U N I V E R S I D A D E E S T A D U A L P A U L I S T A “ J Ú L I O D E M E S Q U I T A F I L H O ” I N S T I T U T O D E A R T E S PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA STRICTO SENSU FERNANDO LACERDA SIMÕES DUARTE RESGATES E ABANDONOS DO PASSADO NA PRÁTICA MUSICAL LITÚRGICA CATÓLICA NO BRASIL ENTRE OS PONTIFICADOS DE PIO X E BENTO XVI (1903-2013) São Paulo 2016 FERNANDO LACERDA SIMÕES DUARTE RESGATES E ABANDONOS DO PASSADO NA PRÁTICA MUSICAL LITÚRGICA CATÓLICA NO BRASIL ENTRE OS PONTIFICADOS DE PIO X E BENTO XVI (1903-2013) Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Música. Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna São Paulo 2016 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP D812r Duarte, Fernando Lacerda Simões, 1984- Resgates e abandonos do passado na prática musical litúrgica católica no Brasil entre os pontificados de Pio X e Bento XVI (1903- 2013) / Fernando Lacerda Simões Duarte. - São Paulo: [s.n.], 2016. 495 f.; il. Bibliografia Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna Tese (Doutorado em Música) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. 1. Música sacra – Igreja Católica. 2. Romanização e restauração musical. 3. Memória, identidade e esquecimento. I. Franceschini, Furio. II. Castagna, Paulo Augusto. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título CDD – 783.09 Fernando Lacerda Simões Duarte RESGATES E ABANDONOS DO PASSADO NA PRÁTICA MUSICAL LITÚRGICA CATÓLICA NO BRASIL ENTRE OS PONTIFICADOS DE PIO X E BENTO XVI (1903-2013) Tese apresentada ao programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Música. São Paulo, 14 de março de 2016. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna – IA/UNESP – Orientador ______________________________________________ Prof. Dr. Gildo Magalhães dos Santos Filho, livre-docente – FFLCH/USP ______________________________________________ Prof. Dr. Marcos Tadeu Holler – CEART/UDESC ______________________________________________ Prof. Dr. Oscar Alejando Fabian D’Ambrosio – PPG Artes/UNESP ______________________________________________ Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira, livre-docente – IA/UNESP Para minha mãe, Maria Teodora. 5 AGRADECIMENTOS Ao orientador, professor Paulo Castagna, pelas diretrizes e pela liberdade concedida na realização da pesquisa. Aos professores das disciplinas cursadas durante o programa de pós-graduação e graduação. Igualmente, aos professores examinadores Gildo Magalhães dos Santos Filho, Marcos Tadeu Holler, Oscar Alejandro Fabian D’Ambrosio, Kathya Maria Ayres de Godoy, Marcos Fernandes Pupo Nogueira, Viviana Mónica Vermes e Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz, que leram, avaliaram e contribuíram para a melhoria deste trabalho. À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela bolsa concedida durante a realização do doutorado. Ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP, nas pessoas de sua coordenadora e dos funcionários. A todas as instituições visitadas em pesquisa de campo, listadas no anexo desta tese, aos coordenadores, técnicos e funcionários por colaboração para a pesquisa de fontes. A todos que disponibilizaram seus acervos particulares para esta pesquisa. A todos que me presentearam com livros, catálogos, partituras e publicações diversas. A todos que me recomendaram alguma leitura. Aos funcionários e docentes do Instituto de Artes da UNESP. Aos colegas, alunos regulares, especiais e ouvintes do curso de doutorado. Aos colegas pesquisadores do Núcleo de Musicologia Social – NOMOS e a todos os demais colegas pesquisadores que colaboraram para a realização desta pesquisa. Aos amigos e familiares pela compreensão quando das ausências motivadas pela pesquisa. Por fim, àqueles com quem tive oportunidade de atuar como regente de coros, pianista, professor de música ou organista, atuação esta me rendeu o interesse pela música litúrgica e pelas atividades docentes. 6 DUARTE, Fernando Lacerda Simões. Resgates e abandonos do passado na prática musical litúrgica católica no Brasil entre os pontificados de Pio X e Bento XVI (1903-2013). 2016. Tese (Doutorado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2016. RESUMO Esta pesquisa foi estruturada a partir de três problemas: por que os resgates do passado e determinados esquecimentos intencionais que ocorreram na Igreja Católica, no Brasil, entre 1903 e 2013 foram eficientes para sua manutenção? O repertório musical composto e/ou executado no Brasil neste período contribuiu para este processo ou o refletiu? Quais os limites da eficiência deste processo? A fim de respondê-los, recorreu-se à legislação eclesiástica sobre música sacra, publicações e decisões de organismos eclesiásticos especializados no tema, além de fontes musicais recolhidas a diversos acervos. Foi realizada pesquisa de campo em cerca de quinhentas instituições, com pesquisa de fontes em mais de cento e setenta delas. Os dados obtidos foram analisados a partir dos referenciais de memória, esquecimento, tradição e identidade coletiva em Joël Candau, Jacques Le Goff, Pierre Nora, Michael Pollak, dentre outros, e recorrendo às teorias de sistemas sociais complexos em Niklas Luhmann e Walter Buckley – com a adaptação dos tipos weberianos de controle à abordagem sistêmica por este último. Na primeira metade do século XX, a restauração musical católica e a Romanização determinaram uma clara passagem do tipo weberiano tradicional ao racional- legal, implicando uma adequação de ferramentas analíticas: ao invés de modelos pré- composicionais, faz mais sentido pensar o repertório produzido neste período a partir da noção de controle normativo – que se estendeu a aspectos composicionais, interpretativos e relacionais. Com o Concílio Vaticano II, as relações de controle se modificaram, bem como as metas musicais do sistema religioso. Na América Latina, a partir da década de 1970, um discurso dualista em relação ao passado pretendeu o esquecimento das práticas musicais pré- conciliares, buscando inspiração na música popular e em memórias do catolicismo tradicional, e ensejando o desenvolvimento de um repertório brasileiro, associado à canção de protesto. Com João Paulo II e Bento XVI, estas metas musicais passaram por um refreamento, decorrente da política adotada por estes pontífices em relação à Teologia da Libertação. Com isto, outras memórias foram resgatadas com vistas à ênfase do Concílio Vaticano II enquanto continuidade. Os resultados da tese apontam para a coerência entre as memórias musicais resgatadas por especialistas e acadêmicos e os discursos que determinaram as metas do sistema religioso como um todo, enquanto fator de legitimação destas metas. Esta adequação legitimou as metas musicais por meio da tradição e revelou a eficiência do processo. Por outro lado, foi possível observar os limites deste controle: memórias musicais locais, a manutenção de identidades coletivas e de manifestações religiosas tradicionais, necessidades práticas, memórias afetivas, interesses políticos (identidade nacional), econômicos, e principalmente, a capacidade de negociação dos indivíduos e grupos locais em relação às metas do sistema religioso. Palavras-chave: Música litúrgica – Igreja Católica. Romanização. Restauração musical católica. Concílio Vaticano II. Memória, identidade e esquecimento. Área de conhecimento da titulação: Música – Código da tabela da CAPES: 8.03.03.00-5. 7 ABSTRACT This research builds upon three issues: why the restoration of the past and certain intentional forgetfulness that occurred in Catholic Church in Brazil between 1903 and 2013 were efficient for its maintenance? The musical repertoire composed and/or performed in Brazil in this period contributed for this process or reflected it? Which limits the effectiveness of this process? To answer them, resorted to ecclesiastic legislation on sacred music, publications and decisions from ecclesiastic agencies specialized on the subject, as well musical sources preserved in several collections. Field work was conducted in approximately five hundred institutions, with research of sources in more than one hundred and seventy of them. Data were analyzed from the benchmarks of memory, forgetfulness and collective identity in Joël Candau, Jacques Le Goff, Pierre Nora, Michael Pollak, and others, and through the theory of the complex social systems in Niklas Luhmann and Walter Buckley – with the adaptation of Weberian types of control to the systemic approach by the later. In the first half of the twentieth century, the Catholic Musical Restoration and the Romanization determined a clear passage from the traditional Weberian type to the rational-legal, implying an adaptation of analytical tools: instead of pre-compositional models, it makes more sense to think the repertoire produced in this period from the normative control notion – that extended the compositional, interpretative and relational aspects. With Second Vatican Council, the control relationships were changed as well as the musical targets of the religious system. In Latin America, from the 1970s, a dualist discourse over the past meant the forgetfulness of the pre- counciliar musical practices, seeking inspiration in popular music and traditional Catholicism memories, and allowing for the development of a Brazilian repertoire, associated to the protest song. With John Paul II and Benedict XVI, these musical targets were diminished, due to the policy adopted by these pontiffs in relation to Liberation Theology. In this way, other memories were restored to emphasize the Second Vatican Council as continuity. The thesis results point to the coherency between the musical memories restored by specialists and academics and the discourses that determined the targets of whole religious system, as a factor of legitimation of these targets. This adequateness legitimized musical targets by tradition and revealed the process efficiency. On the other hand, the limits of the control were observed: musical memories, maintenances of collective identities and traditional religious manifestations, practical needs, emotional memories, political (national identity) and economical interests, and above all, the ability trading of individuals and local groups in relation to the targets of the religious system. Keywords: Liturgical music – Catholic Church. Romanization and catholic musical restoration. Second Vatican Council. Memory, identity and forgetfullness. 8 RESUMEN Esta investigación se basa en tres cuestiones: por qué los rescates del pasado y ciertos olvidos intencionales que se produjo en la Iglesia Católica en Brasil entre 1903 y 2013 fueron eficientes para su mantenimiento? El repertorio musical compuesto y / o ejecutado en Brasil en este período contribuyó a este proceso o lo reflejó? Cuales los límites a la eficacia de este proceso? Para responderlos, se recurrió a la legislación eclesiástica sobre la música sacra, publicaciones y decisiones de organismos eclesiásticos especializados, así como las fuentes musicales reunidas en varios archivos. La investigación de campo se llevó a cabo en unas quinientos instituciones, com investigación de fuentes en más de ciento setenta de ellos. Se analizaron los datos a partir de los conceptos de memoria, olvido, tradición y identidad colectiva en Joël Candau, Jacques Le Goff, Pierre Nora, Michael Pollak, entre otros, y a través de las teorías de sistemas sociales complejos de Niklas Luhmann y Walter Buckley – com la adaptación de los tipos de dominación de Weber para el enfoque sistémico por este último. En la primera mitad del siglo XX, la Restauración musical católica y la Romanización determinaron la pasaje del tipo tradicional de Weber al racional legal, implicando una adaptación de las herramientas de análisis: en lugar de los modelos pre-compositivos, tiene más sentido pensar repertorio producido en este período con la noción de control normativo – que se extendió a aspectos compositivos, interpretativos y relacionales. Con el Concilio Vaticano II, las relaciones de control han cambiado, así como las metas musicales del sistema religioso. En América Latina, a partir de la década de 1970, un discurso dualista en el último significaba olvidar las prácticas musicales pre-conciliares, buscando inspiración en la música popular y en memorias del catolicismo tradicional, y permitiendo el desarrollo de un repertorio brasileño, asociado a la Canción Protesta. Con Juan Pablo II y Benedicto XVI, estos objetivos musicales han sido rechazado debido a la política adoptada por estos pontífices en relación con la Teología de la Liberación. Con esto, otras memorias fueron rescatadas con el objetivo de representar en el Concilio Vaticano II como continuidad. Los resultados de la tesis revelan la coherencia entre las memorias musicales rescatadas por expertos y acadêmicos y los discursos que han determinado los objetivos del sistema religioso en su totalidad, mientras que el factor legitimador de estos objetivos. Este ajuste legitimó la metas musicales por la tradición y reveló la eficiencia del proceso. Por otro lado, se vio los límites de control: memorias musicales locales, el mantenimiento de las identidades colectivas y prácticas religiosas tradicionales, las necesidades prácticas, memorias emocionales, los intereses políticos (identidad nacional), económicos, y sobre todo la capacidad de negociación de individuos y grupos locales en relación con los objetivos del sistema religioso. Palabras clave: Música litúrgica – Iglesia Católica. Romanización. Restauración musical católica. Concilio Vaticano II. Memoria, identidad y olvido. 9 O entrelaçamento de memória-esquecimento é muito profundo. Mesmo quando se teorizam rupturas totais e irreparáveis e transformações radicais. Nas situações histórico-culturais em que predominam a cólera e o espírito de rebelião, a exigência do passado é frequentemente tão forte quanto a que diz respeito ao futuro. Paolo Rossi A memória justa consiste em encontrar um equilíbrio entre a memória do passado, a memória de ação e a memória de espera. Trata-se de evitar ao mesmo tempo a repetição, que faria do passado uma prisão, a imersão em um tempo real reduzido ao artifício e ao simulacro, e a fuga perdida em direção ao futuro que teria como resultado, como observou Pascal, “que nunca vivemos, mas que esperamos viver”. A uma memória justa deveria corresponder uma identidade de igual qualidade. Como defini- la, então? De fato, a representação justa de uma identidade não é aquela do qual se admite o desaparecimento? Elaborando sua relação consigo e com o mundo, o homem deve fazer frente a duas verdades as quais tem dificuldades em suportar: 1) que morrerá; 2) que será esquecido. Ambas significam a destruição de sua identidade. Talvez a segunda verdade seja ainda mais terrível que a primeira, donde o desejo permanente de fazer memória, quer dizer, deixar seu traço, sua marca, seu sinal, criar, construir, ter filhos, transmitir, assumir sua posteridade, esperando assim afastar o esquecimento ou pelo menos atenuar sua brutalidade. Joël Candau 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 12 1 CONCEITOS E TEORIAS 33 1.1 SISTEMAS SOCIAIS 33 1.1.1 Características e operações dos sistemas sociais 38 1.1.2 Identidades e o referencial do tempo 41 1.2 MEMÓRIA, HISTÓRIA E ESQUECIMENTO 45 1.2.1 Memória, história e música 45 1.2.2 Esquecimentos, silêncios e os lugares de memória 49 1.2.3 Memória, verdade, mitos e a busca pela origem 55 1.3 TRADIÇÃO 58 1.3.1 Taxonomia da memória e a tradição 62 1.3.2 Tradição e teologia 66 1.3.3 Tradição e conservadorismo na Igreja pós-conciliar 69 1.4 TRADIÇÃO, CRIAÇÃO E CONTROLE NO CATOLICISMO 78 1.4.1 Os tipos weberianos 78 1.4.2 Autocompreensões e movimentos hegemônicos 88 1.4.3 Modelo pré-composicional e controle normativo 94 2 ASPECTOS COMPOSICIONAIS 98 2.1 PRINCÍPIOS GERAIS 98 2.1.1 Gêneros de composição 98 2.1.2 Funcionalidade e finalidade 106 2.1.3 Unidade, universalidade e o autóctone 113 2.1.4 Os distintos gêneros na prática musical 121 2.2 TEXTO 144 2.2.1 Latim e vernáculo 144 2.2.2 Temática e linguagem 152 2.2.3 Contrafacta 160 2.3 ASPECTOS MUSICAIS 163 2.3.1 Inspiração gregoriana, música modal e temas musicais 163 2.3.2 Textura e forma 174 2.3.3 Vozes, instrumentação e a música instrumental 197 11 2.3.4 Do ritmo livre à música pop 206 2.3.5 Caracterizando estilos 213 3 ASPECTOS INTERPRETATIVOS 226 3.1 OS INTÉRPRETES 227 3.1.1 Músicos contratados e voluntários 227 3.1.2 Homens, mulheres e meninos 230 3.1.3 Do padre ao povo 238 3.2 ESTILOS DE INTERPRETAÇÃO 244 3.2.1 O cantochão restaurado e as tradições locais 244 3.2.2 Modelos de interpretação 247 3.3 INTERPRETAÇÃO INSTRUMENTAL E ARRANJOS 250 3.3.1 Instrumentos e grupos instrumentais na legislação pré-conciliar 250 3.3.2 Da norma à realidade 257 3.3.3 Novos conjuntos e as velhas bandas 282 4 ASPECTOS RELACIONAIS 286 4.1 CANTAR PARA DEUS, PARA A IGREJA E PARA O POVO 286 4.1.1 Do controle social ao controle da música 286 4.1.2 Controle normativo e órgãos censores 297 4.2 A MÚSICA DE UM SISTEMA ABERTO 326 4.2.1 A “música jovem” 335 4.3 RESGATES, MANUTENÇÕES E ABANDONOS DO REPERTÓRIO 341 4.4 PRESERVAÇÃO E DIFUSÃO DA MEMÓRIA MUSICAL 365 4.5 EM BUSCA DE UM MODELO 369 4.5.1 Metas musicais e relações de poder 377 4.6 DESAFIOS DO PRESENTE 393 CONCLUSÃO 397 REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA GERAL 406 FONTES PRIMÁRIAS, GRAVAÇÕES E PARTITURAS 438 ANEXO 490 12 INTRODUÇÃO Confrontar-se com o passado é uma tarefa cotidiana. Transitar pela cidade revela, por exemplo, as modificações da paisagem e das atividades humanas realizadas ao longo do percurso em determinado período de tempo. Os exemplos seriam infinitos. Estão na forma de falar, de escrever, de olhar e ouvir o mundo e mesmo nas relações estabelecidas entre as pessoas. Se em uma ponta desta evocação do passado estão as mudanças, na outra está a memória, que fornece o parâmetro para a comparação. Há também situações em que o passado não serve somente à constatação de mudanças, mas sua evocação é a finalidade de determinadas ações: rever fotos antigas, ouvir músicas que deixaram de ser tocadas no cotidiano, reler cartas há muito guardadas, dentre outras, capazes trazer de volta ao presente informações, sensações ou sentimentos há muito perdidos, com vistas a organizar e reinterpretar este presente, e a planejar o futuro. É possível ver os mesmos objetos considerando sua funcionalidade ou rememorando situações e pessoas nos quais estiveram envolvidos. Deste modo, observa-se o passado como relação e não como algo a ser contemplado e até venerado por si mesmo. Por outro lado, há lugares, situações e objetos que têm a finalidade de evocar algum passado. O mundo em que vivemos há muito tempo está cheio de lugares nos quais estão presentes imagens que têm a função de trazer alguma coisa à memória. Algumas destas imagens, como acontece nos cemitérios, nos lembram pessoas que não mais existem. Outras, como nos sacrários ou nos cemitérios de guerra, relacionam as lembranças dos indivíduos à dos grandes eventos ou das grandes tragédias. Outras ainda, como acontece nos monumentos, nos remetem ao passado de nossas histórias, à sua continuidade presumível ou real com o presente (ROSSI, 2010, p.23)1. Além de espaços e objetos, o passado se revela ou se cristaliza também por meio de seu registro: biografias, narrações, livros de história e mesmo escritos religiosos constituem vias de acesso para o passado, seja ele de um indivíduo ou de um grupo. Se as pessoas são capazes de rememorar seu passado, tal faculdade também se constata em sistemas sociais, os quais rememoram sua própria história ou fazem contato com o passado de outros sistemas. Em períodos de estagnação, a busca do passado pode representar a possibilidade de mudanças e “renascimentos”2. 1 Neste trabalho, todas as citações literais tiveram sua ortografia atualizada e numeração de notas de rodapé dos autores suprimidas. Caso alguma nota do autor tenha sido aproveitada, ela constará com a numeração sequencial deste trabalho. No caso de inserção de notas explicativas às citações, elas constarão entre colchetes. O uso de negrito nas citações literais foi suprimido. 2 Jack Goody (2011, p.283) caracteriza o Renascimento essencialmente como um olhar lançado para o passado acompanhado de um florescimento, ou seja, as chamadas “eras douradas”. Assim, observou tais características em outras culturas e sociedades que não as europeias como a China, Índia, no Islã e no Judaísmo, donde concluiu 13 Todas as sociedades estagnadas requerem algum tipo de renascimento para voltarem a se mover, e isto pode implicar um olhar retrospectivo sobre épocas anteriores (a Antiguidade, no caso da Europa) ou outro tipo de florescência. […] Especialmente nas questões religiosas[3], essa evocação do passado pode ter um caráter mais conservador do que libertador para as artes ou as ciências (GOODY, 2011, p.11-12). No Renascimento italiano, a inspiração no passado desencadeou um processo de geração do novo e não somente a imitação literal do modus vivendi ou das artes da Antiguidade. Em outras palavras, a conexão com o passado não procurou invalidar a experiência do presente. Em contrapartida, existiram também movimentos que buscaram a restauração do passado ao invés de sua inspiração para novos florescimentos. No caso da Igreja Católica, uma interpretação possível é a de que a instituição religiosa se acostumara contemplar o céu na medida em que tinha certeza da firmeza do solo sob seus pés. Em finais de século XIX, entretanto, viu-se diante de uma profunda mudança na relação de legitimação mútua que estabelecera com o poder temporal a ponto de sua sobrevivência ser questionada4. Neste quadro, destacaram-se como principais mudanças: separação entre Igreja e Estado em diversos países; liberalismo econômico; Direito Divino dos reis; liberdade de consciência estimulada pelo Iluminismo; redução do Estado Pontifício a um terço de sua extensão original; perda do foro privilegiado (que diferenciava os clérigos dos civis no plano jurídico); ensino laico; expulsão de ordens religiosas; casamento civil; leis de divórcio, em diversos países, além de divisões internas que levaram ao surgimento de grupos dissidentes, como os velhos-católicos; surgimento ou expansão de outras religiões; desenvolvimento das ciências e de estudos históricos, que inclusive conduziram à constatação de que os fatos narrados na Bíblia não são necessariamente históricos, ou seja, que questionaram a literalidade do livro sagrado do cristianismo. Os velhos-católicos não aceitaram a proclamação da infalibilidade papal, em 1870, no Concílio Vaticano I (BIHLMEYER; TUECHLE; CAMARGO, 1964, p. 513-564; TÔRRES, 1968, p.105-109). Diante deste quadro, uma questão era inevitável: o pescador tornaria a andar sobre as águas rumo ao desconhecido5 confiando somente na transcendência ou buscaria a segurança da terra firme? que o renascimento não foi um fenômeno único na cultura europeia. 3 “A diferença da Europa […] é que, para realizar estes avanços, no caso das artes, por exemplo, a cultura tinha que libertar-se parcialmente das restrições impostas por uma religião hegemônica e monoteísta (o cristianismo) e abrir-se para o mundo mais amplo da Grécia e Roma clássicas, que eram 'pagãs' ou politeístas” (GOODY, 2011, p.7). 4 “A imagem da Igreja Católica, no quartel derradeiro do século XIX, era o mais melancólico [sic] possível: prestes a desaparecer, voltava às catacumbas romanas de onde havia saído (TÔRRES, 1968, p.110). 5 “Logo depois, Jesus obrigou seus discípulos a entrar na barca e a passar antes dele para a outra margem, enquanto ele despedia a multidão. Feito isto, subiu a montanha para orar na solidão. E, chegando a noite, estava lá sozinho. Entretanto, já a boa distância,a barca era agitada pelas ondas, pois o ventos era contrário. Pela quarta vigília da noite, Jesus veio a eles caminhando sobre o mar. Quando os discípulos o perceberam caminhando 14 Diante da crise, encontraria meios criativos para um novo florescimento ou retornaria a uma situação anterior? Foi possível constatar, em investigação de mestrado (DUARTE, 2012a), a opção pela restauração de modelos musicais e litúrgicos do passado, por meio de dois movimentos, o Ultramontanismo e o Cecilianismo. Ambos buscaram a afirmação de identidades: o primeiro, de um modelo unitário e tridentino de catolicismo, ainda que em face da pluralidade de manifestações religiosas; o segundo procurava o retorno à música litúrgica “pura”, livre de elementos das músicas operística e sinfônica. Nestas opções, se observa o caráter conservador que marca a relação entre religiões e o passado à qual se referiu Goody. Tão logo se observem mudanças no olhar que as instituições religiosas têm de si mesmas (identidade ou autocompreensão), notam-se impactos em suas práticas musicais. Nestes contextos, também a alteridade da música sacra em relação a outros gêneros musicais pode ser reforçada ou atenuada. Esta distinção, obtida por meio da restauração de modelos do passado, se constata no motu proprio “Tra le Sollecitudini”, de Pio X (1903). Neste documento, o pontífice declarou o canto gregoriano como a música oficial da Igreja Católica e incentivou com igual interesse o resgate da música polifônica do século XVI, sobretudo aquela composta por Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), seja por meio de sua execução, seja como um modelo técnico e ideológico para os compositores no século XX (DUARTE, 2010b). Como se vê, o passado não serviu apenas de inspiração, mas foi literalmente restaurado. O repertório composto a partir de tais determinações ficou conhecido como restaurista, por sua profunda ligação com o passado6. O termo restauração foi empregado inclusive na legislação sobre as águas, ficaram com medo 'É um fantasma!' disseram eles, soltando gritos de terror. Mas Jesus logo lhes disse: 'Tranquilizai-vos sou eu, não tenhais medo!' Pedro tomou a palavra e falou: 'Senhor, se és tu, manda-me ir junto às águas até junto de ti!' Ele disse-lhe: 'Vem!' Pedro saiu da barca, e, caminhava sobre as águas ao encontro de Jesus. Mas, redobrando a violência do vento, teve medo, e, começando a afundar, gritou: Senhor, salva-me!' No mesmo instante, Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e lhe disse: 'Homem de pouca fé, por que duvidaste?'” (MATEUS, cap.14, vers. 22-31). Pedro, o pescador, é considerado o primeiro líder da Igreja católica e os pontífices o sucedem no comando da instituição, daí seu atributo de apostólica. Em termos técnicos da área de Teologia, os atributos da igreja em questão – una, santa católica e apostólica – são chamados de notas. 6 “Em decorrência dessa [Motu Proprio n. 4121 (22 de novembro de 1903)] e de outras determinações, a música até então utilizada nos templos católicos começou a ser substituída por composições do século XVI e inícios do século XVII ligadas ao estilo palestriniano e por um repertório – hoje conhecido como restaurista – composto por uma espécie de imitação desse estilo, mas à luz de procedimentos musicais disponíveis no século XX. Nesse tipo de música destacou-se, entre outros, Lorenzo Perosi (1872-1956), Mestre da Capela Sistina entre 1898-1915 e o italiano Furio Franceschini (1880-1976), Mestre de Capela da Catedral de São Paulo (Brasil) a partir de 1908” (CASTAGNA, 2000, p.115). “Compositores de música eclesiástica espanhola acolheram o Motu proprio com entusiasmo. Em um curto espaço de tempo, três conferências foram realizadas na Espanha para discutir a música sacra [...]. Assim, uma verdadeira geração de compositores espanhóis de música sacra emergiu, incluindo alguns compositores do século XIX ainda ativos ao tempo do Motu proprio, como o compositor catalão Domingo Mas y Serracant e Miguel Arnaudas, de Aragão. Os membros desta geração ocasionalmente escreveram outros tipos de música, mas a maioria de seus esforços se concentrou em restaurar a música religiosa ao lugar de dignidade. Eles foram adequadamente chamados de Geração do Motu proprio” (MARCO, 1993, p.84, tradução nossa). Texto original: “Composers of Spanish ecclesiastical music greeted the Motu proprio with enthusiasm. Within a very short time three conferences were held in Spain to consider sacred music […]. Thus a 15 eclesiástica, na Encíclica “Divini cultus”, de Pio XI, escrita por ocasião do jubileu do motu proprio, em 1928 (in A MÚSICA SACRA NOS DOCUMENTOS DA IGREJA, [2006], p.24- 25, itálico nosso): 6. E para que o clero e o povo obedeçam doravante mais exactamente àquelas leis e prescrições que em toda a Igreja devem ser santa e inviolavelmente observadas, temos por bem, pela presente Constituição, ajuntar alguma coisa que a experiência destes 25 anos nos sugeriu. E fazemo-lo tanto mais gostosamente porque este ano se celebra, como já dissemos, não só a memória da restauração da música sacra, mas também a de Guido de Arezzo. De outra parte, o florescimento de uma autocompreensão do catolicismo bastante diversa da anterior, na década de 1960, com maior participação dos fiéis na liturgia e abertura da Igreja à modernidade não parece ter prescindido totalmente do passado. Este florescimento sugere um olhar para o cristianismo em suas raízes, notoriamente menos institucionalizado. Na prática musical, os reflexos desta busca se observam em canções de uso litúrgico que tratam de uma espiritualidade baseada na ação e na realidade social. Destas, cita-se como exemplo a letra “Os cristãos tinham tudo em comum, dividiam seus bens com alegria. Deus espera que os dons de cada um se repartam com amor no dia a dia.” (ARQUIDIOCESE, 2001, part.44). Na partitura desta canção não se observa um acompanhamento escrito para órgão a três ou quatro vozes, como se via em partituras publicadas anteriormente, mas o uso de cifras, o que permite maior diversidade de instrumentos. Do mesmo modo, a tessitura deixou de privilegiar regiões extremas, sobretudo as agudas, para que a música pudesse ser cantada por toda a assembleia de fiéis. Ainda sobre os resgates do passado, vivenciei sua importância quando pude tomar parte de celebrações litúrgicas católicas, ao órgão ou regendo coros, entre 1999 e 2011. Diante da insatisfação pessoal com parte do repertório produzido entre as décadas de 1970 e 2000, ao invés de cogitar novos florescimentos, não raro busquei na música do passado a alternativa mais viável ou mais cômoda. Ao conversar com músicos que desempenharam funções análogas, constatei que estes compartilhavam de minhas concepções. Mais recentemente, no pontificado de Bento XVI (2005-2013) foi possível observar novas tentativas de restauração do passado, seja nos paramentos usados pelo pontífice, seja no consentimento dado por este pontífice para a realização de missas pelo rito tridentino, modelo true generation of Spanhish composers of religious music emerged, including some nineteenth-century composers still active at the time of the Motu proprio, such as the Catalonian composer Domingo Mas y Serracant and Miguel Arnaudas of Aragon. The members of this generation occasionaly wrote other types of music, but most efforts were concentrated on restoring religious music to a place of dignity. They were well called the Generation of the Motu proprio”. 16 anterior ao Concílio Vaticano II (1962-1965). Neste rito, o celebrante fica de costas para os fiéis e a celebração é realizada em latim ao invés do vernáculo. Resgates do passado na música e na liturgia católica como um todo são, portanto, questões atuais. Mais do que isto, parecem ser uma questão sem resposta definitiva, uma vez que as mudanças ocorrem todo o tempo e sempre se relacionam – por oposição ou restauração – com o que lhes precedeu7. Neste sentido: começos inteiramente novos são inconcebíveis, observa Paul Connerton, pois o excesso de lealdade e hábitos muito antigos impedem a substituição completa de uma temporalidade antiga por uma nova origem. Certamente o esquecimento pode ser decretado (novo calendário, lei de anistia), mas o decreto não se inscreve totalmente no corpo social. No entanto, isto não impedirá que os grupos e indivíduos imaginem ser possível abolir a continuidade da ordem temporal para instaurar um novo momento-origem que virá fundar suas identidades presentes (CANDAU, 2011, p.95). Se por um lado o passado pode ser ponto de partida para novos florescimentos (GOODY, 2011), ele pode também ser uma forma de conservar estruturas, de manter uma identidade ou a ordem estabelecida (CHAUÍ, 2000). Seja qual for seu objetivo, fica claro que quando resgatado, o processo não é inocente, mas pressupõe intencionalidade. O estudo de tais apropriações dos diversos passados por parte da Igreja se justificaria como simples curiosidade científica ou interesse pela proposição de um modelo de funcionamento se não existissem profundas implicações humanas dele decorrentes. Durante o período da chamada Romanização, a partir da segunda metade do século XIX, ocorreu, no Brasil, uma aversão a toda pluralidade de manifestações da religiosidade católica que não aquela que se pretendia hegemônica, sobretudo ao catolicismo popular, silenciando-se, como observou Gaeta (1997), até com o uso de força policial, práticas musicais e religiosas como reisados e congos, embora alguns deles tenham escapado a essa iniciativa. Esta atitude repressora refletia, no plano religioso, uma lógica de exclusão cultural e econômica que se observava na sociedade como um todo (ANZÉ; CARLINI, 2009). A partir da investigação realizada nos estudos de mestrado e da atividade musical em igrejas, delinearam-se gradativamente os problemas que deram origem à presente investigação: por que os resgates do passado e determinados esquecimentos intencionais que ocorreram na Igreja Católica, no Brasil, entre 1903 e 2013 foram formas de controle eficientes e 7 Em Nacional por subtração, ao rebater críticas feitas ao caráter postiço de modelos estrangeiros incorporados à cultura no Brasil, Roberto Schwarz (1987) apontou o quão fantasiosa é a ideia da criação que prescinde totalmente do passado ou de modelos. 17 contribuíram para a manutenção da instituição8? O repertório musical composto e/ou executado no Brasil neste período contribuiu para este processo de manutenção ou o refletiu? Quais os limites da eficiência deste processo? A hipótese inicial decorria dos estudos de mestrado. Tinha-se que o constante retorno ao passado pela via da imposição era uma operação que visava garantir a identidade da Igreja enquanto instituição e assim preservar sua existência. Neste panorama, a prática musical litúrgica colaboraria para a perpetuação do passado e conseqüentemente, para a reafirmação de um modelo único e europeu de liturgia. Em contrapartida, este passado se refletia neste repertório tanto em seus aspectos estilísticos, quanto ideológicos. Este repertório colaboraria ainda para a manutenção das relações de poder hegemônicas na sociedade, pois, na medida em que a Igreja não questionava tais relações, as legitimava. Finalmente, a apropriação do passado produziria uma prática musical de interesses institucionais que conflitam com a diversidade das manifestações religiosas e impunha um modelo intransigente de verdade, centrado em interesses institucionais. A hipótese decorria, entretanto, de uma pesquisa que se centrou na Igreja institucionalizada para analisar uma porção pequena de repertório, sem apresentar, entretanto, uma visão mais aprofundada da sociedade no período. Outras falhas decorrentes deste recorte (que agora vemos com maior clareza) dizem respeito ao tratamento do presente como simples consequência do passado e a consideração apenas dos movimentos hegemônicos em relação à estrutura do sistema como válidos. Assim, os chamados comportamentos aberrantes foram considerados ameaças, o que não necessariamente corresponde à realidade. Como poderia um catolicismo tão austero inspirado em um ideal medieval de unidade ter sobrevivido no século XX, em uma sociedade que professava sua crença no progresso científico-tecnológico? E mais, como poderia esta sociedade ouvir passivamente um repertório tão distante de seu tempo? Diante de tais questionamentos, a resposta que se insinuou ao final do mestrado não pareceu conclusiva, o que instigou anda mais a presente investigação. Os objetivos gerais desta tese são contribuir para a compreensão do processo pelo qual as práticas musicais se dão ao longo da história e resgatar nos registros do passado que se acumulam nos acervos musicais seu papel de testemunhas da história e não apenas de suportes materiais de obras para edição. Como todo conhecimento científico, este objetivo 8 O termo utilizado na formulação inicial do problema era “sobrevivência”, mas optamos pela substituição da noção de simples evitação da morte pela ideia de manutenção da vida, seja se preservando sua organização, seja alterando-a e se adaptando a novas situações. 18 geral é fruto da acumulação do conhecimento produzido na área, e não pode ser exaurido nas páginas de um único trabalho. Assim, busca-se aqui apresentar tal contribuição no âmbito da música litúrgica católica. Constituiu o objetivo específico – exequível no âmbito desta tese – a proposição um modelo de funcionamento do repertório musical católico no século XX e início de XXI (1903-2013) na perspectiva de resgates e abandonos do passado – ou, um dentre os passados possíveis –, tanto em sua produção e execução, quanto na maneira como foi pensado por músicos, clérigos e pela sociedade. Note-se que o marco inicial da delimitação temporal aqui proposto não coincide – como o título da tese pode sugerir – com o início do pontificado de Pio X, mas com a promulgação de seu motu proprio, que passou a disciplinar a música da primeira metade do século XX. O marco final foi a renúncia de Bento XVI ao cargo mais alto da hierarquia católica. Por estar em curso – e se encontrar ainda no início –, quaisquer análises relativas ao pontificado de Francisco podem ser imprecisas. Quanto à delimitação geográfica, adotou-se a Igreja Católica no Brasil. Apesar das proporções monumentais do país e de toda a diversidade de manifestações do catolicismo que ele comporta – algumas delas mais ligadas a regiões específicas, como certos sincretismos religiosos –, buscou-se apresentar movimentos hegemônicos de caráter nacional e eventualmente comparar esta grande memória institucionalizada à dos grupos minoritários ou divergentes9. Para este fim, foi fundamental considerar na Conferência Geral dos Bispos do Brasil – CNBB um organismo que garante alguma unidade ao catolicismo no país. Por outro lado, se fez necessário relacionar os resgates e abandonos do passado ocorridos na prática musical litúrgica no Brasil com eventos que ocorreram também em âmbito geral na Igreja. Foram adotados os procedimentos bibliográfico e documental, compreendendo-se a música como uma fonte de memória e fonte para a compreensão da história, bem como a história e a memória social como fontes para a compreensão desta (MORAES, 2000; ANDRADE; VAZ, 2011; ATTALI, 2001; HALBWACHS, 1990; MORAES; MACHADO, 2011; WHITAKER, 9 “Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à 'Memória oficial', no caso a memória nacional. […] Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes. […] Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais frequência esse problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante.” (POLLAK, 1989, p.4-5). 19 2010). A investigação das fontes musicais se deu por meio de pesquisa de campo em setenta cidades brasileiras, sendo pelo menos uma em cada Estado da Federação e Distrito Federal. Merecem destaque os pocedimentos relativos a tal pesquisa: 1. O mapeamento de possíveis cidades onde poderiam ser encontradas fontes musicais e documentais textuais que servissem à pesquisa. Este mapeamento foi realizado considerando preferencialmente as dioceses instaladas anteriorermente ao Concílio Vaticano II para que as eventuais fontes nelas encontradas permitissem a abrangência temporal pretendida nesta tese. 2. Dentro de cada cidade, o mapeamento de possíveis instituições que poderiam salvaguardar tais fontes. A definição de tais instituições não foi homogênea ao longo da pesquisa, mas se construiu a partir dela, sendo, portanto, um fruto da própria pesquisa. As principais instituições consideradas foram: arquivos (arqui)diocesanos, catedral e paróquias mais antigas, arquivos públicos municipais, bibliotecas municipais, museus de arte sacra, bandas de música, colégios religiosos, faculdades católicas e públicas, seminários, sede de províncias e casas de religiosos e museus municipais. E nas capitais, além das instituições já referidas, biblioteca pública estadual (quase todas possuindo uma sessão de obras raras), arquivo público estadual e museu estadual. Quandos indicados em alguma instituição, acervos particulares foram investigados, fosse junto a seus titulares ou, em caso de falecimento destes, junto às congregações a que os cérigos pertenciam ou, sendo leigos, junto a seus familiares. 3. Localização das instituições do espaço urbano e deslocamento até elas – sendo que em vários casos o endereço previamente pesquisado estava desatualizado, gerando uma pesquisa local com os moradores. Encontrada a instituição, se realizava uma explicação de qual o tipo de investigação realizada, suas finalidades e qual o material procurado. Buscou-se também providenciar cartas de apresentação da instituição de ensino – em formato digital – para as instituições visitadas que assim exigiram a fim de que a pesquisa fosse realizada. 4. Nas instituições visitadas foi realizado o levantamento do repertório composto ou executado no Brasil no período estudado que ali estava recolhido, e que pudesse ser representativo, senão da totalidade do país, ao menos das instituições e cidades visitadas; 5. Registrou-se o repertório encontrado e as informações extramusicais encontradas em livros de fábrica e de tombo, em relatos episcopais, normas etc., que se encontram nos acervos, por meio de fotografia e transcrição, bem como em formatos audiovisuais. Sobre os procedimentos de análise dos dados obtidos em pesquisa de campo e por meio de pesquisa bibliográfica, realizou-se: 20 1. Comparação, sobretudo por meio de pesquisa bibliográfica, entre os casos observados no Brasil com fenômenos internacionais mais abrangentes a fim de constatar ou não a existência de resgates locais diversos dos globais; 2. Levantamento e análise de registros em periódicos voltados para a música litúrgica católica, dentre os quais se destacam os dois de título Música Sacra publicados em São Paulo (1908- 1912) e em Petrópolis (1941-1959), Musica Ecclesiastica (São Paulo, 1936) e outros que serão oportunamente citados; 3. Datação, na medida do possível – recorrendo inclusive a marcas d’água – das fontes musicais encontradas nos acervos, que serão utilizadas como exemplos ao longo da tese; 4. Análise da relação entre a Igreja, o poder temporal e a sociedade brasileira por meio de fontes primárias e secundárias; 5. Questionamentos acerca do modo pelo qual as memórias e esquecimentos no âmbito musical foram ferramentas de controle social e; 6. Reflexão sobre o papel do pesquisador e do músico profissional no âmbito litúrgico diante da realidade atual. Apesar de a investigação ter como base uma quantidade grande de fontes, disponíveis em acervos de setenta cidades do Brasil, não se optou pela historiografia serial, quantitativa. A opção por outras vias de abordagem do material se deve, em parte, pela diversidade de tipologias ou finalidades dos acervos (arquivos pessoais, coleções, arquivos eclesiásticos e públicos etc.), também por suas delimitações temporais e, em parte, pelo alinhamento deste autor às teorias adotadas. As principais teorias e conceitos adotados serão tratados no primeiro capítulo da tese, mas cabe aqui apresentá-los de forma sucinta para justificar suas escolhas. A primeira delas já se delineou nesta introdução até o momento: a teoria de sistemas sociais procura evidenciar as conexões estabelecidas entre as partes e níveis que compõem tais sistemas tanto quanto suas partes. Estas conexões ou relações ocorrem não somente entre as partes internas, mas resultam também da comunicação que o sistema estabelece com o entorno. Da capacidade de comunicação resulta a característica de “funcionalmente aberto”, pois possibilita que o sistema receba estímulos vindos de fora. A forma como este sistema lida com os estímulos do entorno permite classificá-lo como “operacionalmente fechado” ou “operacionalmente aberto”: no primeiro caso existe uma opção do sistema pela preservação de suas características (identidade), que se opera por meio da rejeição aos estímulos que lhe 21 desencadeiem mudanças estruturais, ao passo que, na segunda situação, prevalece a aceitação de tais estímulos. A abordagem sistêmica previne em relação a uma excessiva simplificação que consideraria existência de uniformidade em uma instituição na qual as pessoas envolvidas têm pensamentos diferentes. Ademais, não foram eliminadas as possibilidades de cooperação ou de conflitos, mas não foram limitados a tais tipos puros os meios pelos quais todos os sistemas sociais se preservam10. Walter Buckley ([1971], p.31) chamou a atenção para o fato de a simplificação gerada pela ótica exclusiva da cooperação ser a base da “tipologia 'militarista-industrial' da evolução societal, de Spencer”. O nível particular de organização biológica escolhido como base para modelo da sociedade determina (ou pode ser determinado por isso) se vemos a sociedade como predominantemente cooperativa ou basicamente conflitual. Se a sociedade for como um organismo, as suas partes cooperarão e não competirão na luta pela sobrevivência, mas se a sociedade for como um agregado ecológico, será mais aplicável o modelo darwiniano (ou hobbesiano) de luta competitiva. Spencer optou pela primeira. […] Por outro lado, o darwinismo social é mais largamente conhecido pela ênfase oposta: a elevação “natural” e inevitável dos indivíduos mais aptos na luta social competitiva. O modelo agora é a espécie, não o indivíduo. Assim, a controvérsia atual que se registra em torno do modelo de conflito, em oposição ao de consenso, reflete-se nos aspectos duplos do modelo biológico, tão confusamente baralhado pelos teoristas sociais (BUCKLEY, [1971], p.30-31). Vale a pena destacar que o darwinismo social foi uma tentativa de transpor para a esfera das sociedades (humanas ou animais) o comportamento individual de evitar a morte ou de “sobrevivência” e não de uma “luta pela estrutura” ou pela “perpetuação do genótipo”, que é o que de fato ocorre nas sociedades e foi pensado por Darwin, como observaram Lester Ward e Collin Pittendrigh (apud BUCKLEY, [1971], p.30). Não há de se falar, portanto, somente em conflito e superação ou somente em cooperação entre partes, mas, em face de situações de conflito, negociações, aberturas e fechamentos deste sistema às provocações de seu entorno. Niklas Luhmann (1995) foi adotado como referencial teórico por conferir aos sistemas características dos seres vivos de se comunicar e interagir com seu entorno e a partir desta interação, preservar sua identidade, se fechando a eles (fechamento normativo), ou se modificando (abertura cognitiva). A partir de uma visão sistêmica que considera igualmente a importância das estruturas e dos 10 “Os chavões da luta e da sobrevivência, até para os biólogos profissionais, focalizaram a atenção em aspectos secundários do processo histórico, por meio do qual se acumula a informação genética. Focalizaram-se em indivíduos – quando deveriam ter focalizado em populações; focalizaram-se na evitação da morte (perpetuação do indivíduo) – quando a deveriam ter focado na reprodução (perpetuação do genótipo)” (PITTENDRIGH apud BUCKLEY, [1971], p.30). 22 processos pelas quais elas passam, surgia como dificuldade metodológica definir ou diferenciar as aberturas ou novos florescimentos das restaurações do passado. Esta questão foi abordada no ultimo capítulo, como ruptura e continuidade. Por enquanto, cabe dizer que, em determinados casos as rupturas são bastante claras, mas em outros, elas se encontram em uma zona cinzenta e são passíveis de discussões. A clareza se notava, por exemplo, nos paramentos de séculos anteriores utilizados por Bento XVI e em seus gestos, que rememoravam as missas pré-conciliares. No tocante aos elementos musicais do repertório estudado, a dificuldade se tornou evidente. Até que ponto seria possível afirmar com segurança que as músicas cantadas em celebrações carismáticas católicas atuais não guardam elementos dos cantos religiosos populares estimulados, sobretudo, nas décadas de 1940 e 50, como as melodias e letras simples, de caráter estrófico e uso de refrões e que se mantiveram mesmo durante a Teologia da Libertação? Por outro lado, o não-uso de ritmos brasileiros tradicionais em detrimento das características da música pop urbana poderia revelar rupturas com o movimento imediatamente anterior. Diferenciar ruptura de continuidade foi um critério, portanto, fundamental na elaboração deste trabalho. Estas certamente não são categorias estanques e absolutas, mas observando-se as mudanças estruturais a posteriori, ou seja, constatando mudanças na autocompreensão da Igreja o surgimento de grandes movimentos, se tornou possível observar o resgate de movimentos anteriores total ou parcialmente interrompidos. O procedimento levou em consideração, portanto, a via da alteridade: elegendo-se dois momentos distintos nos quais a organização do sistema social foi comparada, suas conexões e, sobretudo, os resgates e abandonos do passado por parte deste sistema puderam ser analisados. Assim, procurou-se trabalhar com determinados marcos históricos sem perder de vista que os processos de adaptação, de desestruturação e reestruturação do sistema são constantes. O motu proprio de Pio X sobre a música sacra foi exemplo de marco, pois cristalizou, em 1903, um processo de mudanças em curso durante parte do século XIX. Os aparentes momentos de superação apenas funcionam, portanto, como balizas temporais para as análises. Ainda sobre os critérios adotados, não se deve tomar as noções de florescimento e restauração como tipos puros e opostos, mas, em certa medida, complementares, uma vez que o resgate de memórias implica o abandono de outras e, mesmo em processos de florescimentos, será inevitável relacionar-se com algum passado. Dentro da abordagem sistêmica, as partes e suas conexões devem ser consideradas. A partir deste referencial, não seria coerente adotar referenciais teóricos oriundos da História que 23 apenas privilegiassem o coletivo em detrimento do individual ou o contrário. Estas visões implicariam, respectivamente, o enfoque dado somente aos grandes movimentos de cunho estrutural ou aos eventos históricos isolados e seus autores. Deste modo, para a melhor compreensão das relações entre história, memória e esquecimento, recorreu-se, dentre outros, a autores da Escola dos Annales, sobretudo Le Goff (1999) e Nora (1981). Segundo Nilo Odália (in BURKE, 2010, p.8), A necessidade de uma história mais abrangente e totalizante nascia do fato de que o homem se sentia como um ser cuja complexidade em sua maneira de agir, pensar e sentir não podia reduzir-se a um pálido reflexo de jogos de poder, ou maneiras de sentir, pensar e agir dos poderosos do momento. Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era portanto menos redescobrir o homem, do que, enfim descobri-lo na plenitude de suas virtualidades, que se inscreviam concretamente em suas realizações históricas. […] Como em Michelet, não se desprezava o subjetivo, a individualidade, como em Marx ou em outros historiadores que assentavam suas análises no econômico e no social; não se esquecia que estruturas sempre têm algo a dizer a respeito do homem; e como Burckhardt, afirmava-se que o homem não se confinava a um corpo a ser mantido, mas também um espírito que criava e sentia diferentemente, em situações diferençadas. A inspiração em autores dos Annales se justificou pela coerência em relação à teoria dos sistemas sociais adotada. Nas palavras de Hebert Blumer (apud BUCKLEY, [1971], p.42), O ser humano não é arrastado de um lado para outro, como unidade neutra e indiferente, pela operação de um sistema. Como um organismo capaz de auto- interação, forja as suas ações por um processo de definição que envolve escolha, avaliação e decisão... As normas culturais, as posições de status e as relações de papel são apenas quadros de referência, dentro dos quais se verifica aquele processo de transação formativa. A possibilidade de autonomia do indivíduo em face das conjunturas11 e de negociação com os modelos impostos refletem convicções pessoais acerca da responsabilidade de cada indivíduo para as mudanças nos sistemas sociais aos quais se integra, e não somente dos grandes movimentos. Esta foi certamente a maior contribuição pessoal retirada da realização desta investigação: mais que do pretender analisar objetivamente a “verdade” das relações sociais, foi possível concluir que a escolha de referenciais teóricos reflete a visão de mundo do pesquisador12. O leitor não deverá perder de vista, portanto, que, à parte dos grandes movimentos estruturais aqui descritos, a potencialidade decorrente da liberdade e criatividade humanas é capaz de 11 Ao conjunto isolado de todas as escolhas feitas por um indivíduo dentro de um sistema adaptativo complexo, Buckley ([1971], p.131) chamou complexão. Do mesmo modo, Ashby e Rothstein chamaram a atenção para a existência de graus de liberdade das partes que compõem um sistema social adaptativo complexo, que poderiam variar de um mero agregado de elementos até uma estrutura rigidamente fixa. 12 “As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas” (CHARTIER, 2002, p.17, itálico nosso). 24 transcendê-los ou ao menos oferecer alternativas a eles. De que outra forma se explicaria a sobrevivência de manifestações do catolicismo popular (inclusive de suas práticas musicais próprias) mesmo diante de fortes repressões da Igreja institucionalizada, sobretudo em finais do século XIX e nas duas primeiras décadas do XX? Ou, de que maneira, nas cidades históricas de Minas Gerais, a prática musical de um repertório que cairia em desuso oficialmente com o motu proprio – de 1903 – encontra simpatia, ainda hoje, entre a população destas cidades, senão pela autonomia dos indivíduos em face das conjunturas? Uma vez que se têm claras as potencialidades das pessoas, mesmo diante de movimentos hegemônicos sempre é possível encontrar alternativas. Foi o que constatou Arthur Herman ao tratar do pessimismo que se instalou em determinadas classes de pensadores ao longo do século XX13. A crítica de Herman recaiu também sobre as concepções holísticas da sociedade como sistemas ou organismos14, uma vez que elas também procuraram tratar todas as questões a partir de visões estruturais que retiraram dos indivíduos sua autonomia. Esta questão pode ser respondida, em parte, pela crítica aos modelos de sistemas orgânicos que aludem somente a um comportamento de indivíduo vivo (sobrevivência) ou que enfocam somente a cooperação entre os membros dos grupos. Procurou-se escapar à crítica de Herman também por meio da adoção de um modelo no qual o equilíbrio não é a única possibilidade de um sistema, mas também a recriação e adaptação. Ademais, evitamos o recurso heurístico de pressupor homogeneidade dentro dos sistemas, considerando a diversidade de convicções, opiniões e posicionamentos individuais das pessoas que os integram. 13 “Apesar das diferenças políticas, os dois movimentos [direita e esquerda] são muito mais semelhantes. O marxismo crítico, o multiculturalismo, o pós-modernismo e o ambientalismo radical não só partilham de muitos dos mesmos heróis, como na 'revolução de direita' – Friedrich Nietzsche, Georges Sorel, Martin Heidegger, Arthur Schopenhauer – mas também o mesmo desprezo pelas tradições liberais e racionais da Europa pós- iluminista. Eles rejeitam qualquer noção de progresso social 'normal' de acordo com o padrão ocidental, como os predecessores de direita, eles vêem a crença da autonomia do indivíduo; na posse da propriedade privada como um direito natural fundamental; na ciência e na tecnologia como favoráveis à felicidade humana; e na busca da felicidade como atividade essencialmente racional – como uma fonte de corrupção, exploração e morte. […] Esta é a base do pessimismo cultural hoje. Sua base primária está, evidentemente, entre intelectuais e o que por vezes chama-se a 'classe nova': professores estudantes, artistas, escritores e profissionais da mídia. Não se trata de modo algum de um movimento político de massa. […] Deste modo, nossos radicais e ditos progressistas não vêm a ser tão progressistas assim […] são de fato egressos de uma visão século XIX da sociedade na qual o Ocidente moderno é um todo predeterminado criado pelas forças impessoais de raça, classe, sexo e nação. Uma visão alternativa da sociedade e da ação social, uma das raízes do Iluminismo e uma tradição humanista anterior, não está muito em evidência hoje em dia” (HERMAN, 1999, p. 463-464;467). 14 “Entendo como 'retóricas holistas' o emprego de termos, expressões, figuras que visam designar conjuntos supostamente estáveis, duráveis e homogêneos, conjuntos que são conceituados como outra coisa que a simples soma das partes e tidos como agregadores de elementos considerados, por natureza ou convenção, como isomorfos. Designamos assim um reagrupamento de indivíduos (a comunidade, a sociedade, o povo), bem como representações, crenças, recordações (ideologia X ou Y, a religião popular, a consciência ou a memória coletiva) ou ainda elementos reais ou imaginários (identidade étnica, identidade cultural). Essas retóricas holistas fazem parte da herança de nossas disciplinas (Sociologia, Antropologia Social e Cultural) que, no quadro de problemas integrativos e de esquemas de pertencimento, constituíram uma boa parte de seus vocabulários na era industrial, quer dizer, nas eras das massas representadas (pensadas) como entidades coletivas” (CANDAU, 2011, p.29). 25 Pois assim como a personalidade humana é capaz de abrigar imponderáveis incompatibilidades no que concerne a ideias, crenças, atitudes e ideologias, sem que isto influa na eficácia do seu funcionamento, assim também os sistemas sociais podem abarcar diversidades e incompatibilidades, embora se mantenham surpreendentemente persistentes por longos períodos (BUCKLEY, [1971], p.35). Dar crédito às forças endógenas de um sistema social, ou seja, às potencialidades humanas parece ainda uma estratégia de propor ações para a solução de problemas ao invés de somente discursos de mobilização de coletividades. Assim, não há de se acusar o olhar sistêmico lançado sobre a realidade de um menor comprometimento com a mudança mesma, mas se constata, neste, o surgimento de estratégias próprias para a proposição de mudanças. Esta parece ser a maior contribuição que a presente investigação poderá ter para o leitor enquanto sujeito integrado não a um, mas a diversos sistemas sociais decorrentes das conexões que estabelece. Uma vez que fique clara esta visão de responsabilidades e virtualidades, a forma de se relacionar com os sistemas se altera de modo a se tornar mais eficiente, alterando-se, em consequência, o próprio sistema. Em outras palavras, as mudanças sociais decorrentes dos comportamentos individuais também podem resultar em uma poderosa contribuição para o sistema social como um todo. Foi possível constatar empiricamente o impacto das mudanças pessoais em determinados sistemas religiosos locais (igrejas), uma vez que a realização desta investigação gerou um gradativo e profundo processo de reflexão, que excedeu os limites do repertório executado. Ao invés de antepor à música o gosto pessoal disfarçado de juízo estético ou crítica musical, tento agora percebê-la como portadora de memórias de determinados momentos históricos nos quais o compositor realizou opções musicais, e não mais as ouço comparando-as, a priori, com outras músicas ou gêneros de composição. O autor desta tese passou a considerar as relações que as demais pessoas envolvidas nas práticas musicais de caráter religioso estabelecem com o repertório que não necessariamente aquelas racionais ou formais do ponto de vista litúrgico, mas considerando, sobretudo, o envolvimento afetivo a música pode gerar. Este envolvimento que serve como recompensa primária pode ser um agente poderoso capaz de conduzir à protomemorização do repertório, processo este que se mostra, muitas vezes, mais eficiente do que a estrita obediência aos cânones. Estas duas mudanças de perspectiva conduziram a atitudes geradoras de impactos em nível sistêmico: ao considerar negociações (releituras e arranjos) nos processos de escolha do repertório ao invés da imposição pura e simples de modelos do passado, a melhora das relações interpessoais passou a favorecer a eficiência da prática musical. 26 Se por um lado, o passado comum das partes pode representar uma conexão entre elas15, por outro, não se pode esquecer o seu uso com a finalidade de preservar certa “ordem” no sistema. Para tentar compreender tal fenômeno, recorreu-se às noções de tradição inventada de Eric Hobsbawm (2002) e de mito fundador (CHAUÍ, 2000), que serão oportunamente apresentados e relacionados ao tema estudado. Também será abordada a memória coletiva (HALBWACHS, 1990; CANDAU, 2011) e as relações de poder e autoridade que dela podem decorrer16, uma vez que esta pode tanto privilegiar grupos minoritários que precisam se preservar, quanto reafirmar relações de poder hegemônicas: A propósito da ligação entre memória e poder, "a expressão coletiva da memória, ou melhor, da metamemória [parte da memória que “define as representações que o indivíduo faz de sua memória e reconhecimento, expressando como cada um constrói sua identidade e sua distinção em relação aos outros, a partir do passado”], não escapa à manipulação dos poderes mediante a seleção do que se recorda e do que consciente ou inconscientemente se silencia".4:59 Essa seleção entre recordação e silêncio evidencia que a memória, embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, é objeto de contínua negociação porque está atrelada à seleção do que é essencial para construção da identidade do grupo (SANTOS et al., 1990). Ainda neste sentido, o epíteto de História e Memória de Le Goff (1990, p.477) evidencia a importância da memória enquanto instrumento de libertação ou servidão humana e delineia um desafio ético daqueles que a estudam: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”. Espera-se, assim, que a presente investigação possa trazer alguma contribuição neste sentido nos campos da historiografia da música ritual e da prática musical litúrgica: senão soluções prontas, ao menos estímulos para que se possa encontrá-las. Esta tese tem como uma de suas principais contribuições para a área de música e, sobretudo, da musicologia histórica, a metodologia interdisciplinar adotada: a partir de referenciais da História, da Antropologia social e da Sociologia jurídica – mesmo conhecendo os riscos de imposturas intelectuais que muitas vezes conceitos nômades entre ciências podem gerar 15 Segundo Robert McIver (apud BUCKLEY, {1971], p.26), “qualquer sistema social, a todo momento e em toda parte, é sustentado por códigos e instituições, tradições e interesses”. 16 A distinção entre poder e autoridade utilizada neste trabalho se baseia em Buckley ([1971], p.264), que a realizou a partir dos seguintes critérios: nas relações de poder ocorrem o controle ou influência sobre as ações dos indivíduos para que sejam atingidas metas privadas (individuais ou de pequenos grupos dentro dos sistemas sociais) sem o conhecimento ou a compreensão destes indivíduos, ou mesmo contra sua vontade. Em contrapartida, a relação de autoridade pressupõe a direção ou controle dos comportamentos coletivos para que se alcance metas coletivas. Este comportamento colaborativo se baseia no consentimento informado e voluntário, pois existe uma identidade de orientação entre quem controla e quem é controlado, não carecendo o uso de força bruta, manipulação de símbolos, informação e condições ambientais ou até mesmo o condicionamento a recompensa como ocorre nas relações de poder. 27 (SOKAL, BRICMONT, 1999) – foi possível analisar de maneira sistemática as questões da memória, esquecimento e identidade a partir de uma grande quantidade de dados provenientes das fontes primárias consultadas. Em outras palavras, este trabalho aponta para a necessidade de equilíbrio entre a pesquisa de campo para a obtenção de dados realmente capazes de refletir a realidade – mais de trinta mil fotos de fontes primárias, a partir da visita às mais diversas categorias de instituições em busca de acervos musicais, consulta a acervos digitais e catálogos – e o embasamento teórico para sua análise. Em relação ao tema adotado, a maior contribuição constatada diz respeito à produção inédita de uma historiografia de média duração onde até então foram exploradas autocompreensões e períodos isoladamente, bem como autores ou obras específicos. Ao contrário dos séculos anteriores, aos quais alguns autores dedicaram trabalhos mais abrangentes (CASTAGNA, 2000; GODINHO, 2008; MACHADO NETO, 2008), a abordagem de fragmentos gerou uma história descontínua da prática musical litúrgica católica no século XX. Este tipo de história implica a descontinuidade não somente em sua produção – historiografia –, mas também no modo como é lida. Nas palavras de Paul Marie Veyne (apud CANDAU, 2011, p.136), “o historiador pode escrever duas linhas sobre dez anos. O leitor terá confiança, pois presumirá que esses dez anos são vazios de acontecimentos”. O Concílio Vaticano II foi compreendido aqui como marco histórico no qual um processo de mudanças que já se observava na década de 1940 se tornou oficial e não como um evento inédito de ruptura. Do mesmo modo, o motu proprio de Pio X ou a proclamação do dogma da Imaculada Conceição em finais do século XIX oficializaram processos há muito iniciados – no caso da Imaculada Conceição, desde a Idade Média. Uma vez que se pensa nestes eventos como marcos, poderiam ser citados os seguintes trabalhos referentes à música produzida entre eles: as dissertações de Andrey Batista (2009) sobre a obra musical do franciscano Bernardino Bortolotti (1896-1966) e a cena musical em Lages-SC, de Susana Igayara (2001), sobre a Missa de Requiem de Henrique Oswald; já à Missa em Dó menor, de Oswald, dedicou-se Vastí Atique Ferraz de Toledo (2009); Thiago Santos da Silva (2012) tratou da música sacra de Francisco Braga, enfocando a obra Te Deum Alternado, de 1904. Citamos ainda nossa própria dissertação (DUARTE, 2012a), sobre as missas de Furio Franceschini, compositor que também foi estudado na tese de José Luis de Aquino (2000), que tratou de suas composições para órgão. Ainda, os artigos de Léa Freitag (1981) sobre a restauração musical em São Paulo a partir da atuação de Franceschini, e de Guilherme Goldberg (2006), que tratou da restauração musical ao abordar a visão de Alberto Nepomuceno sobre a música 28 sacra. A tese de Teodoro Hanicz (2006) teve caráter geral, mas revelou a importância de aspectos musicais no processo de restauração do catolicismo em Curitiba, entre 1929 e 1959. Na via contrária, de temática religiosa, mas dissociadas, aparentemente, uso litúrgico, as obras sacras de Villa-Lobos compostas entre 1948 e 1952 foram abordadas na dissertação de Sheila Previato de Alencar (2006). Entre o Concílio Vaticano II e o pontificado de Bento XVI, foram produzidas as dissertações de Amstalden (2001), sobre a música na liturgia católica urbana após o Concílio Vaticano II; de Angélica Lessa (2007), sobre a Missa Ferial de Osvaldo Lacerda, composta em 1966; de Angelo José Fernandes (2004), que abordou aspectos interpretativos da Missa Afro Brasileira (de Batuque e Acalanto) de Carlos Alberto Pinto Fonseca, de 1976; de Joaquim Fonseca de Souza (2008) e de Gabriel Bina (2006), ambas sobre música litúrgica e inculturação; de Almeida (2009), sobre a mistagogia da música ritual católica. Marco Amorelli (2010) tratou da interrupção das atividades de uma prática musical. Centrado nas atividades do Schola Cantorum do Rio de Janeiro, Amorelli abordou o silenciamento do coro nos contextos social e religioso que marcaram o Concílio Vaticano II, explorando os conceitos de tradição e inovação. Música e Movimentos Sociais: as marcas da simbologia religiosa no MST de Marivone Piana (2009) considera a prática musical católica pós-conciliar não como um fenômeno brasileiro, mas relacionando-o à América Latina, região em que se observou o florescimento da Teologia da Libertação. Nesta mesma linha, a dissertação de Paulo da Silva Pereira (2002), Projetos políticos e estratégias de educação na Igreja Católica no Brasil e na América Latina deu particular enfoque ao contexto da teologia da Libertação. Nesta, a música figura em plano secundário. No espírito da atuação social da Igreja, mas voltada para a comunicação social, cita-se a dissertação Otávio José Klein (2000), A Campanha da Fraternidade no ar: Estudo da Campanha da Fraternidade de 1999, em três emissoras de rádio católicas, na Diocese de Passo Fundo – RS. Henriete Aparecida da Fonseca (2003) e André Ricardo Souza (2005) abordaram a música popular na liturgia católica, enfocando o fenômeno dos padres cantores. Nas relações entre música, Igreja e mídia, Hélide Campos (2001) abordou os casos da Igreja Universal do Reino de Deus e da Renovação Carismática Católica, temática também abordada por André Ricardo Souza ao estudar os padres cantores. No viés da comparação entre manifestações católicas e evangélicas, há ainda O espírito do som: música e religião em grupos de renovação carismática católica e igrejas pentecostais em Itaboraí (Rio de Janeiro) de Maria Goretti 29 Oliveira (2008). Sobre um florescimento que talvez represente uma continuação das práticas das festas religiosas desde os tempos de colônia e, em parte, uma abertura a novos elementos seculares, Luzia Sena (2011) escreveu Dançando para Deus: música e dança a serviço da fé nas cristotecas católicas. Abordando a existência de limites ou não entre sagrado e profano – tratado nesta tese pelo referencial da identidade –, Paulo Martins da Silva Sobrinho (1997) redigiu a dissertação O Outro lado da música sacra, sua relação com elementos seculares. Do ponto de vista da criação de obras musicais, cita-se Ad Vigiliam et Missam Paschalem: Estratégias para a composição de música sacra litúrgica cristã no século XXI, de Márcio Steuernagel (2008), e A Música litúrgica brasileira pós-Concílio Vaticano II: uma abordagem composicional, de Marco Antonio Feitosa (2012). Ainda no campo da criação e das práticas musicais no presente, Zanandréa (2009) tratou dos desafios na formação de agentes de música e canto na diocese de Vacaria-RS. Algumas práticas certamente contrariaram ou ainda contrariam as tendências de caráter estrutural, observadas a partir das autocompreensões da Igreja, preservando-se em períodos de adversidades ou sendo resgatas após alguma interrupção. Estas práticas foram, geralmente, abordadas, sobretudo, pelo viés da etnografia e etnomusicologia, em estudos que revelam as relações entre música e cultura. De caráter mais administrativo ou litúrgico do que musical, é possível citar os seguintes trabalhos de Faustino (1996), Brandão (1981) e Gaeta (1997), referentes ao catolicismo popular. Também neste âmbito geral, Juliano Alves Dias (2011) escreveu sobre a restauração litúrgica pretendida por Bento XVI. Acerca de manifestações específicas do catolicismo popular e suas práticas musicais, citam-se: A cantiga das beatas do ofício das Sete Dores de Maria Santíssima, Juazeiro do Norte, de Maria Angélica Rodrigues Ellery (2002), A sagrada obediência do cantar os mortos: um estudo da função do canto funébre na sentinela no Cariri, de Ewelter Rocha (2002), “Festa da Boa Morte” e glória: ritual, música e performance, tese de Francisca Marques (2009), A Louvação das prostitutas do Jacuípe ao glorioso São Roque, de Lourdisnete Benevides (2003). Abordada por Benevides do ponto de vista das artes cênicas, esta última manifestação é particularmente interessante tanto pela situação social de exclusão de suas protagonistas em relação aos preceitos morais defendidos no catolicismo, quanto pelo caráter sincrético entre catolicismo e candomblé. A Apropriação de uma Tradição: um estudo sobre o Festival de Música Folclórica de Santa Rosa do Tocantins/TO de Eliane Souza (2005) aborda o processo de sobrevivência de tais tradições, bem como a noção de continuidade ou não das mesmas no seio de cada comunidade em que se originaram. Ewelter Rocha (2012) também redigiu a tese 30 Vestígios do sagrado: uma etnografia sobre formas e silêncios na qual foram abordados, dentre outras manifestações musicais, os benditos, em Juazeiro do Norte-CE. Em relação ao resgate de práticas musicais, merece destaque a dissertação de Edésio Lara Melo (2001) que acompanhou, desde a década de 1950, a semana santa em cidades mineiras dos Campos das Vertentes, onde o repertório musical do século XVIII tem, hoje, uso corrente. Em sua tese de doutorado, Melo (2013) abordou o tema As Marchas Fúnebres e sua contribuição para o processo de tradicionalização das manifestações religiosas e culturais em Minas Gerais. Especificamente sobre órgãos, e abordando, inevitavelmente, a música sacra, Dorotéa Kerr (2006) procurou traçar uma história de maior abrangência em sua tese de livre-docência. Os trabalhos que versam sobre o repertório e práticas musicais pós-conciliares foram escritos nas áreas de História, Antropologia Social, Comunicação Social, Ciências da Religião, Teologia e Música, revelando maior interdisciplinaridade do que os trabalhos que abordaram o período delimitado entre 1903 e início da década de 1960, escritos quase exclusivamente na área de Música. A causa para esta diferenciação parece residir no valor atribuído ao repertório: enquanto músicos esperam lidar com modelos que apresentem uma proposta estética com a qual se identifiquem ou que consigam ao menos identificar claramente, os estudiosos das demais áreas buscam olhar para o repertório em suas relações com o contexto religioso. Disto resultam abordagens muito diferentes, mas igualmente parciais do fenômeno musical: a primeira assume caráter mais próximo do analítico-musical, pois traz o repertório para o centro e pouco valoriza as condições de sua produção; a segunda aborda as relações entre a música e a religião sem “ouvi-la” em seus elementos propriamente musicais. Igualmente parcial é a visão fragmentada da história, que não dá a dimensão do processo pelo qual as mudanças no repertório musical se operaram, mas sugere a ruptura radical entre vertentes de pensamentos ou centra a história somente em indivíduos e suas realizações. A historiografia que versa sobre a Igreja Católica enquanto instituição é vasta e dela destaca- se apenas três trabalhos que propõem abordagens bastante diferentes entre si: Bihlmeyer, Tuechle e Camargo (1964) propuseram um compêndio de história da Igreja com enfoque na instituição, Eamon Duffy (1998) enfatizou o poder de decisão dos pontífices romanos e o reflexo de suas características pessoais nas mudanças do sistema religioso, ao passo que pelo viés da história da vida privada, Maria Lucia Montes (1998) procurou abordar o catolicismo ao longo do século XX. Foram abordados no primeiro capítulo da tese os referenciais aqui explorados, tais como os sistemas sociais, memória, história e esquecimento. 31 Ainda em relação à abordagem da prática musical, devem ficar claros limites: não se pretende aqui discutir a prática musical litúrgica, que é essencialmente funcional, do ponto de vista estético, apresentado valorações acerca deste. Por mais que as já mencionadas insatisfações cotidianas dos músicos com o repertório produzido após 1970 decorram muitas vezes de tais apreciações valorativas, este revela, como se verá adiante, também uma proposta estética. Em termos de abrangência, a atividade musical integrada ao cotidiano das celebrações atinge, no presente, em tese (considerando a dificuldade em quantificar os “não-praticantes”), cerca de 64,6% da população brasileira, que se declarou católica no último censo realizado pelo IBGE (2012; [201-]) e não deve ser, portanto, desprezada. O censo realizado em 2000 pelo mesmo instituto (IBGE, [200-]) apontava para 73,6% da população. Assim, este repertório atinge um público certamente maior do que aquele que frequenta as salas de concerto e que revela maior diversidade econômica, social ou cultural, mas que a historiografia da música legou, no século XX, a uma posição periférica. Por outro lado, não se buscou constatar a eficiência deste repertório para o rito ou de ambos para a espiritualidade dos fiéis, uma vez que tal abordagem se encaminharia para um estudo que lidaria com subjetividades e critérios talvez não mensuráveis ou de comprovação questionável17. Também não foi questionado o fato de a Igreja cumprir ou não sua função primária relativa à espiritualidade dos fiéis, pois se assim não o fosse, provavelmente a instituição não se preservaria pela simples tradição ou por força de normas18. Para tratar da relação entre os fiéis e a prática musical, ao invés de manifestar opiniões ou supor relações que não são necessariamente passíveis de comprovação, optou-se por recorrer aos olhos, ouvidos e percepções que serviram à produção das fontes primárias e secundárias consultadas. Finalmente, cabe dizer que a abordagem dos resgates e abandonos do passado se deu a partir de documentos da Igreja que determinavam ou sugeriam restaurações e novas florescências, 17 A improbabilidade de constatação científica não significa que a questão não tenha sido discutida no campo teológico e perpassado os documentos oficiais da Cúria Romana: “24. Essa eficácia, se se trata do sacrifício eucarístico e dos sacramentos, provém antes de tudo do valor da ação em si mesma (ex opere operato); se se considera ainda a atividade própria da imaculada esposa de Jesus Cristo com a qual orna de orações e de sacras cerimônias o sacrifício eucarístico e os sacramentos, ou, se se trata dos sacramentais e de outros ritos instituídos pela hierarquia eclesiástica, então a eficácia deriva principalmente da ação da Igreja (ex opere operantis Ecclesiae), enquanto esta é santa e opera sempre em íntima união com a sua Cabeça” (MEDIATOR DEI – PO, 1947). 18 “O reconhecimento da possibilidade de que tais 'sanções secundárias' venham talvez a substituir as recompensas mais primárias para grande número de pessoas, frequentemente sem que elas tenham consciência disso, leva Homans a enunciar de maneira diferente uma hipótese de sua obra anterior: as instituições não podem ser mantidas pela simples força das normas e das recompensas secundárias; mais cedo ou mais tarde, terão de aparecer as recompensas primárias, e comportamentos alternativos com novas recompensas primárias serão apresentados por inovadores, ou se processará a decadência institucional. 'As instituições não continuam funcionando para sempre por obra do próprio impulso' ” (BUCKLEY, [1971], p.204-205). 32 por relatos de execuções nos periódicos, folhetos de missas e outras fontes, da análise de elementos constituintes da música e mesmo do texto (aqui sempre compreendido como as palavras cantadas ou a letra das músicas). Uma vez que se tem em mente que o repertório abordado é funcional e que suas mudanças decorrem das mudanças das autocompreensões da própria Igreja e que, deste modo, não é o único elemento envolvido nos processos de resgates e abandonos do passado, a abordagem adotada partiu das mudanças observadas no plano geral para chegar ao repertório musical. A organização dos capítulos procurou contemplar, ao lado de questões metodológicas e gerais, três aspectos que se complementam na produção de música católica: composição, interpretação e relação entre as pessoas e este repertório. O primeiro capítulo foi dedicado aos conceitos e teorias de base adotados: teoria dos sistemas sociais; memória, esquecimento, história, tradição, conservadorismo, a maneira pela qual estes temas se ligam à música e à Igreja como um todo, bem como ferramentas que cooperassem com a abordagem dos elementos musicais (modelo pré-composicional e controle normativo). O segundo capítulo foi dedicado aos modelos de composição previstos nas legislações eclesiásticas sobre música sacra e como eles foram ou não aplicados na prática. No terceiro capítulo foram enfocadas questões relativas à execução musical, também comparando os modelos hegemônicos e determinações oficiais à prática musical preservada nos acervos. Tiveram enfoque as pessoas que interpretavam (gênero, pertencimento ou não ao clero, bandas e outras agremiações de músicos etc.), o modo de interpretar os instrumentos empregados e a importância conferida à autoria das obras em face da funcionalidade – adequação à liturgia. No quarto capítulo, tiveram enfoque as relações entre as pessoas que ouviam, pensavam e interpretavam a música e as práticas musicais: expectativas de controle da prática musical por parte da instituição e os meios empregados neste sentido, resgates e abandonos de repertórios (relação com o passado musical local), comportamentos esperados pela instituição da parte dos fiéis, bem como as relações de poder envolvidas na determinação das metas musicais hegemônicas no sistema religioso. Discutiu-se finalmente a pertinência de um modelo único e os desafios do pesquisador e do músico atuante em instituições religiosas no presente. A partir de tais discussões, se buscou chegar a uma resposta que confirme ou contrarie a hipótese inicial proposta para o problema central do trabalho. 33 1 CONCEITOS E TEORIAS 1.1 SISTEMAS SOCIAIS Sistemas sociais são uma forma de abordar da realidade. Eles são, senão uma forma de revelar o mundo real, um alinhamento ou uma convicção19 do pesquisador nos resultados da interação que se processa entre as pessoas. Olhar pela lente dos sistemas pressupõe conceber tais interações. Ao contrário das leis20, este olhar não é exaustivo e inquestionável, mas pressupõe a escolha de quem o assume. Deste modo, a abordagem sistêmica constitui um conjunto estruturado de explicações que buscou, neste trabalho, dar conta da prática musical católica no Brasil ao longo do século XX. Por outro lado, este olhar lançado para a realidade se justifica na medida em que a interação estabelecida entre as partes do sistema produz resultados diversos daqueles que seriam observados de sua simples soma. Em outras palavras, a existência dos sistemas ou sua pertinência enquanto retórica holista21 se observa na medida em que ocorre a chamada realimentação positiva. No âmbito do trabalho, é uma possibilidade pensar que a simples prática musical em igrejas isoladas provavelmente não teria dado ensejo à criação de normas que a disciplinasse, mas na medida em que estas se relacionam em dioceses e, mormente, na Igreja institucionalizada, surgem estas tentativas de organização ou controle social, ou seja, as normas surgem como realimentação positiva do sistema (BUCKLEY, [1971]). Favoráveis ainda à ontologia dos sistemas ou à pertinência das retóricas holistas são a comunicação (troca de informações) estabelecida entre as pessoas, a inexistência de um 19 “A ideia de que a ciência seja constituída por teorias está hoje um tanto em desuso, pelo menos entre os filósofos. Também está decididamente fora de moda (nos mesmos ambientes) a afirmação de que tais teorias tenham condições de nos revelar o mundo real. No lugar de teorias, investe-se em opções, jogos, caprichos, casos, coincidências, imprevistos, acidentalidades, estalos gestálticos, reticulados, labirintos, divertimentos, conversões. A ciência é sistematicamente apresentada como um conjunto de crenças em vez de um conjunto de conhecimentos. Aquela que um dia foi chamada a ‘verdade’ das teorias foi identificada e resolvida em sua capacidade de produzir consenso. Sobre isto existe (o que é bastante raro entre filósofos) uma concordância generalizada” (ROSSI, 2010, p.202). 20 Do mesmo modo que nas teorias sociais, Le Goff (1990, p.44) afirmou que na História enquanto ciência também não se formulam leis: “A minha opinião é que não há em história leis comparáveis às que foram descobertas no domínio das ciências da natureza – opinião largamente divulgada hoje com a refutação do historicismo e do marxismo vulgar e a desconfiança perante os filósofos da história. Muito depende, aliás, do sentido que se atribui às palavras. Reconhece-se hoje, por exemplo, que Marx não formulou leis gerais da história mas que apenas conceitualizou o processo histórico, unificando teoria (crítica) e prática (revolucionária) [Lichtheim, 1973]. Runciman disse, com justiça, que a história, tal como a sociologia e a antropologia, é ‘uma consumidora e não uma produtora de leis’ [1970, p. 10]”. 21 Candau (2011) questionou a pertinência de tais retóricas ou de tais abordagens da realidade do ponto de vista das ditas ciências duras ou exatas. Em tais abordagens, as exceções encontradas nas partes comprometeriam a legitimidade do emprego das retóricas holistas. O autor as admite, entretanto, ressaltando que nas ciências sociais este “desvio” ou relativo grau de generalização é aceitável. 34 isolamento completo entre elas e a crença em tais retóricas, por vezes defendidas com a própria vida pelas pessoas que se consideram pertencentes a determinados grupos22. Mais do que a discussão sobre a ontologia do sistema ou a quantificação da pertinência das retóricas holistas – caso se admita que haja um procedimento preciso para este fim –, o aspecto analítico de seu emprego tem aqui primazia, ou seja, interessou à elaboração da tese o aspecto de ferramenta de tais modelos. De maneira simplificada, é possível dizer que os sistemas são conjuntos de conexões ou relações estabelecidas entre partes. Uma vez que se estabelecem, estas conexões permitem uma diferenciação das partes e seu entorno ou o meio em que se insere o sistema; ao mesmo tempo em que gera uma identidade, o sistema pressupõe alteridade. Engrenagens trabalhando conjuntamente podem ser vistas como um sistema, pois de sua relação decorrem resultados diversos de quando estão isoladas. Neste sentido, observa-se que abordagens sistêmicas de grupos humanos não são próprias das teorias sociais e em parte, já que, dentro de uma visão iluminista do catolicismo, Deus seria o grande relojoeiro e a sociedade funcionaria a partir de engrenagens (WERNET, 1987, p.27-28). Se na teologia este era o pensamento vigente, nas abordagens científicas da sociedade não se observava diferença significativa. Um organismo vivo é também um sistema, pois nele interagem partes – órgãos ou organelas – que garantem a preservação da vida. Tal noção também se aplica a grupos de seres vivos, a ecossistemas e à biosfera como um todo. Se levada a extremos, a abordagem sistêmica torna possível compreender a Teoria de Gaia, segundo a qual a Terra é um superorganismo vivo e não apenas um espaço geográfico onde ocorre a vida. Deve ser ressaltado que as partes que compõem um sistema também podem ser observadas enquanto sistemas autônomos: uma escola pode ser interpretada como um órgão responsável pela educação formal dentro de um bairro, mas também como um organismo no qual partes interagem com funções específicas de direção, limpeza, docência, alimentação e outros. Na Igreja Católica, a analogia se torna possível quando se pensa em uma arquidiocese: enquanto porção particular de uma grande instituição, ela congrega regiões episcopais e, nestas, há igrejas, nas quais se processa a máxima interação entre pessoas. 22 “Em nosso século climatérico, os homens mostraram, com inegável zelo, que poderiam morrer em nome das retóricas holistas: em 1974, Greeley estimou que os conflitos étnicos tinham provocado a morte de algo em torno de 20 milhões de pessoas desde a Segunda Guerra Mundial. Podemos estar seguros de que, desde 1974, esta cifra aumentou consideravelmente. A identidade (cultural, coletiva) que serviu de substrato para todos os grandes slogans totalitários do século é certamente uma 'ideia de morte'. Isso significa que certas retóricas holistas podem ter uma grande pertinência para um grande número de indivíduos. Mas o que dizer de sua pertinência científica?” (CANDAU, 2011, p.30-31). 35 Walter Buckley ([1971], p.15) procurou distinguir de maneira clara os sistemas sociais de socioculturais, referindo-se a primeira classificação às sociedades em geral, como as das abelhas ou de quaisquer outros animais, e a segunda, à humana, em razão da cultura. Esta distinção – hoje questionável na medida em que se admite que outros animais também produzem cultura – que se fez necessária na obra de Buckley foi suprimida no trabalho, tomando-se “sociais” por “socioculturais”. Nas sociedades humanas, Buckley ([1971], p.32) apontou a capacidade de “alterar consideravelmente suas estruturas e ainda permanecer viáveis”, ou seja, a capacidade de adaptação ou recriação se observa de forma mais ampla do que em organismos23. A preocupação com os conceitos nômades entre as ciências não é particular desta tese, mas parece inerente a todos os trabalhos que adotam tais transposições de conceitos entre ciências. Sistemas são teorias tributárias, em parte, da Física, Química, Biologia e Ciências sociais. Tais ciências comportam-se, portanto, como sistemas de conhecimento abertos, que permitem tais interações, ou seja, a interdisciplinaridade – proposta da área de concentração na qual esta tese foi produzida. Historicamente, o primeiro modelo de sistemas é tributário das ciências duras, sobretudo da Física, Mecânica e Matemática, cujos avanços ocorridos no século XVII inspiraram as ciências humanas. Neste modelo mecânico, as pessoas, como astros celestes ou partículas, se aproximavam por atração ou se afastavam por repulsão, estabelecendo sociedades e Estados que “constituíam sistemas de oposições equilibradas”. A organização social, o poder e autoridade eram resultantes das “pressões” de átomos e “moléculas sociais”: disto nasceu a “estática social” ou a teoria do equilíbrio social, análoga à estática na mecânica física, e a “dinâmica social”, que envolve o movimento ou a mudança como função do tempo e do espaço, que se podem exprimir por várias curvas matemáticas. […] Temos, assim, na base, o conceito de “sistema”, de elementos em mútuas inter- relações, que podem achar-se num estado de “equilíbrio”, de tal maneira que quaisquer alterações moderadas nos elementos ou em suas inter-relações, afastando- os da posição de equilíbrio, são contrabalançadas por alterações que tendem a restaurá-las (BUCKLEY, [1971], p.24-25). Se as revoluções científicas das ciências duras inspiraram o surgimento do modelo mecânico, as biológicas estimularam o florescimento do modelo orgânico ou organísmico. Neste modelo, as partes do sistema poderiam corresponder a órgãos dentro de um organismo 23 “Os sistemas orgânico e sociocultural são exemplos de 'complexidade organizada'. Ao subirmos de nível, as relações das partes se tornam mais flexíveis e a 'estrutura' mais fluida à medida que se funde com o processo e aumenta a série de comportamentos alternativos franqueados aos componentes. Enquanto as relações entre os componentes dos sistemas mecânicos são primordialmente uma função de considerações espaciais e temporais e de transmissão de energia de um componente a outro, as inter-relações que caracterizam os níveis mais elevados passam a depender cada vez mais da transmissão de informação […] (BUCKLEY, [1971], p.76). 36 individual ou a seres vivos que interagem em um ecossistema. Como já foi explicitado antes, as duas visões implicaram, respectivamente, interações por meio de cooperação ou de conflitos. Nos dois casos, entretanto, o equilíbrio ainda constitui a finalidade das interações, como também se observou no modelo mecânico. Se a aplicação científica da metáfora orgânica aos sistemas sociais é de finais do século XIX e início do XX, nos primórdios do cristianismo Paulo, em sua carta aos Efésios (cap.4, vers.4; 10-13), já lhe sugeria, ao descrever ou prescrever à referida comunidade cristã um modelo de relações a ser estabelecido entre suas partes: Sede um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados pela vossa vocação a uma só esperança. […] Aquele que desceu [a esta terra] é também o que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas. A uns ele constituiu apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas, pastores, doutores para o aperfeiçoamento dos cristãos, para o desempenho da tarefa que visa a construção do corpo de Cristo, até que todos tenhamos chegado à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado de homem feito, a estatura da maturidade de Cristo. Paulo – que parece ter sido uma das principais personagens na criação de um cristianismo institucionalizado – forneceu, ao tratar do “conhecimento do Filho de Deus”, além de uma abordagem organísmica, a informação que “realiza o trabalho lógico sobre a orientação do organismo”, na definição de Donald MacKay (apud BUCKLEY, [1971], p.79). A concepção de Igreja como corpo místico de Cristo se revela em diversos textos oficiais da Cúria Romana24. Na Carta Encíclica “Mediator Dei”, Pio XII evidenciou, definitivamente, a aplicabilidade da noção de sistemas sociais à Igreja Católica: 35. Para melhor compreender, ainda, a sagrada liturgia é necessário considerar outro seu caráter importante. A Igreja é uma sociedade; exige, por isso, uma autoridade e hierarquia próprias. Se todos os membros do corpo místico participam dos mesmos bens e tendem aos mesmos uns, nem todos gozam do mesmo poder e são habilitados a cumprir as mesmas ações. O divino Redentor estabeleceu, com efeito, o seu reino sob fundamentos da ordem sagrada, que é reflexo da hierarquia celeste. (36). Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus. [...] (MEDIATOR DEI – PO, 1947). Mais do que uma abordagem decorrente da convicção ou