Faculdade de Filosofia e Ciências “Júlio de Mesquita Filho” Campus de Marília. Luisa Maria Ferreira Obstáculos epistemológicos à integralização das problemáticas sócio-ambientais em Sociologia. Marília Junho de 2012 Luisa Maria Ferreira Obstáculos epistemológicos à integralização das problemáticas sócio-ambientais em Sociologia. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para obtenção do Título de Mestre em Ciências Sociais/ Macro Área de Concentração: Sociologia. Orientador: Aluisio Almeida Schumacher Marília Junho de 2012 Luisa Maria Ferreira Obstáculos epistemológicos à integralização das problemáticas sócio-ambientais em Sociologia. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília, para obtenção do Título de Mestre em Ciências Sociais/ Macro Área de Concentração: Sociologia. BANCA EXAMINADORA Orientador: Professor Doutor Aluisio Almeida Schumacher – Universidade Estadual Paulista (UNESP) 2º Examinador: Professor Doutor Rodrigo Barbosa Ribeiro – Universidade Federal de Uberlândia (UFU) 3º Examinador: Professora Doutora Maria da Graça Chamma Ferraz e Ferraz – Universidade Estadual Paulista (UNESP) Marília, 01 de junho de 2012 A meus pais, Lucilia e Luiz. Agradecimentos Agradeço primeiramente a meus pais Luiz e Lucilia porque sem eles a conclusão da presente dissertação não teria sido possível. Além de terem custeado meus estudos por todo este tempo. Eu agradeço por terem me dado certos referencias, humanamente falando, sem os quais eu não seria a pessoa que eu sou. Uma vez que, meu interesse em estudar é fruto do incentivo que deles sempre recebi desde que eu era uma criança. Os maiores subsídios que recebi de meus pais não tem preço, são incomensuráveis, são da ordem da complexidade porque se pautaram no amor e no apoio incondicional, os quais eu sempre recebi. Agradeço também em igual medida a Sergio Augusto Domingues e ao nosso pequeno filho Tom, que apesar de ter apenas dois anos e quatro meses já me ensinou bastante sobre a vida. Sua presença e existência são para mim uma fonte de energia, que me impulsionam a continuar em meio a adversidades e obstáculos. No que se refere a Sergio, quero aproveitar esse momento para reafirmar que esta pessoa é um dos melhores e maiores amigo que tive o privilégio de conhecer. Além de ser um companheiro fiel, presente e sincero com quem tive conversas maravilhosas, sem quais a reflexão aqui desenvolvida não teria sido a mesma. Agradeço por seu apoio, por sua força e por me compreender tão bem em certas ocasiões, é claro! Quero registrar aqui uma coisa que presumo que já é sabida: minha profunda admiração, amor e respeito por você. Você mais do que qualquer pessoa sabe das dificuldades e dos obstáculos internos e externos que tive de superar, quero por fim lhe agradecer por ter me apresentado o I CHING, o livro mais antigo do mundo. Este oráculo me serviu de alicerce e nos momentos mais difíceis e incertos é a ele que recorro, eu tento sempre pensar através dele no ‘potencial da situação’. Isso me remete a Edgar Morin e a sua proposta de um pensamento complexo, que eu ainda tenho de ter mais tempo para elaborar intelectualmente, para conhecer, digerir e ruminar; mas que mudou a minha vida. Não apenas no âmbito intelectual profissional, mas também no âmbito pessoal humano, no dia-a-dia mesmo. Eu agradeço as contingências que me levaram a leitura de todos os autores aqui citados. Vale aqui ressaltar um agradecimento especial ao meu orientador, pela compreensão, pela paciência e pela abertura mental que muito me ensinaram. Mais uma vez tenho de afirmar, sendo um tanto quanto repetitiva que sem a compreensão de meu orientador Aluísio este trabalho também não teria sido possível. Agradeço a todos meus professores, em especial quero agradecer à professora Lucia Morales Arrais por ter me ajudado a alocar melhor meu objeto de estudo quando de meu exame de qualificação e por ter me compreendido tão bem, independentemente de concordar com minhas observações ou não. Agradeço a referida professora porque pessoas como ela fazem a universidade valer à pena. Agradeço ao professor Mauro Leonel que não está mais nesta unidade e aos professores que aceitaram fazer parte de minha defesa: professor Rodrigo Ribeiro da Universidade Federal de Uberlândia, a professora Maria da Graça Chamma desta unidade, bem como aos suplentes interno e externo respectivamente professora Célia Tolentino e professor João Carlos Zuin da Unesp de Araraquara. Agradeço ao CCI – Centro de Convivência Infantil “Elton Faleiros” – por cuidar de meu pequeno filho Tom. Tão bem, de modo tão dedicado, delicado, eficiente e transparente. Agradeço ao CCI porque sem a existência deste local eu possivelmente não poderia ter finalizado este trabalho. Vai aqui um agradecimento especial as agentes de desenvolvimento infantil, principalmente as que têm um maior contado com o Tom quais sejam: Amanda, Valéria, Sayoko, à estagiária Raísa, à enfermeira Gorete, à secretária Bruna, à cozinheira Carla, à auxiliar de serviços gerais Viviani e a atual supervisora Aline, bem como à ex-supervisora Maria Luiza. Não poderia deixar de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais como um todo, o que inclui os funcionários da Seçcão Técnica e o Conselho do referido programa, agradeço também à Aline, que já não trabalha mais neste setor, mas que sempre me esclareceu de maneira ética e coerente. Agradeço também a todos os meus amigos que me ouviram falar deste trabalho por tanto tempo, nos momentos, circunstancias e horários os mais variados e pitorescos possíveis, há mais de três anos. Muitos de vocês já não estão mais aqui, todavia o sentimento permanece e o tempo que passou foi muito intenso e ao mesmo tempo foi um tempo marcante e inesquecível. Agradeço a paciência que todos vocês tem tido comigo que sou uma pessoa bastante característica, sendo eufemística. Agradeço em especial à Luana Turbay por conversar comigo sobre o meu trabalho mesmo estando escrevendo o texto para a sua qualificação de mestrado em Filosofia. Agradeço à Camila (Kim), a Simone, ao Esdras, Guilherme (Barba) e à Sergio Luiz pelo apoio e atenção, sobretudo, nestes últimos e decisivos momentos e a Luciane Rodrigues amiga que nestes últimos momentos esteve tão presente, me ajudando a ter lucidez e a escrever de modo mais objetivo. Obrigada “Lú” por me questionar sobre meu trabalho, obrigada por me fazer perguntas, por querer entender. Você não imagina o quanto isso foi importante. Por último, mas não menos importante agradeço aos funcionários deste campus, principalmente aos trabalhadores terceirizados do setor da limpeza, agradeço aos estagiários do Laboratório de Informática e aos jardineiros por fazerem do campus o que ele é. Sem vocês a Faculdade de Filosofia e Ciências não seria o que ela é. Agradeço em especial ao seu Ditinho e a Dona Durva que estão sempre no balcão de informações no prédio de atividades central em frente ao Saepe. Agradeço também ao Sr. Adão, ao Sr José Luiz, ao André, ao Celso e aos demais porteiros deste campus. Quando aparece o Homo Sapiens nearderthalensis, talvez à 100 mil anos, a integração é efetiva: o homem é um ser cultural por natureza, por ser um ser natural por cultura. (MORIN, 1973, p.86). Resumo Esta dissertação possui dois objetivos fundamentais, quais sejam, analisar as condições subjetivas do progresso científico em Sociologia, por meio do conceito de obstáculo epistemológico e aplicar esse conceito a certos postulados da Sociologia de Émile Durkheim tendo como pano de fundo sua obra Da divisão do Trabalho Social (1999). Nossa ideia central é que Sociologia deve superar certos obstáculos. Tais quais, sua concepção de homem, considerado apenas em seu âmbito moral e as explicações do social pelo social. Os quais frente à atualidade de questões como as problemáticas sócio-ambientais tem se apresentado insuficientes para a formação de um novo espírito científico em Sociologia. Na medida em que desconsideram a relação do homem com a natureza. Palavras-chave: Obstáculos epistemológicos, sociologia clássica, problemática sócio-ambiental, homem, natureza, sociedade. Abstract This dissertation has two main objectives namely to analyze the subjective conditions of scientific progress in Sociology, through the concept of epistemological obstacle and apply this concept to certain postulates of the sociology of Emile Durkheim as background with his work The Division of Labor social (1999). Our central idea is that sociology must overcome certain obstacles. As such, his conception of man, considered solely in its scope moral and social explanations of the social. The front of the current which issues such as social and environmental issues has appeared insufficient for the formation of a new scientific spirit in Sociology. To the extent that disregard the relationship between man and nature. Keywords: epistemological Obstacles, classical sociology, socio-environmental problems, human, nature, society. Sumário Introdução ........................................................................................................... 12 Capítulo 1 Em que se pode reconhecer o obstáculo epistemológico? ................................. 19 Capítulo 2 Obstáculos epistemológicos na divisão do trabalho social................................. 43 2. 1. Causas e consequências da divisão do trabalho social................................ 56 2. 2. Contraponto as explicações do social pelo social....................................... 62 2. 3. Sobre a necessidade de um pensamento complexo..................................... 66 2. 4. O Normal e o Patológico......................................................................................... 71 Capítulo 3 Sobre as problemáticas sócio-ambientais. – O paradoxo de Giddens................. 87 Conclusão............................................................................................................. 105 Referências........................................................................................................... 115 Bibliografia Consultada........................................................................................ 117 12 Introdução Pretende-se, aqui, analisar a Sociologia clássica1 como um caso de obstáculo epistemológico – termo desenvolvido pelo pensador Gaston Bachelard – dentro do contexto atual das Ciências Sociais. Utilizaremos uma das principais obras de Durkheim para fundamentar nossa análise: Da divisão do trabalho social (1999), obra em que o autor examina a passagem da solidariedade oriunda das similitudes – isto é, a passagem da solidariedade mecânica – para a solidariedade oriunda da divisão do trabalho social – ou seja, a solidariedade orgânica, condição mesma da civilização – que implica numa consciência individual, diferentemente da consciência coletiva que a antecede. Nesse sentido, buscamos demonstrar que a Sociologia, ao constituir-se como área do saber através de Durkheim e, delimitar seu campo de atuação, ou seja, estudar os fatos sociais e o homem enquanto ser moral apresenta frente a atualidade obstáculos epistemológicos. Que emperram o debate sobre questões que recentemente se apresentam a nós como é o caso das problemáticas sócio-ambientais que exigem da Sociologia reformulações e novas soluções. Para Marcel Mauss (1981), a Sociologia é uma ciência possível porque ao definir o fato social como seu objeto de estudo lhe garante um método de abordagem aos problemas que tal objeto de estudo levanta, mostrando que existem regularidades, isto é, leis próprias que fundamentam este estudo, do mesmo modo que os fatos naturais, biológicos e psíquicos se organizam por leis próprias que permitem o desenvolvimento científico da Física, Biologia e Psicologia. Assumindo esse pressuposto, a Sociologia deve tratar das questões da vida social e, por conseguinte, das instituições sociais – como o Direito ou a Educação, por exemplo – que organizam a sociedade. Na concepção de Durkheim, a sociedade se coloca como entidade moral aos seus membros, antes de se configurar como existência 1 Entendemos o termo sociologia clássica no mesmo sentido que Giddens (1978). Ou seja, consideramos Comte e Marx influências extraordinárias, a influência do primeiro é fundamental, sobretudo na medida em que foi projetada pelos estudos de Durkheim. Marx rejeitou o positivismo de Comte, mas ambos escreveram segundo Giddens (ibidem, p. 11 - 12) na sombra dos triunfos das ciências naturais, ambos foram cientistas que buscavam criar uma ciência nova. Capaz de produzir, através do estudo da vida social humana, esclarecimentos tais quais os produzidos pelas ciências naturais e ambos consideravam o estudo da conduta humana nas sociedades uma conseqüência direta do progresso rumo ao entendimento humano do próprio homem. Em síntese, nós aqui compreendemos com o auxilio de Giddens (1978, p. 11- 21) que a sociologia clássica conforma o pensamento de Comte, Marx e Durkheim e é neste sentido que aqui empregamos este termo. 13 tangível. Em nossa perspectiva, a preocupação de Durkheim em evidenciar que a natureza humana é moral implica no detrimento de uma consciência ambiental: ao subestimar a relação do homem com a natureza, a consolidação da Sociologia como área do saber deixa de lado questões que na atualidade se colocam como fundamentais para a natureza humana. Nosso objetivo é mostrar que a Sociologia clássica não nos dá elementos suficientes para lidar com as problemáticas sócio-ambientais, pois estas são do âmbito do homem não somente enquanto ser moral, mas também enquanto espécie. Entendemos que, a partir de uma abordagem mais ampla do que a do social em ruptura com o ambiental, a pergunta sobre a relação homem-natureza deva ser considerada no pensamento sociológico atual. O que leva inevitavelmente a uma crítica de se considerar tal generalização do social sem relação com a natureza como um método inadequado de abordagem às questões da vida social. Todavia, consideramos que no momento histórico de Durkheim as questões sociais estavam associadas principalmente às consequências da Revolução Industrial, vistas pelo autor como questões de transformação da sociedade, que interferiam diretamente na integração dos indivíduos, desestabilizando seus valores e regras sociais. Sendo assim, Durkheim não se propôs a pensar nos problemas que futuramente tal exacerbação de uma consciência individual, emergente da divisão do trabalho social, deixaria de lado. Vemos a problematização da relação homem-natureza como necessária na Sociologia científica da atualidade; tal necessidade, oriunda de novas questões histórico-sociais, configura o obstáculo epistemológico, que trataremos no primeiro capítulo deste trabalho. O conceito de obstáculo epistemológico, de acordo com Bachelard (1996), fundamenta o desenvolvimento do conhecimento histórico-científico-filosófico das diferentes áreas do saber, de forma a se observar uma descontinuidade entre um velho e um novo pensamento, que se deve a correção de erros. O autor exemplifica como sendo típico do novo espírito científico o desenvolvimento da Teoria da Relatividade por Einstein, fundamentando sua teoria sobre a formação do conhecimento, que se sustentaria, assim, em rupturas e não em acúmulos. Contudo, não se trata de anular os conhecimentos habituais da ciência, mas de romper os limites que eles podem vir a representar. Desse modo, o verdadeiro espírito científico se formaria através de um esforço e não de uma tendência natural. Bachelard (1996), partindo do pressuposto de que o conhecimento do real não se dá imediatamente, mas se forma contra o habitual, defende que devemos pensar o 14 conhecimento em termos de obstáculos para que se possa desenvolvê-lo. A experiência imediata e a generalização que chega à unidade rápido demais são exemplos de erros que surgem das primeiras observações, levam a obstáculos epistemológicos, porque se configuram como conhecimento habitual, o que emperra a auto-correção do espírito científico. Vemos os obstáculos como um desafio frente a problemas sociais atuais que a Sociologia tem de solucionar. Entendemos, junto com Bachelard, que o conhecimento do real deve se formar enquanto se deforma: o verdadeiro espírito científico prefere as perguntas às respostas e evita, sempre que possível, fazer generalizações. Para solucionar problemas atuais da sociedade, argumentamos que a Sociologia deve deformar seus conceitos, vencer os obstáculos epistemológicos que se colocam na atualidade, definindo os limites e erros do passado. Nossa busca é por mostrar que a separação dos fatos sociológicos dos fatos biológicos e dos fatos físicos, tal qual se coloca na passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, constitui um obstáculo epistemológico, no sentido de que é partindo dessa condição que se pode reformular as questões sociais, permitindo, assim, o desenvolvimento de um novo espírito científico em Sociologia. Acreditamos que esta é uma necessidade científica da Sociologia atual, que deve repensar o conceito de Fato Social; as implicações e conseqüências de uma visão que considera a sociedade de um lado e a natureza de outro. Em outras palavras, é necessário perguntarmos de outras formas o que a Sociologia clássica se perguntou. Tal tarefa, evidentemente, não é uma descoberta nossa; diversos pensadores sociais como Edgar Morin, Louis Dumont, Héctor Ricardo Leis, Jean Baudrillard, Bruno Latour, Terry Eagleton, Boaventura de Souza Santos, Roy Wagner, Serge Moscovici e Homi Bhabha propõem novas perspectivas, novas formulações do social, porque as sociedades vêm enfrentando questões que suscitam tais reformulações. Tratamos duas destas perspectivas no segundo capítulo da dissertação. O segundo objetivo do primeiro capítulo é mostrar, com o auxílio de Foucault (1999), que o terreno no qual residem as ciências humanas não lhes foi concedido gratuitamente, seus problemas não se formularam de modo espontâneo. Houve muitos desdobramentos epistemológicos até que se pudesse chegar a análises do tipo sociológicas. Foucault irá analisar a gênese das ciências humanas, da qual a Sociologia é fruto, trazendo a mudança interior que ocorreu em nossa cultura do século XVI ao século XIX. Ele fará isso através (i) da historia natural que se tornou biologia, (ii) da análise das riquezas que se tornou economia política e (iii) da gramática geral que se 15 tornou filologia. Argumentamos, junto com o pensador, que o homem não existia como objeto de estudo até o fim do século XVIII e início do século XIX. Com esse panorama, mostramos que o advento da Sociologia se deve a obstáculos epistemológicos, rupturas no pensamento científico, erros anteriores à própria Sociologia, mas que permitiram seu surgimento. Assim, no segundo capítulo, analisamos a possibilidade e relevância de se atribuir ao momento atual a necessidade de se definir uma ruptura entre a velha e a nova Sociologia. Desse modo, traremos os fundamentos da Sociologia de Durkheim, explicitando a forma com que ele pensa a Sociologia em sua época, na tentativa de expor seus limites na época atual. Para Durkheim, as consciências nas sociedades onde a divisão do trabalho não era preponderante apresentavam semelhanças tão uniformes porque lhes carecia de variedade de estímulos. Os estímulos sensíveis eram homogêneos, isto é, a natureza era vista como sendo homogênea uniforme e passiva, e, por isso, havia uma grande uniformidade entre as consciências, as quais o pensador chamou de coletivas. De acordo com o autor, foi somente quando a divisão do trabalho social passou a preponderar que os fatos da vida social se diversificaram e possibilitaram, ao mesmo tempo em que exigiram, uma maior diferenciação das consciências individuais, condição mesma de toda civilização. Segundo o ponto de vista do autor, deve-se procurá-las exclusivamente no meio social porque à medida que as sociedades organizadas se desenvolvem aumenta a divisão do trabalho social, aumenta o nível de especialização e as consciências individuais diferenciam-se cada vez mais – ou seja, as causas de tal diferenciação são exclusivamente da ordem do social. O que acarreta a diminuição da intensidade com que a consciência coletiva, ou comum, exerce força sobre as consciências individuais, tendendo, então, a enfraquecer. A solidariedade por similitudes é incompatível com as sociedades mais avançadas. A divisão do trabalho progride na medida em que o tipo segmentário esmaece, isto é, na medida em que a solidariedade mecânica cessa, indicando que uma varia na razão inversa da outra: para que a segunda exista a primeira tem de desaparecer. Esse homem que desaparece junto com o tipo segmentário é todo o contrário do novo homem que surge na solidariedade devido à divisão do trabalho, este novo homem progride na medida em que se especializa, se diferencia. Durkheim não leva em conta a relação do homem com a natureza porque vê nos fatos sociais apenas a relação homem-moralidade; os valores e regras que organizam a sociedade, tornando-a algo predominante aos próprios homens. A sociedade se organiza 16 de forma tão independente que pode tornar-se objeto de estudo, possibilitando o conceito de fato social devido a sua autonomia ontológica, isto é, sua existência como fenômeno sem causas, nem consequências no meio físico-químico-biológico. Nesse contexto, defendemos a hipótese segundo a qual a Sociologia proposta por Durkheim, ao isolar-se em seu próprio domínio, buscando ater-se aos ditos fatos sociais, mantém à parte da ordem do pensamento sociológico a relação homem-natureza, configurando, na Sociologia científica atual, um obstáculo epistemológico. Não se trata de dizer que a Sociologia não constitui um sistema de saber coeso, pois, como afirma Marcel Mauss (1981), ela parte do postulado de que os fatos sociais podem ser isolados em um reino social – se nos é permitida tal afirmação – do mesmo modo que os fatos físicos, os fatos biológicos e os fatos psíquicos têm seus respectivos reinos. Para Durkheim, a Sociologia está a priori sujeita a leis da mesma forma com que estão sujeitos os fenômenos naturais, biológicos e psíquicos. A questão central está aí, o problema desta generalização consiste no fato de que Durkheim trata dos fatos sociais enquanto submetidos a leis inteiramente discerníveis do meio físico-químico-biológico. O pensador defende que seus fundamentos sociais, os fundamentos de sua Sociologia, são exclusivamente morais, a moral é natural ao homem: o fato social então ganha uma autonomia ontológica que por princípio o impede de relacionar-se com qualquer fato de ordem natural. O domínio do social no social, isto é, sem relação com a natureza, torna- se tão circunscrito que o homem moral supera o homem biológico, porque as regularidades da vida social-moral superam no homem as regularidades da natureza. Nesse sentido, procuramos argumentar que a Sociologia durkheimiana e seu ideal de sociedade não oferecem elementos que permitam refletir sobre fenômenos que atualmente ameaçam nossa existência como espécie, como é o caso das problemáticas sócio-ambientais. No terceiro capitulo, tratamos de questões que evidenciam como as problemáticas ambientais na contemporaneidade configuram uma necessidade de que os sociólogos voltem seus olhos para a relação homem-natureza, pensando o homem também como biológico. As construções humanas devem ser consideradas, assim, como construções naturais, afinal todos os recursos de que dispomos os retiramos da natureza, assim como todos nossos restos também são depositados nela, o que acarreta uma série de consequências da ordem do social. Giddens (2010) vai evidenciar que o estudo da natureza não pode ser mais uma exclusividade dos físicos e biólogos, nem pode mais ser considerada como passiva e amorfa. Além disso, dependemos e transformamos a 17 natureza em grande medida, o que traz diversas implicações e consequências pertinentes à análise sociológica. Defendemos, aqui, que as problemáticas sócio-ambientais não são exclusivamente obras do capitalismo – os maias2 e os habitantes da Ilha de Páscoa3 não eram capitalistas e, mesmo assim, esgotaram seus recursos naturais e, a rigor, acabaram extinguindo a si próprios. Estes são exemplos da relação do homem com a natureza que antecedem o capital. Entendemos que, de acordo com Giddens (2010), a política da mudança climática, tema central e articulador das problemáticas sócio ambientais, é a que mais nos ameaça enquanto espécie. Nesse sentido, defendemos que cabe sim ao sociólogo pensar a relação do homem com a natureza e apontar quais sejam suas principais problemáticas. Edgard Morin (1973) afirma que o único entre os pensadores sociais a postular o homem como natural foi Marx4. Apesar de o homem para Marx ser um ser eminentemente social ele se constitui em sua relação homem-natureza – o que já 2 A desintegração da civilização maia (na península de Yucatán, na América Central) foi um processo bastante complexo. Estudiosos afirmam que isso ocorreu ao longo de um intervalo de cerca de 200 anos e envolveu um catastrófico despovoamento da região, por isso quando os espanhóis chegaram não encontraram ninguém. Embora seja bem estabelecido que o colapso da civilização coincidiu com episódios de seca generalizada, a sua natureza e gravidade permanecem enigmáticos. Ele nos apresenta uma análise quantitativa que visa oferecer uma interpretação coerente que leve em consideração os quatro registros paleoclimáticos mais detalhados desse evento. Daí ele conclui que as secas que ocorreram durante a desintegração da civilização maia atingiram uma redução de 40% na precipitação anual, provavelmente devido a uma redução da freqüência das tempestades que ao longo de vários verões acabou por reduzir a intensidade dessa estação tropical. (MEDINA-ELIZALDE 2012). 3 Terry L. Hunt, antropólogo da Universidade do Havaí, em Manoa, e diretor da Escola de Campo Arqueológica Rapa Nui, faz pesquisas de campo nas ilhas do Pacífico há três décadas. Para ele, segundo o relato corrente sobre o passado da ilha de Páscoa, os habitantes nativos - que se autodenominam rapanui e se referem à ilha como Rapa Nui - outrora formavam uma sociedade grande e próspera que entrou em colapso em conseqüência da degradação ambiental. Segundo tal teoria, um pequeno grupo de colonizadores da Polinésia teria chegado entre os séculos IX e X. Trezentos anos depois, com o aumento populacional acelerado e a obsessão dessa população em construir moais – grandes estátuas de madeira – levaram a uma pressão ambiental cada vez maior. Devido a isso, no final do século XVII, os nativos haviam desmatado a ilha, o que resultou em guerras, fome e colapso cultural. Jared Diamond, geógrafo da Universidade da Califórnia em Los Angeles, fez menção aos rapanui como parábola acerca dos perigos da destruição ambiental. Ele escreve em 1995: "os habitantes da Ilha de Páscoa liquidaram suas florestas, levaram suas plantas e animais à extinção, e viram sua complexa sociedade rumar para o caos e o canibalismo. Estamos perto de seguir seu exemplo?" Dois elementos devem chamar nossa atenção nesse relato de Diamond – ele seguramente não está sozinho ao descrever Rapa Nui como um conto sobre a moralidade ambiental – esses elementos são o grande número de polinésios vivendo na ilha e sua tendência a derrubar árvores. Ao analisar estimativas sobre a população nativa, ele conclui que não ficaria surpreso se ela excedesse 15 mil indivíduos em seu auge. Depois de derrubadas todas as árvores do grande grupo de palmeiras, seguiram-se "fome, declínio da população e canibalismo." Quando os europeus chegaram, no século XVIII, encontraram somente um pequeno vestígio dessa civilização. (HUNT, 2007). 4 Embora implicações da sociedade industrial sobre a natureza não tenham sido levadas em consideração por Marx – mesmo porque certamente ele nem pudesse imaginá-las uma vez que nem estivessem constituídas – considera-se aqui de grande relevância que ele postule o homem como ser social que se constitui em sua relação com a natureza. 18 permite afirmar a relevância desta relação na Sociologia. Trazendo essa perspectiva para a atualidade, se hoje o homem vive em prédios, deve-se considerar que os prédios sejam natureza transformada; as edificações contemporâneas ou as ocas nas tribos da América do Sul devem ser ambas consideradas produtos humanos, mas em sua relação com a natureza. Acreditamos desse modo, que todas as produções do homem são realizadas nesta interface homem-natureza, a natureza não é um mero pano de fundo, mas ao contrário suas especificidades são relevantes inclusive na constituição dos fatos sociais. As problemáticas ambientais contemporâneas se colocam à Sociologia e exigem novos postulados. Uma vez que tais problemáticas sejam relativamente recentes, os obstáculos epistemológicos que impediram a Sociologia de tratar delas são, nessa medida, inevitáveis e necessários, o que significa que devem ser avaliados de modo que a própria Sociologia deva ser reformulada quanto à sua abordagem da relação homem- natureza. 19 Capitulo 1 Em que se pode reconhecer o obstáculo epistemológico? Quando nos propomos a investigar as condições subjetivas da produção da ciência é em termos de obstáculos que a questão do conhecimento deve ser colocada. É sobre esse ponto de vista que nossas problematizações são propostas a respeito de certos postulados durkheimianos em Da divisão do trabalho social. O presente capítulo tem dois objetivos: o primeiro é mostrar em que consistem os obstáculos epistemológicos, ou em quê se pode reconhecê-los. Trazemos subsídios da filosofia de Bachelard a respeito da formação epistêmica do pensamento, como o contexto histórico-filosófico- científico e a descontinuidade, que constituem o novo espírito científico. O segundo objetivo é mostrar que a Sociologia não nasceu de um campo epistemológico já estabelecido, mas é oriunda dos primeiros tempos da modernidade. Não recebeu de antemão nenhum de seus postulados, pois o estudo do homem pelo homem na figura do cientista social é um fenômeno eminentemente moderno. Para que seja possível compreender a formação da Sociologia no campo epistemológico é necessário que se visualize os estudos desenvolvidos por alguns saberes que inauguram o paradigma moderno da Ciência e que servem de base para a constituição das análises sociológicas. O século XIX configura uma nova positividade distinta do saber clássico do século XVII: foi só no século XIX que se constituiu uma consciência epistemológica do homem. Nesse sentido, argumentamos que a genealogia que levou ao surgimento da Sociologia seguiu um contexto em que é possível se observar, na atualidade, um obstáculo epistemológico. O pensamento verdadeiramente científico deve se postular, segundo o ponto de vista fundamental de Bachelard, contra uma tendência natural; esse apontamento está longe de formar uma doutrina da objetividade do cientista frente ao conhecimento. Aqui, nos colocamos sob o postulado de que o objeto não pode ser designado inicialmente de modo objetivo. Nesse contexto, há uma noção-chave referente ao fracasso da objetividade, cujo papel é frear o estímulo5, pois é sob a forma de estímulo que o espírito formula a primeira observação. Para afastar o estímulo da base da observação é necessário chegar 5 O estímulo, e a experiência que dele resulta, está envolvido por forças sensíveis, ligadas à satisfação íntima, e não chega a se correlacionar com a evidência racional. (BACHELARD 1996, 294). 20 ao controle social da ciência, pois só ele poderá nos dizer se o conhecimento sofreu uma reforma ou se é meramente um eco. Portanto não será considerado produtivo ao conhecimento deixar o espírito solitário6 entregue a seu trabalho. Todavia, essa configuração é específica da ciência contemporânea, nela nossas lições de objetividade devem ter início com a constatação de nossos erros íntimos e primeiros. Para Bachelard (1996), não existe operação objetiva onde não se tem a consciência do erro: antes de tudo devemos confessar nossos erros para que os outros também o façam. Em outros termos, para que a ciência seja objetiva e plenamente educadora é preciso que seu ensino seja socialmente ativo. É primordial ao avanço do espírito cientifico ter em mente que cabe ao professor mostrar ao aluno que ele pode descobrir, antes de mostrar- lhe que pode inventar7. No entanto, quando Bachelard se refere à história científica, está considerando majoritariamente as Ciências Naturais, ou ciências duras, como a Física e a Química, também serão feitas algumas menções à Biologia. A Matemática será mencionada para afirmar que seu desenvolvimento científico e espiritual segue um ritmo maravilhosamente progressivo, porque a seu ver essa área do saber desconhece momentos de letargia e fadiga. Bachelard, além de ser um racionalista, é também etapista, ou poder-se-ia dizer um evolucionista. Se não fosse por essa razão poderíamos até ponderar que o que ele faz com exemplos das ciências duras Foucault realiza com exemplos das ciências que vieram a possibilitar a instituição das ciências ditas humanas. Entretanto, Foucault rejeita tal perspectiva, ele não propõe que as Ciências Humanas emergiram porque o espírito científico progrediu, porque não é evolucionista. O que este último faz é uma genealogia do nascimento do homem como objeto de estudo, o que somente foi possível quando as ciências humanas puderam se constituir enquanto área do conhecimento. Mas afinal o que é uma genealogia? É um estudo que exige meticulosidade e paciência porque trabalha com um grande numero de materiais acumulados, trabalha com pergaminhos riscados, embaralhados e reescritos por diversas vezes. Ela não se opõe a história, ela se opõe a busca e a pesquisa da “origem”. Foucault (1979) empresta 6 “[...] Assim a precisão discursiva e social destrói as insuficiências intuitivas e pessoais. A ciência do solitário é qualitativa. A ciência socializada é quantitativa” (BACHELARD 1996, p. 297). 7 Como pode ser observado mediante a afirmação na qual Bachelard ressalta que “[...] os professores substituem as descobertas por aulas. Contra essa indolência intelectual, que nos retira aos poucos o senso da novidade espiritual, o ensino das descobertas ao longo da história científica pode ser de grande ajuda.” (1996, p. 303). 21 de Nietzsche a noção genealógica e, em concordância com o mesmo, tem o cuidado de escutar – por assim dizer – a história. Nesse sentido, a genealogia é o estudo da proveniência, somente ela permite que reencontremos sob um único aspecto, um único caráter ou conceito a proliferação de acontecimentos, por meio dos quais – graças também aos quais e contra os quais – eles se formaram. É isso que Foucault realiza em As palavras e as coisas, é sob esse postulado que ele examina a emergência do homem como objeto de estudo. Nas palavras do autor: [...] A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecimento: sua tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma delineada desse início. Nada que se assemelhasse à evolução de uma espécie, ao destino de um povo. Seguir o filão complexo da proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou ao contrário as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente. (FOUCAULT 1979, p. 21). Entendemos, aqui, que as análises do tipo sociológicas se conformaram através de lutas; a pesquisa da proveniência tem a intenção de mostrar a heterogeneidade dos acontecimentos. A postura do genealogista é indagar-se sobre que saber é esse, que convicção é essa a qual o cientista está a examinar. E vai além ao realizar – um pouco que seja – a análise genealógica do cientista, seja daquele que coleciona, que registra ou daquele que demonstra ou refuta. A análise calcada na proveniência é a ferramenta do genealogista e refere-se diretamente ao corpo8 e a tudo que diz respeito a ele, como superfície de inscrição dos acontecimentos. Por essa razão a genealogia, enquanto análise da proveniência, se dá no ponto de articulação do corpo com a história – o esforço genealógico se dá, portanto, buscando mostrar o corpo completamente marcado pela história e a história arruinando o corpo. Se Foucault, em seu esforço genealógico preocupa-se com o corpo, Bachelard, por sua vez, preocupa-se com o espírito. Para Bachelard os obstastáculos são intrínsecos ao próprio ato de conhecer, não há conhecimento possível sem que sejam superadas as 8 Foucault escreve em um momento em que se está questionando o cogito cartesiano. Ele então é tributário de um movimento que rejeita a máxima “Penso, logo existo”. Pois a seu ver é o corpo que conhece, seus escritos devem ser entendidos nesse sentido. Há uma forte negação das concepções essencialistas, ele nega a identidade e o por esse motivo o esforço genealógico não busca a origem dos acontecimentos. Mas, ao contrário, busca a procedência. 22 lentidões e conflitos com as quais nos deparamos quando nos propomos a conhecer. Aí poderemos ver causas de estagnação, causas de regressão e causas de inércia as quais denominamos obstáculos epistemológicos9. Assumimos a perspectiva, segundo a qual, não é possível fazer ciência sem errar, sem ter de deformar ou reformar os conceitos. Assim as ciências humanas puderam se constituir: no ponto de articulação corpo, história e espírito. O terreno no qual residem as Ciências Humanas, em geral, e a Sociologia, em particular, não lhes foi concedido gratuitamente e seus problemas também não se formularam de modo espontâneo. Muitos foram os desdobramentos epistemológicos que tiveram de ocorrer antes que análises do tipo sociológicas pudessem ser feitas. Como explica Foucault (1999), a economia política10 teve de ocupar o espaço antes ocupado pela análise das riquezas, a biologia11 ocupou o espaço outrora ocupado pela história natural e a gramática geral cedeu espaço à filologia12. O homem surge na Biologia, na Economia Política e na Filologia enquanto invenção desses saberes. A partir de então ele não se situa mais como modelo último e perfeito, resultado de um quadro bem ordenado, mas como objeto a ser desvendado e descoberto. Ele agora é dado à experiência como um corpo físico dotado de estrutura e funcionamento que podem ser explorados. 9 “A noção de obstáculo epistemológico pode ser estudada no desenvolvimento histórico do pensamento científico e na prática da educação.” (BACHELARD 1996, p. 21). A noção de obstáculo pedagógico é bastante desconhecida na educação, surpreendentemente há professores de ciências que não compreendem que alguém, ou melhor, que um aluno não compreenda; não se leva em conta que o jovem aluno da aula de física carrega conhecimentos empíricos já sedimentados pela vida cotidiana. Desse modo, antes de “adquirir” uma cultura experimental ele tem de “mudar” de cultura experimental (ibidem, p. 23). 10 Segundo Machado (1981), o processo de ordenação clássica situava-se em cima do valor. O comércio e a troca eram utilizados para analisar a formação do valor com o intuito de examinar as teorias da circulação e da distribuição das riquezas. Já na modernidade o trabalho passa a ser a medida de valor da riqueza e isso se inaugura com Ricardo. Foucault (1999) defende que é através das análises de Ricardo que se torna possível afirmar que o valor deixa de ser da ordem do signo e passa a ser da ordem do produto. 11 Foucault (1999) afirma que na modernidade são às análises de Cuvier que passam a dar importância aos órgãos como partes de sistemas comandados uns pelos outros. Aí é possível notar a diferença que se estabeleceu entre o saber clássico e o moderno. Na medida em que no primeiro momento a história natural versava sob as coisas vistas. Já no segundo estava-se atento para as relações que elas estabelecem entre si e com a função que desempenham. Segundo Machado (1981,152): “[...] o que se privilegia em um órgão não é, portanto, sua configuração, mas a função que ele contribui para realizar. Daí o interesse pelo estudo das grandes funções orgânicas como a respiração, a digestão, a circulação.”. 12 Para Foucault (1999) é possível perceber a distinção entre o pensamento clássico e o moderno também no domínio da gramática geral, que no classicismo preocupava-se em articular os sons um a um, dispondo-os parte por parte em uma ordem linear dos mais simples aos mais complexos em termos das combinações que deles poderiam surgir. Dessa forma Machado (1981) ressalta que no saber clássico as palavras representavam as coisas e o discurso tinha a incumbência de denominar o visível através de um sistema de signos; traduzindo em palavras aquilo que era visto. 23 Num contexto bastante anterior a emergência das análises sociológicas, Foucault pondera que o saber do século XVI não sofria de falta de estrutura, mas sim de uma meticulosidade tão rigorosa que se lhe impôs abarcar, por exemplo, a relação entre magia e erudição, duas coisas tão distintas. Nele prepondera uma concepção de conhecimento fortemente ligada à noção de interpretação, no sentido de decifração do que está como que dado ou impresso no mundo. Deste modo, nos termos dessa epistémê, não há nada vasto o suficiente que o homem não seja capaz de descobrir, a adivinhação faz parte deste conhecimento em si mesmo e os signos que passam a designar o que outrora estava oculto nas profundezas da terra só o fazem na medida em que se assemelham as coisas. “[...] Conhecer será, pois, interpretar: ir da marca visível ao que se diz através dela e, sem ela, permaneceria palavra muda, adormecida nas coisas.” (FOUCAULT 1999, p. 44). A linguagem não estava aí separada do mundo e conformava o lugar da verdade, enunciando-a e a manifestando. Todavia, este entrecruzamento da linguagem com as coisas dá origem a um privilégio absoluto da escrita, evidenciando seu papel fundamental no Ocidente. “Esse privilégio dominou todo o Renascimento e, sem dúvida, foi um dos grandes acontecimentos da cultura ocidental.” (ibidem, p. 52-53). Desta primazia da escrita decorre que o que se vê e o que se lê, bem como o observado e o relatado são indissociáveis. Ao se comunicar com os homens, Deus depositou no mundo palavras escritas, portanto, somente a escrita detinha a verdade. Vemos que já nos distanciamos bastante desse passado, o que evidencia nos termos da proposta de Bachelard que o campo epistemológico, que as ciências humanas percorreram até chegarem a ser o que são na contemporaneidade, deu-se na base de obstáculos. Sugerimos isso porque se o homem como objeto de ciência não existia no século XVI, XVII e XVIII, foi na base da superação das epistémês anteriores que ele pôde constituir-se. Na base da superação dos obstáculos que ele se tornou possível, assim como a Sociologia tornou-se também possível pelo mesmo motivo, afinal ela é tributária desse passado. Assumimos, para fazer tal indagação, o ponto de vista de Bachelard (1996, p. 19) quando ele aponta que: “[...] um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado. Hábitos intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa.”. Chega-se ao ponto em que se prefere o que confirma nosso saber àquilo que o contradiz; isso acontece porque o instinto de conservação – o autor, aliás, faz questão de invocar o instinto – gosta mais de respostas 24 do que de perguntas, ele se opõe nessa medida ao instinto de formulação que prefere as perguntas às respostas. Costuma-se, então, aceitar como mais claras as ideias que se usa com maior frequência. Inversamente, o progresso científico acontece quando abandonamos a avidez pela unidade dos fenômenos: a unidade da ação do Criador, a unidade da natureza, a unidade lógica. Parece lícito afirmar que muito do que se encontra na história do pensamento científico de nada lhe serviu, pois alguns conhecimentos – mesmo estando corretos – impedem cedo demais o desenvolvimento de outras pesquisas mais úteis. Posto isso, cabe ao epistemólogo vasculhar os documentos selecionados pelo historiador e interpretar os fatos como ideias. O historiador, por sua vez, compreende as ideias como fatos. Para um historiador um fato equivocadamente interpretado por uma época não deixa de ser um fato só porque está equivocado. Já para um epistemólogo ele é um “contra-pensamento”: é obstáculo. Toda cultura científica deve estar permanentemente aberta e dinâmica. E se quisermos caracterizar os elementos cognitivo-afetivos indispensáveis ao progresso do espírito científico o exame do psiquismo não pode ser dispensado: conhecer os obstáculos epistemológicos é um passo para delinear os rudimentos de uma psicanálise da razão. A primeira observação é o primeiro obstáculo à cultura científica, apenas o ato de descrevê-la já nos encantou, porque ela é cheia de imagens, é concreta, é fácil, é acessível. Todavia, Bachelard busca mostrar que há rupturas e não continuidades entre a observação e a experimentação. Para o pensador, no momento seguinte às generalizações das primeiras observações já não se observa mais nada 13. Para os fins desta pesquisa, trazemos uma das principais teses da obra A formação do espírito científico - Por uma psicanálise do conhecimento, de Bachelard (1996): o espírito científico deve se formar enquanto se reforma, deve se formar contra a Natureza, ou seja, contra o fato fácil, contra o arrebatamento natural em nós mesmos e fora de nós. Entendemos que, segundo essa tese, todo e qualquer conhecimento se dá num esforço contra o que já existe, ele tem de irromper, preparar e criar condições para a sua própria existência, há um esforço para que ele possa se conformar, ele próprio é fruto desse esforço para constituir-se. Nesses termos consideramos a emergência do homem como objeto de ciência e, por conseguinte, a emergência da Sociologia como área do saber. 13 “[...] Da observação ao sistema, passa-se assim de olhos deslumbrados a olhos fechados.” (BACHELARD 1996, p. 25). 25 Todavia, tal tese não é facilmente captada porque há em nossa época, entre a Natureza e o observador, livros muito corretos e bem apresentados, costumeiramente copiados uns dos outros: um costume da educação científica. Já não ocorria o mesmo no século XVIII, porque os livros de ciência não eram controlados pelo ensino oficial. Tínhamos então os bons e os maus livros de ciências nos quais o ponto de partida era a natureza. O autor deste tipo de livro14 mais parece um conferencista, ele dialoga diretamente com o leitor, faz indagações fáceis, porque as preocupações que adota são naturais. Isso fazia com que a hostilidade oriunda da natureza parecesse mais direta ainda. Hoje nossos temores não vêm mais da hostilidade da natureza; é do próprio homem que o homem recebe os sofrimentos maiores – os fenômenos naturais estão agora explicados, por isso estão desarmados, não oferecem tanto perigo como outrora. O trecho que segue deixa clara essa diferença entre uma narrativa do século XVIII e uma narrativa contemporânea. Antes do fim da contradança, os relâmpagos, que víamos brilhar no horizonte, mas que eu julgava fossem raios de calor, aumentaram muito; e o barulho do trovão abafou a música. Três senhoras abandonaram precipitadamente a pista, seus cavalheiros a seguiram, instalou-se a desordem geral, e os músicos silenciaram... Foi a essas circunstancias que atribuo os trejeitos esquisitos de várias damas. A mais comedida sentou-se a um canto, de costas para a janela, com a mão tapando os ouvidos. Outra, ajoelhada diante da primeira, escondia a cabeça no colo desta. Uma outra, abraçada a suas duas irmãs, beijava-lhes o rosto sem parar de chorar. Algumas queriam voltar para a casa; outras, ainda mais desarvoradas, já nem tinham presença de espírito para reagir contra a temeridade de alguns jovens atrevidos, ocupados em recolher dos lábios dessas beldades aflitas as preces que, em seu apavoramento, dirigiam ao céu. (GOETHE 1999, p. 117). Dificilmente tal narrativa seria mantida em um romance atual, ela não atingiria nenhum grupo social atualmente existente. Em sociedades como a nossa não chamaria nenhuma atenção, porque a questão referente ao trovão está bastante superada. É importante destacar que a posição social dos leitores tendia a influenciar o tom da narrativa no período pré-científico, do mesmo modo as trocas de opiniões entre os leitores, curiosos e sábios eram costumeiras. Havia no século XVIII uma grande quantidade de erudição nos livros científicos o que afetava bastante a organicidade da obra; ao inverso a ciência tenta em seu ensino regular afastar-se de toda referência à erudição. Essa colocação de Bachelard corrobora uma afirmação de Foucault, 14 “Peguem um livro científico do século XVIII e vejam como ele está inserido na vida cotidiana.” (BACHELARD 1996, p. 31). 26 mencionada anteriormente, onde esse último afirma que na epistêmé do século XVI não havia falta de rigor, mas ao contrário, havia uma meticulosidade tão grande que lhe impunha a necessidade de abraçar relações das mais dispares como a relação entre magia e erudição por que nada podia lhe escapar. Desse modo poder-se-ia ver na redução da erudição um critério para reconhecer um bom livro científico moderno. Atualmente não existe nada em nosso saber que nos remeta a esse passado, na leitura de Foucault, a não ser a literatura, de modo alusivo e indireto, na qual é possível dispor da arte de fazer-signo. Ela só foi possível do século XVI até nossos dias e se fez autônoma na medida em que se constituiu como “contra-discurso”. Liberta de qualquer outra linguagem, no pensamento moderno ela não equivale à comprovação da linguagem, mas sim a sua compensação. A linguagem da literatura não está em busca daquela palavra primeira, ela floresce sem começo, sem termo, sem prescrições, seu percurso reside no devir do dia-a-dia: essência do texto literário propriamente dito. [...] Daí, toda a epistémê da cultura ocidental se acha modificada em suas disposições fundamentais. E em particular o domínio empírico do homem do século XVI via ainda estabelecerem-se os parentescos, as semelhanças e as afinidades em que se entrecruzavam sem fim a linguagem e as coisas – todo esse campo imenso vai assumir uma configuração nova. (FOUCAULT 1999, p. 74-75). Nessa nova configuração era fundamental para a epistémê clássica (século XVII) a relação com a máthêsis15 que permitiu estabelecer entre as coisas – mesmo as de caráter não-mensurável - uma sucessão ordenada. Ao contrário do que à primeira vista nos possa parecer uma relação com a máthêsis não significa que todo conhecimento deveria ser absorvido e reduzido ao saber matemático. Uma vez que, longe disto, a busca pela máthêsis fez surgir novas áreas do saber como a gramática geral, a história natural e a história das riquezas tendo por base uma ciência possível da ordem. “Essa relação com a Ordem é tão essencial para a idade clássica quanto foi para o 15 “O que torna possível o conjunto da epistémê clássica é, primeiramente, a relação a um conhecimento da ordem. Quando se trata de ordenar as naturezas simples, recorre-se a uma máthêsis cujo método universal é a Álgebra. Quando se trata de por em ordem naturezas complexas (as representações em geral, tais como são dadas na experiência), é necessário constituir uma taxinomia e, para tanto, instaurar um sistema de signos. Os signos estão para a ordem das naturezas compostas como a álgebra está para a ordem das naturezas simples. Mas na medida em que as representações empíricas devem ser suscetíveis de se analisar como naturezas simples, vê-se que a taxinomia se reporta inteiramente à máthêsis; em contrapartida, posto que a percepção das evidências é apenas um caso particular da representação em geral, pode-se dizer igualmente que a máthêsis não é mais do que caso particular da taxinomia. [...] A taxinomia implica, ademais, um certo continuum das coisas (uma não-descontinuidade, uma plenitude do ser) e uma certa potência da imaginação, que faz aparecer o que não é, mas permite, por isso mesmo, trazer à luz o contínuo.” (FOUCAULT 1999, p. 99-100). 27 Renascimento a Interpretação.” (FOUCAULT 1999, p. 74-75). O modo como os signos exercem sua estranha função mudou expressivamente porque o signo não devia mais ser reconhecido, desvendado, mas sim constituído como um ato de conhecimento. Neste momento o antigo parentesco do saber com a divinatio16 chegou ao fim. Mediante tais observações, é possível perceber uma diferença entre o pensamento científico do século XVII-XVIII e o pensamento científico contemporâneo, de um lado, pelas análises de Bachelard e, por outro lado, pelas considerações feitas por Foucault. O primeiro não deixa de notar que a multiplicação das ocasiões de curiosidade e a satisfação imediata da curiosidade ao invés de ser um benefício é um obstáculo ao pensamento científico. Pois é a admiração e as imagens que são privilegiadas em detrimento do conhecimento e das idéias. “Ao tentar reviver a psicologia dos observadores iludidos vamos constatar a implantação de uma era da facilidade que retira do pensamento científico o sentido do problema, logo, a mola do pregresso.” (BACHELARD 1996, p. 36). Bachelard reuniu vários exemplos sobre a ciência da eletricidade e constatará que para o espírito pré-científico tal fenômeno é considerado muito fácil de ser reconhecido, afastado dos cálculos e dos teoremas, próximo do natural. Tal colocação se justifica porque a seu ver os fenômenos não eram bem circunscritos, mesmo que o sujeito tivesse feito descobertas pessoais pacientemente aguardadas, ele as atribuía ao acaso. Nas descobertas científicas desse período a variedade era o importante e não a variação. Essa busca pela variedade leva o espírito a agir sem método, indo de um objeto para outro tentando apenas ampliar conceitos. Um grande valor é dado ao que é natural, no sentido de habitual, sendo a eletricidade um princípio natural, o espírito pré- científico chegou até a pensar que por meio dela pudéssemos distinguir os diamantes verdadeiros dos falsos, porque o espírito pré-científico costuma ter em mente que os produtos naturais são mais ricos que os artificiais. Muitas descobertas foram apresentadas como espetáculo de curiosidade no decorrer do desenvolvimento científico, costume pouco fecundo, hoje já superado. As convicções primeiras, a necessidade de certeza imediata e a necessidade de partir do certo se consolidaram contra uma teoria da racionalização discursiva e 16 Deus não mais falaria conosco alojando seus signos na natureza para que nós os adivinhássemos. “[...] O signo não espera silencioso a vinda daquele que possa reconhecê-lo: ele só se constitui como ato de conhecimento” (FOUCAULT 1999, p. 81). 28 complexa, na qual a experiência para ser racionalizada necessita estar inserida em um jogo de razões múltiplas. Desse modo, de acordo com o filósofo, é preciso que nos afastemos das “racionalizações” baseadas nas primeiras observações porque elas são na formação do espírito científico a expressão de uma vontade de estar certo. Uma vontade de ter razão, sem demonstrar, no entanto, nenhuma prova explícita. Crê-se que não se está interpretando, mas o espírito está dando um valor declarativo. É particularmente difícil ir contra a adesão do “fato” primitivo por isso a psicanálise do conhecimento objetivo encontra muitas dificuldades. É possível, no máximo, retificar e explicar as experiências primeiras por novas experiências porque as afirmações primeiras parecem insolúveis. É possível encontrar entre os sonhadores e os especialistas os mesmos procedimentos viciados. Aliás, Bachelard nos incentiva a procurar sistematicamente convergências psicológicas, literárias e científicas. Pois ao chegarmos aos mesmos resultados sonhando ou fazendo um experimento provamos que o experimento é somente um sonho e a psicanálise do conhecimento objetivo pode dessa forma ser realizada pela simples contribuição de um exercício literário paralelo. Por outro lado, entendemos com Foucault, no que se refere ao campo epistemológico que antecedeu e ao mesmo tempo tornou possível a emergência das análises do tipo sociológicas, que as condições de possibilidade da história natural como área do saber exigiram que a natureza fosse pensada em suas especificidades. Não foi a natureza que mudou, foi a relação do homem com a natureza que mudou, foi por isso que a natureza teve condições de emergir como objeto de estudo. Pois da mesma forma que concebemos o homem como uma categoria de pensamento, a natureza também deve ser considerada uma categoria de pensamento. Argumentamos, em concordância com Foucault (1999), que não existe a natureza em si mesma: o que existe é uma produção humana tentando designar a natureza. Fazer a história de uma planta ou de um animal era antes do século XIX discorrer acerca do que se via sobre eles, de toda a trama de signos neles descobertos e depositados. A natureza tão qual a concebemos, ou melhor, nos adiantando um pouco, tal qual a sociologia a partir de Durkheim irá concebê-la faz parte de um saber que foi se formando enquanto se reformava. Não é uma perspectiva apodítica, imutável e inquestionável. Ao contrário, a categoria de pensamento natureza sofreu inúmeras transformações e continua sofrendo. Assumindo esse ponto de vista é possível afirmar 29 que a separação entre a sociedade de um lado e a natureza de outro não foi prescrita de antemão. O autor explica que até o século XVI e meados do século XVII a concepção de História tal qual a conhecemos não existia, o que havia eram histórias nas quais se misturam as lendas sobre um animal ou planta, os medicamentos que se fabricam com sua substância, os alimentos que fornecia, os brasões onde figura e o que os viajantes ou os antigos dizem deles. Para Foucault, a história natural consiste na denominação do visível, donde decorre sua aparente simplicidade. Ela só foi possível na medida em que as coisas e a linguagem estavam ambas ligadas ao domínio da representação17. Todavia, da separação entre as coisas e a linguagem emerge a condição de exeqüibilidade da história natural como tarefa, ou seja, se deveria aproximar a linguagem do olhar e as coisas olhadas das palavras. No século XVII, a observação ganha novas configurações e, a partir deste momento, as demais ferramentas que auxiliavam no conhecimento das coisas também; o que equivale a dizer que se exclui deste cenário o gosto, o sabor, as cores e o ouvir- dizer. A variabilidade e a incerteza deles decorrentes impossibilitam a constituição de uma análise18 universalmente aceitável. Nessa atmosfera19 que tornou parda a observação, uma das maiores capacidades oriundas da visão: a de apreender as cores, por exemplo, não deveria mais ser mencionada, o que acabou por impossibilitar a fundamentação de comparações necessárias nelas baseadas. A natureza em todo o pensamento clássico nunca existiu como tema específico, como ideia ou como fonte indefinida do saber, mas como homogeneidade temporal das identidades e das diferenças sujeitas a ordem. Neste momento se instauraram as 17 “[...] De fato, não foi uma desatenção milenar que subitamente se dissipou, mas um campo novo de visibilidade que se constituiu em toda a sua espessura.” (FOUCAULT 1999, p. 181). 18 “[...] O campo de visibilidade onde a observação vai assumir seus poderes não passa do resíduo dessas exclusões: uma visibilidade que, além de liberada de qualquer outra carga sensível, é parda.” (ibidem, idem). 19 No que se refere ao tato algo semelhante ocorre, pois ele é utilizado de forma limitada e estreita, impedido de empreender oposições das mais evidentes como liso e rugoso, pois tal oposição passa a ser da ordem da visão. “[...] O uso do microscópio fundou-se numa relação não-instrumental entre as coisas e os olhos. Relação que define a história natural.” (ibidem, p. 183). Contudo, o fato de os objetos a que se deseja conhecer se apresentarem melhor e de modo mais preciso quando os observamos por meio das lentes do microscópio não significava que a visão nua e crua (por assim dizer) estivesse superada. E uma das provas que podem atestar isso é em concordância com Foucault que o microscópio foi construído justamente para esclarecer e resolver problemas da geração da visão propriamente dita, isto é, como as formas, as proporções e as disposições encontradas em indivíduos adultos de uma determinada espécie podem ser passadas através das idades mantendo com rigor as identidades. “[...] Tudo isso é de grande importância para a definição de uma história natural quanto ao seu objeto.” (ibidem, p. 188). 30 condições de possibilidade da biologia20. A vida21 deixa de ser o que se pode distinguir de modo mais ou menos certo, ela é aquilo em que todas as distinções possíveis entre os seres se fundam. É toda a experiência clássica da diferença que então se abala e, com ela, a relação entre o ser e a natureza. Nos séculos XVII e XVIII, a diferença tinha por função religar as espécies umas às outras e preencher assim a distância entre as extremidades do ser; desempenhava um papel de “catenária”: era tão limitada, tão tênue quanto possível; aloja-se no quadriculado mais estreito; era sempre divisível e podia cair mesmo abaixo do limiar da percepção. (FOUCAULT 1999, p. 375). Foi necessário antes da biologia se consolidar e, ao mesmo tempo, como condição para que ela pudesse emergir, que a história natural se consolidasse. O que exigiu muitas mudanças, como por exemplo: exigiu que a classificação fosse guiada segundo o princípio de menor diferença entre as coisas, ou seja, foi preciso que a história natural designasse de modo preciso e pleno o lugar que cada ser ocupa na disposição geral do conjunto. E neste contexto a categoria natureza pôde ser postulada quando pôde ser nomeada22. São esses desdobramentos que tornaram possíveis as condições de existência da biologia. Na tentativa de constituir uma classificação metodologicamente rigorosa, tal qual um sistema, chegou com Cuvier23 a descoberta da regra de subordinação dos caracteres que se firmava aquém de toda classificação eventual. O Mesmo e o Outro pertenciam a um único lugar na “história natural: [...] alguma coisa como a biologia torna-se possível quando essa unidade de plano começa a desfazer-se e as diferenças surgem do fundo de uma identidade mais profunda e como que mais séria do que ela.” (FOUCAULT 1999, p. 365). Tendo em vista o que precede não existia nem a vida, nem a sua ciência, tampouco filologia, do mesmo modo a economia política, tal qual a conhecemos, 20 Do ponto de vista da arqueologia, que “[...] define as regras de formação de um conjunto de enunciados. Manifesta, assim, como uma sucessão de acontecimentos pode, na própria ordem em se apresenta tornar-se objeto de discussões, ser registrada, descrita, explicada, receber elaboração em conceitos e dar a oportunidade de uma escolha teórica [...] A arqueologia não nega a possibilidade de enunciados novos em correlação com acontecimentos exteriores. Sua tarefa é mostrar que em que condições pode haver tal correlação entre eles, e em que consiste precisamente (quais seus limites, forma, código, lei de possibilidade).” (FOUCAULT 1987, p. 191-192). 21 “Mas o corte entre o vivo e o não-vivo jamais é um problema decisivo.” (ibidem, p. 223). 22 “É por isso, sem dúvida, que a história natural, na época clássica, não se pode constituir como biologia. Com efeito, até o fim do século XVIII, a vida não existe. Apenas existem seres vivos.” (ibidem, p. 222). 23 “[...] Considerada na sua profundidade arqueológica e não ao nível mais aparente das descobertas, das discussões, teorias, ou das opções filosóficas, a obra de Cuvier tende de longe para o que viria a ser o futuro da biologia.” (ibidem, p. 375). 31 também não existia, simplesmente por que a produção industrial não estava alocada na ordem do saber, o que existia antes disso era uma análise das riquezas. Neste sentido, é necessário evitar uma leitura retrospectiva da análise das riquezas ou de qualquer outra área do conhecimento aqui mencionada. Análises desse tipo somente nos levariam a unidade ulterior de uma economia política ainda na eminência de constitui-se: é justamente desse modo equivocado que os historiadores das ideias tem se reportado ao enigmático nascimento desta área do saber. No entanto, pouco a pouco o século XVIII lançou as bases aos grandes problemas que a economia positiva passaria, então, a tratar com instrumentos específicos e melhor adaptados24. No século XVIII, não havia uma cidadela de sábios, pois a sociedade culta sequer chegava a formá-la, havia laboratórios em casas particulares que em nada se pareciam com os laboratórios modernos: o que, segundo Bachelard (1996, p. 42), era um “pretexto para conversas de salão”. Tal tipo de público era frívolo mesmo quando procurava se dedicar a coisas sérias, as experiências que faziam evidenciavam sempre o lado “pitoresco” e nunca o que era “essencial”. É desejável, mediante o que até aqui foi exposto, que tenha ficado clara – em linhas bastante gerais – a diferença entre o saber de nosso tempo (o saber contemporâneo) e os saberes anteriores a ele; tanto nos termos da epistêmé, de um lado, com Foucault, como nos termos do desenvolvimento do espírito cientifico, de outro lado, com Bachelard. Entre diversos exemplos de Bachelard, citamos um que nos mostra bem em que consiste um contra-pensamento, um obstáculo. Onde notadamente não se procurou munir-se de provas antes de fazer afirmações, bem como não se procurou superar a opinião e a primeira observação, mesmo assim tal pensamento logo atingiu status de generalização25, vejamos a seguir que rapidamente: 24 Como é possível perceber nessa passagem: “[...] Na realidade, os conceitos de moeda, de preço, de valor, de circulação, de mercado não foram pensados no século XVIII a partir de um futuro que os esperava na sombra, mas sim, sobre o solo de uma disposição epistemológica rigorosa e geral.” (FOUCAULT 1999, p. 229). 25 Tais valorizações das imagens e do pitoresco causaram e continuam a causar desastres nas classes do curso elementar, ao ver de Bachelard, porque os alunos prestam mais atenção nas esquisitices dos aparelhos utilizados para realizar a experiência, no nome diferente que ela recebe, deixando de olhar o que no fenômeno é fundamental. O fato das experiências serem demasiadamente marcantes e cheias de imagens faz o aluno circular por falsos centros de interesse. Portanto, segundo sua proposta pedagógica cabe ao professor passar da experiência à lousa o mais depressa possível a fim de abstrair o conceito rapidamente, pois vale mais a ignorância e o desconhecimento total do que um conhecimento já esvaziado de seu princípio fundamental. 32 [...] o sol dos pirotécnicos recebeu seu nome do astro solar. E, de repente, por estranha recorrência, fornece a imagem para ilustrar uma teoria do Sol! Tais contrapassos entre as imagens acontecem quando não se faz um trabalho de psicanálise da imaginação. Uma ciência que aceita as imagens é, mais que qualquer outra, vitima das metáforas. Por isso o espírito científico deve lutar sempre contra as imagens, contra as analogias, contra as metáforas. (BACHELARD 1996, p. 36). Consiste então em erro grave entender o conhecimento empírico como assertivo, limitado à descrição dos fatos. Ademais, basta analisar a palavra-chave dessa nossa afirmação, o termo grave, para nos remetermos a ingênuas imagens imediatas, longe das verdades objetivas, ela provoca apenas a convicção comum. A mera descrição não respeita as regras do despojamento sadio, está circunscrita em volta de núcleos iluminados26, nos quais os obstáculos se estabelecem. Vemos através de outro exemplo, o da experiência alquímica, que o que encontramos de imediato na experiência primeira é a nós mesmos, são nossos desejos inconscientes, nossas surdas paixões. Para demonstrar isso Bachelard (1996, p. 57) irá se apoiar no que ele chama de caráter “psicologicamente concreto” da alquimia para evidenciar algumas fantasias referentes à matéria. Na tentativa de mostrar suas bases afetivas e o seu dinamismo subjetivo: “[...] A experiência alquímica, mais que qualquer outra é dupla: é objetiva e subjetiva.” (ibidem, p. 58). Foram os químicos e os historiadores do século XIX que condenaram a alquimia, embora tenham chegado a reconhecer-lhe algumas descobertas positivas; há sempre certa “resistência” a ela sem que o motivo fique evidente. “[...] Do lado dos literatos de Rabelais a Montesquieu, o juízo é ainda mais superficial. O alquimista é visto como uma mente perturbada a serviço de um coração voraz.” (ibidem, p. 58). O alquimista é considerado um vencido e suas experiências estão fadadas ao insucesso. Tal interpretação é demasiadamente negativa o que gera escrúpulos, pois como tal doutrina tão insólita e fútil pôde ter durado tanto? Como pôde permanecer estando presente até os dias atuais? Talvez isso ocorra por que: “[...] A alquimia deve ter no inconsciente fontes mais profundas.” (ibidem, p. 59). Após tentativas de explicar a persistência de um simbolismo tão completo e tão poderoso, nota-se que os químicos desconsideraram a radical oposição entre a alquimia e a química. Porque tal simbolismo não poderia ter-se transmitido por tantos séculos se não estivesse contido numa realidade psicológica incontestável. 26 [...] O pensamento inconsciente se concentra em torno desses núcleos e, assim, o espírito se volta para si mesmo e se imobiliza. (BACHELARD 1996, p. 56). 33 Para compreender o sentido da mentalidade alquímica, temos de efetuar uma inversão dos interesses, isto é, temos de entender que um fracasso material, ou seja, uma experiência que não surtiu a ação material esperada não destrói para o alquimista o valor psicológico de sua espera. O mesmo não acontece quando o químico moderno depara-se com esse tipo de fracasso. Para este último, um fracasso material é um fracasso intelectual. Quando por exemplo uma experiência desmente a teoria há quem a repita achando que cometeu um erro de procedimento. Em alquimia quando uma experiência não logra êxito é porque não foi usada a matéria adequada, assim quando um ovo que foi chocado não eclode pode-se apelar para o vago ambiente que não o levou ao amadurecimento – o alquimista está liberado para invocar, por exemplo, a falta de tempo ou até mesmo a falta de impulso íntimo – logo, todos esses elementos reunidos podem explicar internamente os acidentes da experiência alquímica. Há um modo mais íntimo ainda de interpretar um fracasso material em alquimia: questionando a pureza moral do experimentador, pois se mesmo quando utilizando os símbolos corretos ele não consegue produzir o efeito esperado o que se revela é uma falta de moral, um déficit psicológico, não é um simples fracasso. Pois como será possível antes de ter purificado a sua própria alma que ele seja capaz de purificar a matéria? “Muitas vezes para lograr êxito em uma experiência o alquimista tem de dar provas de grande austeridade. Fausto, herético e pervertido, precisa da ajuda de um demônio para saciar suas paixões.” (BACHELARD 1996, p.63). Em síntese, a alquimia é, antes de qualquer coisa, uma iniciação moral e não intelectual deve-se julgá-la objetivamente acerca de seus resultados objetivos e subjetivamente sobre seus resultados morais; é um equivoco fazer uma interpretação exclusivamente materialista porque é preciso haver lugar para uma psicanálise do alquimista, do contrário não se poderá compreendê-lo. A dedução dos símbolos alquímicos ocorre no plano da intimidade pessoal, não se refere a experimentar ou provar. Todas as experiências da alquimia têm duas interpretações: uma moral e uma química. Entendida assim, a dedução dos símbolos não sucede num plano lógico ou experimental: a alquimia é uma cultura essencialmente íntima. Provinda de um momento que o homem ama natureza mais do que a utiliza. A compreensão de que a natureza age magicamente é para o alquimista simplesmente aplicar ao mundo uma experiência que se teve intimamente, para ter essa experiência íntima ele tem que merecê-la. 34 Assim, na classe de química moderna como na oficina do alquimista, o aluno e o aprendiz não se apresentam de início como puros espíritos. A própria matéria não é para eles uma razão suficiente de calma objetividade. Ao espetáculo dos fenômenos mais interessantes, mais espantosos, o homem vai naturalmente com todos os seus desejos, com todas as suas paixões, com toda a alma. Não é pois de admirar que o primeiro conhecimento objetivo seja o primeiro erro. (ibidem, p.68). Por outro lado, do mesmo modo como as palavras eram constituídas por aquilo que diziam e que o corpo dos seres vivos estava inscrito com marcas visíveis e positivas, as análises das riquezas emergiram a partir do século XVI e, desde então, foi assumindo diretrizes próprias. Passou a buscar reconduzir os signos monetários à precisão de medida, isto é, fazer com que as quantidades de metais presentes nas moedas estivessem conforme os valores nominais de cada moeda: o estalão não deveria estar fora de equivalência. A moeda não significara nada além de seu valor de medida. Nesse sentido os metais de que são feitas as moedas tem grande valor, justamente por que se prestam à fabricação das moedas. Esta adquire o valor de sua forma27, não propriamente da matéria de que é composta. Desprovidos destes signos as riquezas permaneceriam como marcas mudas, imóveis, ocultas e silenciosas. Devido a isso, o ouro e a prata podem e devem ser reconhecidos como os criadores de tudo o que o homem pode desejar. O que somente foi possível na medida em que esses metais são dotados de certas características físicas: são duros, imperecíveis, inalteráveis, fáceis de perfurar, fáceis de transportar, divisíveis em parcelas minúsculas, condensam grande peso sob pequeno volume. Nesse ínterim, não se trata de refletir à luz de quais mecanismos as riquezas fazem uso para se representarem entre si, trata-se de refletir sobre porque as coisas valem28 e o que valem. Em suma, como se estabelece o valor de uma coisa? A moeda só existia para executar essa função, assim como também os preços se modificam em função dela. Em outros termos, num contexto de troca para que uma coisa possa representar outra é necessário que nelas o valor já esteja presente, porém o valor existe no interior da representação, ou seja, no interior da troca. A psicanálise do conhecimento objetivo, ou das condições subjetivas da produção da ciência, deve também dedicar-se ao exame de todas as seduções da 27 “É por ser moeda que o ouro é precioso. Não o inverso.” (FOUCAULT 1999, p. 241). 28 “Valer para o pensamento clássico é primeiramente valer alguma coisa, poder substituir essa coisa num processo de troca.” (ibidem, p. 262). 35 facilidade; só assim será possível chegar a uma sadia e verdadeira teoria da abstração científica. A falsa teoria do geral prejudicou bastante o progresso do conhecimento científico com sua infecunda facilidade – ela dominou de Aristóteles a Bacon: “[...] Vamos procurar mostrar que a ciência do geral sempre é uma suspensão da experiência, um fracasso do empirismo inventivo.” (BACHELARD 1996, p.69). O autor constata que as leis gerais – como são as leis fundamentais da óptica, de que todos os raios luminosos se propagam em linha reta, da biologia, de que todos os seres vivos são mortais, ou da mecânica, de que todos os corpos caem – podem ter tido valor epistemológico, mas vem perdendo esse valor ao longo do tempo, pois são um bloqueio às ideias. Esses exemplos se deram a partir de generalidades que foram bem colocadas 29. No entanto, apesar delas terem seguido um ciclo de idéias exatas, por se tratar de uma generalização, as variáveis condizentes com o aspecto geral ofuscam as que se referem aos aspectos particulares. Apesar de ter havido uma hierarquização da própria matemática dos fenômenos, isso não foi suficiente. Além disso, o autor explica que nem sempre a primeira forma matemática está correta, nem sempre ela é formativa de fato. Remetendo-nos ao âmbito do que hoje conhecemos como as Ciências Humanas, ocorreu uma ruptura no começo do século XVII quando, no Renascimento, as figuras da similitude deixam de representar o saber e entra em cena o quadro das identidades, que nos últimos anos do século XVIII desfaz-se e, nesse movimento, aloja o saber num novo espaço. Como isso pode ocorrer afinal? “[...] Donde vem bruscamente essa mobilidade inesperada das disposições epistemológicas, o desvio das positividades umas em relação às outras, mais profundamente ainda a alteração de seu modo de ser?” (FOUCAULT 1999, p. 297) Esse acontecimento diz respeito ao ser mesmo de nossa 29 Agora vamos ver um exemplo em que as generalidades são mal colocadas – talvez fique mais claro o que acontece com generalidades de primeira vista – como é o caso do fenômeno da coagulação. Examinado de modo tão livre que, a rigor, tudo era coagulação para o espírito pré-científico. Há coagulação do leite, do sangue, do fel, da gordura até o congelamento da água é coagulação. Isso graças à lastimável aliança entre erudição e ciência, opinião e experiência características de experiências vagas, típicas do espírito pré-científico. Tais “experiências” impediram o desenvolvimento de outras experiências sobre a coagulação e não levantaram nenhum problema científico bem definido: “[...] O que haverá de mais parecido entre o leite e o sangue?” (BACHELARD 1996, p.79). Seria necessário deter-se neste fato justamente porque são dois líquidos diferentes e toda a questão passa fundamentalmente por aí. Porém, tal desdém pelos pormenores e pela precisão demonstra que o espírito pré-científico prefere fechar-se no conhecimento geral. Mas o verdadeiro espírito científico: “[...] Tentará completar o fenômeno, realizar certas possibilidades que o estudo matemático revelou. Enfim, o cientista contemporâneo baseia-se numa compreensão matemática do conceito fenomenal e se esforça para equiparar neste ponto, razão e experiência.” (BACHELARD 1996, p.82). 36 modernidade e nós estamos ainda presos a ele na medida em que ele continua a nos escapar. No caso da história das riquezas, não foi o modo de ser do trabalho que mudou, mas sim a relação dele com a produção de que é suscetível. Não foi o trabalho que retrocedeu perante as coisas, foram as coisas que se estreitaram em relação à unidade de trabalho, pois distinguimos a medida do permutável e a razão da troca, isto é, troca-se porque se tem necessidade. Se o que se necessita é agradável, indispensável ou até mesmo cômodo, importa a economia apenas que o que circula sob a forma de coisas é trabalho, ou em outras palavras: tempo e cansaço camuflados e esquecidos. “Na gramática geral, na história natural, na análise das riquezas, produziu-se, pois, nos últimos anos do século XVIII um acontecimento que, em todas elas, foi do mesmo tipo.” (FOUCAUL 1999, p. 320). A partir desse acontecimento, a constante em todos os casos é que a relação da representação muda no que se refere a ela mesma. Deste modo a representação está prestes a perder o poder de definir o modo de ser comum às coisas e ao conhecimento, o ser do que é representado sairá de cena da própria representação. Embora possamos encontrar no domínio da linguagem a réplica exata destes acontecimentos, é preciso pontuar que neste domínio houve uma cronologia mais lenta e uma forma mais discreta de manifestação. A dissolução da representação está em correspondência com a positividade nova das ciências da vida, da linguagem e do trabalho, estas, por sua vez, aparecem como tantos “transcendentais” que tornam possível conhecer objetivamente os seres vivos, as formas da linguagem e as leis da produção. “[...] O que mudou, na curva do século, e sofreu uma alteração irreparável foi o próprio saber como modo de ser prévio e indiviso entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento.” (FOUCAULT 1999, p. 346). Esta rede ao mesmo tempo ontológica e representativa definitivamente se despedaça: no caso da história natural que se converteu em biologia, percebeu-se – foi possível perceber – que os seres vivos, exatamente porque vivem, não podem compor um tecido de diferenças graduais e progressivas. Lá na época clássica a rede que compunha o ser era sem lacuna; aqui na modernidade a vida recolhe-se em um enigma cuja essência é inacessível. No domínio da linguagem o que muda é que a palavra30 deixa de figurar num discurso em virtude de sua discursividade imediata, porque obedece a certo número de leis que regem todos os elementos da mesma língua. Este foi 30 “[...] Para que a palavra possa dizer o que ela diz, é preciso que pertença a uma totalidade gramatical que, com relação a ela, é primeira, fundamental e determinante.” (FOUCAULT 1999, p. 387). 37 um dos acontecimentos importantes, que na cultura ocidental se sucedeu, e um dos que passaram despercebidos. Talvez isto se deva, em grande medida, ao fato de as alterações que afetam a pronúncia, a gramática ou a semântica, por mais velozes que sejam, nunca serem percebidas por aqueles que falam e, sem se aperceberem, já veiculam essas mutações. [...] O fracionamento da linguagem, contemporâneo de sua passagem à objetividade filológica, seria, então, apenas a consequência mais recentemente visível (porque a mais secreta e a mais fundamental) da ruptura da ordem clássica: esforçando-nos para dominar essa quebra e fazer aparecer a linguagem por inteiro, levaríamos a seu termo o que se passou antes de nós, por volta do fim do século XVIII. (FOUCAULT 1999, p. 422-423). Após termos mencionado, em concordância com Bachelard, os perigos da função generalizante, ainda restam as seduções de generalidade bem mais amplas, que são, segundo o autor, o caso do pensamento filosófico mais que do pensamento empírico. Neste primeiro, há um período em que a experiência se encontra imobilizada porque todas as respostas se contentam em fazer referência a um principio geral da Natureza. Nas palavras do autor: “[...] Foi assim que no século XVIII, a idéia de uma natureza homogênea, harmônica, tutelar apagou todas as singularidades, todas as contradições, todas as hostilidades da experiência.” (BACHELARD 1996, p.103). Na maioria das vezes o aspecto literário do texto pré-científico é um mau sinal, pois em física, por exemplo, tais valorizações e arroubos de admiração não auxiliam em nada no desenvolvimento do espírito científico, são nocivas ao verdadeiro conhecimento. É concebível, no entanto, que todo autor goste de valorizar o assunto que vai tratar, mas isso não significa que tenha de fazer grandes alardes como poderemos observar no trecho seguinte: Em um livro escrito sob a forma de cartas familiares, um autor desconhecido assim começa o seu Planétaire ou abrégé de l´historie Du Ciel [Planetário ou resumo da história do céu]: Será ousado demais querer voar até a abóbada celeste? Quem me acusará de temeridade por querer eu examinar essas tochas que parecem suspensas no arco do firmamento? (ibidem, p.104). No exemplo que precede podemos perceber a estéril influência da valorização irregular e exacerbada. Tal necessidade de elevar os assuntos está atrelada a um ideal de perfeição concedido aos fenômenos. Pouco a pouco, se impõe neste âmbito uma escala 38 de perfeição31 que vai da matéria a Deus, esse ideal é tão forte que contradiz intuições corriqueiras e opõe resistência a pesquisas úteis. A unidade é sempre desejável e se realiza sem esforço para o espírito pré-científico; as atividades naturais não passam de manifestações variadas de uma e mesma Natureza: não se concebe que a experiência possa ser contradita tampouco que possa ser compartimentada. A unidade é realizada num instante, porque o que é inconcebível na física torna-se possível pela ação divina. As amplas analogias são recorrentes na Idade Média, conforme dizem os historiadores de química sobre uma espécie de triangulo universal: o Céu, a Terra e Homem – uma das fantasias pré-científicas destacadas por Bachelard. Houve quem lhe desse tanto crédito que até se confiou nela para o tratamento de doenças: “[...] Parecia que se estava fazendo química no fundo de um frasco: é o fígado que responde. Parecia que se auscultava um doente: é a conjunção de um astro que influi no diagnóstico.” (1996, p.109-110). Inversamente, este tipo de pensamento afugenta as idéias e por sua vez transpõe as provas a cada momento. É com muita facilidade que encontramos exemplos como esses, nos quais a crença na unidade harmônica do Mundo faz com se estabeleça uma incrível – no mau sentido – sobredeterminação32. O obstáculo epistemológico é polimorfo, e no caso do obstáculo substancialista não é diferente, pois se constitui por intuições dispersas e opostas. Ocorre quando o 31 “[...] Nossas observações são, portanto, menos superficiais do que parecem, pois a perfeição vai servir de índice e de prova para o estudo dos fenômenos físicos” (BACHELARD 1996, p.106). 32 Por exemplo: “O gato tem a ver com Saturno e com a Lua. Ele gosta tanto de erva valeriana que, quando esta é colhida sob a conjunção desses dois Astros, reúne todos os gatos no lugar que ela está. Há quem afirme que esse animal é venenoso, e que seu veneno está no pelo e na cabeça; mas acho que é só na cabeça, porque seus espíritos animais, que crescem na Lua cheia, diminuem na Lua nova, só atacam nas Luas cheias, saindo-lhe dos olhos para passar o veneno. Três gotas de sangue de gato macho, tiradas de uma veiazinha que fica embaixo do rabo, servem para curar a epilepsia; a carne de gato abre as hemorróidas e purga o sangue depauperado; seu fígado cozido e misturado com vinho, se bebido antes do acesso, ajuda a tratar a febre quartã; a banha de gato castrado, derretida, aquece e desfaz os humores da gota; é bom colocar o couro de gato sobre o estomago, as articulações e as juntas, porque ele aquece as partes enfraquecidas pelos humores frios; seus excrementos ajudam no crescimento dos cabelos. Quem tiver consigo erva valeriana pode levar o gato que quiser, sem preocupação. Esse animal cura os próprios olhos com o uso da valeriana.” (FAYOL apud BACHELARD 1996, p. 111). Esse trecho deixa claro ao que nós estamos nos referindo; é notório como ele está repleto de afirmações que se sobrepõem umas nas outras onde podemos notar que o conhecimento colocado em termos de utilidade nos fornece um tipo de indução que lhe é característica: é a indução utilitária. Ela pode até ter partido de um fato verificado, mas mesmo assim o impulso utilitário sempre exagera, o útil é valorizado sem medida. O homem não consegue impor limites ao útil. A utilidade humana é buscada como princípio em todos os fenômenos até os tremores de terra acabam a rigor auxiliando nas colheitas. Fenômenos dos mais hostis ao homem são tratados com extrema valorização. Para o espírito pré-científico o verdadeiro é o útil, sistemas inteiros alicerçam-se na base do útil, somente o útil é claro e na mesma medida só a utilidade pode explicar os fenômenos de que se queira tratar. Essas generalizações extremas – muitas vezes através de um mesmo conceito – resultam em idéias sintéticas. Devemos, portanto, fugir delas e romper com considerações pragmáticas. Porque o espírito pré-científico além de não cumprir as promessas que faz, apresenta, ao invés de um sistema, um amontoado de fatos precariamente relacionados por que mal observados, o procedimento que a psicanálise do conhecimento objetivo propõe é que fujamos desses métodos. 39 espírito pré-científico condensa qualidades diversas num único objeto. Tal objeto passa a ter qualidades ocultas33, superficiais, manifestas, o que resulta em um verdadeiro descuido com o movimento epistemológico. O espírito pré-científico entende que o que é oculto é fechado. E nesse sentido os invólucros são simples proteções, são sempre menos preciosos e menos substanciais. No âmbito das idéias substancialistas é importante que algo contenha algo, isto é, que a qualidade oculta esteja “contida”. É o que o autor denominou de “mito do interior, mito mais profundo do íntimo.” (ibidem, 122-123). O exame destas intuições pré-científicas demonstra que a substância não tem apenas um interior ela é um interior; o interior é o que há de mais substancial nela e por isso é o que merece maior atenção. Entendemos que na obra Formação do espírito científico de Bachelard, uma de suas principais teses – a da supremacia do pensamento abstrato e científico sobre o conhecimento primeiro intuitivo – é ignorada no substancialismo, que apresenta o acúmulo de adjetivos intuitivamente atribuídos, de forma precária, a uma mesma substância. Eles são tão claros para o espírito pré-científico e vemos no substancialismo a justaposição dessas qualidades, ligadas à substância, sem preocupação com suas relações íntimas. “[...] O gosto e o cheiro pode dar ao substancialismo garantias primeiras que se revelam, mais tarde, verdadeiros obstáculos para experiência química.” (ibidem, p.121). Inversamente, o autor argumenta que o espírito científico tem de fazer um esforço para ligar os elementos descritivos de um fenômeno de modo hierarquizado, buscando detalhar de modo preciso as relações com outros objetos; a verdadeira ciência deve ser liberada de qualquer referência às qualidades sensíveis diretas. Desse modo, é nociva toda e qualquer atribuição direta à substância dos dados imediatos da experiência sensível, eis um exemplo deste tipo de equívoco: Assim como o leite é doce ao paladar e untuoso ao tato, ele conserva a doçura e a untuosidade até no fenômeno da corrente elétrica que acaba de atravessá-lo. Essas falsas qualidades atribuídas pela intuição ingênua à corrente elétrica são, a nosso ver, uma ilustração cabal da influencia do obstáculo substancialista. (ibidem, p.121). 33 Para Bachelard é possível “[...] falar de um substancialismo do oculto, de um substancialismo do íntimo, de um substancialismo da qualidade evidente”. A explicação que se propõe oculta é sempre decepcionante porque ela crê que um nome erudito basta para satisfazer a mente: “[...] Parece bastar uma palavra em grego para que ‘a virtude dormitiva do ópio que faz adormecer’ deixe de ser um pleonasmo.” (ibidem, p.121). 40 O filósofo explica que o conhecimento dos homens e o conhecimento dos objetos advêm do mesmo diagnóstico. Se a criança põe na boca os objetos que desconhece para conhecê-los é por que o real é “antes de tudo um alimento” (ibidem, p. 109). A digestão é então uma posse e no inconsciente ela se torna um tema explicativo cuja valoração é bem sólida, com base nesta posse cria-se todo um sistema de valoração, no qual o alimento líquido é preterido pelo alimento sólido. E a necessidade de comer alimentos sólidos que é a fome é superior por sua vez a necessidade de ingerir líquidos. Demasiada e descabida valoração no âmbito dos fenômenos digestivos – tão presente nos espíritos pré-científicos – acaba por atribuir ao estomago um lugar primordial e seu calor também é ressaltado, assim quando comparada a química do estômago que é natural com a “química artificial” vence a primeira porque como ela é muito mais natural é naturalmente mais acertada como pensa o espírito pré-científico. Tendo-se em mente o trabalho do estômago como sendo o trabalho de um forno, muitos outros fenômenos são explicados e analogias das mais disparatadas são mencionadas. Há entre os espíritos pré-científicos quem se indague se a forma do corpo humano acaso não se parece com um forno muito bem feito. Chegou-se ao ponto extremo de considerar a terra como um vasto aparelho digestivo34. Todavia é um equivoco, segundo o filósofo, acreditar que basta rebaixar o obstáculo e ele desaparecerá, também não se deve crer que se vence o obstáculo invertendo-o, mudando-o, porque o obstáculo está no âmago do próprio conhecimento. Por isso, essas racionalizações que acabamos de ver nos dão a medida da resistência de um obstáculo epistemológico. A idéia de substância resiste35 porque é tão clara e tão simples que se apóia, mais do que qualquer outra, numa experiência bastante íntima. Neste sentido, é preciso dar ênfase para o papel que assume a maioria das pedras preciosas: elas são capazes de exercer uma ação conjunta sobre o coração e a mente – eis mais uma afirmação dada pelo espírito pré-científico. Assim, por exemplo, o ouro encanta e exerce uma atração material – com o ouro é fácil apreender o mito da intimidade substancial – pois como ele age ao mesmo tempo sobre o coração, o cérebro e a memória quando usado como medicação seu caráter psicológico torna-se evidente. 34 “[...] Aí está uma Weltanschauung que seria logo dispensada se o mito da digestão perdesse sua clareza.” (ibidem, p. 119). 35 “A psicanálise a ser instituída para a terapia da substância deve ser a psicanálise do sentimento de ter. [...] Enfim, o axioma do realismo não provado – nada se perde, nada se cria – é uma afirmação de avarento.” (ibidem, p.164). 41 As substancializações mais heterogêneas aqui convergem: a luz perpétua da pedras preciosas associa-se a inalterabilidade do ouro. Nada segura o realista que, sobre uma realidade, acumula perfeições. O valor é a quantidade oculta mais insidiosa. É a última a ser exorcizada por que é nela que o inconsciente fica ligado por mais tempo e com mais força. (ibidem, p.180). O mito da digestão – do ser e do ter – chega a perder relevo quando comparado com o mito da geração relacionado ao devir. Pois a libido interioriza essas forças mais ou menos misteriosas e nesse movimento reforçam-se intuições substanciais e animistas. Nesse sentido, se certa substância for acrescida de um germe garantirá seu devir: eis o que pensa o espírito pré-científico porque tudo que é oculto germina para ele. Assim os alquimistas tentam muitas vezes sintetizar os contrários. “[...] O contrário vem do interior. O interior deve ressaltar o exterior. Pelo menos é o que desejam os sonhos.” (ibidem, p. 237). Todo esse raciocínio se fundamenta na interiorização e na multiplicação do fenômeno da geração, pois a muda é considerada uma virtude substancial e viva, ela não está ligada apenas ao seu interior, mas a toda a sua fibra, a toda a sua matéria. Tende-se a geração como uma conciliação entre valores altos e baixos, bem e mal, pecado e amor, isto é, vê-se nela a valorização das matérias inferiores. “O ato gerador é uma idéia tão explicativa quanto persistente, isto é, embora esteja carregada de todos os absurdos do inconsciente, a idéia fixa é uma idéia clara.” (ibidem, p. 245). Para o espírito pré-científico, o germe necessita ser tratado do modo mais natural possível por que ele é o que há de mais natural, sempre está referido a um princípio mais interno. Neste contexto, cabe uma psicanálise do conhecimento, que se proponha completa, estudando os sentimentos mais ou menos inspirados na libido; sobretudo, devem-se buscar investigar a vontade de poder que a libido exerce sobre as coisas e os animais de acordo com o filósofo (ibidem, p. 256). A libido está relacionada com o devir, ela é considerada enquanto duração na concepção