Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP LEVI HENRIQUE MERENCIANO AABBOORRDDAAGGEEMM SSEEMMIIÓÓTTIICCAA DDOOSS TTEEXXTTOOSS DDEE AAUUTTOO--AAJJUUDDAA Araraquara – S.P. 2009 1 LEVI HENRIQUE MERENCIANO AABBOORRDDAAGGEEMM SSEEMMIIÓÓTTIICCAA DDOOSS TTEEXXTTOOSS DDEE AAUUTTOO--AAJJUUDDAA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Lingüística e Língua Portuguesa, da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Lingüística e Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina Bolsas: CAPES e FAPESP Araraquara – S.P. 2009 3 Merenciano, Levi Henrique Abordagem semiótica dos textos de auto-ajuda / Levi Henrique Merenciano – 2009 203 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara I. Orientador: Arnaldo Cortina l. Lingüística. 2. Língua Portuguesa. 3. Leitura. 4. Best sellers. 5. Semiótica. I. Título. 2 LEVI HENRIQUE MERENCIANO AABBOORRDDAAGGEEMM SSEEMMIIÓÓTTIICCAA DDOOSS TTEEXXTTOOSS DDEE AAUUTTOO--AAJJUUDDAA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Lingüística e Língua Portuguesa, da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Lingüística e Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina Bolsas: CAPES e FAPESP Data de aprovação: ___/___/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: _______________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina Departamento de Lingüística e Língua Portuguesa / FCLAr - UNESP ________________________________________________________ Membro Titular: Renata Maria F. C. Marchezan Departamento de Lingüística e Língua Portuguesa / FCLAr - UNESP _________________________________________________________ Membro Titular: Antonio Vicente S. Pietroforte Departamento de Lingüística e Semiótica / FFLCH – USP 4 Agradecimentos Agradeço às agências de fomento à pesquisa CAPES e FAPESP, instituições sem as quais a efetivação da pesquisa não teria sido possível. Àquela, por ter financiado os sete primeiros meses de pesquisa, à última, por financiar o tempo restante, até fevereiro de 2009. Também devo agradecer ao meu orientador, Arnaldo Cortina, pessoa sempre atenta aos pormenores do andamento do projeto, assim como aos deveres do bolsista e às obrigações acadêmico-científicas envolvidas na pesquisa como um “todo de sentido”. Agradeço, enfim, aos demais presentes na minha vida (amigos e colegas) que sempre me apoiaram nessa empreitada. 5 Resumo A procura do leitor brasileiro pelo discurso de auto-ajuda tem sido um fato inegável contemporaneamente. Por isso, este trabalho visa descrever a organização e o funcionamento dos textos de auto-ajuda mais vendidos de 1991 a 2006, a partir dos rankings “auto-ajuda e esoterismo”, listados semanalmente pela revista Veja. A partir de um corpus organizado por meio do levantamento dessas listas de livros, o objetivo central consiste em sugerir uma tipologia lingüística para os discursos de auto-ajuda mais vendidos atualmente. A abordagem semiótica de orientação greimasiana possui critérios adequados de descrição do plano de conteúdo, com vistas a oferecer uma definição tipológica mais refinada dos discursos. Os níveis fundamental, narrativo e discursivo, na sua dimensão sintagmática e paradigmática, do percurso gerativo de sentido, podem oferecer um quadro suficiente de elementos descritivos, segundo a maior ou menor incidência dos seus componentes na organização dos discursos, tais como: o investimento axiológico das categorias fundamentais (euforia e disforia); os percursos dos actantes funcionais (destinador-manipulador, destinatário-sujeito e do destinador-julgador); as fases da narrativa (manipulação, competência, perfórmance e sanção); a natureza do objeto-valor (cognitivo ou pragmático, modal ou descritivo); a projeção do sujeito da enunciação (as marcas do enunciador e do enunciatário); e a constituição discursiva (textos predominantemente figurativos, predominantemente temáticos ou equivalentemente temático-figurativos). A auto-ajuda, à maneira dos discursos técnicos (manuais de montagem, receitas de cozinha, por exemplo), tende a privilegiar a fase da competência. Nesta, o percurso do destinador-manipulador contribui para que o seu enunciatário (a projeção do leitor) saiba e possa construir o valor subjetivo que procura. Nesse caso, o livro constrói um objeto-valor eufórico, de natureza cognitiva (modal), que possui um valor descritivo subjetivo. No nível discursivo, o jogo argumentativo é construído pela relação entre os temas tratados e as maneiras pelas quais são figurativizados, a fim de ilustrar sensorialmente os conceitos discutidos. Pensa-se, portanto, em elaborar um inventário dos componentes semióticos invariantes (assim como discutir, quando necessário, os variantes) dos livros estudados, com vistas a tentar definir um estatuto lingüístico, de base discursiva, para a auto-ajuda manifestada textualmente, a partir de um corpus com discursos desse tipo mais vendidos no Brasil. Palavras-chave: auto-ajuda; leitor; leitura; livros mais vendidos; Semiótica; tipologia discursiva. 6 Abstract The Brazilian reader’s search for self-help discourses has been a fact nowadays. For this reason, this work proposes to study the linguistic and discursive processes related to best- selling books of self-help literature in the period 1991-2006, by means of the lists of best- sellers in the Self-Help genre organized and listed weekly by Veja, a Brazilian news magazine. Starting from a corpus collected from these book lists, the aim is to suggest a linguistic typology for the current best-selling self-help books. The methodological perspective of Greimasian semiotics has appropriate criteria for the description of the level of contents, aiming at suggesting more elaborate typological definitions of discourses. The deep, narrative and discursive levels, in its syntagmatic and paradigmatic dimensions of the generative process of meaning, can offer enough descriptive elements, according to the large or small incidence – focus – of its semiotic components in the organization of discourses, such as: the axiological investment of thymic deep components (euphoria and dysphoria); the path of functional actants (sender-manipulator, receiver-subject and sender-judge); the narrative phases (manipulation, competence, perfórmance and sanction); the characteristics of the object of value (cognitive, pragmatic, modal or descriptive); the projection of the subject of enunciation (how sender and receiver can be linguistically manifest); and the discursive level components (texts which are predominantly thematic, predominantly figurative or thematic and figurative in equal measure). Self-help books, similarly to technical discourses (culinary recipes, instruction manuals), tend to focus on the phase of competence. In it, the sender-manipulator makes its receiver-subject (the reader’s discursive projection) “knowing-how-to-do” and “be able-to-do” so he or she elaborate the subjective object wanted. To do so, the books examined engender a euphoric object of value, with a cognitive characteristic (modal) and a descriptive- subjective object of value. On the discursive level, the argumentative organization is elaborated by means of the relationship between the themes and their figurative constitution, in order to illustrate, appealing to the human senses, the concepts under discussion. This work thus intends to elaborate an inventory of the invariant semiotic components (as well as discuss the variant ones) of the books studied, in order to try to define a discourse-based linguistic framework to self-help literature, by means of a corpus with the best-selling self-help books in Brazil. Keywords: self-help; reader; reading; best-selling books; Semiotics; discursive typology. 7 Sumário INTRODUÇÃO............................................................................................................................... 8 1. MERCADO EDITORIAL, CULTURA DE MASSAS E BEST-SELLERS. ...................................17 1.1 O mercado editorial brasileiro.....................................................................................................17 1.2 Auto-ajuda e best-sellers na qualidade de cultura de massas. ................................................... 20 1.3 O fenômeno da auto-ajuda: um panorama histórico. ................................................................ 23 2. A METODOLOGIA SEMIÓTICA E SUA APLICAÇÃO.............................................................. 29 2.1 O “percurso gerativo” da Semiótica........................................................................................... 29 2.2 O percurso gerativo em foco. ..................................................................................................... 34 2.3 Os procedimentos enunciativos na construção da argumentação. ............................................ 45 2.4 O ethos do enunciador e o pathos do enunciatário.................................................................... 46 2.5 O leitor e o autor implícitos........................................................................................................ 48 3. OS COMPONENTES SEMIÓTICOS PARA A CLASSIFICAÇÃO DOS DISCURSOS. ..............51 3.1 Os componentes da gramática fundamental ..............................................................................51 3.2 Os componentes da gramática narrativa.................................................................................... 52 3.3 Os componentes da gramática discursiva.................................................................................. 54 4. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS: OS LIVROS MAIS VENDIDOS DE 1991 A 2006.................... 56 4.1 Hipóteses sobre a constituição das listas de livros .................................................................... 56 4.2 Critérios para seleção das listas de livros do corpus................................................................... 57 4.3 Apresentação do corpus. ............................................................................................................ 59 5. APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS DO CORPUS......................................................................... 63 6. ANÁLISE DA ATUAÇÃO DOS COMPONENTES SEMIÓTICOS. ........................................... 89 6.1 A semântica do nível fundamental. ............................................................................................ 89 6.2 Euforia e disforia. ....................................................................................................................... 89 6.3 O percurso dos actantes funcionais............................................................................................ 94 6.4 O destinador-manipulador ......................................................................................................... 94 6.5 O destinador-manipulador e destinatário-sujeito....................................................................... 97 6.6 As fases da narrativa................................................................................................................... 99 6.7 A competência............................................................................................................................ 99 6.8 Competência e perfórmance......................................................................................................102 6.9 A natureza do objeto-valor. .......................................................................................................106 6.10 Objetos-valor modais e descritivos............................................................................................107 6.11 As marcas do enunciador e do enunciatário..............................................................................108 6.12 Tematização e figurativização................................................................................................... 111 6.13 A predominância de temas........................................................................................................ 112 6.14 A predominância de figuras. ..................................................................................................... 113 6.15 A convivência de temas e de figuras.......................................................................................... 114 6.16 Sugestões tipológicas para os textos de auto-ajuda. ................................................................. 116 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................................128 Referências do corpus............................................................................................................................. 131 ANEXOS ................................................................................................................................................133 8 Introdução. Percebemos diferenças e, graças a essa percepção, o mundo “toma forma” diante de nós, e para nós. (Greimas, Semântica Estrutural, 1973, p. 28). Estudar a organização discursiva de uma totalidade de discursos de auto-ajuda mais vendidos no Brasil vai além de descrever as estratégias do mercado livreiro, a publicidade massiva de editoras, a publicação de rankings de livros. Nesse caso, devem-se perceber diferenças estruturais, de conteúdo, pois se quer estudar as maneiras pelas quais o objeto livro manipula o seu leitor, cabendo a este seguir intuitivamente as marcas do seu mundo no texto, os rastros deixados pelo enunciador nas malhas do discurso. No ato de leitura, ao estabelecer uma espécie de identidade com os textos que lê, para Lajolo & Zilberman (1999), o leitor se configura como um sujeito dotado de reações, desejos e vontades, a quem cabe seduzir e convencer (p. 17). Para as autoras, todo o escritor, de forma voluntária ou não, depara com essa instância da alteridade procurando conquistá-la de um modo ou de outro (p. 17). Ao estudar as formas de manifestação textual da auto-ajuda (nos livros de comportamento, nos guiais culinários e de saúde, nos manuais de como administrar a família e os negócios, etc.), procuram-se meios possíveis de – ao mesmo tempo em que se reconstitui lingüisticamente o leitor contemporâneo – sugerir tipologias discursivas para os textos mais vendidos atualmente, a fim de explicar as suas nuances, as suas identidades e diferenças estruturais. O estudo tipológico que será apresentado terá a necessidade de, ao investigar um corpus de livros mais vendidos, fornecer critérios lingüísticos para distinguir, entre si, um número representativo de textos de auto-ajuda que às vezes não se apresentam como tal ou, por outro lado, que deixam explícita a sua postura de manual de autoconhecimento. Martelli (2006) discute sobre a quase ausência de critérios distintivos entre as diversas frentes da auto- ajuda, de acordo com a organização das estantes de grandes livrarias nacionais. Para ela, não há um consenso a respeito dos autores e títulos que podem ser considerados auto-ajuda, uma vez que ela verificou na estante de uma das maiores livrarias do país que cada uma obedece a um critério próprio de categorizar os títulos. Em algumas, na seção de auto-ajuda, encontram- se misturados títulos que discutem medicina alternativa, poder da mente, educação, saúde, religião, receitas de sucesso nos negócios. Em outras, há uma divisão de títulos que sugere categorizações, como auto-ajuda, religiões, esoterismo e vida prática (MARTELLI, 2006, p. 178). 9 A respeito da falta de consenso sobre o limite de temas que a auto-ajuda incorpora a sua constituição discursiva, em alguns discursos ocorre um entrelaçamento de assuntos diversos. Um dos livros do levantamento deste trabalho, Não faça tempestade em copo d’água (CARLSON, 1998), mesmo que apresente os elementos básicos dos textos de auto-ajuda – capítulos curtos, linguagem simples, modo verbal do título no imperativo, sub-título auto- explicativo – no momento oportuno, pretende unir o ponto de vista da auto-ajuda ao elemento místico-religioso, quando cita a Filosofia Zen e o seu elemento “fluir”: Quando “não se faz tempestade em copo d’água”, a vida pode não se tornar perfeita, mas aprendemos a aceitar o que ela tem a nos oferecer, como mais complacência. Conforme ensina a filosofia Zen, quando superamos os problemas, em vez de resistirmos a eles, com todas nossas forças, a vida começa a fluir (p. 18-9). Em outro discurso do corpus, O monge e o executivo (HUNTER, 2004), constrói-se um discurso semelhante ao anterior, mas pretende unir os elementos místicos (religião, vida de desapego) com vocábulos relativos à gestão de negócios. Por meio da união de elementos, como atividade e passividade, o livro pretende ensinar como ser um “líder servidor”, pois afirma que quem lidera também deve saber servir. A organização dos seus capítulos obedece a um número cabalístico, o sete, revelando o misticismo imbuído no número em questão e remete também à busca do sujeito, John, por espiritualiadade. Em Pais brilhantes, professores fascinantes (CURY, 2003), as partes do livro têm capítulos que destacam a significação do número cabalístico sete: “Sete hábitos dos bons pais e dos pais brilhantes”; “Os sete hábitos dos bons professores e dos professores fascinantes”; “Os sete pecados capitais dos educadores” (p. 5-6). Alguns textos mostram narrativas de sonho, magia, em que se procura seduzir o leitor enunciatário pelas mensagens de motivação e engrandecimento que produzem, como em Nunca desista de seus sonhos, de Cury (2004, p. 11): Um dia uma criança chegou diante de um pensador e perguntou-lhe: “Que tamanho tem o universo?” Acariciando a cabeça da criança, ele olhou para o infinito e respondeu: “O universo tem o tamanho do seu mundo”. Perturbada, ela novamente indagou: “Que tamanho tem o meu mundo?” O pensador respondeu: “Tem o tamanho dos seus sonhos”. Em virtude dessas constatações – de que há poucos critérios distintivos norteando os diferentes temas abordados e, sobretudo, de que a auto-ajuda discorre sobre assuntos diversos – afirma-se a importância do fenômeno da auto-ajuda, pois, conforme a sua predominância nas listas “auto-ajuda e esoterismo” da revista Veja e conforme o trabalho de Cortina (2006, p. 10 129), conclui-se que são os livros mais vendidos hoje em dia incondicionalmente. Por esse motivo, para a finalidade deste trabalho, são considerados os discursos mais lidos também. Esse fato merece, desse modo, uma atenção especial no que diz respeito às estratégias que fazem parte da sua organização e funcionamento discursivos – o seu plano interno – e daquelas que atuam paralelamente ao plano de conteúdo, formando também um conjunto significante, a respeito das quais devem ser levadas em conta no seu exame discursivo, como os elementos para-textuais (ilustrações de capa, o tipo de encadernação, o estilo das fontes, os depoimentos e biografias das orelhas, etc.). Em linhas gerais, a auto-ajuda apresenta um conteúdo manipulador, em que propõe dotar o seu leitor, na qualidade de enunciatário desse discurso, de objetos-valor cognitivos1, configurados como conhecimentos de finalidade prática, seja para confortar o espírito, realizar-se no amor, lidar com forças ocultas, saber gerenciar o seu negócio, adaptar o comportamento ao meio, contar histórias de motivação, etc. Esses conteúdos diversos são expressos conforme estratégias argumentativas também diversas, em que integram uma espécie de composição eclética. São configurados, assim, de diversas maneiras, pois ora ampliam seu foco para o místico, ora para a autobiografia, ora para a gestão de negócios, etc. Nesse caso, impera, por vezes, uma forma narrativa de organizar o seu discurso (relatos de vida, parábolas) e, noutros momentos, uma forma dissertativa (teses, estudos científicos, doutrinas, etc.). Já que são dotados de uma organização estrutural heterogênea, procuram atrair uma gama diversificada de leitores, ao que responde pela necessidade de entender a subjetividade. Ao oferecer leituras mais intimistas, também oferece meios para o cultivo da interioridade. Afirma Ignácio de Loyola Brandão (GAMA, 1994, p. 97) que os leitores da década de 90 em diante passaram a explorar mais o caminho do intimismo e das crises existenciais, em contrapartida com a literatura que se desenvolvia nos anos de 1970, mais voltada para a realidade em que se vivia, ou seja, para os fatos objetivos, relacionados ao contexto histórico de sua produção. De um ponto de visa sociohistórico, diz Rüdiger (1996) que o fenômeno da auto-ajuda “[...] refere-se ao conjunto textualmente mediado de práticas através das quais as pessoas procuram descobrir, cultivar e empregar seus supostos recursos interiores e transformar sua subjetividade” (p. 11). Organizando o discurso a sua maneira, essa manifestação discursiva divide opiniões. Roberto Shinyashiki e Paulo Coelho, ícones de autores que arrebataram o 1 A semiótica concebe o processo de narratividade por meio da relação entre os actantes sujeito e objeto. Ao entrar em relação de junção com o objeto, o sujeito investe nele um valor (positivo ou negativo), por isso, é um objeto-valor. Se ao objeto está aliado um conhecimento, tem-se, portanto, um objeto-valor cognitivo, modalizado por um saber-fazer. 11 filão da auto-ajuda e do esoterismo nos anos 90, despertam opiniões dos mais diferentes tipos. O ensaio da revista Veja, “Camelô da felicidade” (VEJA, 12 fev. 1992, p. 76-9), menciona que “[...] nos últimos anos, os leitores vão à livraria como quem vai à farmácia comprar um remédio” (p. 76). Reflete sobre a atuação dos camelôs da felicidade, em que o escritor Roberto Shinyashiki é um deles. Apesar de se divorciar duas vezes e ter filhos de diferentes casamentos, dá dicas sobre como manter um relacionamento amoroso equilibrado. O ensaio resume o perfil do leitor desses textos ao dizer que uma das características dos seus consumidores é que raramente entram numa livraria e que o sucesso de autores como Shinyashiki e das americanas Louise Hay e Chris Griscom, autores cativos nas listas de best- sellers do país, nasce por meio de uma espécie de corrente da felicidade. Nesse caso, o que importa no livro é que ele traga conselhos práticos para livrar-se de uma dificuldade relativa ao cotidiano (ibid., p. 78). Em uma outra direção, os consumidores do esoterismo de Paulo Coelho (CAMACHO, 1998, p. 94-100), tema incorporado por alguns autores de auto-ajuda, situam-se nos extremos, dividem-se entre o grupo dos assíduos e dos incrédulos. Os primeiros exaltam a qualidade das lições destacadas, os seus elementos mágicos e o novo sentido dado à vida por meio das descobertas dos personagens, narradas em seu texto, como destacam a apresentadora Angélica, a atriz Carolina Ferraz e o político Eduardo Suplicy. Os incrédulos são enfáticos. Arriscam a dar opinião inclusive aqueles que não leram uma página de Paulo Coelho. Críticos como Davi Arrigucci Jr. dizem “Não li e não gostei” (ibid., p. 98). Candido Mendes de Almeida atribui a glória do autor ao “mundo global do facilitário da mente e da ignorância transformada em submagia [...] produto de loja de conveniência” (ibid., p. 99). José Paulo Paes diz que o livro esotérico – e, por extensão, o de auto-ajuda – é o tipo de texto que resolve os problemas enquanto se está lendo, mas quando se está fechado todos os problemas retornam redobrado (ibid., p. 99). Mesmo que haja, grosso modo, dúvidas sobre a qualidade e sobre a veracidade do discurso de auto-ajuda, de simplesmente ser um manual de como fazer “isso ou aquilo”, de como empregar corretamente recursos interiores – inclusive por ser um produto cultural industrializado, um tipo de cultura de massas – a sua organização e funcionamento discursivos, assim como a literatura respeitada pela crítica acadêmica, possuem mecanismos específicos de construção. A respeito dos procedimentos estilísticos dos best-sellers, Sodré (1988) explica como atuam os mecanismos específicos de interpelação, fatores estes, segundo o autor, herdados do gênero folhetinesco: o elemento mítico, a atualidade informativo- jornalística, o pedagogismo e a retórica consagrada da literatura anterior. O autor diz que a 12 uma certa ampliação do gênero folhetinesco, estão ligadas obras como O Tubarão, de Peter Benchley – adaptado para o cinema, na década de 70, por Steven Spielberg – em que os fatores de interpelação citados são usados para agradar a um mercado consumidor determinado e acentuar ideologias específicas, como o isolacionismo estadunidense e o american way of life. Em uma direção um pouco diferente da apontada por Sodré (que sugere uma classificação dos procedimentos estilísticos adotados nos discursos de massa), deve-se explicar aqui como é possível observar a maior ou menor incidência e complexidade dos mecanismos de construção – os processos de significação – dos livros de auto-ajuda mais vendidos, com base na descrição dos níveis fundamental, sêmio-narrativo e discursivo, propostos pela Semiótica. O intuito de elaborar um inventário, mesmo não definitivo, que dê conta de articular e “dissecar”, na medida do possível, esses objetos de significação em tipologias, coopera para uma tentativa de descrição lingüística de um micro-universo significante, passível, assim, de uma análise estrutural. Um exame estrutural de livros mais vendidos foi aplicado no corpus do projeto “A leitura no Brasil de 1975 a 1990”. Nesse projeto, foi elaborado um registro dos livros de ficção mais vendidos anualmente, de 1975 a 1990, por meio de Veja, com vistas a explicar as variâncias e invariâncias de conteúdo desses discursos, ou seja, a maior ou menor complexidade dos componentes do percurso gerativo de sentido, atuantes nos textos mais vendidos. O resultado do exame do seu plano de conteúdo rendeu discussões interessantes sobre o que foi apontado como gênese para os textos de auto-ajuda contemporâneos. Nesse estudo, levou-se em conta que os livros mais vendidos refletem as escolhas do leitor nesse período. Para tanto, o sujeito enunciador (a projeção do autor) vale-se de estratégias argumentativas – por meio de histórias ficcionais de ação-intriga semelhantes aos filmes comerciais – que manipulam o enunciatário-leitor a aderir o seu contrato ficcional de ação e intrigas. A respeito disso, os discursos veiculados pelos textos de ficção, nos anos 70, organizaram-se estruturalmente de acordo com determinadas variâncias e invariâncias de conteúdo que revelaram, por sua vez, uma imagem de leitor preocupado com os fatos históricos que marcaram a década de 1970. Nesse caso, foi observado um perfil de leitor para os anos 70 e outro, para os anos 80. A partir desses dois momentos, pode-se compreender a tendência dos discursos de ficcção adotarem, na sua composição, um direcionamento voltado para os temas tratados pela auto-ajuda a partir dos anos 90. Os textos de ação-intriga, com presença marcante nas listas de 1975 a 1980, faziam, por exemplo, um diálogo com os fatos históricos da época em que foram produzidos, confirmando o que Ignácio de Loyola Brandão disse anteriormente, no artigo de Gama 13 (VEJA, 13 jul. 1994, p. 97). Por esse motivo, os leitores procuraram ler textos cuja estrutura narrativa mostrava ficcionalmente a realidade histórica da época em que viviam. Geralmente, um estado inicial de opressão (figurativizado por um tirano, por um regime comunista, por terroristas, pela ameaça de uma terceira grande guerra) devia ser combatido pelo fazer de sujeitos oprimidos (figurativizados como militantes de esquerda, guerrilheiros, soldados da paz, comunidades campesinas oprimidas). Por isso, as temáticas da Ditadura2 (em referência ao que ocorria no Brasil e na América Espanhola) e da Guerra Fria3 (em referência ao cenário internacional bipolorizado) faziam frente à temática do capitalismo, encabeçado pelas ações do governo estadunidense. Este, considerado o regime libertador e democrático, deveria atuar para esfacelar os regimes tiranos, como fazem os filmes comerciais de Hollywood. Nesse caso, a organização desses discursos foi mais invariante nesse período, pois o nível fundamental da maioria dos discursos articulou-se de acordo com a oposição axiológica “opressão vs. liberdade”. A partir da análise do nível fundamental desses textos (período 1975-1980), tem-se um perfil de leitor diferente do público que se interessou pelos mais vendidos de 1981 a 1990. No que se refere aos mais vendidos a partir de 1981, tem-se um conjunto de manifestações discursivas de conteúdo mais heterogêneo. A análise do nível fundamental dos mais procurados de 1981 a 1990 pôde mostrar uma variância, que se refere às oposições do nível fundamental “ignorância vs. conhecimento”4, “humanidade vs. divindade”5 e “essência vs. aparência”6. Livros como As brumas de Avalon e A insustentável leveza do ser, obras que aparecem entre as mais vendidas nos anos 80, questionam o ser enquanto sujeito que deve dar atenção à sua individualidade, por meio da busca de maneiras de ser. O primeiro o faz de um ponto de vista religioso, narrando a vida de uma jovem que defende a seita pagã das bruxas (articulada como divindade) frente à religião oficial, o catolicismo (articulada com os valores de humanidade). O segundo faz um questionamento filosófico sobre a existência humana, trabalhando o paradoxo do peso (articulado como aparência) e da leveza (articulada como essência), inerentes à vida, para explicar a volubilidade das ações do homem. Ambos os textos destacam a importância das crenças, sejam religiosas ou filosóficas, que, perdidas em meio à individualidade das pessoas, são utilizadas para o bem comum. 2 Conversa na Catedral (VARGAS LLOSA, 1977; Fazenda Modelo (HOLLANDA, 1975); A gota d’água (HOLLANDA & PONTES, 1996). 3 A alternativa do diabo (FORSYTH, 1979); O navegante (WEST, 1976). 4 O nome da rosa (ECO, 1983); As areias do tempo (SHELDON, 1989). 5 As brumas de Avalon (BRADLEY, 1985); O alquimista (COELHO, 1990). 6 A insustentável leveza do ser; Risíveis amores (KUNDERA, 1985a; 1985b). 14 Conclui-se, nessa primeira pesquisa sobre livros mais vendidos, realizada durante a graduação, em projeto de Iniciação Científica, que os textos de auto-ajuda, tão comuns a partir dos anos 90, podem ter sido o resultado de uma simplificação estrutural de narrativas dos anos 70 e 80, de acordo com a evolução que foi mostrada: de textos mais objetivos (voltados para os fatos da realidade, como os textos de ação-intriga), em direção a construções discursivas mais subjetivas (voltadas para a interioridade dos indivíduos, como a auto-ajuda configurada contemporaneamente). Nestes textos mais intimistas, passou a estar explícita a projeção de um sujeito enunciador que se comunica diretamente com o seu leitor enunciatário, destinando-lhe conhecimentos que o ajude a resolver problemas específicos, de natureza pessoal (MERENCIANO, 2007). Por isso, são discursos que manipulam subjetividades, maneiras de ser. O consumo da literatura de auto-ajuda passou a ser um fato inegável nos anos 90 e, por esse motivo mercadológico, a revista Veja adicionou aos seus rankings semanais (“Os mais vendidos”) a categoria “auto-ajuda e esoterismo”, a partir de dezembro de 1996. Essas listas serão o ponto de partida para a procura dos discursos mais consumidos hoje em dia e, em seguida, para uma sugestão tipológica da auto-ajuda, que, ao mesmo tempo em que destacará os componentes semióticos invariantes, também indicará aqueles menos atuantes na sua organização. O exame de conteúdo dos livros mais vendidos terá como base a proposta de Fiorin (1990). Em Sobre a tipologia dos dicursos, o autor parte da análise dos componentes dos níveis semióticos, a fim de estabelecer uma tipologia dos discursos. Com o objetivo de caracterizá- los com base em uma teoria da significação (a Semiótica greimasiana), o autor indica maneiras de estabelecer tipologias para os diferentes tipos de discurso. Fiorin diz que os componentes dos níveis semióticos podem explicar as maneiras pelas quais se constituem lingüisticamente os textos. No campo da semântica e da sintaxe dos níveis fundamental, narrativo e discursivo estão relacionados aspectos importantes para a descrição do plano de conteúdo dos textos de auto-ajuda. A maior ou menor complexidade e atuação dos componentes semióticos nos textos podem oferecer uma tipologia dos discursos estudados. Acredita-se que, enquanto uma totalidade de textos que articulam estruturas e temas tão diversos, a auto-ajuda engendra um número significativo de discursos variantes (gestão de negócios, guia de comportamento, saúde culinária, educação, motivação, etc.) que ensinam a manipular subjetividades, sobretudo. Ao detectar, após o exame dos livros, certas invariâncias de conteúdo, pode-se pensar em como sugerir uma tipologia da auto-ajuda difundida no Brasil contemporanemente. Para Fiorin (1990), uma tipologia calcada nas teorias do discurso não 15 tem o objetivo de constituir uma norma, e sim mostrar que mecanismos (processos de significação) geram os diferentes tipos de discursos sociais (p. 97). No que diz respeito à organização deste trabalho, ela foi elaborada de acordo com sete capítulos. No primeiro, será apresentado um perfil do mercado livreiro no Brasil dos anos 80 em diante. Tendo em vista que o mercado editorial foi se especializando, nos anos 90, na propaganda investida nos produtos e na quantidade de livros publicados, tem-se, no âmbito nacional, uma proliferação de editoras especializadas em atender aos mais diferentes segmentos da sociedade (editoras de literatura popular, universitária, didáticos, romances, textos de auto-ajuda, etc.). Esse quadro reflete o quanto o processo de industrialização da produção editorial faz parte da realidade dos discursos que circulam na sociedade e, sobretudo, dos texos de auto-ajuda contemporâneos. Por esse motivo, pode-se dizer que são cultura de massa, pois leva-se em conta que a auto-ajuda faz parte do tipo de cultura mencionada por Morin (1969), que é produzida segundo os padrões do capitalismo e voltada para o consumo. No segundo e terceiro capítulos, são apresentadas uma exposição da teoria Semiótica (uma breve explicação dos seus fundamentos epistemológicos), juntamente com o estudo dos elementos lingüísticos pertinentes para este trabalho (o percurso gerativo de sentido e as teorias da enunciação) e, em seguida, os componentes semióticos específicos, e seus desdobramentos, para uma classificação tipológica dos discursos. Na parte quatro, estão especificados o método utilizado para o registro das listas de livros da revista Veja, bem como os motivos pelos quais foram selecionados o número total de vinte textos mais consumidos, de 1991 a 2006 – incluindo, desse modo, uma justificativa sobre a pertinência das listas enquanto reflexo das escolhas do leitor em geral. Finalizando o capítulo, será apresentado o corpus deste trabalho e uma observação sobre os textos mais vendidos (se os autores são nacionais ou estrangeiros, se os títulos remetem à auto-ajuda, se há maior recorrência de um determinado livro e não de outros, etc.). O corpus é formado, assim, pelo cômputo das listas de livros registradas no período mencionado. Por meio da apresentação da ilustração de capa dos vinte textos selecionados – coletadas da internet – o capítulo cinco adiciona uma apresentação do conteúdo desses textos e uma análise sucinta dos fatores para-textuais pertinentes a cada discurso, que não somente a capa, mas os textos de orelha, o intuito propagandístico, a formatação e o tamanho das fontes textuais, a qualidade e o tamanho da encadernação, etc. Todos esses fatores que orbitam em 16 torno do sentido são necessários para que se perceba a dimensão da atuação dessa literatura – as suas estratégias de leitura – no que diz respeito ao seu público-alvo. O sexto capítulo procura explicitar a atuação dos componentes semióticos no plano de conteúdo dos textos apresentados (a maior ou menor atuação dos elementos do percurso gerativo), com vistas a sugerir uma indicação tipológica para a totalidade dos discursos examinados. Para finalizar o sexto capítulo, serão apresentadas, esquematicamente, tabelas com a finalidade de organizar as tipologias sugeridas. 17 1. Mercado editorial, cultura de massas e best-sellers. Ao apresentar um breve panorama da evolução do mercado editorial e do fenômeno da auto-ajuda – no plano contextual e na qualidade de cultura de massas – pretende-se explicar, culturalmente, a relevância e a procura relativas aos textos de auto-ajuda analisados neste trabalho. 1.1 O mercado editorial brasileiro. O trabalho de Hallewell (1985), em um dos capítulos que trata mais especificamente sobre o mercado livreiro no Brasil, irá abranger as primeiras décadas do século XX até 1981. O autor compõe um estudo do livro e das instituições editorais em âmbito nacional, em que nota o quanto as desigualdades sociais parecem compartilhar com as desigualdades do mercado de livros, tendo em vista que uma cultura parcialmente efetiva do livro foi instaurada no país somente em 1808, com a transferência da Família Real para o Brasil. Segundo o autor, até meados da década de 50, o eixo Rio–São Paulo respondia por mais de 50% dos títulos e cerca de 82% do total do valor produzido no mercado editorial nacional. No final da década de 70, os dois mercados já contavam com 94% dos títulos e 97% dos exemplares publicados. No início da mesma década, continham 75% das vendas nas livrarias. Os elementos favoráveis a esse mercado foram a enorme participação no produto interno bruto, a alta renda média per capita, a taxa crescente de alfabetização, a maior densidade populacional e a soberania na concentração de bibliotecas, o que respondia pelo número de 2455 das 2542 espalhadas em outras partes do território nacional. Esses fatores refletiam, nos anos 70, como era precária a distribuição de livros pelo país. A má distribuição das livrarias também refletia a influência do eixo sul-sudeste, uma vez que contava com 65 das 75 grandes livrarias no país, das quais 22 estavam em São Paulo e no Rio de Janeiro, 11 em Porto Alegre, 5 em Curitiba e 4 em Belo Horizonte. No país, ainda não eram comuns as empresas atacadistas, sendo que as grandes editoras contavam com empresas filiadas apenas nos grandes centros. Dessa forma, os distribuidores trabalhavam sem participação em sociedade com editores, uma vez que eram apenas consignatários. Mesmo obtendo distribuição própria, os editores não tinham a tradição de enviar representantes de venda aos Estados com distribuição pequena de livrarias, como Norte e Nordeste. 18 Ao focar o país na década de 80, Hallewell aponta para um crescente número de editoras. Segundo levantamento do “Guia da Editoras Brasileiras”, citado pelo autor, as editoras espalhadas pelo país atingiam o número de 481. Hallewell segue enumerando aquelas que cresceram muito na década e que respondiam por uma grande distribuição de títulos de ficção, entre as quais: Nova Fronteira, Record, Brasiliense e Globo. Entre essas, a editora que mais se especializou no setor não-didático foi a Record. Além disso, um fenômeno editorial, como a Brasiliense, passou a ocorrer na década em virtude do crescimento das vendas e da expansão editorial. Coleções como, “Primeiros Passos” e “Tudo é História” alavancaram o crescimento da Brasiliense, porque englobavam assuntos diversos, como política, economia e sociedade em geral e eram distribuídas em edições pequenas, baratas e acessíveis aos públicos mais geral e especializado. Em 1965, a editora Abril (hoje, Nova Cultural) estreou a jornada dos fascículos com a edição ilustrada da Bíblia. Utilizou uma rede de bancas com cerca de 18.000 postos pelo país, em que a vendagem alcançou 150.000 exemplares por fascículo. Seguindo essa mesma linha, surgiram outros fascículos, como o “Pequeno dicionário da língua portuguesa”, o “Livro da vida”, a “Enciclopédia Abril”, “Os pensadores”, entre outros. A maioria dessas coleções foi organizada para ser vendida em 50 fascículos quinzenais ou 100 fascículos semanais, isto é, em dois anos. Hoje em dia, o mercado editorial continua a difundir esse tipo de publicação. Servem de exemplo as coleções que, de vez em quando, têm relançamentos, como a “Obras Primas” e “Os pensadores”, bem como as coleções do jornal Folha de S. Paulo, que versam sobre assuntos diversos: geografia, culinária, história, pintura. Hallewell (1985) fornece um trabalho estatístico do mercado editorial nacional, quando ilustra a distribuição de livros por canal, de 1973 a 1982 (p. 562), e a sua produção segundo o tipo de publicação, de 1966 a 1980 (p. 566). A distribuição por canal abrange Atacado, Varejo (livrarias, papelarias e bancas em geral) e vendas Diretas (vendas a órgãos do Governo). Em dez anos (1973 a 1982), o Atacado oscilou de 46% a 21% na distribuição; no Varejo dominaram as livrarias (16% a 29 % do mercado), disputando com as bancas de jornal, nos anos de 1979 e 1982, com porcentagens de 20,9% em 1979 e de 17,9 % em 1982, enquanto as papelarias mantiveram uma média de 5%; e as vendas para órgãos do Governo só contavam com dados de 1978 em diante, que variaram de 8% a 14% aproximadamente. Já, a produção conforme o tipo de publicação possui dados oriundos de um período de quinze anos (1966 a 1980). As obras avulsas dominaram o mercado da publicação, com ápices de 76% (1977) e baixas de 57,1% (1973); as coleções respondiam por variações de 4,65 % (1980) a até 20,2% (1966); os livros de bolso mantiveram-se entre 10% e 11%, aproximadamente, até início de 1980; e os fascículos oscilaram de 4,12% (1977) a 27,1% do mercado (1973). A fonte dos 19 dados de Hallewell proveio do SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros). A partir das constatações do autor, percebe-se um impulso gradual de industrialização do livro, que tende a aumentar nos anos 90. Com relação a essa década, diz Mayrink (VEJA, O negócio das letras, 10 abr. 1996), articulista de Veja, que, desde o início do decênio até 1995, o número de títulos produzidos no setor editorial dobrou. Tem-se, portanto, um quadro com números relativamente altos. Para a articulista, a indústria editorial nacional passou por grande crescimento na década: Com 330 milhões de exemplares, 40.000 títulos (18.000 deles novos) e faturamento de 1,8 bilhão de reais em 1995, as cerca de 600 editoras brasileiras se encontram numa situação até confortável. Nos últimos cinco anos o setor editorial quase dobrou o número de títulos produzidos e o número de exemplares vendidos cresceu 76% (p. 102). Confirmando o crescimento detectado nos anos 90, outra articulista de Veja, Ângela Pimenta (VEJA, Cultura de massa, 18 jun. 1997, p. 156), mostra os dados relativos aos valores absolutos de venda e ao número de lançamentos das dez grandes editoras nacionais, no período de 1996, dentre elas, Martins Fontes, Globo, Objetiva, Nova Fronteira, Ediouro, Rocco, Siciliano, Companhia da Letras, Record, LP&M Editores. No setor de interesse geral, a Record responde pelo maior faturamento, com 29 milhões de reais por ano, seguida pela Companhia das Letras, com 21,5 milhões e pela Siciliano, já um pouco abaixo, com 13 milhões de reais por ano. LP&M responde pelo menor faturamento, em torno de 4,7 milhões de reais. No setor de livros didáticos, a Ática é disparado a campeã. O seu faturamento anual chega a 242 milhões de reais, seguida pela FTD (129 milhões), Saraiva (81,8 milhões) e Moderna (78 milhões). Nesse movimento do mercado de livros, que indicou um grande aumento de vendas em poucas décadas, observa-se o quanto o mercado editorial investiu maciçamente em livros e na campanha dos lançamentos de títulos. Isso indica que a procura pelos livros, mesmo que não sejam os cânones literários, aumentou grandiosamente a partir dos anos 90. Isso reflete, portanto, a procura pelos livros de auto-ajuda (muitos deles best-sellers que alcançam a casa dos milhões de títulos vendidos), o que disperta, por parte das editoras, livreiros e impressores, o interesse por atender ao mercado consumidor contemporâneo. 20 1.2 Auto-ajuda e best-sellers na qualidade de cultura de massas. Para efeito deste trabalho, leva-se em conta que o termo best-seller está diretamente ligado ao estabelecimento do consumo da cultura de massa, na medida em que representa, economicamente, um processo de grande vendagem de livros e, por outro lado, o estabelecimento de procedimentos técnico-estéticos para a elaboração da própria literatura de massa (SODRÉ, 1988). Por isso, acredita-se que a auto-ajuda faz parte dela, pois o investimento maciço em propaganda, entre outros fatores mercadológicos, atesta o quanto esses discursos são os mais consumidos atualmente pelo leitor em geral. Sodré (1988) apresenta os aparatos técnicos que dizem respeito à literatura de massa, ao propor um estudo a respeito do que chama literatura de mercado. Nota-se, a partir da argumentação do autor, que vocábulos como best-seller e folhetim podem ser tomados, cada um de acordo com o seu período de surgimento e popularização, como sinônimos de literatura de massa. Desse modo, para que a obra se torne o que é (ser bem vendida ou apreciada pela crítica), é necessário ser reconhecida pelo meio acadêmico ou pela própria massa consumidora. Nesse caso, o best-seller obedece, geralmente, não à crítica da cultura acadêmica, mas a regras de oferta e procura do mercado consumidor. É importante dizer que as regras de produção exigidas pelo mercado geram, obrigatoriamente, efeitos ideológicos distintos. A fim de ilustrar o processo pelo qual passa um livro para se constituir um best-seller, Sodré cita a obra Os mistérios de Paris, de Eugène Sue. Escrita no século XIX e analisada por grandes pensadores, como Marx, Engels e Gramsci, mostra as doutrinas da reforma social, utilizando, como mecanismos de interpelação quatro fatores, o elemento mítico, a atualidade informativo-jornalística, o pedagogismo e a retórica consagrada da literatura anterior. Para Sodré (1988), a literatura brasileira adaptou seus títulos de autores como Dumas, Dickens e do próprio Sue. Esses autores eram folhetinistas, assim como muitos dos escritores de destaque brasileiros o foram. Joaquim Manuel de Macedo, Bernardo Guimarães e José de Alencar, entre muitos, são exemplos de autores nacionais, folhetinistas adeptos da narrativa romântica. Lembra-se que a fronteira pode ser tênue entre um livro culto e um best-seller e entre o autor e a sua intenção de publicação. Segundo Sodré, há obras escritas para ser um best-seller, que, pelo contrário, são reconhecidas como obras cultas, como no caso de Charles Dickens. Havia autores que desdenhavam as suas produções, como Conan Doyle e as suas aventuras de Sherlock Holmes, porque se dedicavam paralelamente a romances que praticamente eram desconhecidos. É preciso lembrar que publicar textos, sejam eles direcionados à massa ou ao 21 consumidor culto, não é tarefa fácil. A diferença é que o folhetinista se dedica a uma forma popular de contar a história, e o escritor, a um projeto estético do texto. O hibridismo que ocorre muitas vezes na maneira de ser da literatura de massa – e das mídias de massa em geral – acarretou ao romance moderno múltiplas intenções (de nível psicológico, metafísico, estético ou social), diz Sodré. Em virtude disso, torna-se difícil rotular um best-seller de policial, por exemplo, se a ele misturam-se aventura, terror ou drama familiar. “Nem sempre o gênero se define com muita clareza – são pura e simplesmente best-sellers, isto é, uma combinação variada dos elementos que compõem a estrutura do texto folhetinesco ou da literatura de massa” (Sodré, 1988, p. 55). De fato, pode-se dizer que a auto-ajuda, enquanto produto de massa (difundido conforme normas industriais de produção da cultura), adota também uma combinação variada de elementos, tanto pertencentes a sua estrutura quanto relativos aos temas incorporados. Como foi apontado, a ela estão atreladas questões de gestão de negócios, comportamento, guia de saúde, culinária, motivação, autobiografia, etc. Essa problemática coloca a auto-ajuda entre os discursos os quais fica difícil rotular – da mesma forma como os best-sellers – de simplesmente auto-ajuda, pois sua estrutura muitas vezes é o resultado de uma combinação entre um texto narrativo ou ficcional – exemplos de vida, relatos de superação – com um texto que disserta sobre algum conhecimento de finalidade prática. A heterogeneidade constituinte da auto-ajuda, enfim, instiga a estabelecer tipologias para os discursos mais consumidos que fazem parte dessa literatura, pois ela objetiva “manejar”, em uma mesma unidade discursiva, acredita-se, pontos de vista diferentes. Já que foi mencionada a heterogeneidade incorporada à auto-ajuda, será apresentado um breve estudo lexicológico dos termos “auto-ajuda”, “esoterismo” e “misticismo” – que remete aos resultados da pesquisa de Iniciação Científica – com vistas a entender que os elementos místico e esotérico, em alguns discursos, são “aliados” da auto-ajuda. Não se quer dizer com essa comparação que misticismo-esoterismo é o mesmo que auto-ajuda, mas simplesmente explicar o quanto o autoconhecimento congressa esses termos, ou seja, é o ponto comum entre eles. Como há um toque de misticismo-esoterismo em alguns discursos do corpus – O monge e o executivo (HUNTER, 2004), Nunca desista de sesus sonhos (CURY, 2004) e em Você é insubstituível (CURY, 2003), por exemplo –, a partir das acepções fornecidas pelo Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004) podem-se observar as relações de sentido entre os vocábulos. Eles são definidos assim: 22 auto-ajuda [De aut(o) + ajuda.] Substantivo feminino. 1.Método de aprimoramento pessoal em que o indivíduo pretende buscar, sem ajuda de outrem, soluções para problemas emocionais, superação de dificuldades, etc. esoterismo [Do fr. ésotérisme.] Substantivo masculino. 1.Filos. Doutrina ou atitude de espírito que preconiza que o ensinamento da verdade (científica, filosófica ou religiosa) deve reservar-se a número restrito de iniciados, escolhidos por sua inteligência ou valor moral. 2.Designação que abrange um complexo conjunto de doutrinas, práticas e ensinamentos de teor religioso e espiritualista, em que se confundem influências de religiões orientais e ciências ocultas, associadas a técnicas terapêuticas, e que, supostamente, mobilizam energias não integrantes da ciência e que visam a iniciar o indivíduo nos caminhos do autoconhecimento, da paz espiritual, da sabedoria, da saúde, da imortalidade, etc. [Cf. exoterismo e ocultismo.] misticismo [De místico + -ismo.] Substantivo masculino. 1.Crença ou doutrina religiosa dos místicos [v. místico (5)]. 2.Mística (2). 3.O elemento místico de qualquer doutrina: o misticismo dos positivistas. 4.Tendência a considerar a ação de supostas forças espirituais ocultas na natureza, que se manifestam por vias outras que não as da experiência comum ou as da razão. 5.Disposição para crer no sobrenatural. [Sin. ger., p. us.: misticidade.] De acordo com as acepções apresentadas, misticismo e esoterismo são doutrinas (formas de crença), em uma de suas acepções. Levam em conta a ação de forças espirituais ocultas, configuram-se como experiências que fogem à razão, definem uma doutrina religiosa como base. Enfim, ditam uma maneira de ser, em que a crença em forças da natureza, que parte, sobretudo, da exterioridade do sujeito, manifesta-se por vias que fogem à racionalidade científica. O esoterismo é definido como uma via para iniciar o indivíduo no campo do autoconhecimento, que tem a ver com paz espiritual, saúde, sabedoria e imortalidade. O esoterismo tem, assim, uma definição mais especializada, mais específica, enquanto o misticismo é mais abrangente. Este define, grosso modo, aquele que tem capacidade para crer no sobrenatural, na ação de forças sobrenaturais. Nota-se que os dois termos em questão, misticismo e esoterismo, têm definições que se entrecruzam, se confundem, enfim, se complementam, em direção à auto-ajuda, enquanto pensamentos de aprimoramento pessoal em que se buscam meios de solucionar e superar problemas emocionais. Nesse caso, o enfoque da auto-ajuda recai na interioridade do sujeito, ou seja, configura-se como forma de 23 ajudar a si próprio. É interessante que, no âmbito da acepção do esoterismo, é permitida uma constituição heterogênea, em que os domínios das religiões orientais e das ciências ocultas atuam juntamente com técnicas terapêuticas que mobilizam energias não integrantes da ciência. Enfim, as três acepções abordam, em comum, o campo do autoconhecimento. Em seguinda, será apresentado um quadro geral sobre o surgimento da auto-ajuda e o seu desenvolvimento até a atualidade, momento em que essa forma de ver o mundo, de praticar o autoconhecimento, passa a representar um sucesso editorial. Verificar-se-á, depois, como é possível relacionar esse fenômeno à cultura produzida em escala industrial, a mass media. 1.3 O fenômeno da auto-ajuda: um panorama histórico. Em Auto-ajuda e individualismo (RÜDIGER, 1996) e Auto-ajuda e gestão de negócios (MARTELLI, 2006) podem-se contemplar, respectivamente, um panorama da auto-ajuda no âmbito histórico e uma perspectiva do mesmo tema na contemporaneidade. Com Morin (1969), contemplamos um estudo da cultura de massa – a mass-media, que se propaga por meio de impresso, filme, rádio e tevê – no seio da sociedade capitalista. Este filósofo procura explicar como e para que tipo de indivíduo a cultura industrializada produz as suas tendências. Morin (1969) faz referência a dois momentos da sociedade pós-industrial que deram início à cultura de massa. Diz que no começo do século XX houve uma industrialização propriamente dita – a colonização da África e a dominação da Ásia – e, mais adiante, uma outra, “a industrialização do espírito” (p. 15). Segundo ao autor, esta colonização metafórica tem a ver com a alma e progrediu no decorrer do século XX. Por meio dela, opera-se um processo ininterrupto de técnicas voltadas à organização exterior, que penetram no domínio interior do homem, derramando, assim, mercadorias culturais (p. 15). Essa forma de cultura, de acordo com as técnicas da imprensa, do rádio, da tevê, do cinema, propagou-se para todas as esferas da vida. Esses objetos culturais que circulam por vários meios formam o conjunto do que Morin chama cultura de massa, que é um tipo de cultura “[...] produzida segundo as normas maciças da fabricação industrial; propagadas pelas técnicas de difusão maciça” (ibid., 1969, p. 16). Esse tipo de cultura destina-se a uma massa social, a “[...] um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade” (ibid., p. 16). Em linhas gerais, o mercado cultural de massa contemporâneo tende a alguns fatores. Um deles diz respeito a uma variedade a qual Morin denomina sistematizada e 24 homogeneizada, a que torna assimilável a um homem médio ideal os mais diferentes conteúdos. Outro fator citado diz respeito ao sincretismo, que homogeniza sob um denominador comum a diversidade dos conteúdos (ibid., p. 38). Para o autor, esses procedimentos de sincretismo e homogeneização de conteúdos têm a ver com a busca do máximo consumo, dando à cultura de massa um de seus caracteres fundamentais (ibid., p. 39). Em capítulo chamado “O novo público”, Morin (1969, p. 37-49) volta o seu pensamento para o grande público, que são os consumidores de mercadorias culturais. Explica que o setor que destina seus produtos a um público mais diferenciado possível obtém sucesso, sendo, pois, um produto de massa. A literatura de auto-ajuda pode ser considerada como tal (expressão produzida industrialmente e voltada para o consumo), porque tende a universalidade, tende a abranger um público variado (místico, carente, pai de família, executivo, etc.). O pensador contemporâneo Lipovetsky (1997) fala em produtos individualizados, que são produzidos na justa medida do aproveitável e que apresentam os mesmos esquemas, sem muita variação. Por isso, ocorre uma tendência de as mercadorias culturais serem produzidas para um público mais diferenciado possível. Para ele, o produto apresenta sempre uma individualidade, mas que é enquadrada nos esquemas típicos, onde não ocorre uma subversão vanguardista, mas a novidade do clichê (um misto de forma canônica e de inédito): Continua dizendo que É preciso evitar o complexo, apresentar histórias e personagens imediatamente identificáveis, oferecer produtos de interpretação mínima [...]. A cultura de massa é uma cultura de consumo, inteiramente fabricada para o prazer imediato e a recreação do espírito, devendo-se sua sedução em parte à simplicidade que manifesta (LIPOVETSKY, 1997, p. 209-10). No que diz respeito aos meios de comunicação, logo na década de 30, em Paris e nos Estados Unidos, a imprensa e o rádio respondiam a um público diversificado, pois tendiam a uma diversidade de leitores e espectadores, cujo caráter próprio era o de se dirigir a todos (MORIN, 1969, p. 39). Por isso, Morin constata que o setor mais dinâmico da indústria cultural é aquele que efetivamente criou e ganhou o grande público, as camadas sociais, enfim, as idades e os sexos diferentes (p. 40). Durante o desenvolvimento do pensamento da auto-ajuda, do século XIX em diante, observa-se com Rüdiger (1996) uma tendência a um processo de massificação, como apontado por Morin no campo da comunicação de massas. O movimento teve seu primeiro momento no contexto da cultura anglo-saxã, a partir do texto de Smiles, Self-help (Auto-ajuda). Obra escrita em 1859, ela objetivou ensinar a prática da força de vontade aplicada aos bons hábitos. 25 O conceito chave, portanto, não era a realização pessoal ainda, mas o desenvolvimento do caráter, pois envolvia a prática do trabalho e o cumprimento dos deveres sociais. O pensamento não se voltava, assim, para a satisfação individual. Resumia-se em capacitar o indivíduo a se apropriar da própria vida por meio do cultivo moral da consciência e do cumprimento dos deveres para consigo e para com os outros. Mais adiante, num segundo momento, a auto-ajuda [...] procurou difundir a idéia de que o sentido da condução da vida consiste em desenvolver plenamente a personalidade, concebendo para tanto a figura do “homem que ajuda a si mesmo” [self-help man], isto é, a idéia do homem que submete sua vida a um processo de autocultivo, a um programa de formação-espiritual (ibid., p. 62). No decorrer da história, passou-se do contexto em que perpetuava um homem com deveres, para um tipo de homem que se auto-realiza, o Self-made man (p. 48 e 51). Esses são dois momentos importantes no pensamento da auto-ajuda. Do cumprimento dos deveres, o homem passa a se preocupar com o autocultivo. Mais adiante, no contexto do pós-guerra, a doutrina do pensamento positivo desse período foi sendo incorporada no limiar de uma nova forma de pensamento. Nesse caso, surgia a preocupação em fornecer respostas espirituais aos problemas do dia-a-dia. No período de depressão nos EUA, Peale, um pastor protestante, observou que as pessoas viviam com problemas. Ele estabeleceu que deveria estar em primeiro plano a saúde mental e, em seguida, dinheiro, amor e casamento. Peale escreveu, em 1952, cem anos após Self-help, O pensamento positivo, livro que logo se tornou best-seller. A idéia surgiu a partir de um programa de rádio, que o pastor manteve por 40 anos, em que narrava notícias boas, de gente boa, fazendo boas ações. A partir disso, verificou a importância de transmitir mensagens de otimismo de forma simples. Percebia o quanto os indivíduos eram acometidos de neuroses, tensões, ansiedades e complexos da vida moderna. O livro figurou, desse modo, entre os títulos de auto-ajuda mais conhecidos de todos os tempos, com 15 milhões de cópias vendidas no mundo. Devido às circunstâncias do sistema de produção econômico, essa literatura, da forma como é configurada atualmente, nasceu ligada à racionalidade mercadológica do modo de produção capitalista. Outros escritores, geralmente profissionais de sucesso, escreviam manuais de como vencer comercialmente. Os conselhos relativos ao ambiente de trabalho acabaram servindo também para a vida particular. A contribuição desses escritores sinalizou 26 [...] os primórdios do processo de subsunção dos princípios do pensamento positivo, sistematizados na passagem do século, nos princípios da carismática individual ou ética da personalidade, professados em escala crescente pela literatura de auto-ajuda que se desenvolveu depois da II Guerra Mundial (RÜDIGER, 1996, p. 114). Aos poucos, essa literatura foi sendo incorporada à categoria do pensamento, como na crença no poder da mente e na possibilidade de alcançar uma consciência superior – esses dois fatores, entre outros, parecem dar um tom místico à auto-ajuda. Desse modo, estabeleceu-se que, em primeiro lugar, houvesse a preocupação em cuidar da saúde, em segundo, o desenvolvimento de técnicas para lidar com pessoas e em terceiro lugar, o sucesso nos negócios. Veja-se que, do poder da mente e da consciência superior, a auto-ajuda foi sendo direcionada para o campo da gestão de negócios. Por isso, mais à frente, após os procedimentos de mentalização, passou-se ao estágio do desenvolvimento de técnicas de relações humanas e de comunicação, que se resumiam em maneiras de modelar exteriormente a personalidade, com o intuito de realização e sucesso. O primordial, então, era ensinar como se comunicar de forma correta para se relacionar com outras pessoas. Mais atualmente, o autor nota a influência dos elementos místicos no pensamento da auto-ajuda, em que menciona o quanto um determinado “cientificismo coisificador” está cada vez mais forte, competindo com influências em que o elemento espiritual ainda se mostra vigoroso. Recentemente, a auto-ajuda tende a se aproximar também do movimento new age, de uma consciência cultural ligada a um conjunto desconexo de concepções cosmológicas e de práticas espirituais (ibid., p. 121). Em síntese, observa-se em todo esse movimento do pensamento da auto-ajuda que a necessidade central é a auto-realização como forma de descobrir o verdadeiro “eu” do indivíduo, bem como os espíritos de espontaneidade e criatividade que reinam em cada um, enfim, configura maneiras de manipular subjetividades e lidar com o autoconhecimento (métodos de aprimoramento pessoal). Se, no início, o importante era saúde mental, dinheiro, amor e casamento, a literatura de auto-ajuda continuou a concentrar seus esforços no culto à mente, relacionado-a às concepções cosmológicas e práticas espirituais, mas tomando um rumo que a orientasse para estratégias de comunicação e para os negócios provenientes do mundo capitalista. Segundo o que foi apresentado, podem ser observados, de forma panorâmica, quatro momentos que marcam as etapas do pensamento da auto-ajuda, segundo Rüdiger (1996, p. 90- 5), em que se pode imaginar um movimento que vai do cuidado com os deveres e com o corpo, passando pela mente e pelo espírito: 27 A preocupação em formar o caráter cedeu passo ao objetivo de transformar o indivíduo em uma pessoa de sucesso” (p. 90). O comportamento com o cumprimento dos deveres foi substituído pela preocupação em satisfazer os desejos através da prática da auto-gestão (p. 92). O fundamento da condição da vida transferiu-se do plano dos costumes para a dimensão do poder da mente (p. 93). As valorações que distinguiam moralmente o caráter cederam lugar às valorações supramorais que devem constituir o poder e a harmonia da personalidade (p. 95). Martelli (2006), em Auto-ajuda e gestão de negócios, discute o alcance da auto-ajuda voltada para os fatos do capitalismo, quando investiga as estratégias que dizem respeito ao fenômeno quanto à sua aplicação no mundo dos negócios, no campo da gestão de empresas. Diz a autora, que, ao invadir o setor dos negócios, o pensamento da auto-ajuda procura destinar-se a um de modelo de profissional e de sociedade. Nesse caso, da mesma forma que a auto-ajuda invadiu o meio organizacional, este pôde se apropriar da forma de pensar típico dela (p. 155). Para explicar a invasão do pensamento da auto-ajuda nos negócios, Martelli investigou bibliografia sobre administração e negócios, fez entrevista com consultores, diretores e gerentes da área de Recursos Humanos. Também participou de minicursos e palestras – com os chamados “gurus da auto-ajuda” – e analisou livros de auto-ajuda empresarial. A autora é enfática no que diz respeito à profusão de temas que a auto-ajuda desenvolve. Martelli (2006) refere-se a um fenômeno maior, quando diz que a auto-ajuda tem a dizer sobre um tipo de homem, um modo de ver a natureza, a sociedade, um modo de pensar as relações entre os homens. Para a autora, auto-ajuda não se resume aos livros e manuais, e sim a um fenômeno que abarca temas diversos e faz confundir as fronteiras e as abordagens temáticas. Pensamento positivo e autoconhecimento eram assuntos recorrentes a essa literatura. Atualmente, o que se observa é uma combinação de temas que se desenvolvem no pensamento da auto-ajuda, atingindo todas as esferas da vida (p. 184). A autora busca formular a auto-ajuda de acordo com duas formas de apresentação: de forma manifesta e de forma latente (ibid., p. 185). Na auto-ajuda manifesta, os autores se expressam explicitamente como escritores de auto-ajuda, “[...] pois respondem por serem propagadores do gênero, têm seus títulos nas listas dos mais vendidos nessa rubrica e nela são catalogados” (ibid., p. 185), enfim, tais autores reconhecem-se como escritores de auto-ajuda. A sua forma latente, por outro lado, difunde um conteúdo implícito de auto-ajuda. A autora resume a questão, dizendo que os títulos que classifica como auto-ajuda latente podem não ser 28 imediatamente reconhecidos como auto-ajuda, porque os autores não se apresentam como escritores desse tipo de literatura, enfim, não abusam de recursos gráficos, didáticos e persuasivos (ibid., p. 189). No corpus deste trabalho serão examinados discursos de auto-ajuda que se organizam dessas duas maneiras descritas. A auto-ajuda do tipo “manifesta” responde pela maioria dos discursos deste trabalho, pois, nesse caso, os autores, sobretudo quando orbitam ao redor de temas empresariais e de comportamento, apresentam-se como escritores desse tipo de literatura. Projetando-se discursivamente como conhecedores técnicos dos assuntos sobre os quais versam, criam o efeito de sentido de um sujeito verdadeiramente especialista, seja pela formação em M.D (Managing Director) ou Ph.D. (Doctor of Philosophy), seja pelo relato de suas próprias vidas como empreendedores. 29 2. A metodologia Semiótica e sua aplicação. Propõe-se, inicialmente, um roteiro de leitura que apresente as bases da Semiótica e o seu desenvolvimento, na qualidade de teoria que explica os processos de significação. Em seguida, será feito um estudo sobre as maneiras possíveis de relacionar a Semiótica com o mundo do leitor (as projeções da enunciação no enunciado, o leitor e autor implícitos, a construção do ethos do enunciador). Pensando na aplicabilidade da Semiótica discursiva, em seguida, serão discutidas as maneiras possíveis de tipologizar os diferentes discursos do corpus. As manifestações discursivas de auto-ajuda estudadas podem fornecer um número significante de combinação de componentes semióticos, a partir dos quais é possível elaborar uma tipologia discursiva para a totalidade dos textos examinados. 2.1 O “percurso gerativo” da Semiótica. Segundo Hénault (2006), a obra Semântica estrutural (GREIMAS, 1973) propõe uma primeira síntese da teoria Semiótica, desenvolvida pelo mestre lituano Algirdas Julien Greimas. Considerado o trabalho que deu início ao empreendimento greimasiano na construção de uma teoria geral da significação, nele há inúmeras referências ao estudo de Hjelmslev. Pertencente ao Círculo Lingüístico de Copenhague, este autor concebe a função semiótica enquanto relação entre um plano de conteúdo e um plano de expressão (ambos portando uma forma e uma substância lingüísticas) e estabelece idéias sobre o modo de análise objetiva, de acordo com o seu livro Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Greimas privilegiou o estudo do plano de conteúdo, para o qual descreveu, a partir das idéias iniciais de Semântica estrutural, uma teoria adequada – orientando a manifestação discursiva em níveis – para a descrição da significação. Hénault (2006, p. 129) apresenta a importância do livro em questão: O sucesso inicial de Semântica estrutural se deve a seus exemplos de análises sêmicas, que abriam amplas perspectivas, de um lado para uma renovação dos estudos literários (permitindo objetivar os matizes ou eliminar a ambigüidade das polissemias) e, de outro, para as pesquisas sistemáticas em lexicologia (com todas as aplicações que se buscavam naquela época em história, no ensino de línguas ou nas primeiras análises de textos publicitários). 30 Greimas, ao propor um modelo semântico de descrição, precisa a organização sêmica dos lexemas a partir da taxionomia do termo “assento” (GREIMAS, 1973, p. 51). Dentro desse campo lexical, baseando-se no estudo do lingüista B. Pottier, Greimas apresenta os traços distintivos (unidades mínimas de conteúdo) de acordo com a funcionalidade dos objetos pertencentes a esse campo. Adaptando os exemplos citados em Semântica estrutural, para os termos “banco”, “cadeira” e “pufe”, pode-se observar que são objetos semelhantes (do mesmo campo semântico), porque são feitos para sentar, mas ao mesmo tempo são distintos, porque cada um comporta um sema específico ou a falta de algum: o primeiro não tem braços, a cadeira tem braços e encosto e o pufe não tem encosto nem braços. Esse é um dos exemplos que explicam como o plano de conteúdo pode ser articulado em unidades mínimas de sentido. Para além do lexema, no entanto, Greimas chamou a atenção para o estudo de uma teoria geral da significação, a respeito da qual desenvolveu um método próprio e adequado para discutir o processo de geração do sentido do texto. Isso se deve em função de o mestre genebrino, Ferdinand de Saussure, ter constituído um método científico para a lingüística na primeira metade do século XX, em que procurou averiguar a língua na qualidade de sistema (estrutura) até o nível da frase apenas. Saussure mencionou em seu Curso de Lingüística geral (SAUSURRE, 2002, p. 23-25) que era necessária a construção de uma teoria geral do signo, a qual denominou semiologia. Disse que “[...] o problema lingüístico é, antes de tudo, semiológico, e todos os nossos desenvolvimentos emprestam significação a este fato importante” (ibid., p. 25). Isso quer dizer que era necessário desenvolver uma teoria da linguagem que ultrapassasse o nível da palavra, capaz de analisar o texto como um todo de sentido, por meio de uma gramática do discurso. Partindo, assim, das idéias de Ferdinand de Saussure, para quem a língua é feita de oposições, Greimas observou muito bem que, à luz do pensamento estruturalista, o processo de significação (no âmbito da percepção) é construído por meio de continuidades e descontinuidades. Para ele, a única maneira de focalizar o problema da significação, na época, consistia em afirmar a existência de descontinuidades no plano da percepção e dos espaços diferenciais, noções essas que norteam a significação, por isso, não era necessário preocupar-se com a natureza das diferenças percebidas (GREIMAS, 1973, p. 27). Os termos continuidade e descontinuidade, que davam ensejo a uma forma de análise relacional do sentido, e, portanto, não substancialista, são conceitos que não representavam novidade, uma vez que já provinham dos fundamentos da matemática. A linha reta, uma das noções desse campo, a qual possui um aspecto de apreensão contínuo, nada mais é, por 31 exemplo, que a junção de infinitos traços descontínuos. A partir do conceito de estrutura, nota-se o quanto a percepção de diferenças pode explicar e compor uma organização coerente do sentido. Nesses termos, admite-se que a estrutura é um sistema de relações entre, no mínimo, dois termos-objeto articulados. Para Greimas, “[...] perceber diferenças quer dizer captar ao menos dois termos-objetos como simultaneamente presentes” e também “[....] captar a relação entre os termos, ligá-los de um ou de outro modo” (GREIMAS, 1973, p. 28). Para que haja estrutura (sistema) é necessário, portanto, a presença de dois termos e a sua relação, seja pela identidade, seja pela diferença de sentido. Isso implica que um só termo- objeto não pode comportar significação e que, por isso mesmo, a significação pressupõe a existência da relação entre termos (ibid., p. 28). Dessa maneira, a natureza dessa junção deve ser formada por identidades e diferenças, de modo que: 1. Para que dois termos-objetos possam ser captados juntos, é preciso que tenham algo em comum (é o problema da semelhança e, em suas extensões, o da identidade). 2. Para que dois termos-objetos possam ser distinguidos, é preciso que sejam diferentes, qualquer que seja a forma (é o problema da diferença e da não-identidade) (ibid., p.29). Os conceitos de continuidade e descontinuidade são apresentados na teoria Semiótica em uma dupla natureza, do tipo conjuntiva e disjuntiva. Em um exemplo proveniente da fonologia, a noção de continuidade e de descontinuidade é facilmente assimilável se se imaginar a relação de uma vogal com uma consoante. Enquanto o fonema /a/ apresenta um aspecto contínuo, fluído – uma vez que a corrente de ar passa com menos bloqueio possível pelo aparelho fonador –, um fonema como o /t/ possui um aspecto descontínuo, pontual, porque a corrente de ar é bloqueada rapidamente no contato da língua com a parte de trás dos dentes. Em suma, isso é o que caracteriza os fonemas oclusivos, plosivos, como /p/, /t/, /k/ e /b/, /d/, /g/. Nesse exemplo, há mais diferenças que semelhanças: a vogal é sonora, a corrente de ar é contínua, tem natureza prosódica e silábica; enquanto a consoante é surda, com bloqueio momentâneo da corrente de ar, de natureza segmental e não-silábica. Nesse caso, a natureza da relação é mais disjuntiva. Noutra comparação, entre /t/ e /d/, por exemplo, há mais semelhanças (relações conjuntivas) que diferenças. O único traço que distingue os dois fonemas é a sonoridade, presente em /d/ e ausente em /t/. No que diz respeito a um exemplo relativo ao domínio da cultura, um ocidental que não fala mandarim, ao ouvir um chinês conversando, apenas nota o quanto essa fala articulada, tonal, não passa de uma linha contínua de sons incompreensíveis. Depois de um tempo, ao estudar essa língua oriental e introjetar as relações gramaticais e semânticas 32 inerentes ao seu sistema, passa a captar, onde apenas existiam ruídos incompreensíveis, o seu significado; isso ocorre em virtude de perceber as descontinuidades – por isso mesmo, as articulações sistemáticas – que dão sentido àquele idioma. Um esquimó vê uma descontinuidade de brancos na neve – esse povo tem vocábulos para vários tons de branco – onde um brasileiro, ao viajar para o pólo norte, apenas captaria um tom de branco contínuo, ao vislumbrar uma montanha de neve. Isto se aplica à geografia de um país tropical, onde não existe neve. Nesses exemplos, observam-se, portanto, formas diferentes – por meio de categorizações diversas – de conceber a estrutura lingüística. Greimas (1973, p. 36) compara o cromatismo do universo cultural inglês com o galês. Onde no inglês há uma gradação de quatro cores, que vai do verde, passa pelo azul, pelo cinza e termina no marrom, a cultura do País de Gales aponta somente três cores: o gwyrdd, o glas e o llwyd. O primeiro equivale aproximadamente à faixa de espectro do verde, o glas recobre uma pequena faixa dos tons do verde mais escuro até as tonalidades do cinza e o último seria um meio termo entre cinza e marrom. Conclui o mestre lituano que Estas articulações sêmicas diferentes – que caracterizam, é claro, não somente o espectro das cores, mas um grande número de eixos semânticos – são apenas categorizações diferentes do mundo, que definem, em sua especificidade, culturas e civilizações (GREIMAS, 1973, p. 37). A partir do estudo apurado das noções operatórias de continuidade e descontinuidade, oposição, contraste e semelhança, conjunção e disjunção, Greimas elaborou um modelo de estrutura elementar de significação. Essa estrutura de relação binária, noção que foi retomada em Sobre o sentido (GREIMAS, 1975), serviu de base para o lingüista lituano elaborar um modelo de descrição da significação, composto por uma gramática fundamental, uma gramática narrativa e uma gramática discursiva. O modelo teórico proposto, de previsibilidade sêmio-narrativa e discursiva, composto, respectivamente, por três níveis independentes – um imanente, um aparente e um nível de manifestação – foi denominado “percurso gerativo de sentido”. Como observado na discussão sobre os conceitos operatórios de base e os níveis a ele relacionados, a Semiótica procura mostrar, em linhas gerais, que a linguagem não é apenas um sistema de signos – como previa Saussure – mas também um sistema de significações. Nesse contexto, teve muita importância o estudo da gramática narrativa. Para a sua formulação teórica, Greimas recebeu influência do estudo de Vladimir Propp, em Morfologia do conto maravilhoso, estudo em que observa a ocorrência de regularidades num universo de narrativas específico, em que propõe 31 funções invariáveis para o gênero “conto maravilhoso”. A partir 33 dessas funções, Greimas notou que o universo semântico dos contos era característica de uma relação entre dois grupos de oposição, de acordo com as categorias semânticas fundamentais do tipo “ordem vs. interdição” e “obediência vs. desobediência” (HÉNAULT, 2006, p. 132). A partir disso, Greimas reduziu as funções a uma macrounidade, a “prova”, que englobava de forma paradigmática três provas específicas: a qualificação, a principal e a glorificante (ibid., p. 133). Esses desdobramentos da ação tem a ver com três funções da narrativa: a) o percurso de qualificação do sujeito chamado prova qualificante, na qual freqüentemente se vê o herói conquistar a espada ou o cavalo mágicos que lhe permitirão encarar a prova principal; b) a ação decisiva, a chamada prova principal, na qual o herói realiza o mandato recebido; c) a prova glorificante, na qual ele recebe uma aprovação (ibid., p. 136). Segundo Hénault (2006), esse esquema canônico de três provas representava para Greimas um esquema ideológico, “[...] a memorização pela linguagem do sentido da vida, uma espécie de saber global sobre os encadeamentos de ações que fazem sentido na vida de um grupo ou de um indivíduo” (p. 141 – grifo da autora). Posteriormente, Greimas adotou um esquema em que adapta para o modelo de descrição do nível narrativo três fases, a manipulação, a ação (aquisição de competência e o seu desempenho) e a sanção, em que procurava demonstrar que não eram meras funções das narrativas que predominavam, mas representações de mudanças de estado. Em prefácio do livro de Courtés (1979), diz Greimas que “[...] se a [função de Propp] ‘partida do herói’ aparece como uma ‘função’ correspondendo a uma forma de actividade, a ‘falta’, longe de representar um fazer, designa antes um estado e não pode ser considerada como uma função” (p. 9) A nova compreensão das funções proppianas, na qualidade de esquemas de ação e de estados, mais à frente, originou a concepção clássica da gramática narrativa. O seu modelo antropomórfico resume-se, segundo Barros (2002, p. 28), a duas concepções: Transformações de estados e de situações, operada pelo fazer de um sujeito que age no mundo em busca de valores investidos nos objetos; sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contrato entre um destinador e um destinatário (comunicação e conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos-valor). A estrutura narrativa opera entre – e se articula com – o nível fundamental e o discursivo. Ela organiza antropomorficamente as articulações mais abstratas do primeiro nível, dando o fundamento da busca do sujeito. É também a base para o nível de manifestação (o discursivo), enquanto meio de projetar as coordenadas de pessoa, espaço e tempo (na sintaxe 34 discursiva), para, em seguida, receber o investimento de temas e figuras (na semântica discursiva). Abaixo, discutir-se-á, portanto, como o nível fundamental – ou das estruturas elementares – é antropomorfizado no nível narrativo e como a narratividade ganha consistência – rumo às estruturas de superfície – no nível discursivo. 2.2 O percurso gerativo em foco. Ao questionar a semântica da palavra, Greimas procurou discutir o assunto polêmico da significação, ou melhor, do processo de geração do sentido. Partindo de um ponto de vista semiótico, enfatizou os passos anteriores à construção do patamar discursivo. O discurso é o nível mais próximo da manifestação textual e, por isso, compõe a estrutura de superfície do sentido. De forma geral, pensando em se libertar das amarras da frase, procurou criar uma gramática do discurso capaz de dar conta da totalidade do texto, por isso elaborou gramáticas do texto específicas e autônomas: uma para o nível fundamental (de natureza imanente); uma para o narrativo (aparente); e outra para o nível discursivo (de superfície, mais próximo da manifestação textual). Cada uma delas é autônoma e tem seu componente sintático-semântico. Em Semântica estrutural (1973), Greimas detalha o início da proposta do que foi batizado como percurso gerativo de sentido. No capítulo “Estrutura elementar da significação” (p. 27), discute as noções já apresentadas anteriormente, de continuidade e de descontinuidade, de conjunção e de disjunção, de semelhança e de diferença. A partir dessas noções, teoriza que, por meio de uma unidade algorítma discreta (de relação binária), pode-se efetuar uma operação como: A / r (S) / B. Partindo da relação (“r”) entre termos como “A” (macho) e “B” (fêmea), pode-se obter, a partir de um eixo semântico (“S”), como “sexualidade”, uma articulação específica de semas “s” (unidades mínimas de sentido, do plano de conteúdo), que identifiquem ambos como pertencentes à mesma categoria semântica, de sexualidade. Se, por um lado, masculinidade e feminilidade são os semas discretos – que situam “macho” e “fêmea” na esfera da diferença – por outro lado, tem-se uma relação de semelhança ou de identidade quando comparados por meio de traços semânticos, como “animados” e “mortais”, ou seja, como seres pertencentes ao mundo natural. Essa articulação entre termos, colocados em relação de oposição e obtida a partir de um eixo semântico comum – exemplificada aqui pelo termo englobante sexualidade – foi formalizada por Greimas (1975), em Sobre o sentido. No artigo “O jogo das restrições semióticas”, descreve como viria a ser o seu modelo de estrutura elementar da significação, o nível fundamental. Segundo Cortina & Marchezan (2004): 35 A gramática fundamental é lógico-conceptual e estrutura-se por meio de uma sintaxe e de uma semântica fundamental. [...]. Esses dois aspectos da sintaxe fundamental procuram, ao mesmo tempo, dar conta do modo de existência e do modo de funcionamento da significação. A sintaxe da gramática fundamental de nível profundo é o lugar em que a significação adquire uma primeira configuração do microuniverso categorial que se costuma diagramatizar na forma de um quadrado semiótico; aí a significação tem um modo de existência puramente virtual (p. 402). A proposta do quadrado semiótico, desenvolvido por Greimas & Courtés (1979, p. 364-8), explica como pode ser organizado o nível fundamental, constituindo, pois, um primeiro micro-universo de articulação do sentido. O exemplo anteriormente citado, sobre as articulações inerentes a “macho” e “fêmea”, está exemplificado em Cortina & Marchezan (2004, p. 403): Figura 1: Estrutura do modelo constitucional da teoria semiótica. A estrutura elementar da significação é descrita por meio de oposições axiológicas aplicadas ao quadrado semiótico. s2 / fêmea Não-s1 / não- Não-s2 / Não-fêmea s1 / macho Contrariedade Contradição Complementaridade Em que: Orientação da transformação: do termo disfórico para o eufórico S / sexua lidade Não-S / não- sexualidade 36 As duas setas, orientadas no interior do quadrado, indicam a transformação do eixo sintático “s1”, valorizado semanticamente como disfórico, “para não-s1”, valorizado como não-disfórico, orientado, assim, para a posição “s2”, valorizado positivamente como eufórico. Veja-se que “s” e “não-s” indicam a direção das relações do eixo sintático, enquanto eufórico e disfórico são componentes semânticos que revestem os semas com valores de conformidade (euforia) ou não-conformidade (disforia) do sujeito com o mundo. Um pouco mais ilustrativo seria afirmar que em um texto cujo assunto principal seja guerra, o nível fundamental é articulado como “vida vs. morte”. Nesse caso, a vida é o termo eufórico e a morte, o disfórico. Voltando à explicação do quadrado, observa-se que o termo “macho” (“s1”) é negado primeiramente como “não-s1” (por isso, ocorre uma relação de contradição), para ser, então, afirmado como “s2”, no eixo de relação de complementaridade, em que o termo “não-macho” implica o termo “fêmea”. Com relação às noções de continuidade e descontinuidade, essa orientação fundamental do sentido sofre uma passagem de negação do “s” para o “não-s” e, conseqüentemente, uma ruptura (descontinuidade), ao transferir-se para a condição de “s2”. No quadrado semiótico, podem ser colocados em evidência outros termos, como “vida vs. morte”, “natureza vs. civilização”, “ignorância vs. conhecimento”, “essência vs. aparência”. Histórias em que os termos “natureza” e “vida” são eufóricos, como nas poesias de João Cabral de Mello Neto, observa-se que recebem uma valorização positiva, por isso, são textos euforizantes. No caso de obras como Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, o termo vida é considerado disfórico e a morte, eufórica. Por isso, há uma inversão da relação, em que seria negada a vida e afirmada a morte ao final da história, uma vez que Werther a desejava no decorrer da sua história de amor não correspondido, a fim de se afastar do sofrimento. Quanto ao percurso do sentido como um todo, Barros (2002) fala da importância da autonomia dos níveis e dos patamares de profundidade para o estudo da significação: A noção de percurso gerativo é fundamental para a teoria semiótica. Prevê- se a apreensão do texto em diferentes instâncias de abstração e, em decorrência, determinam-se etapas entre a imanência e a aparência e elaboram-se descrições autônomas de cada um dos patamares de profundidade estabelecidos no percurso gerativo (p.15). O intuito do enfoque semiótico, portanto, é pensar a organização do texto como uma totalidade a partir da qual seja possível determinar o modo de produção do sentido, por meio de procedimentos operatórios que dizem, grosso modo, o que o texto diz e como faz para dizê- lo. Em resumo, Barros explica que o nível fundamental (o mais profundo e mais simples) é a instância ab quo, ponto de partida do percurso gerativo de sentido, que é direcionada, portanto, 37 para a instância ad quem, o seu ponto de chegada. Conjunção e disjunção são termos polares de uma mesma categoria semântica (sexualidade, por exemplo) que conferem dinamicidade e que põem em movimento essa primeira etapa da articulação do sentido. O quadrado semiótico ilustra o início do percurso da significação do plano do conteúdo e forma, assim, um modelo de previsibilidade. As categorias de euforia e disforia são projetadas no quadrado como revestimentos axiológicos (definindo um micro-universo de valores) e vão ganhando concretude nos níveis narrativo e discursivo. A etapa seguinte ao nível fundamental é o nível narrativo, que também conta com uma sintaxe e uma semântica próprias: “A gramática narrativa descreve e explica o modo de existência e de funcionamento das estruturas narrativas [...] que constituem a etapa imediatamente superior [...] à das estruturas fundamentais” (BARROS, 2002, p. 28). Se o primeiro nível é imanente, organizado por uma estrutura lógico-conceptual, o narrativo reveste essas relações fundamentais por meio de operações de injunção (conjunção e disjunção) entre actantes (actantes-sujeito e actantes-obejto) e por meio da consecução de narrativas de estados, que, como um todo, compõem um quadro orientado de transformações narrativas. Assim, a transformação, enquanto um dos elementos da narratividade, pressupõe uma série de rupturas (descontinuidades) no interior das narrativas. Para Greimas & Courtés (1979), o actante, unidade sintática do enunciado narrativo, “[...] é concebido como aquele que realiza ou que sofre o ato, independentemente de qualquer outra determinação” (p. 12). Este termo remete, pois, a uma concepção da sintaxe, qual seja, a de articular o enunciado elementar em funções, como sujeito e objeto (p. 12). Segundo Barros (2002, p. 28), há duas concepções de nível narrativo. Uma prega as transformações de estados e de situações, operada pelo fazer de um sujeito (actante-sujeito) que age no mundo em busca de valores investidos nos objetos (actante-objeto) – representa o homem agindo sobre as coisas. Noutra, há uma sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contrato entre um destinador e um destinatário (actantes funcionais), ou seja, a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos-valor – nesse caso, o homem age sobre o homem. A narratividade compõe, assim, um quadro orientado de sucessão de estados e transformações com o intuito de produzir sentido, bem como o de estabelecer uma série de relações transitivas entre sujeitos e objetos de valor, dando o fundamento da busca do sujeito. Em suma, a relação transitiva entre sujeito e objeto dá existência aos elementos sintáticos actante-sujeito e actante-objeto. Assim sendo, o enunciado elementar mínimo da narrativa é composto pela relação de um sujeito com um objeto, que pode ser do tipo disjuntiva ou conjuntiva. Um enunciado de estado mostra a junção de um sujeito, “S”, com o 38 seu objeto-valor, “Ov”. O sintagma operatório elementar – a narrativa mínima – que descreve essa relação é descrita de acordo com a função: F (S1 ∩ Ov). Essa fórmula ilustra o estado inicial de uma narrativa, cujo conteúdo é articulado por um sujeito (sujeito de estado) em conjunção com um objeto-valor. Afirmam Greimas & Courtés (1979, p. 249) que junção é “[...] a relação que une o sujeito ao objeto, isto é, a função constitutiva dos enunciados de estado”. No exemplo da função acima, tem-se uma conjunção. Na disjunção, por outro lado, o sujeito fica disjunto (∪) do seu objeto-valor. Quem opera a transformação – conjunção ou disjunção – dessa condição inicial do sujeito de estado é o sujeito do fazer. Para ilustrar a aplicação dos elementos narrativos destacados, lança-se mão de uma história-exemplo simples, na qual um funcionário é recentemente contratado em uma empresa como auxiliar de escritório e, depois de um tempo, por não trabalhar corretamente, é demitido. Na história contada, fica implícito que antes da contratação o sujeito de estado, na condição de futuro empregado, estava disjunto de seu objeto-valor “emprego”. O patrão, sujeito do fazer, transforma o estado do empregado no momento em que lhe cede o emprego e também no outro momento, quando o demite por não cumprir com os deveres do trabalho. Uma pequena história como essa é composta por uma série de estados e transformações. Um programa narrativo (PN) ilustra isso, uma vez que pode ser formado por uma ou mais narrativas mínimas. No que se refere a sua sucessão narrativa, o empregador (S1) contrata (Função = contratar) esse empregado (S2) por um salário (Ov) e, depois de um tempo, o demite (Função = demitir). Mesmo não sendo narrados, por exemplo, os acontecimentos concernentes aos motivos da demissão (se o empregado trabalhou mal, se o empregador era muito exigente, se a causa da demissão não foi culpa do funcionário), fica implícito que o funcionário não cumpriu o contrato de trabalho segundo a perspectiva do patrão e, por isso, foi demitido. A história pode ser descrita em termos de sintaxe narrativa, de acordo com os PNs abaixo: PN de contratação=F(contratar funcionário) [S1 (patrão) → (S2 (funcionário) ∩ Ov (salário)] PN de demissão = F (demitir) [S1 (patrão) → (S2 (funcionário) ∪ Ov (salário)] F = função → = transformação S1 = sujeito do fazer S2 = sujeito do estado 39 ∩ = conjunção ∪ = disjunção Ov = objeto-valor Operadas no nível sintático, em que estão situados os estados e transformações narrativas, as conjunções e as disjunções dão existência às relações dos actantes sintáticos sujeito e objeto. No que diz respeito ao campo funcional (da comunicação entre os sujeitos e dos conflitos ligados aos objetos-valor), observa-se que o sujeito empregador doa o objeto- valor salário. Sendo ele o actante que transforma o estado do empregado (de desempregado para empregado), estabelecendo com ele um contrato de manipulação, o empregador é o actante funcional destinador-manipulador. Como o funcionário sofre a transformação indicada, aceitando, desse modo, o contrato com o patrão – o de assumir o emprego e trabalhar de acordo com o esperado – é chamado destinatário-sujeito7. Visto que o contrato de manipulação não é cumprido, segundo a perspectiva do patrão, o funcionário é demitido. Nessa fase da narrativa, o mesmo sujeito patrão assume outro papel actancial e passa a destinador-julgador, ou seja, julgará o fazer do empregado. Não acreditando, assim, que cumpriu corretamente o trabalho, demite-o, sancionando-o negativamente. Em suma, ambos estão situados na esfera da comunicação e do conflito por meio do objeto-valor que os articula, o cargo, que é valorizado positivamente, uma vez que representa rendimento financeiro (dinheiro) ao empregado e, do mesmo modo, um retorno financeiro por meio de horas de trabalho (força de trabalho) dispensadas ao empregador. Isso implica dizer que há uma transitividade de valores, na medida em que um patrão se desfaz do seu dinheiro e o troca por serviços prestados, por isso, ocorre no PN de contratação um programa narrativo de doação transitiva, uma vez que o patrão cede o emprego e se desfaz de parte do seu dinheiro. No PN de demissão, tem-se, por outro lado, um programa narrativo de privação, pois o funcionário é privado do direito de trabalhar e julgado como aquele que não cumpriu o contrato. A doação de um objeto-valor pode ser do tipo reflexiva se alguém, por exemplo, realiza um fazer voltado para si, como comprar um carro. Resumindo o que foi dito, há diversos enunciados narrativos mínimos no interior dos PNs. Uma série logica de programas narrativos, da mesma forma, está englobada por um esquema narrativo, que mostra de forma mais geral a relação comunicativa entre destinador e destinatário. O enunciado elementar exemplificado mostra um sujeito inicialmente em 7 Não confundir “contrato” com o termo do jargão trabalhista “contrato de trabalho”, mas entendê-lo semioticamente como a relação de contrato fiduciário entre um destinador e um destinatário lingüísticos. 40 disjunção com o emprego. Ao entrar em relação com o empregador, o seu estado é transformado, uma vez que o desempregado passa a empregado. Tem-se o PN de contratação e, em seguida – depois de uma série de fatos que podem estar explicitados ou não –, o PN de demissão. Essa relação de PNs é englobada por um esquema narrativo em termos de funcionalidades específicas para cada actante: o percurso do patrão como destinador- manipulador, o percurso do empregado como destinatário-sujeito e um terceiro percurso, o do patrão, novamente, como o destinador-julgador. O esquema narrativo canônico comporta, assim, três percursos e quatro fases. Os percursos dizem respeito ao do destinador-manipulador, ao do destinatário-sujeito e ao do destinador-julgador. As fases são as de manipulação (em que atua o manipulador), competência (em que atua o manipulado), perfórmance (podem atuar ambos) e sanção (em que atua o manipulador). Com relação aos percursos, o sujeito (S1), empregador, será o destinador-manipulador, pois tem o objeto-valor (Ov = dinheiro) almejado pelo funcionário, qualificado como o destinatário-sujeito (S2), que receberá o objeto-valor. O mesmo sujeito (S1, empregador) na fase da sanção, será o destinador-julgador, pois irá julgar o fazer do sujeito, funcionário,