem se comportasse de maneira contrária era visto de forma patológica ou considerado preguiçoso e inadaptado. Tais exigências recaíam mais fortemente sobre os homens (Ussel, 1980). No século seguinte, segundo Mosse (1998), o conceito sobre masculinidade foi submetido aos padrões de uma sociedade consolidada e ordenada. A masculinidade moderna sofreu influências da Revolução Francesa e outras guerras após – onde a virilidade se tornou importante – e das transformações dos séculos XIX e XX, período em que seu conceito foi consolidado, comportando qualidades como a disciplina e o caráter decidido. “A masculinidade fornecia um anteparo contra o caos e as forças de dissolução que pareciam tão ameaçadoras na época, na medida em que os inimigos da sociedade estabelecida tornaram-se cada vez mais visíveis e numerosos.” (Mosse, 1998, p.292). Estes inimigos davam uma urgência particular à masculinidade no fim do séc. XIX. Neste mesmo século, ocorre o avanço da industrialização e uma grande alteração nas relações afetivas – e, consequentemente, nos padrões de gênero – decorrentes das 14 transformações da economia. A era industrial proporcionou relativa autonomia às mulheres (relativa em decorrência dos baixos salários em comparação aos dos homens), com sua saída de casa para a indústria, tendo como uma das consequências o aumento do número de divórcios (Fisher, 1994). O clima da época baseava-se na crise econômica, nas agitações trabalhistas e no desenvolvimento da tecnologia. A manifestação dos homossexuais femininos e masculinos também ameaçava as concepções tradicionais sobre os gêneros. Somado a este movimento, veio a luta das mulheres por igualdade e independência, principalmente na Inglaterra. Esta luta desafiou a identidade masculina, que se pautava em valores morais distintos para homens e mulheres. O que elas queriam era a extinção destas diferenças, exigindo por igualdade nos direitos e participação na vida pública. A liberação das mulheres ameaçou a masculinidade estabelecida até então (Mosse, 1998). Contudo, segundo Badinter (1993), ocorreram crises da masculinidade anteriores à atual. Restringiram-se a países de “civilização refinada”, França e Inglaterra, onde as mulheres dispunham de maior liberdade com a expressão da necessidade de mudança dos valores de dominação vigentes. Seguindo o estudo da mesma autora, na França do séc. XVII, o primeiro grupo que questionou a identidade masculina foi o das “preciosas”. Era formado por mulheres emancipadas e que invertiam os valores tradicionais da época. Não eram favoráveis ao casamento, mas enalteciam a experiência do amor e de ter amantes. Apenas um pequeno grupo de homens aceitou sua influência. Os demais responderam de forma a afirmar seus modos civilizados, sendo corteses e delicados, evitando se mostrar dominantes no lar. Na Inglaterra, a discussão sobre o papel masculino foi mais explícita. As mulheres reivindicaram o direito ao orgasmo e alterações nos papéis femininos e masculinos no casamento, família e sexualidade. No período iluminista do séc. XVIII houve um forte abrandamento dos valores viris, com uma valorização das qualidades femininas em detrimento do status das guerras. Foi o período mais feminista da História da França antes do séc. XX. Este cenário mudou na era napoleônica, quando as mulheres foram novamente segregadas e excluídas do espaço público, durando até o início da nova crise da masculinidade do fim do séc. XIX. A crise deste período projetou-se por toda a Europa e Estados Unidos por conta das alterações socioeconômicas resultantes da industrialização. A partir deste momento, inicia-se uma nova transformação no cenário feminino, tendo como um dos frutos, o alcance da mulher à formação universitária. 15 Uma ansiedade masculina apresenta-se como resposta desta aproximação feminina (Badinter, 1993). A autora explica que as mudanças econômicas nos países ocidentais forçaram o homem a se ausentar mais da vida doméstica em nome do trabalho. Seu sucesso financeiro foi identificado como a nova forma de virilidade. Uma nova crise masculina despontou quando as mulheres se recusaram a permanecer restritas no ambiente doméstico e avançaram rumo ao trabalho fora de casa. Embora alguns autores (Oliveira, 1998, Souza, 2010) não enfatizem a liberação feminina como o principal precursor da transformação da masculinidade contemporânea, é evidente seu valor e influência como fator histórico nas alterações das relações e concepções de gênero que vemos atualmente. 1.2 A ASCENSÃO FEMININA Antes de nos adentrarmos na influência da emancipação feminina na dinâmica masculina e nas relações de gênero, vale acompanharmos o histórico do papel das mulheres nestas relações. Veremos que a estrutura da masculinidade foi construída em grande parte sobre a discreta e silenciosa participação feminina, o que nos ajuda a compreender o quanto sua revolucionária ascensão provocou as atuais concepções de gênero e a sexualidade masculina. Perrot (2012) diz que investigar a história das mulheres é algo desafiante, pois durante muitos séculos elas estiveram ocultadas pelo silêncio. O motivo desta quietude tem suas razões: pelo fato das mulheres terem ocupado quase nenhum lugar no espaço público, o qual foi considerado como único merecedor de destaque e relato; o ambiente doméstico, espaço reservado para as mulheres, era marcado pela sua invisibilidade. O silêncio e a invisibilidade femininos faziam parte da ordem do sistema e garantiam sua tranquilidade. E por terem sido pouco vistas, pouco se falou delas. Esses dados mostram o quanto o poder masculino estava garantido e livre de ameaças ou concorrência. Somente por volta de 1970 é que se levantam questões sobre a história das mulheres, tendo seu estudo iniciado pelo antropólogo Georges Duby. Fatores políticos e sociológicos favorecem a aparição das mulheres no contexto científico, como sua inserção no meio acadêmico e sua liberação proporcionada pelos movimentos feministas da mesma época. 16 Antes disso, existem poucos registros de sua história, sua existência e pensamentos (Perrot, 2012). Segundo Duby (1992), temos dados mais precisos sobre a condição feminina a partir do séc. XII. Essas informações dizem respeito às mulheres da nobreza e são advindas da perspectiva dos homens. No entanto, seus papéis não diferiam das mulheres camponesas, definidos apenas como as esposas dos homens, com perfil submisso e sua função era basicamente a procriação. Se tomarmos como parâmetro os dados trazidos por Perrot (2012) e Duby (1992) e associarmos com a análise de Bourdieu (2002) feita em sua obra A Dominação Masculina, nos inclinaremos a concordar com este último em seu pressuposto de que estamos inseridos em padrões inconscientes de estruturas históricas da ordem masculina. Este parece ser um argumento plausível para explicar as informações escassas sobre a história das mulheres. No entanto, para Bourdieu, todo nosso olhar e análise continuarão sob o viés dessa ótica, mesmo nos dias atuais. Tal raciocínio foi rebatido por Lazdan, Reina, Muzzeti e Ribeiro (2014) por entenderem que o sociólogo terminou por desqualificar a natureza, poder e influência da mulher em épocas ulteriores. Exemplo oponente à visão bourdieuniana encontramos em Kolontai (2003). Dotada de uma direção socialista, essa feminista russa trouxe uma visão revolucionária para a época (transição entre os séculos XIX e XX), discutindo a posição da mulher na sociedade e, consequentemente, questionando a forma como as relações de gênero eram estabelecidas. Além disso, toda sua leitura sobre a condição feminina é considerada extremamente atual e explica muito do comportamento da mulher contemporânea. Kolontai (2003) defendia que a mulher moderna era fruto da força do trabalho feminino assalariado. Isso quer dizer que a realidade do mercado de trabalho exige da mulher posturas com mais firmeza, decisão e energia, qualidades antes exclusivas masculinas, não favorecendo a permanência dos valores propagados até então, como a submissão e a passividade. Completa afirmando que este perfil de mulher é consequência de sua participação na vida econômica e social, sendo este modelo valorizado e selecionado pelo mundo capitalista. Criou-se uma seleção natural das mulheres mais fortes e resistentes. Mesmo esse modelo não sendo generalizado, ela considerava que a energia da nova mulher independente e celibatária tinha o dom de refletir nas demais mulheres que se mantinham vinculadas ao antigo modelo feminino. Gradativamente, a mulher trabalhadora vai 17 configurando o tom da nova era e modelando um novo perfil. “São estas mulheres do novo tipo que rompem com os dogmas que as escravizavam.” (Kolotai, 2003, p.24). Todavia, Kolontai reconhecia que os valores que perduraram por séculos em relação à mulher influenciavam mesmo no novo modelo que se construía, sobre aquela que buscava por libertação. Referia que o antigo e o novo se misturavam e se conflitavam na consciência feminina. Sua percepção sobre as ambiguidades dos padrões femininos pode ser verdadeira ainda nos dias atuais, tal qual ocorre nos padrões de comportamento masculino, como veremos na seção 1.3. Embora grandes mudanças na condição feminina já vinham ocorrendo por conta do trabalho assalariado entre o fim do séc. XIX e início do séc. XX, existem registros de movimentos isolados de reivindicações femininas em diversos momentos da História. Mas é a partir do séc. XIX que eles começam a se caracterizar como movimentos feministas de fato, configurado em três momentos. O primeiro deles, ou a primeira onda, focou-se na reclamação pelo direito ao voto das mulheres e abrangeu vários países do Ocidente (Pinto, 2010, Louro, 1997). A segunda onda, no final da década de 1960, foi quando o feminismo se fortaleceu, preocupando-se, além das causas políticas e sociais, com construções teóricas, sendo a principal delas o conceito de gênero. Tornar a mulher e seu trabalho visíveis foi um dos principais focos das primeiras estudiosas feministas. O destaque dado à mulher na História, literatura e Psicologia revela a importância destes primeiros trabalhos, considerando que antes lhe era reservado apenas um espaço secundário e subjacente à perspectiva masculina (Louro, 1997). De acordo com Perrot (2012), o direito à educação e à instrução era uma das reivindicações mais antigas, sendo considerado o meio pelo qual se podia conquistar a emancipação, o trabalho, a criação e o prazer. Todavia, a reclamação pelo direito ao trabalho e ao salário recebia conotação diferente na classe burguesa. Para a mulher burguesa, o trabalho significava mais sair de seu posto nobre de nada fazer do que uma conquista em si. No entanto, a conquista pela liberdade econômica foi um dos principais fatores que garantiu sua independência em relação aos homens. Narvaz e Koller (2006) explicam a segunda onda do feminismo a partir de duas frentes distintas: enquanto que as feministas americanas lutavam pela igualdade entre homens e mulheres, as francesas voltavam-se para a valorização de suas diferenças, com ênfase para o reconhecimento das atividades femininas. Esta segunda vertente foi o que diferenciou a 18 terceira onda, que teve como foco primordial a “análise das diferenças, da alteridade, da diversidade e da produção discursiva da subjetividade” (Narvaz & Koller, 2006, p.649). Os Estudos de Gênero ganham relevância, cujo foco é embasado na análise do gênero dentro da perspectiva relacional (Scott, 1995). Neste momento, as relações de gênero se colocam à frente das questões femininas exclusivamente, o que não exclui a continuidade de suas lutas. Na visão de Perrot (2012), o feminismo contemporâneo é reconhecido mais pelos direitos do corpo e pelas luta às penalizações contra a violência física e sexual. A consequência disso foi a formulação de inúmeras leis e o aumento de denúncias na justiça. A ascensão feminina no Brasil contemporâneo Atualmente, a ascensão feminina nas diversas esferas da sociedade brasileira é digna de nota: o nível educacional feminino supera o masculino, sua participação no mercado de trabalho só aumenta, assim como sua atuação no cenário político. Contudo, tais conquistas não têm contribuído para um nivelamento mais significativo das desigualdades de gênero no país. Encontramos desigualdades inclusive entre as próprias mulheres, principalmente no tocante à classe e à raça (Simões & Matos, 2010). Além do nível educacional, um dos fatores que tem contribuído para o exercício feminino no mercado de trabalho se deve à diminuição da taxa de fertilidade. Esta taxa é menor conforme aumenta o nível socioeconômico. O número de mulheres responsáveis pelo sustento da casa também aumentou de 22,9% para 30,6% entre 1995-2005. “Tais mudanças são vistas não apenas como culturais ou relacionadas à conformação de novas estruturas familiares, mas também como um crescimento significativo da ‘responsabilidade compartilhada’ entre os casais.” (Simões & Matos, 2010, p.21). Apesar do aumento da responsabilidade feminina no sustento da casa, o contrário, ou, o aumento da participação masculina no trabalho doméstico, foi muito discreto, 5,1% entre a população trabalhadora masculina. Enquanto as mulheres gastam 25,2 horas semanais para esta função, os homens ocupam 9,8% de seu tempo. Contrapondo-se a esses dados, essas autoras trouxeram duas pesquisas que abordaram de maneira mais aprofundada a questão da divisão do trabalho doméstico. A análise geral dos resultados demonstrou a coexistência de valores tradicionais e modernos, assim como observou Kolontai (2003) no fim do séc. XIX. As respostas que mais se inclinavam para uma atitude mais moderna referiam-se ao grupo de mulheres com nível educacional mais elevado, 19 ao de homens e mulheres que trabalhavam fora e às novas gerações. Concluíram, portanto, que embora haja a existência simultânea de valores tradicionais e modernos, e também do confronto entre eles, a população brasileira caminha para um posicionamento mais moderno e pós-moderno na questão dos valores culturais e da divisão do trabalho doméstico. Segundo a análise de Perrot (2012), os trabalhos domésticos foram amenizados para a mulher, mas as ocupações com os filhos ocuparam esse espaço. Contudo, este trabalho parece ainda fazer parte da agenda da mulher e não dos homens. Estes se mostram resistentes a tais tarefas, assim como à repartição dos papéis sexuais do cotidiano. “Há aí uma estrutura de longa data, material e mental, que desafia a história” (Perrot, 2012, p.119). Whitaker (1988) pensa que a libertação feminina, por ser um processo histórico, é um processo lento e ainda em transformação. Para esta autora, a emancipação feminina depende da libertação masculina, concepção não corroborada pelos autores supracitados. Defende que os valores femininos como a sensibilidade e a expressividade precisam ser conservados e que tais valores estão sendo absorvidos também pelos homens. A autora reconhece algumas alterações na legislação brasileira como positivas e favoráveis a uma minimização da desigualdade entre os gêneros, como a licença paternidade, que concede cinco dias de licença quando do nascimento do filho. Embora seja pouco, já é um avanço em direção ao incentivo da participação do pai na criação e educação dos filhos. Também visualiza na cultura masculina uma maior abertura para a sensibilidade e o prazer no processo de criação dos filhos. Como vimos nesta sucinta exposição, houve uma transformação muito intensa em um curto espaço de tempo do lado feminino. É inevitável que a liberação das mulheres altere a dinâmica masculina e das relações de gênero estabelecidas até então. Tomaremos conhecimento na seção seguinte de que maneira as reformas femininas têm afetado a masculinidade. Veremos também que por parte dos homens, as transformações têm ocorrido de maneira muito mais lenta em comparação com a velocidade daquelas ocorridas com as mulheres. 1.3 M ASCULINIDADES ATUAIS : PERSPECTIVAS E TRAJETÓRIAS No início do séc. XX, o movimento de libertação feminina trouxe um contratipo de sexualidade para homens e mulheres, denominados os anormais, levantando, com isso, um questionamento sobre a essência da masculinidade. “O ideal de masculinidade era posto em 20 risco por uma decadência geral, uma desorientação anunciada pela doença e pelos doentes.” (Mosse, 1998, p.293). A masculinidade parecia ser o alvo principal com o qual o movimento decadente iria se contrapor. O caos estabelecido pela quebra da ordem de um sistema primordialmente patriarcal pelo movimento decadente foi marcado pelo nervosismo e histeria, decorrente da falta de contenção do antigo sistema que se destituía. A masculinidade rígida era o principal diferenciador entre os gêneros, e era considerado fundamental para o estabelecimento da ordem na sociedade. Este pode ser o principal fator para o repúdio da aceitação da homossexualidade, pois ameaçava a ordem conhecida e que dava segurança à sociedade (Mosse, 1998). Posteriormente, a maioria dos sexólogos transformou a ideia da masculinidade construída como contraposto da homossexualidade e da feminilidade, incluindo em sua configuração elementos até então rejeitados (Mosse, 1998). Veremos mais adiante que o reconhecimento de que a natureza masculina pode conter elementos mais brandos continua a ser o desafio para o homem contemporâneo na harmonização com sua própria identidade. Nolasco (1993) entende que a mudança que vem ocorrendo no universo masculino faz parte de uma autorização social para que os homens vivenciem aquilo que fazia parte até então somente da dimensão feminina. Ele alerta ser um equívoco delegar a reforma masculina somente a partir do movimento e transformação feminina. Os homens por eles próprios já vinham demonstrando incômodo com sua própria condição. Podemos identificar os primeiros sinais da reação masculina contra a ordem estabelecida em algumas manifestações, tais como na formação dos Grupos de Homens em diversos lugares do Ocidente, que buscavam se diferenciar dos conceitos heteronormativos, e também pelo movimento hippie dos anos 60, que tinha como ideal desconstruir e reinventar os papéis de gênero. Esses grupos tiveram como impulso norteador a cultura moderna que enaltecia a individualidade e a subjetividade, e que, consequentemente, questionava os valores propagados pela tradição e religião (Nolasco, 1993). A cultura androcêntrica concebeu o homem na ilusão de serem portadores de tantos potenciais que prometiam garantias de sucesso nos desafios e revezes da vida, que os afastou da possibilidade humana da falha. Por isso, o autor acredita que o caminho para o estabelecimento de uma nova condição masculina poderia estar pautado em crenças menos literais e unilaterais, como vinham desde então (Nolasco, 1993). A possibilidade de viver uma trajetória que inclua experiências como incerteza, inexatidão e tantas outras qualidades que 21 sustentem os homens em uma forma mais real e consciente diante da realidade, poderia prepará-los de forma mais integral para as responsabilidades e riscos que a vida naturalmente apresenta. De acordo com a pesquisa de Garcia (2006), houve uma gradativa mudança de valores e de funções dos papéis de gênero no decorrer das décadas de 60, 70 e 80 do último século, sendo tais alterações mais evidentes nas camadas médias urbanas. Essas transformações abrangeram as dimensões familiares, no casamento e na relação entre pais e filhos, tendo como mote originário o ideal de igualdade entre os gêneros. No entanto, a autora acautela sobre o fato de que o processo de transformação envolve complexidades que não permitem que este seja um processo linear, nem completo. Ou seja, a autora lembra que uma transformação envolve processos de desconstrução e construção, o que gera conflitos e contradições. Assim, o resultado “final” seria um misto ou uma coexistência entre o padrão velho e o novo, ou o tradicional e o moderno, como alguns autores costumam nomear. Os principais conflitos deste encontro de gerações se dão por conta do confronto de símbolos e códigos de valores distintos para cada instância. E mais: sua pesquisa aprofunda a existência dos conflitos até o nível individual, ao lembrar que os confrontos de valores e orientações ocorrem igualmente dentro de cada indivíduo. Isso quer dizer que podemos ser orientados tanto pelos ideais igualitários, como em outro momento, pelos ideais da antiga construção social de gêneros. Esse pensamento faz todo sentido uma vez que a transformação social ocorre em processos e processamentos, tanto em nível coletivo como individual. Garcia (2006) corrobora outros autores, como Welzerl-Lang (2004), na ideia de que não existe uma “entidade única masculina”, que os homens não formam uma classe homogênea. A autora traz dados que mostram uma maior flexibilidade masculina em revelar que existem inúmeras perspectivas dos homens verem e entenderem as mulheres, que suas identidades são constantemente reavaliadas e dialogadas com as perspectivas femininas e masculinas no percurso de suas relações. Este panorama contribui para desconstruirmos o “[...] conceito de homem genérico e monolítico de que o feminismo e a Demografia falam.” (Garcia, 2006, p.70). Principalmente as gerações de 70 e 80 passaram a questionar muito os valores e conceitos das gerações que os antecederam. Embora o feminismo tenha se embasado numa visão estereotipada masculina, Nolasco (1993) afirma que o movimento contribuiu para muitos homens que se identificaram com as queixas reverem a própria postura. De um outro panorama, Welzer-Lang (2004) diz que as primeiras desconstruções do masculino ocorreram primordialmente em duas frentes: em grupo de homens antissexistas, 22 que desenvolviam reflexões críticas a partir da heterossexualidade, e no campo acadêmico, mais especificamente nas Ciências Sociais na École des Hautes Études, área em que se discursava sobre a homossexualidade masculina e se questionava sobre os papéis masculinos na sexualidade. Welzer-Lang (2004) recomenda que para o estudo dos gêneros, é preciso estar consciente do viés androcêntrico que norteia de modo limitado o olhar sobre cada gênero. Ele explica: [...] homens e mulheres, dominantes e dominados/as não têm as mesmas informações e o mesmo conceito sobre o sentido, as formas e as linguagens da dominação. Sem falar aqui das diferenças de aprendizagem social ratificadoras do paradigma de pensamento naturalista que nos faz ver os homens como superiores às mulheres [...] (p. 111). Dessa forma, nos estudos da masculinidade, nos ocuparemos da perspectiva masculina, considerando o panorama de seu olhar e reflexão. O autor ainda alerta para os pesquisadores da área estarem atentos não apenas às formas distintas de dominação para cada gênero, mas para a forma como elas são construídas. Considerando a distinção de perspectiva das trajetórias de cada gênero, Nolasco (1993) observou diferenças nas naturezas dos movimentos feministas e da reforma masculina; enquanto o primeiro se pautou primordialmente em mudanças políticas e sociais, ou seja, ocorreu fundamentalmente para uma dinâmica externa, o segundo vem ocorrendo, sobretudo ou a partir de reformas internas, na medida em que se baseia na revisão de valores, posturas e do entendimento do que venha a ser um homem no momento histórico atual. Veremos a seguir dados de pesquisas brasileiras das três últimas décadas que retratam a dinâmica das relações masculinas e seu reflexo na construção de sua subjetividade. Embora a pesquisa de Garcia (2006) mostre uma alteração gradual conforme as gerações que viveram suas juventudes nos anos 60, 70 e 80, para a maioria dos entrevistados das três gerações o modelo de pai conhecido foi o tipo ausente, distante afetivamente e autoritário. O interessante é a existência de uma “justificativa” para este modelo paterno, sendo sua dedicação ao trabalho a explicação para tal comportamento. Ainda, a rigidez com os filhos foi entendida como parte da função paterna. A função materna era percebida como o meio integrador das relações familiares, desenhada também pela articulação e organização das relações. Os códigos de valores eram bem claros na distinção da educação para meninos e meninas. A eles era direcionado o preparo para o mercado de trabalho, enquanto que para 23 elas, era incentivado o cuidado com a família e com a casa. No tocante à sexualidade, a dupla moral esteve marcada inclusive para a geração de 80, estando claro que a expressão da sexualidade masculina era livre, ao passo que a feminina era restrita ao casamento. O mesmo estudo ainda apontou a necessidade dos meninos seguirem os modelos de comportamento esperado pelos homens a fim de se distinguirem dos afeminados, como meio de afirmarem a identidade masculina. Ou seja, o que se via no início do séc. XX como apontado por Mosse (1998) e Welzer-Lang (2004) se manteve no fim do mesmo século. O segundo autor acrescenta o valor da força, atividade e competição para a concepção de masculinidade entre os homens. Do lado feminino, a prática de atitudes masculinas não se apresenta como um problema. Num exemplo mais extremo, Badinter (1986) afirma que a experiência da bissexualidade é muito mais tranquila para as mulheres do que para os homens. Isso porque elas estão mais seguras de sua identidade. Com a possibilidade de vivenciar momentos de virilidade, seja em períodos da vida ou mesmo do dia, elas não entram em conflito com sua identidade feminina. Refere ainda que as mulheres esperam a mesma flexibilidade por parte dos homens. A dificuldade encontrada na parte masculina reflete não apenas na sua identidade, mas também nas relações com as mulheres. A autora explica o fato pelo temor sentido pelos homens de uma excessiva semelhança entre os gêneros e o receio da perda de sua singularidade. Embora concorde que as especificidades de gênero não devam ser excluídas, ela entende que o afastamento cada vez maior dos modelos estereotipados da coletividade, move os sujeitos a uma escolha mais livre para outras formas de ser, que podem incluir toques masculinos ou femininos dentro das particularidades de cada um. A pesquisa de Nolasco (1993), realizada em 1985 com 25 homens da classe média, com idade entre 25 e 35 anos, que teve o intuito de investigar a autorreferência da masculinidade a partir do impacto da cultura machista sobre os homens, identificou o desconforto sentido na exigência social de ter que se sustentar a imagem de virilidade e atividade do ponto de vista sexual. Ao analisarmos a articulação entre essas pesquisas, notamos o conflito vivido pelos homens na atualidade no impasse entre a crença da necessidade de manutenção do status viril e o incômodo na realização deste papel. Badinter (1993) identifica os sintomas sexuais masculinos, como as disfunções sexuais e os fetichismos, como manifestação de parte de sua crise na identidade de gênero. “Para quebrar a identificação entre desempenho sexual e masculinidade é preciso aprender a dissociar sexualidade e sentimento de virilidade.” (p.129). Badinter (1993) e Nolasco (1993) colocam como urgência a necessidade dos homens compreenderem o alto custo que lhes 24 demanda o ideal de virilidade, assim como desvincular a construção da masculinidade como oposição da feminidade. Para ela, é imprescindível ensinar aos garotos um novo modelo de virilidade que contenha em si espaço para a vulnerabilidade. Ela expõe que em alguns países, como Estados Unidos, Alemanha e outros de origem anglo-saxã, houve a tentativa da construção de outro tipo de homem, denominado o “homem mole”. Como opositor do modelo contestado pelas feministas, este novo tipo acreditou que deveria menosprezar a virilidade e adotar comportamentos considerados femininos. Foi um modelo fracassado por onde se apresentou (Badinter, 1993). A confusão desta tentativa parece ser reflexo da incompreensão masculina do que venha a ser uma masculinidade vulnerável. A iniciação sexual foi outro ponto abordado por Garcia (2006). Entre seus pesquisados, os jovens das gerações de 60 e 70 tiveram sua primeira experiência com prostitutas, diferente da geração de 80, que tiveram a primeira relação com a namorada. Inserido nesse contexto, outro ponto chave que diferencia esta última geração das anteriores, é a inscrição da afetividade como um valor a ser agregado nas relações sexuais. Apesar do maior acesso aos conteúdos sexuais por meio dos programas de televisão e da internet, o mesmo estudo constatou a falta de preparação e informação dos jovens para o exercício de sua sexualidade. Diante desses dados, levanta-se a questão se os reais interesses dos jovens na busca por esses meios de comunicação estariam mais voltados para sites pornográficos, que fariam substituição às revistas das gerações antecedentes, ao invés da preocupação com informações de saúde e comportamento. De acordo com Garcia (2006), estas inquietações se revelam nas questões levantadas pelos jovens nos chats da internet, as quais são permeadas por dúvidas e angústias acerca do universo sexual, fisiológico e comportamental que envolvem as dimensões masculinas. Segundo Nolasco (1993), a ênfase do público masculino nas questões sexuais é em parte decorrente da supervalorização de todo assunto relacionado a seu pênis em detrimento dos sentimentos despertados alheios a esse tema, o que foi nomeado como a sexualização dos afetos. De acordo com a análise do pesquisador, esta dinâmica explicaria a dificuldade encontrada pelos homens em estabelecer laços de intimidade entre si, tal qual comumente ocorre entre as mulheres. Deste modo, o domínio masculino reduziu o conceito de intimidade para a questão sexual. A proximidade mais estreita entre homens passa a ser confundida com aproximação sexual e, portanto, ser cautelosamente evitada. Atribuiu-se a afetividade ao universo feminino, sendo sua natureza entendida como caótica, difusa e instável e, assim, não merecedora de crédito. O atrofiamento da afetividade na socialização masculina trouxe aos 25 meninos uma série de frustrações, desencontros e relações superficiais. O resultado desta pesquisa mostrou a dificuldade dos homens em mapear e transitar sobre a dinâmica subjetiva. Outro questionamento que fazemos a partir de pontos levantados por Nolasco se refere ao significado da entrega afetiva nas relações com as mulheres. O pesquisador afirma suscitar dúvidas entre os homens quanto à sua identidade masculina na experiência da entrega amorosa. A questão que surge é se tais dúvidas ocorreriam ainda nos dias atuais. 1.4 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA PERSPECTIVA MASCULINA A partir da alienação da subjetividade masculina, Nolasco (1993) considerou a hipótese da imagem da mulher ter sido construída pelos homens a partir desta condição e das fantasias projetadas nela. Conjecturou também, que seu comportamento frente a ela estaria mais embasado na projeção desta imagem simbolicamente construída do que no resultado da experiência de trocas e contatos com a mulher propriamente dita. Ele segue dizendo: “Para um homem, a mulher é um ‘ente’, e como tal se revela como a categoria mulher, identificada a partir da elaboração de informações e imagens obtidas por meio do senso comum, referendadas tanto pela mídia quanto pelo juízo de valor moral.” (Nolasco, 1993, p.131). Neste sentido, o autor pensa ser um desacerto nomear o inconsciente masculino de “porção feminina”, como se inclina o pensamento original de C. Jung (1987), por exemplo. Este conceito leva à ideia de que os traços subjetivos seriam privilégio do gênero feminino apenas, o que não é verdade. Samuels (2000), autor pós-junguiano, concorda com essa crítica, mesmo porque esta correlação limitaria o universo feminino apenas ao campo da subjetividade, o que também seria ultrajante para com as mulheres2. Ao associar a subjetividade masculina à sua “porção mulher”, Nolasco (1993) entende que esta concepção reforça o poder das mulheres, intensificando o temor ou a rejeição masculina para com elas. O que é pior, afastaria os homens da apropriação de sua subjetividade e das transformações a partir dela decorrentes pelos mesmos motivos. O apontamento que Jung (1987) faz, independentemente da nomeação conferida, é o temor que o homem apresenta do enfrentamento com os próprios conteúdos subjetivos, que na cultura ocidental e patriarcal, foram recalcados na psicologia masculina. Devido à projeção da subjetividade nas mulheres, seu contato mais íntimo com elas os aproxima com seu próprio inconsciente, universo do qual os homens foram socialmente excluídos e que, posteriormente, 2 Essa discussão encontra-se particularmente pormenorizada na seção 3. 26 passaram a temer. O trabalho que se apresenta neste âmbito, seria tanto a desassociação da subjetividade ao campo feminino, quanto o contato e diálogo masculinos com as próprias questões subjetivas. Nolasco (1993) salienta que a crença disseminada ao longo das últimas décadas sobre a incompatibilidade e conflitos entre homens e mulheres associou-se com a busca por um individualismo crescente que parece visar o abrandamento da angústia decorrente dos desencontros amorosos. Na percepção dos homens, o papel opressor da dimensão feminina por conta de seu grau de abstração explicaria, para o pesquisador, o motivo precursor da traição masculina. Ao trair, os homens autenticariam seu poder de escolha, experimentariam sua liberdade, fugiriam do encarceramento da relação com o feminino. Seriam “pequenos ensaios de liberdade” (Nolasco, 1993, p.142). Uma visão um tanto simplista para tamanha complexidade que envolve a dinâmica das relações interpessoais. Para Oliveira (1998), uma leitura que confere aos homens uma perspectiva vitimatória que exclui as relações de poder entre os gêneros. 1.5 O NOVO HOMEM Nolasco (1993) toma o cuidado para não associar a imagem do novo homem a de um ser fragilizado e em crise. Para ele, este que se apresenta está mais diante de um ser que está em busca de integrar seus pensamentos, sentimentos e ações, assim como de construir formas menos enrijecidas de viver a própria individualidade. É também aquele que busca costurar suas contradições, fruto das experiências com os pais e consigo mesmo. Ressalta que as críticas feitas aos conceitos masculino e feminino foram importantes como impulso inicial de todo o movimento que se segue, mas que hoje não sustentam a diversidade que se abriu para o universo masculino. “A transformação da identidade masculina [...] passa, também, pela construção de um projeto no qual estarão sendo repensados o próprio modelo de funcionamento político e social em que estão inseridos homens e mulheres. [...] só que agora como homens comuns.” (Nolasco, 1993, p.181). Assim como Tacey (2011), Nolasco (1993) concorda que os homens estão perdidos entre um modelo que se desconstrói e outro que está sendo construído, mas não apresentam parâmetros nítidos nos quais possam se sustentar. Muitos dos relatos da pesquisa de Garcia (2006) seguem a mesma linha. 27 Se antes a troca de experiências entre os homens circulavam preponderantemente sobre suas vitórias e se silenciavam em torno da própria intimidade (Nolasco, 1993), em seu trabalho posterior, intitulado Um “homem de verdade”, Nolasco (1997) atualiza esta noção ao afirmar que o homem de hoje se aproxima mais daquele sustentado igualmente no aprendizado de suas frustrações e fracassos, exercício do qual se valerá para os desafios da vida que se segue. Buscamos investigar na presente pesquisa se estas alterações permanecem e se tais experiências têm auxiliado na construção da própria subjetividade. Oliveira (1998) nos alerta para uma questão, baseado em questionamentos de alguns autores, que muitos daqueles que defendem a formação do novo homem, estão alheios à permanência das dinâmicas de poder, havendo somente uma flexibilização dos papéis, e não uma transformação destes propriamente dita. Bourdieu (2002) defende o mesmo argumento. Oliveira (1998) aponta que nas classes sociais mais baixas os padrões masculinos são ainda mais rudimentares e opressivos. Nestes casos, a flexibilização dos papéis se mostra mais difícil, uma vez que nestas classes o poder masculino nas relações de gênero é o único poder que lhes resta, por não encontrarem sucesso nas demais escalas sociais para se autoafirmarem. Portanto, ao se referir ao novo homem, este diz respeito mais às classes mais privilegiadas, àqueles que têm mais opções de status nas esferas sociais. O autor também revela que os homens, enquanto grupo, não são oprimidos pelas relações de gênero, mas isso não impede que se sintam ameaçados às conquistas femininas. Na opinião de Souza (2010), os estudos sobre o chamado “novo homem” pouco estenderam suas discussões para além da questão da sexualidade. Porém, têm ocorrido vários desmembramentos deste campo de estudo, o que tem levado ampliarmos o tema para “masculinidades” no plural, haja vista a diversidade de contextos e possibilidades de manifestação da masculinidade na contemporaneidade. O autor contextualiza as discussões sobre o “novo homem” a partir de uma compreensão de uma transformação geracional, que corresponde à construção de um novo padrão calcado em um novo tempo. Isso não se relaciona necessariamente ao desenvolvimento da polaridade feminina no homem, como algumas teorias sobre o tema têm defendido. Na pesquisa de Souza (2010), que abordou a representação e as transformações da masculinidade na vida cotidiana, com dados obtidos em reuniões com grupos focais com homens e mulheres casados, constatou-se uma percepção de ambos quanto à falência da hegemonia do modelo masculino. Ele concluiu a coexistência de valores tradicionais com os novos padrões emergentes. Para ele, o processo de transmutação do tradicional para os novos 28 valores se mostra um caminho irreversível. Isso porque o panorama da vida conjugal se transformou, criando-se a “necessidade da entrada de novos personagens no cenário da vida social” (Souza, 2010, p.262). Uma das variáveis apontada por Garcia (2006) é de ordem econômica, que incentiva o trabalho feminino fora de casa nas classes médias. O padrão de consumo e o desejo de crescimento social desta classe também contam com a participação financeira da mulher. Nesta pesquisa, a maioria dos entrevistados tinha empregada doméstica, o que, na visão da pesquisadora, é um diferencial entre as camadas médias e populares da sociedade. “A empregada doméstica funciona como um ‘amortecedor’ das relações de gênero, permitindo que muitas questões envolvendo os papéis sociais de gênero não entrem em disputa e sejam diluídas pela figura da empregada.” (Garcia, 2006, p.81). Quanto ao papel do provedor que (ainda) é esperado deles no casamento, existe forte conflito no não desempenho dessa função numa situação de desemprego, por exemplo. Em contrapartida, existe por parte dos homens grande incentivo pela independência e contribuição financeira da mulher no casamento. Esse ponto mostra o quanto o papel maçante do provedor pode estar sendo aliviado pela autonomia feminina, e “aproveitado” para o redirecionamento das funções de gênero nas relações conjugais. Porém, um dos relatos mostrou que, se não bem direcionado, o que poderia ser um equilíbrio no relacionamento pode causar, ao invés, um desequilíbrio na relação, se a divisão das responsabilidades começar a causar competição entre o casal, como eventualmente acontece nas relações profissionais (Garcia, 2006). Em relação à participação masculina nas atividades domésticas, a pesquisa de Souza (2010) mostra uma contradição nos discursos, manifestando-se na opinião de que os homens devem participar (e que esta função não é especialmente feminina), mas que este ambiente é preferencialmente das mulheres. O papel masculino do provedor também se sobressai de maneira semelhante, embora a responsabilidade da administração financeira e da educação dos filhos seja compartilhada. Na análise do pesquisador, esses dados revelam uma maior permanência dos valores tradicionais na sociedade brasileira, o que pode vir a corroborar a opinião de Oliveira (1998) quanto à flexibilização dos papéis. Welzer-Lang (2004) traz uma análise diferente quanto às diferenças de gênero no trabalho doméstico. Ele diz que a mulher, devido ao seu aprendizado que se inclina para o ambiente doméstico, tende a qualificar a si mesma de acordo com a organização de sua casa. Assim, precaver-se da limpeza e organização corresponde às características de uma boa esposa e mãe. Ao passo que para o homem, a importância de sua participação nesta área se faz 29 necessária quando a desordem ou sujeira já está instalada. Por esse motivo, as mulheres tendem a ser mais preventivas e os homens mais curativos. É possível visualizar que o momento histórico atual traz novas questões para homens e mulheres. Da parte masculina, as novas exigências recaem sobre sua participação na vida doméstica e familiar, principalmente no estreitamento da relação com os filhos. Ou seja, “As novas demandas apresentadas a um homem se situam particularmente no âmbito das relações interpessoais e problematizam o modo como ele aprendeu a construir seus vínculos afetivos.” (Nolasco, 1997, p.21). Em síntese, o conceito de masculinidade aborda questões complexas e ambíguas, decorrentes da própria trajetória na qual foi consolidada e que vem sendo desconstruída nas décadas mais recentes. Os homens de hoje se esforçam para reverem e reverterem conceitos nos quais foram socializados, baseados na antiga hegemonia masculina. Porém, como mostrou muitos pontos desenrolados ao longo desta exposição, a reconstrução subjetiva não acompanha a mesma velocidade das transformações sociais. Há de se reconhecer que muitos homens estão no seu empenho em integrar aspectos delegados antes ao universo feminino (Garcia, 2006). Na opinião de Badinter (1993), o esforço masculino em se mostrar distinto do modelo tradicional não significa dizer que haja uma transformação efetiva. Como consequência, podem oferecer aos filhos uma imagem contraditória de masculinidade. Para ela, seria uma ingenuidade acreditar que uma geração de homens nascida e educada no modelo tradicionalmente patriarcal conseguisse repentinamente defrontar-se com a temida feminidade, transformar a concepção de virilidade e reinventar um novo modelo de masculinidade. Garcia (2006) acredita que esta reconstrução não depende apenas dos indivíduos isolados ou de um grupo, mas da contribuição da sociedade em geral, inclusive das mulheres. E, de acordo com o primeiro trabalho de Nolasco (1993), as mulheres parecem estar com dificuldade em lidar com o novo homem, alguém não tão seguro como antes. Para Badinter (1993), as mulheres se atrapalharam tanto quanto eles neste processo de transformação de identidade. Ao se revelarem mais conquistadoras e combatentes, adotaram atitudes ambíguas enquanto pediam que os homens fossem mais gentis e menos agressivos. Numa postura expansiva, individualista e menos dependente, as mulheres preferem enfrentar a solidão a curvar-se ao modelo feminino idealizado pelos homens. Por sua vez, eles responderam com fuga, angústia ou insensibilidade. 30 Na seção seguinte, veremos de que maneira as relações entre homens e mulheres tem se configurado no campo afetivo diante de tais transformações. 31 2 AS RELAÇÕES AFETIVAS: RESGATE HISTÓRICO ATÉ A CONTEMPORANEIDADE Nesta seção, veremos que ao longo da História, os relacionamentos conjugais estiveram regulados tanto pelas concepções de gênero, como pelos princípios e convenções religiosos, evidenciando-se a dominação masculina e a submissão feminina como dinâmicas estruturantes na composição desses relacionamentos. 2.1 H ISTÓRICO : AS RELAÇÕES CONJUGAIS NAS DIFERENTES ÉPOCAS De acordo com Duby (1992), no séc. XII, apesar de uma posição tão desvalorizada e lânguida, a mulher era vista também como portadora de uma natureza perversa, com um lado obscuro, maléfico e suspeito. Toda essa vertente é consequência da perspectiva cristã, ao se pensar que a mulher foi responsabilizada pela inserção do pecado ao mundo. Com isso, ela recebe denotações ambíguas, oscilando entre tolas e corrompidas a corruptoras. O autor coloca que, desta forma, os homens se orientavam mais pelo medo do que pelo desejo em relação à mulher. Por isso, o casamento tinha a função de esgotar a lascívia feminina, enquadrando-a numa posição de mãe. A subordinação feminina à ordem masculina era entendida como natural e posta como decreto divino. Porém, sua submissão era explicada apenas por seu pecado e não por sua natureza. É dito comumente que o cristianismo impôs uma restrição na liberdade sexual como observada desde a Antiguidade. Le Goff (1992), por meio do estudo de Foucault e Paul Veine, diz que essa inibição ocorreu anteriormente ao cristianismo, mas seu papel foi determinante. Com esta doutrina, o corpo passou a ser fonte de pecado, sobretudo com as intervenções de Agostinho. O casamento foi a instituição que mais sofreu dentro deste cenário. De acordo com Cabral (1999), o cristianismo foi se estendendo ao longo dos séculos como força religiosa e social. Corroborada por Flandrin (1987), a autora destaca a interdição de envolvimentos afetivos e sexuais fora do casamento, e a restrição do ato sexual dentro do mesmo apenas para fins de procriação (ou para cumprir o “contrato” da união) como reflexos daquela doutrina nas relações amorosas e conjugais no início da civilização cristã. Era interditado ao homem tocar na mulher e a paixão deveria ser igualmente evitada. Flandrin (1987) acrescenta a proibição do prazer durante a relação, sendo este conceito mudado somente em meados dos séculos XVI e XVII, quando sua busca passa a ser aceita, desde que não houvesse impedimentos para a concepção. O prazer feminino era pouco conhecido, 32 acreditando ocorrer junto com a ejaculação. Em outro momento, acreditou-se que ele poderia ser prolongado, na ideia de que ele auxiliaria na fecundação. No período medieval, o amor não era associado ao casamento. O amor era entendido como sinal de fraqueza e não correspondia à resistência e bravura esperadas do homem. Pelo fato da Igreja condenar o afeto no casamento e na relação sexual, ela acabava por propiciar a brutalidade nas relações sexuais. A associação entre o amor e casamento acontece em meados dos séculos XIV e XV junto com a moral burguesa. Além disso, o casamento deveria ser indissolúvel e conferia ao homem a autoridade máxima, devendo, neste caso, a mulher obediência ao marido (Cabral, 1999). De acordo com Ussel (1980), as uniões no meio burguês, nobre e entre os camponeses ricos deste período eram orientadas por razões econômicas. O amor deveria ser subordinado aos interesses financeiros ou por títulos da nobreza. O autor aponta que o aburguesamento da sociedade, a partir do séc. XII, promoveu uma transformação nas relações sociais, o que correspondeu a uma expansão dos contatos, porém de intensidade superficial. Parte das consequências dessa expansão foi o afastamento e a minimização das dependências entre os indivíduos, uma vez que a rede social se tornou mais ampla. A partir da Idade Moderna, o padrão das relações sexuais sofre alterações em consequência dos novos ideais sociais, que tiveram sua origem com o Renascimento e a Reforma, movimentos que levaram a sociedade a questionar as normas vigentes até então. No entanto, estas transformações levaram a uma divisão de valores da moral sexual seguidos pela sociedade com a mistura daqueles advindos do feudalismo e os surgidos na nova sociedade burguesa. A nova moral preconizava o culto ao eu e a concepção da propriedade individualista. Seu reflexo se deu principalmente nas relações entre os gêneros, intensificando a hierarquia masculina sobre as mulheres e a desigualdade entre eles. Diferentemente do sistema aristocrático, onde a mulher era propriedade do homem considerando seu aparato físico apenas, na sociedade burguesa a ordem masculina se apropria da mulher do ponto de vista psicológico e espiritual. Isso significa que as qualidades masculinas eram enaltecidas em detrimento das femininas (Cabral, 1999). Segundo Ariès (1987), o individualismo presente na ideologia burguesa do período moderno favoreceu o amor por si mesmo. A valorização do amor individual se estendeu ao casamento, trazendo o erotismo para a relação conjugal. Um fator contraproducente nesta nova configuração foi a expectativa criada em torno do amor e da felicidade no matrimônio, 33 tendo como consequência, conflitos resultantes da frustração pelo não atendimento destas projeções. Cabral (1999) aponta o puritanismo como outra característica marcante desta época, o que veio a impor uma rigorosa moral social e sexual. Os casamentos seguiam essa convenção, que era evidenciada também pela expectativa do homem ser o chefe e provedor da família e a mulher ser a dona do lar e cuidadora dos filhos. O casamento passou a ser concebido por noivos pertencentes à mesma faixa etária, sendo esperado cumplicidade e afeição mútuas. Descreve o séc. XVIII como o marco da descoberta sobre a participação da mulher na fecundação, retirando-a da posição passiva na reprodução. Ainda assim, seu lugar no casamento permaneceu o de reprodutora e de dona do lar, levando ainda dois séculos para esse panorama começar a mudar. Apesar dos avanços científicos, a Idade Moderna permaneceu seguindo com a postura contida e dissimulada, próprias do puritanismo. Garton (2009) traz dados distintos deste século. Diferentemente dos séculos XVI e XVII, aponta que o casamento tornou-se o local de satisfação dos desejos sexuais, embora o adultério e os filhos ilegítimos tornaram-se mais comuns. Pressupomos que tais contradições podem ser características decorrentes de um período de transição, no qual existia a conquista de maior liberdade sexual, paralelo às influências do puritanismo e convenções morais religiosas, que restringia as práticas sexuais no casamento. A partir do final do séc. XVIII surge a concepção do amor romântico, ideia que permeia os padrões de relacionamento deste então. Neste enfoque, o desejo sexual é subjacente ao amor sublime. O amor romântico não faz ligação direta com a sexualidade, embora a abarque. O parceiro é idealizado e suas qualidades são evidenciadas (Giddens, 1993). Segundo os referenciais de Ussel (1980), neste mesmo século notou-se um processo de dessociabilização, tendo sua principal marca a experiência da solidão. O autor questiona se a criação do casamento como forma de união, a valorização do amor como condição para o mesmo e o fortalecimento da estrutura familiar não seriam respostas da dessociabilização como forma de resgatar a dependência num núcleo mais próximo. No entanto, a propagação da prostituição e o aumento da prática da masturbação – ambas atividades de cunho individual – também entram como consequências do mesmo processo. Ao longo do séc. XIX, a Igreja e o Estado fortaleceram a ideia de planejamento familiar, evidenciando a família no modelo burguês como a base da sociedade. O celibato era cada vez mais repudiado pela Igreja. O amor do séc. XVIII foi desintegrado no séc. XIX, 34 sendo segregado o erotismo e a sensualidade para fora do casamento. Neste período o orgasmo feminino foi negado e visto como perverso (Ussel, 1980). Giddens (1993) aponta que o poder patriarcal no meio familiar no final deste século começou a reduzir por conta de sua dedicação quase que exclusiva ao trabalho. Assim, a criação dos filhos ficou sob o domínio da mãe, e o cuidado dos sentimentos e emoções passou a ser valorizado, tomando-se as crianças como seres frágeis. Fruto dessa nova cultura foi a idealização materna, com sua extensão para os valores disseminados na mulher romântica. A feminilidade tornou-se característica da mulher maternal, qualidade esta igualmente presente na sexualidade feminina. Este foi o padrão a ser conhecido e esperado pelos homens nas mulheres, abarcando ainda as qualidades de sensibilidade e cuidado. Como veremos adiante, a insegurança e conflito de muitos homens na atualidade explicam-se pela dependência masculina à imagem da mulher romântica, que muitas vezes não corresponde à mulher independente de hoje. O cenário que compunha a mulher romântica era o lar, uma vez que suas qualidades eram voltadas para os cuidados domésticos e dos filhos, mantendo-a afastada ativamente da vida pública (Giddens, 1993). Entretanto, Cabral (1999) ressalta que este papel era “privilégio” para as mulheres das classes mais altas. Nas camadas mais pobres, elas eram obrigadas a ter um trabalho assalariado para complementar a renda doméstica. No lado masculino, Giddens (1993) refere que ocorreu uma cisão entre o amor romântico e o ato sexual, reverberando na procura do sexo carnal nas amantes e prostitutas. Segundo Cabral (1999), a função do clitóris e o orgasmo feminino eram delegados às mulheres libertinas, sendo a ignorância e a compostura resguardadas para as mulheres da classe média. A repressão sexual refletia indiretamente nos homens, apresentando certa inibição e lidando com o sexo conjugal como forma de exercer um dever no casamento. Neste aspecto, os preceitos de Agostinho eram seguidos criteriosamente. A própria medicina aconselhava o sexo com excitamento com as prostitutas. No final do séc. XIX, os ideais burgueses, que se pautavam na moral vitoriana, entram em choque com a Psicanálise e com as ondas de emancipação da mulher, consideradas como movimentos de subversão da ordem vigente (Cabral, 1999). Pode-se perceber, neste breve histórico, que a sexualidade teve suas restrições em cada período histórico e que as relações amorosas e conjugais estiveram subordinadas tanto aos preceitos religiosos quanto à ordem masculina, tendo como norteador nas relações o lugar e a função da mulher, tanto no âmbito doméstico como na sociedade. 35 No séc. XX, a independência feminina, em grande parte proporcionada pelo trabalho, aparecerá como o maior diferenciador das relações. O sociólogo Eli Ginzberg (citado por Fisher, 1994) concorda ao dizer que este foi o acontecimento mais importante deste século. Partindo de uma perspectiva marxista, Kolontai (2003) analisa as consequências deste fenômeno para as questões sexuais e de relacionamento conjugal no séc. XX. De acordo com sua leitura, a humanidade se adentrou em uma crise sexual, uma crise longa e de complexa resolução. Embora considere outras transformações ao longo da história, analisa que os parâmetros sexuais nunca estiveram tão desestabilizados como no início daquele século. Este fato fora distinto, uma vez que abrangeu todas as classes sociais. “As relações entre os sexos e a elaboração de um código sexual que regulamente estas relações aparecem na história da humanidade, de maneira invariável, como um dos fatores da luta social.” (Kolontai, 2003, p.54). Ela cita o trabalho de Meisel-Hess, que descreve a humanidade atual como “pobre em potencial de amor” (Kolontai, 2003, p.56). As relações são baseadas na autossatisfação, em que o outro é usado como meio para tal. Espera-se que o outro supra a solidão moral sentida, mas não é devolvido nada em troca. O indivíduo, com o desenvolvimento do individualismo e do culto ao eu, cultiva a ilusão da conquista do parceiro sem nenhum sacrifício ou doação de si próprio. É espantoso observar como as mesmas condições se perduram um século depois. A situação é agravada com dois fatores que compõem as relações contemporâneas: a concepção de se ter direito de propriedade sobre o outro (surgida a partir da concepção individualista de propriedade privada burguesa, a priori do homem sobre a mulher) e a divisão e desigualdade entre os gêneros nas várias alçadas, como a dupla moralidade (Kolontai, 2003). Embora esse panorama tenha mudado bastante após as conquistas do movimento feminista, este dado continua sendo atual na subjetividade das relações. A autora ainda percebe a existência, mesmo na época em que foi escrito seu trabalho, de ao menos dois padrões de relacionamento na contemporaneidade. De um lado, um formato aparentemente igual ao burguês, com a manutenção do casamento indissolúvel, mas em seu conteúdo a conscientização da liberdade entre os parceiros; e por outro, visualiza-se uma forma mais livre de se relacionar, mas em seu interior a manutenção do direito de propriedade de um sobre o outro. Sua análise mostra que a humanidade parece estar procurando se adaptar às novas condições da economia social transformada. E o que seria mais novo no séc. XXI, que não há evidências em épocas anteriores, é o hábito da vida solitária. Hoje as relações parecem mais girar em torno das associações 36 (amigos) do que nos casamentos. A liberdade financeira proporcionou maior individualismo e menor propensão ao casamento (Fisher, 1994). Na análise de Bauman (2004) a atual disposição dos relacionamentos se configura por maior liberdade e trocas entre os envolvidos, o que não exclui a ocorrência de dificuldades, conflitos e angústias, recorrentes nos envolvimentos afetivos. Corrobora com as autoras supracitadas ao afirmar que os indivíduos contam com maiores possibilidades de esquiva do enfrentamento das próprias fragilidades reveladas na eclosão dos seus entraves nos relacionamentos, e optam em substituir um compromisso recheado de prazeres e dor por relacionamentos voláteis, nomeados pelo autor de amores líquidos. O relacionamento líquido, como trabalha Bauman (2004), é estabelecido por encontros flexíveis e abreviados, embasados na crença ou tentativa de se usufruir de satisfações imediatas na exclusão do ônus das ambivalências e inseguranças abarcadas pelo amor. Araújo (2002) entende que as novas formas de relacionamento amoroso, sejam elas heterossexuais ou não, são frutos da construção de relações amorosas e sexuais mais democráticas, igualitárias e principalmente plurais, conquista esta de homens e mulheres. As uniões informais, consensuais, sem filhos ou sem coabitação coexistem com o casamento formal, heterossexual com fins de constituição de família, ainda valorizado na contemporaneidade. Para a pesquisadora, a tendência da sociedade é tornar-se cada vez mais flexível para acolher essas novas configurações das relações amorosas. 2.2 PESQUISAS SOBRE AS RELAÇÕES AMOROSAS A análise de alguns artigos sobre o tema nos mostra de que forma essas transformações na consciência masculina e nas relações de gênero estão sendo refletidas nos relacionamentos afetivos. Ferrand (2004) compara a análise de duas pesquisas feitas com intervalo de 20 anos sobre a representação e a sexualidade de homens e mulheres. A primeira foi feita em 1970 por Simon e seus colaboradores e a segunda realizada em 1993 pelo grupo ACSF de Spira, Bajos et al. Embora o comportamento sexual das mulheres tenha se aproximado muito ao dos homens, ela nota ainda algumas especificidades. A primeira grande mudança registrada foi a maior atividade e grau de satisfação no tocante à atividade sexual por parte das mulheres. Há poucas décadas, sua iniciação sexual se dava na maior parte no casamento. Da primeira pesquisa para a segunda já houve um declínio 37 da faixa etária para a iniciação sexual feminina, de 21 anos para 18 anos. A autora defende a invenção da pílula anticoncepcional para justificar a redução da idade. O que fica claro é que a sexualidade feminina passa a ser mais diversificada e independente da procriação. A precocidade da vida sexual nas décadas mais recentes se articula também com o prolongamento da dependência da casa dos pais pelos jovens, diferença percebida principalmente entre os rapazes. Por conta do desemprego e da extensão dos estudos, os pais acabam por ter maior tolerância com a vida sexual dos filhos. Em contrapartida, do lado feminino as mudanças tendem para a autonomia. Elas agora abandonam a casa dos pais para viver com o parceiro ou mesmo sozinhas, para trabalhar ou estudar, tendência cada vez maior devido ao crescimento feminino no nível superior (Ferrand, 2004). No que se refere à ascensão feminina no campo de trabalho, a pesquisa de Garcia (2006) mostrou que a maior parte dos homens pesquisados (gerações que viveram suas juventudes nas décadas de 60, 70 e 80) confessou sentir insegurança e intraquilidade, mas reconheceram que tal equidade favoreceu para a desconstrução das distinções subjetivas em torno dos gêneros. Alguns depoimentos daquela pesquisa revelou que a flexibilização dos papéis de gênero permitiu a discussão e questionamento dos valores de sua construção social. Esta mesma pesquisa revelou que o reflexo da autonomia feminina para o relacionamento afetivo-sexual também provocou insegurança para a parte masculina, uma vez que estavam acostumados a terem o domínio quase que exclusivo neste campo. Giddens (1993) ratifica essa ideia ao notar certa tendência de controle sexual dos homens sobre as mulheres nas sociedades modernas. Desperta-se o interesse em investigar se esta disposição permanece na geração masculina mais recente. Barasch (1997) também afirmou que a mulher estendeu a autonomia adquirida no campo profissional para as relações afetivas, tornando-se atuante nas exigências dos prazeres e sensações. Dessa forma, “começam as cenas e os jogos no campo das relações afetivas e do amor” (Barasch, 1997, p.96). Ela diz que parte dos homens que acompanham as transformações femininas mostra-se mais atenta, sensível e disponível para esta dinâmica. Eles se tornam cúmplices da mulher e de seu desenvolvimento, complementam seus novos papéis e ainda fazem uso disso como uma fonte de crescimento pessoal e mútuo. Para esses homens, a consciência da constância da mudança faz a busca ficar mais interessante e misteriosa (Barasch, 1997, pp.96-97). Outra parcela de homens igualmente existente é aquela mais resistente, que não se dá conta da inadequação de seu pensamento, enraizado nos velhos valores, para os dias atuais. 38 Mesmo que se esforcem para se sintonizar à nova realidade, se perdem nas relações. Como tentativa de adaptação, entram num jogo de poder, ignorando as transformações das relações (Barasch, 1997, Almeida, 2009). Ao considerar o aspecto integral do homem, Barasch (1997) afirma que toda essa configuração e conflitos afetam diretamente a sexualidade masculina. Principalmente na camada que engloba os homens mais resistentes às transformações, a autora entende que a velocidade das mudanças criou um distanciamento entre aquilo que os homens aprenderam como função sexual e papel social e o que eles de fato vivem. Um exemplo do antigo aprendizado sobre os papéis sexuais dos gêneros encontramos na famosa dicotomia santa/vadia. De acordo com a pesquisa de Lillian Rubin realizada em 1989 (citado por Giddens, 1993), muitas adolescentes têm ultrapassado este conceito e usufruindo de seu direito de iniciar sua vida sexual na idade que sentem apropriada. Ainda assim, observou-se rejeição da maioria dos rapazes em relação às garotas que disputavam o comportamento sexual masculino, justificando esta atitude por preferir a inocência feminina. Embora a maior parte dos homens referisse aceitação e preferência quanto à maior independência e disponibilidade sexual por parte das garotas, eles mostravam certa indisposição a adaptar-se às consequências dessa transformação, alegando que as mulheres “perderam a capacidade para a bondade” e que “não sabem mais como entrar em acordo” (Giddens, 1993, p.21). Uma pesquisa mais recente (Malcher, 2002) mostrou a continuidade desse conflito. Os rapazes entrevistados (jovens entre 18 e 25 anos das camadas médias de Belém) chegaram a nomear como “putas” as garotas que aceitaram sair com eles sem antes terem conquistado-as. Esses discursos e impressões masculinas acentuam a hipótese de Giddens (1993) sobre a dificuldade dos homens em perder sua hegemonia no controle das relações. Há uma incongruência nos rapazes entre o desejo de independência da mulher e sua consequência nas relações. Por falta de conhecimento ou exercício da relação com a mulher atual, os homens acabam falhando e frustrando-se na tentativa de estabelecimento de uma relação com o gênero feminino. De acordo com Barasch (1997), o fracasso cria o medo para as próximas relações. “Assim, torna-se angustiado, coloca em dúvida suas capacidades e se afasta pouco a pouco da possibilidade de um novo relacionamento.” (p.101). Esta análise é confirmada na pesquisa de Leonini (2004), na qual os homens assumiram se esquivar das exigências femininas, do risco da rejeição e do esforço da sedução 39 e atração ao gênero feminino na procura pelas prostitutas. Podemos entender essas características como uma vulnerabilidade dissimulada. Sua esquiva é percebida pelos homens como positiva ao contratar uma prostituta, meio pelo qual podem exercitar suas fantasias de domínio e poder, conferidos logicamente pelo dinheiro. Também reconfiguram momentaneamente o cenário típico patriarcal, no qual a mulher encontra-se disponível, receptiva e submissa aos desejos masculinos. Ao fazer um paralelo com o apontamento de Giddens (1993) sobre o amor confluente, no qual existe uma reciprocidade de interesse e cultivo do relacionamento, Leonini (2004) se utiliza dessa análise para compreender a relação do homem atual com o ato sexual com suas parceiras. Se antes havia a conotação prioritária de satisfação pessoal das próprias pulsões, hoje existe a exigência, e consequentemente o “compromisso” de satisfação da parceira. “O homem sente-se colocado à prova e pode experimentar o fracasso, resultando disso um sentimento de ansiedade e medo de não conseguir realizar ou não estar à altura das expectativas da sua companheira.” (Leonini, 2004, p.88). Neste contexto é que o contato com a prostituta pode representar uma vivência menos ansiosa. A pesquisadora vai além, entendendo que para o homem, estar numa relação conjugal pode representar uma exposição de si mesmo e correr o risco de avaliação, colocando à prova sua identidade masculina. Na opinião de Barasch (1997), o que possibilitaria uma aproximação do homem com a atual realidade e com a nova mulher seria o diálogo mais efetivo. No entanto, a dificuldade da exposição masculina para o diálogo dificulta essa aproximação e resolução do conflito. Porém, a pesquisadora não justifica a fragilidade masculina apenas pela mudança da mulher. Para ela, outra variável seria o direcionamento unilateral do homem para seu desempenho profissional. Quanto a este último ponto, pensamos que a tendência à unilateralidade masculina para o trabalho não se justifica mais como inadequação do homem para as questões afetivas na atualidade, tendo em vista a maior divisão do campo profissional com as mulheres e a exigência delas para seu maior comprometimento nas relações. Para Giddens (1993), a atualidade obriga os gêneros a se conciliarem, levando-se em conta a crescente tendência à igualdade sexual. As mulheres, de forma geral, não se submetem mais à dominação sexual masculina, o que leva a consequências que ambos terão que lidar. Acertadamente, o autor inclui as mulheres junto aos homens na necessidade de revisão dos pontos de vista e atitudes no tocante aos relacionamentos, a fim de se adequar às transformações das relações afetivas. A nova configuração das relações pede a reformulação de conceitos como compromisso e intimidade. 40 Giddens (1993) comenta que a resistência masculina e sua lentidão em acompanhar a transformação feminina inibiram o homem no desenvolvimento da intimidade. Este quadro é acentuado na inconsciência de sua dependência emocional, não se permitindo, assim, a abertura para o estado de vulnerabilidade, condição esta para o desenvolvimento da intimidade, segundo o autor. Um ponto importante, nada inovador, mas ainda atual, se refere ao imaginário masculino da possível expectativa feminina em relação a eles. O ideal de força, potência e providência sobrecarregam a dinâmica e fluxo masculino nas relações com as mulheres. A consequência dessa fantasia (na maior parte das vezes, ainda real) é expressa em sentimentos de insegurança e desconfiança em relação ao gênero feminino (Garcia, 2006). Embora os ideais de potência e virilidade continuem subjetivamente vigentes, eles se mostram um tant