UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “ JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS CÂMPUS DE ARARAQUARA ANA CAROLINA SPERANÇA Incompletudes da abordagem tradicional e suas implicações no ensino/aprendizagem da língua: um recorte sobre as relações de coordenação e subordinação nos períodos compostos Araraquara Fevereiro/2007 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “ JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS CÂMPUS DE ARARAQUARA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA E LÍNGUA PORTUGUESA Incompletudes da abordagem tradicional e suas implicações no ensino/aprendizagem da língua: um recorte sobre as relações de coordenação e subordinação nos períodos compostos Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Lingüística e Língua Portuguesa. ANA CAROLINA SPERANÇA Orientador : Prof. Dr. SEBASTIÃO EXPEDITO IGNÁCIO Araraquara Fevereiro/2007 ANA CAROLINA SPERANÇA Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof. Dr. Sebastião Expedito Ignácio (Orientador) (UNESP – Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus Araraquara, SP) _____________________________________________ Profª. Drª. Sílvia Dinucci Fernandes (UNESP – Faculdade de Ciências e Letras, Câmpus Araraquara, SP) _____________________________________________ Profª. Drª. Luciana Romano Morilas (FAFICA – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Catanduva, SP) Araraquara, 27 de Fevereiro de 2007. Dedico este trabalho aos meus pais, José Maria e Nelcy. AGRADECIMENTOS A Deus, acima de tudo. Pela sua bondade; por mais essa etapa e por todas as outras Graças que me tem dado. “Em Deus se encontram a sabedoria, o conhecimento e a ciência da lei; nele residem a caridade e as boas obras.” (Eclo 11, 15). À minha família, por todo apoio, todo carinho, toda torcida sempre presentes: meus pais, meus irmãos Hugo e Marco Aurélio; minhas avós Mariquinha e Josefa; minha querida tia Jú. Ao Marcelo, meu marido querido, pelo seu amor e companheirismo; por toda força e calma que me deu nos meus momentos de “desespero”. Ao meu filho Pedro que, ainda a caminho, me alegra todos os dias; agora, já com seus chutinhos! Ao professor Expedito, pela sua paciência e orientação sempre segura; pela sua experiência, pelo seu apoio e, principalmente, pela sua amizade. À dona Elza, esposa do professor Expedito, pelo carinho com que sempre me recebeu em sua casa. Aos professores do Ensino Fundamental e Médio que participaram desta pesquisa e muito contribuíram para o seu desenvolvimento. Aos professores e funcionários da Unesp, em especial, da Pós-Graduação, por toda atenção e apoio. Às professoras Sílvia e Luciana, pelas sugestões que me deram no exame de qualificação. A todos os meus amigos, pela torcida, pela alegria e, sobretudo, pela amizade sempre verdadeira. Com carinho, obrigada Priscila, Isa e Elisama. À CAPES. Ousarei expor aqui a mais importante, a maior, a mais útil regra de toda educação? Não ganhar tempo, mas perdê-lo. (Jean-Jacques Rousseau) RESUMO Este trabalho teve como motivação a situação atual do ensino de língua portuguesa nas escolas, tida como problemática especialmente no que diz respeito ao ensino de gramática. Verificou-se, a partir de entrevistas com professores do Ensino Fundamental e Médio e a partir da análise de diversos manuais de gramática tradicional, que o apego ao formalismo é um dos fatores que limitam o ensino da língua que tem, como objetivo principal, desenvolver as habilidades comunicativas do aluno. No que diz respeito a aspectos lingüísticos, foram analisados neste trabalho os processos de constituição do período composto: a coordenação e a subordinação. Constatamos que a caracterização desses processos se dá, nos respectivos manuais, apenas com base no critério sintático da independência/dependência. Contudo, este se mostra insuficiente, dada a integração dos níveis sintático, semântico e pragmático no uso da língua. Estudaram-se as conjunções prototípicas participantes das construções por coordenação e subordinação adverbial (as quais se aproximam), em textos jornalísticos e textos de literatura romanesca do português contemporâneo do Brasil. Pôde-se observar, com base nos princípios funcionalistas, que as conjunções podem assumir valores semânticos não previstos pela gramática tradicional, uma vez que o uso interfere na estruturação da língua. O estudo focalizou as conjunções QUANDO e ENQUANTO, mais suscetíveis de receber outros valores superpostos ao temporal. Espera-se que este trabalho ofereça subsídios ao ensino de língua portuguesa – nas questões gramaticais – de forma a considerar também seus aspectos semânticos e pragmáticos, incorporando a reflexão do funcionamento da língua em sala de aula. PALAVRAS-CHAVE: funcionalismo; ensino de gramática; sintaxe; coordenação x subordinação; conjunção. ABSTRACT This work was motivated by the current situation of Portuguese language teaching, taken as problematical especially concerning the grammar teaching. We verified, from survey with Intermediate and High School teachers and from an analysis of various traditional grammar textbooks, that the attachment to the formalism is one of the factors that limit the language teaching that has, as its main goal, the improvement of student’s communicative abilities. Concerning the linguistic aspects, we analyzed the processes of complex sentence construction: the coordination and the subordination. We certified that the characterization of these processes is based, in the respective textbooks, just on the syntactic criterion of independence/dependence. However, this criterion is insufficient, as we have the syntactic, semantic and pragmatic levels into integration in the use of the language. We studied the participating prototypical conjunctions in the coordination and adverbial subordination constructions (which have similar aspects), in journalistic texts and literature texts of Brazilian contemporary Portuguese language. We could see, based on functionalist principles, that the studied conjunctions can assume semantic values that are not foreseen by the traditional grammar, since the use interferes in the language structure. The study focused the conjunctions QUANDO (WHEN) and ENQUANTO (WHILE), which are more subject to receive other values in addition to the temporal. We intend this work supports the Portuguese language teaching – regarding the grammatical issues – in order to consider its semantic and pragmatic aspects, including the reflection of the language functioning in the classroom. KEY-WORDS: functionalism; grammar teaching; syntax; coordination x subordination; conjunction. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 12 1. Objetivos .................................................................................................................. 13 1.1 Objetivo Geral ................................................................................................... 13 1.2 Objetivos Específicos ........................................................................................ 14 2. Fundamentação Teórica ........................................................................................... 14 3. Procedimento Metodológico e Corpus da Pesquisa ................................................. 16 4. Organização dos Capítulos ....................................................................................... 18 CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E PRESSUPOSTOS OPERACIONAIS BÁSICOS ........................................................................................... 20 1. Aspectos gerais do formalismo ................................................................................ 21 2. A proposta funcionalista .......................................................................................... 24 2.1 A organização da oração segundo Dik (1989, 1997) ........................................ 27 3. O período composto por coordenação e subordinação ............................................ 29 CAPÍTULO 2 – GRAMÁTICA E ENSINO ................................................................... 33 1. Breve histórico dos estudos gramaticais .................................................................. 33 2. Conceitos de gramática ............................................................................................ 37 3. Problemas no ensino ................................................................................................ 39 3.1 A pesquisa realizada com os professores .......................................................... 41 CAPÍTULO 3 – CONCEITO DE COORDENAÇÃO E SUBORDINAÇÃO .............. 50 1. As Orações Subordinadas Substantivas ................................................................... 59 2. As Orações Subordinadas Adjetivas ........................................................................ 60 3. As Orações Subordinadas Adverbiais ...................................................................... 62 CAPÍTULO 4 – OS CONECTIVOS E AS RELAÇÕES SEMÂNTICAS INTERORACIONAIS NEM SEMPRE LEVADAS EM CONTA PELA AN ÁLISE TRADICIONAL ................................................................................................................ 68 1. Elementos conectores do português ......................................................................... 68 2. As conjunções, valores indicados pela gramática tradicional e as variações apresentadas na dimensão pragmática ................................................................................ 70 2.1 As conjunções coordenativas ............................................................................ 71 2.1.1 ADITIVAS: E, NEM .............................................................................. 71 2.1.2 ALTERNATIVAS: OU/OU...OU, SEJA...SEJA .................................. 75 2.1.3 ADVERSATIVAS: MAS, PORÉM ...................................................... 77 2.1.4 CONCLUSIVAS: LOGO, PORTANTO .............................................. 79 2.1.5 EXPLICATIVAS: PORQUE, QUE ...................................................... 80 2.2 As conjunções subordinativas ........................................................................... 82 2.2.1 CAUSAIS: PORQUE, POIS ................................................................. 82 2.2.2 CONSECUTIVAS: TÃO/TAMANHO/TAL... QUE, DE (TAL) MANEIRA QUE ................................................................................................................ 84 2.2.3 CONDICIONAIS: SE, CASO ................................................................ 85 2.2.4 CONCESSIVAS: EMBORA, AINDA QUE ........................................ 86 2.2.5 FINAIS: A FIM DE QUE, PARA QUE ............................................... 87 2.2.6 PROPORCIONAIS: À PROPORÇÃO QUE, À MEDIDA QUE ....... 87 2.2.7 COMPARATIVAS: COMO, TANTO...QUANTO ............................. 88 2.2.8 CONFORMATIVAS: CONFORME, COMO ..................................... 90 2.2.9 TEMPORAIS: QUANDO, ENQUANTO ............................................. 91 2.2.9.1 Análise das conjunções “subordinativas temporais” QUANDO e ENQUANTO em manuais de gramática ............................................................................ 92 2.2.9.2 Outras relações de sentido apresentadas pelas conjunções QUANDO e ENQUANTO ................................................................................................................... 96 2.2.9.2.1 Outros valores relacionados pela conjunção QUANDO, além do temporal .......................................................................................................................... 96 2.2.9.2.2 Outros valores relacionados pela conjunção ENQUANTO , além do temporal ............................................................................................................... 100 2.2.9.2.3 Alteração do estatuto sintático da conjunção QUANDO .... 104 3. As dificuldades de distinção entre a oração coordenada explicativa e a oração subordinada adverbial causal ........................................................................................... 107 CONCLUSÕES ............................................................................................................... 115 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 119 APÊNDICE ...................................................................................................................... 123 INTRODUÇÃO Tendo em vista a problemática do ensino de língua portuguesa, especialmente no que diz respeito ao ensino de gramática, buscou-se com este trabalho verificar problemas decorrentes da abordagem tradicional no ensino da língua, que tem como recurso básico os manuais de gramática normativa. Segundo Franchi (1998), a gramática escolar está arraigada a uma forte tradição, limitando-se a um trabalho de definição e classificação de paradigmas, cujo único material didático disponível são os manuais calcados nos princípios da Gramática Normativa, a qual se distancia do uso lingüístico dos alunos e, muitas vezes, até mesmo dos educadores. A partir de experiências relatadas por professores do Ensino Fundamental e Médio, verificou-se que há certa resistência por parte dos alunos quanto ao ensino das regras ditadas pela gramática normativa tradicional, uma vez que se distanciam da maior parte das situações de comunicação de que participam. Logo, acredita-se que considerar o uso efetivo da língua, em seus diversos níveis – sintático, semântico e pragmático – pode motivar seu aprendizado, contribuindo mais eficazmente para o desenvolvimento das habilidades lingüísticas do aluno. Dada a limitação deste trabalho diante da extensão dos elementos que constituem estrutura e funcionamento lingüísticos, procedeu-se a um recorte, a partir do qual foram estudados os processos de coordenação e subordinação em períodos compostos. Nos períodos compostos por subordinação, por razões que se esclarecerão adiante, priorizou-se o estudo das orações subordinadas adverbiais. O parâmetro utilizado na consideração desses processos foi a conjunção que deles participa, uma vez que, de acordo com a gramática tradicional, ela é elemento básico, e presumível responsável pela relação de sentido que se estabelece no período. Ao tratar da classificação das orações subordinadas adverbiais, por exemplo, Cunha (2001) afirma que é segundo a conjunção ou locução conjuntiva que as encabeça que se dá a classificação das orações em causais, concessivas, temporais, etc. Contudo, como se procurou demonstrar neste trabalho, essas relações semânticas não são definidas (ou relacionadas) por conjunções exclusivas ou pré- 13 determinadas. Por exemplo, a conjunção QUANDO indica, além do valor temporal prototípico, outros valores como causa, condição, etc. Com base nos resultados obtidos a partir da discussão com os professores (em que estes relataram suas opiniões sobre o ensino de gramática, a metodologia que utilizam em sala de aula, suas dificuldades e anseios, entre outros dados) e nos estudos realizados sobre os processos de coordenação e subordinação, defende-se a conjugação das abordagens tradicional e funcional no estudo, descrição e reflexão da língua, partindo do pressuposto de que não se pode “jogar fora” a primeira, mas, ao contrário, complementá-la, tendo em vista que ambas possuem aspectos positivos e negativos, conforme se observou no desenvolvimento da pesquisa. A relevância do presente trabalho pode ser atribuída à rediscussão dos processos de composição dos períodos e do valor dos conectivos que deles participam, bem como à proposta geral de uma abordagem mais ampla da língua, o que não significa, como já dito, a “negação” da gramática normativa. É nosso objetivo fornecer subsídios aos professores para o trabalho com a língua portuguesa, a partir de um percurso pelo modelo tradicional, pelo qual se determinem suas limitações e conseqüentes problemas em relação ao conteúdo específico: as relações de coordenação e subordinação (adverbial). Espera-se, assim, que o trabalho traga alguma contribuição para a área de conhecimentos científicos que versam, principalmente, sobre sintaxe e semântica, bem como quanto à abordagem do conteúdo em questão a ser realizada em sala de aula. 1. Objetivos 1.1 Objetivo Geral Fazer um percurso pelo modelo tradicional, a fim de detectar suas inadequações e limitações e, a partir de um estudo sintático-semântico de períodos compostos por coordenação e subordinação, fornecer subsídios para um trabalho diferenciado com a língua portuguesa, especificamente no que diz respeito ao conteúdo da sintaxe. 14 1.2 Objetivos Específicos: a) identificar os critérios utilizados na abordagem tradicional da língua para a determinação e classificação das orações coordenadas e das orações subordinadas adverbiais; b) verificar os problemas decorrentes – também para o ensino/aprendizagem – da definição/classificação das orações coordenadas e orações subordinadas adverbiais na gramática tradicional; c) observar e analisar a organização dos períodos compostos por coordenação e subordinação em textos diversos, a fim de estabelecer parâmetros para uma análise do funcionamento desses processos; d) observar o uso dos conectivos mediadores dos processos de coordenação e subordinação; e) verificar a viabilidade de uma abordagem desse conteúdo que concilie as análises tradicional e funcional da língua, para o trabalho em sala de aula; f) observar aspectos (possivelmente) positivos e negativos das abordagens tradicional e funcional da língua, a fim de justificar nosso pressuposto de que tais abordagens não sejam excludentes. 2. Fundamentação Teórica O presente trabalho, que se baseia essencialmente numa corrente de cunho funcionalista da Lingüística, será desenvolvido a partir de discussões relacionadas também 15 ao tradicionalismo (representado nos manuais de gramática tradicional1), ou seja, a abordagens de caráter mais formalista, no intuito de compará-las e verificar suas respectivas contribuições no que tange ao terreno da análise lingüística. No entanto, é importante ressaltar que se tem, como hipótese, que o modelo tradicional seja insuficiente, e que os princípios funcionalistas serão tomados como um caminho para se aperfeiçoar o “olhar” sobre a língua. Partindo de uma revisão crítica do modelo tradicional, em que serão perfilhados os trabalhos de Said Ali (1964), Cunha (1985, 2001), Rocha Lima (1998, 2001) e Bechara (2001), entre outros, buscou-se identificar problemas referentes aos critérios de definição e classificação das orações coordenadas e subordinadas adverbiais, cujas soluções tentou-se encontrar recorrendo-se aos princípios da gramática funcional2, representado por autores como Dik (1989; 1997), Givón (1984; 1990), Halliday (1994), Neves (2001), entre outros. Estudos baseados nas concepções funcionalistas propõem que as abordagens gramaticais privilegiem o uso da língua e, portanto, que a gramática esteja aberta às mudanças lingüísticas verificadas com o passar do tempo, nas relações sociais entre os usuários. Enfim, que a gramática acompanhe, de fato, a evolução e o funcionamento pragmático da língua. “... Qualquer abordagem funcionalista de uma língua natural, na verdade, tem como questão básica de interesse a verificação de como se obtém a comunicação com essa língua, isto é, a verificação do modo como os usuários da língua se comunicam eficientemente. (...) Isso implica considerar as estruturas das expressões lingüísticas como configurações de funções, sendo cada uma das funções vista como um diferente modo de significação na oração”. (Neves, 2001:2) 1 Tratar a gramática sob a visão tradicionalista (que é o que se tem feito na escola) é concebê-la como um “manual para se escrever bem”. Dessa forma, elege como fonte de suas regras prescritivas a variante da língua considerada culta, principalmente a língua dos literatos, considerando como “erro” qualquer desvio desse padrão, ainda que seja do uso corrente da língua escrita contemporânea. 2 “Por gramática funcional entende-se, em geral, uma teoria da organização gramatical das línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global de interação social. Trata-se de uma teoria que assenta que as relações entre as unidades e as funções das unidades têm prioridade sobre seus limites e sua posição, e que entende a gramática como acessível às pressões do uso”. (Neves, 2001: 15) 16 3. Procedimento Metodológico e Corpus da Pesquisa Esta pesquisa é essencialmente de caráter qualitativo, procedendo a estudos críticos bibliográficos, análise e aplicação num corpus escrito, e investigação do trabalho pedagógico nas escolas. A princípio, fez-se um levantamento de como as gramáticas normativas definem as orações coordenadas e subordinadas, a fim de apreender os critérios utilizados em sua caracterização e os problemas derivados deles. Em seguida, percorreram-se trabalhos teóricos mais específicos, de lingüistas nacionais e estrangeiros, que trabalham com o assunto em questão, no intuito de verificar as tendências que seguem as pesquisas referentes às relações de coordenação e subordinação em períodos compostos, observando os problemas encontrados por outros pesquisadores e buscando contribuições na eleição de parâmetros para uma análise e classificação semântico-funcional dessas orações. O corpus da pesquisa constituiu-se a partir da observação das ocorrências das orações coordenadas e subordinadas em textos jornalísticos e textos de literatura romanesca, constantes do banco de dados do Centro Lexicográfico da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Araraquara, que conta atualmente com cerca de duzentos milhões de ocorrências lexicais e que corresponde à língua escrita contemporânea do português do Brasil, contemplando as literaturas romanesca, dramática, oratória, jornalística e técnica. Uma vez delimitado o corpus – apenas textos jornalísticos e textos de literatura romanesca – procedeu-se à análise dos períodos selecionados a partir das conjunções que participam de sua construção, a fim de mostrar aspectos não levados em conta pela gramática tradicional na classificação das orações. Foram pesquisadas as conjunções prototípicas que definem cada tipo de relação nos períodos compostos, com a finalidade de investigar se outros sentidos são veiculados por essas conjunções, e a relevância que apresentam. As conjunções prototípicas selecionadas, a partir do que os manuais de gramática assumem por representantes das relações de sentido, foram: 1. Orações coordenadas: - EXPLICATIVAS: PORQUE, QUE - CONCLUSIVAS: LOGO, PORTANTO 17 - ADITIVAS : E, NEM - ADVERSATIVAS: MAS, PORÉM - ALTERNATIVAS : OU/OU...OU, SEJA...SEJA 2. Orações subordinadas adverbiais: - CAUSAL: PORQUE, POIS - CONDICIONAL: SE, CASO - PROPORCIONAL: À PROPORÇÃO QUE, À MEDIDA QUE - FINAL : A FIM DE QUE, PARA QUE - CONCESSIVA: EMBORA, AINDA QUE - CONSECUTIVA: TÃO/TAMANHO/TAL...QUE, DE TAL MANEIRA QUE - COMPARATIVA: COMO, TANTO... QUANTO - CONFORMATIVA: CONFORME, COMO - TEMPORAL: QUANDO, ENQUANTO Nossa análise, pautada pelos princípios funcionalistas, principalmente no que diz respeito à submissão da forma às pressões do uso, procurou considerar o nível semântico e a dimensão pragmática dos enunciados, ou seja, o uso autêntico da língua. Entendem-se aqui por dimensão pragmática as situações reais de uso em que a interação entre os interlocutores, os pressupostos, a intencionalidade, o contexto são fatores determinantes das relações semânticas e, conseqüentemente, das estruturações sintáticas. É importante ressaltar que os diferentes tipos de textos representam diferentes situações de uso da língua. A fim de sistematizar as implicações da abordagem tradicional no ensino, bem como sugerir uma possível abordagem pedagógica que conjugue os métodos oriundos dos critérios tradicionais e os princípios da gramática funcional, foram entrevistados vinte professores das redes pública e particular, de Ensino Fundamental e Médio. Primeiramente, questionou-se sobre como os professores vêem o ensino de gramática, a metodologia que utilizam no tratamento das orações coordenadas e subordinadas, e sobre os resultados obtidos com os alunos no trabalho com a língua. Em seguida, a partir das limitações encontradas nos manuais de gramática então analisados, propôs-se aos professores a realização de alguns exercícios, em que deveriam 18 observar o valor semântico entre as orações de alguns períodos compostos, os quais, selecionados em textos autênticos, fogem à unicidade proposta pela análise tradicional, baseada no determinismo de cada conjunção que introduz uma oração. Nos períodos em questão, as conjunções assumem, quando considerada a dimensão pragmática, outros valores semânticos. O objetivo dessa proposta foi verificar a atitude dos professores diante de situações que não se encaixam exatamente nos moldes da gramática tradicional. 4. Organização dos Capítulos No primeiro capítulo, apresenta-se a fundamentação teórica que sustenta nossas discussões, bem como alguns conceitos e pressupostos operacionais que serão utilizados no decorrer do trabalho. Justifica-se a opção por aspectos funcionalistas na abordagem da língua, em oposição a alguns aspectos de caráter formalista – presentes na gramática tradicional – por serem estes considerados limitadores. No Capítulo 2 discutem-se questões que motivaram o desenvolvimento da presente pesquisa: o ensino da gramática. Traça-se um panorama da origem e evolução dos estudos gramaticais a fim de mostrar a importância desses estudos na busca do conhecimento sobre a língua e para o próprio desenvolvimento da ciência da linguagem, de um modo geral, e compreender o estatuto da disciplina gramatical na escola. Discutem-se também as diferentes concepções de gramática e apresentam-se os resultados obtidos a partir da pesquisa realizada com professores do Ensino Fundamental e Médio. O terceiro capítulo constitui-se de uma análise de como são abordados os processos de coordenação e subordinação em períodos compostos nos manuais que seguem o modelo da gramática tradicional, manuais estes que servem de base ao trabalho desenvolvido pelos professores em sala de aula. Tais conceitos não são consensuais entre os gramáticos. Limitou-se aos processos de coordenação e subordinação, sendo que, em relação à subordinação, restringimo-nos às orações adverbiais, cujos liames em relação à coordenação, a nosso ver, são mais sutis quando comparados aos das orações substantivas e adjetivas. 19 Partindo do critério fundamental – proposto pelo modelo tradicional – utilizado na classificação das relações de sentido desses processos, procedeu-se, no Capítulo 4, a uma análise de alguns conectivos que participam da composição dos períodos compostos. Como se verificou, as gramáticas assumem como valor único das conjunções aquele que se verifica nas construções prototípicas, muitas vezes idealizadas, não levando em conta valores adjacentes ou superpostos ao valor prototípico. Muitas vezes, o conteúdo proposicional do período acaba por atribuir à conjunção um outro valor, o que nos mostra que a situação de comunicação, o uso, interfere na “ordem estrutural” (Carone, 1988) e semântica da língua “descrita” (e prescrita!) pela gramática tradicional. Assim, é preciso que a análise (ou estudo) da língua não fique apenas em sua composição sintática, mas se estenda, como se propõe, aos níveis semântico e pragmático, o que levará à reflexão da própria estrutura e do funcionamento lingüísticos. Os resultados obtidos a partir da análise das entrevistas com os professores, dos manuais de gramática e do corpus que serviu de base para a verificação do uso dos conectivos constituem as Conclusões deste trabalho. CAPÍTULO 1 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E PRESSUPOSTOS OPERACIONAIS BÁSICOS Como já mencionado, defendemos uma postura funcionalista na abordagem da língua, acreditando que aspectos dessa teoria muito podem contribuir na análise de fatos lingüísticos que fogem aos paradigmas de descrição de abordagens mais formais, dentre as quais incluímos a da gramática tradicional. É importante que esteja clara a acepção do termo formal/formalista neste trabalho. De acordo com Oliveira (2003), interessa lembrar que o termo formal no discurso da Lingüística é polissêmico, podendo significar: - formal = científico (nesse caso, qualquer teoria lingüística pode ser considerada formal, desde que apresente seu método; assim, mesmo uma teoria funcional é considerada formal) - formal = autônomo (nesse caso, restringe-se o termo ao uso daqueles que acreditam na autonomia da língua, da sintaxe, dos quais os estruturalistas são exemplo) - formal = cálculo (admitindo-se que as línguas naturais são como um cálculo, o que não se pode admitir no funcionalismo, dada a “imprevisibilidade” de todas as possíveis construções na língua, por exemplo) Neste trabalho, opomos o Funcionalismo ao Formalismo, este em sua segunda acepção, uma vez que esta se insere no domínio da sintaxe, a qual constitui parte específica da presente pesquisa. Nesse caso, é comum a associação do termo formal com o Gerativismo, dado que essa corrente postula a autonomia da sintaxe em relação à semântica e à pragmática. Contudo, é necessário ressaltar a existência de modelos formalistas não- gerativistas (Oliveira, 200: 229). 21 1. Aspectos gerais do formalismo Longe de assumirmos algum modelo de análise lingüística específico, caracterizado como formalista, procuramos apenas situar características gerais dessa corrente, a qual se opõe – na tradição dos estudos lingüísticos – ao Funcionalismo, e à qual se aproxima, no que diz respeito à abordagem da língua, o modelo da gramática tradicional. Hoffman (1987, apud Neves, 2001) diz que uma gramática formalmente orientada preocupa-se da estrutura sistemática das formas da língua, ou seja, seus paradigmas. Dillinger (1991) acrescenta que os formalistas, ao se preocuparem das características internas do sistema, deixam de lado as relações que os elementos lingüísticos estabelecem com o contexto (diferentemente dos funcionalistas, cujo princípio fundamental é considerar a língua em seu contexto de uso) e, consequentemente, as variações que este determina. Ao comparar as duas vertentes teóricas, Halliday (1994: xxviii) afirma que a oposição se dá fundamentalmente pelo fato de as gramáticas formais partirem de uma orientação paradigmática, enquanto as gramáticas funcionais têm orientação primariamente sintagmática. Outro aspecto das gramáticas formais – e este claramente nos permite inserir nesse quadro a Gramática Tradicional – é o fato de terem suas raízes na lógica e na filosofia. Como veremos no Capítulo 2, as primeiras discussões sobre a linguagem (as quais deram origem ao modelo tradicional) tinham relação com a filosofia, e o objetivo principal, baseado na lógica entre os elementos, era o estabelecimento de paradigmas. Dik (1989: 2-7), ao apresentar o paradigma funcionalista, faz referência a alguns aspectos opostos do formalismo, a partir da proposta de Chomsky (1957): 1) enquanto o correlato psicológico da língua para os funcionalistas é a “competência comunicativa” (habilidade de conduzir uma interação social efetiva, ainda que as expressões lingüísticas sejam “deficientes” num dado contexto), para os formalistas, é a “competência gramatical” (habilidade que permite construir e interpretar expressões lingüísticas gramaticais e agramaticais); 2) em relação à aquisição da linguagem, no paradigma funcional considera- se que a língua é adquirida a partir da interação comunicativa da criança com seu meio; no paradigma formal, a linguagem é uma capacidade inata. 22 Embora as duas correntes apresentem critérios praticamente opostos no que concerne ao estudo da língua, a concorrência existente entre os paradigmas formal e funcional é vista como um problema por Dillinger (1991), uma vez que estudam fenômenos diferentes de um mesmo objeto. O autor apresenta, utilizando Leech (1983), uma breve comparação entre os princípios gerais dos dois paradigmas, em que se tem: � os formalistas consideram a língua primariamente como um fenômeno mental. Os funcionalistas a consideram um fenômeno social; � os formalistas explicam os universais lingüísticos como derivados de uma herança genética da espécie humana. Os funcionalistas explicam-nos como derivados da universalidade de usos em que a língua é posta na sociedade; � os formalistas explicam a aquisição da linguagem a partir de uma capacidade inata para aprender a linguagem. Os funcionalistas explicam a aquisição em termos do desenvolvimento das necessidades e habilidades comunicativas da criança na sociedade; � sobretudo, os formalistas estudam a língua como um sistema autônomo, enquanto os funcionalistas a estudam em relação à sua função social. Conforme lembra Neves, 2001, citando Dik, 1987, enquanto no paradigma formal a língua “é vista como um sistema abstrato autônomo em relação aos modos de uso”, tem-se no paradigma funcional que as “expressões lingüísticas não são objetos funcionais arbitrários, mas têm propriedades sensíveis a, e co-determinadas por, determinantes pragmáticos da interação verbal humana”. Essa afirmação comprova-se a partir de nossa análise do uso dos conectores (Capítulo 4). No que diz respeito à sintaxe, de acordo com Berlinck et. al. (op.cit.), o formalismo, admitindo a autonomia do sistema, tem como preocupação o estudo de suas características internas, ou seja, a natureza de seus constituintes, as relações que estabelecem entre si, ou seja, a forma da língua. Assim, deixa de lado a relação que esta estabelece com seu 23 contexto. Logo, também a sintaxe é determinada por aspectos internos do sistema, limitando-se ao nível da sentença. No funcionalismo, por sua vez, a sintaxe é condicionada pela situação de comunicação em que a língua é usada, o que faz com que sua análise ultrapasse o nível do enunciado, atingindo seu nível semântico-pragmático. Uma vez que, dentro desse paradigma, a linguagem não é autônoma, acaba-se por sujeitar-se às escolhas e motivações – o uso – de seus falantes. Partiremos da oposição teórica entre os paradigmas apresentados, porém, não no sentido de acentuá-la, mas com a intenção de reconhecer aspectos de ambos que possam contribuir para um melhor trabalho com a língua no contexto escolar. O interesse em discutir aspectos do formalismo está em mostrar, como dissemos, incompletudes da gramática tradicional. Associamos esse modelo ao tratamento formalista uma vez que essa gramática pretende a “descrição” de um determinado padrão lingüístico, assumido como o “ideal” (e sua conseqüente prescrição). O formalismo, ao admitir uma sintaxe autônoma, considera a língua, em si, um sistema “perfeito”, independentemente da situação em que é utilizada. Qualquer variação no uso do sistema lingüístico é considerada como inadequada e/ou superficial se estiver fora de seus parâmetros previstos. Consequentemente, também o caráter normativo da gramática tradicional revela sua associação ao formalismo, uma vez que não admite formas na língua que não estejam de acordo com o padrão estabelecido. De acordo com Dillinger (op. cit.), “o formalismo veio a designar o estudo da forma lingüística (fonética, fonologia, morfologia, sintaxe) – dando continuidade à gramática tradicional [grifo nosso] (pelo menos com respeito aos fenômenos estudados)”. Por outro lado, porém, não se pode dizer que o caráter formalista do modelo tradicional não apresente nada de positivo. Desde sua origem, a finalidade da sistematização dos elementos da língua era pedagógica, requerendo, assim, maior simplicidade. No entanto, seu maior problema foi assumir um único padrão de língua como correto. Não se pode negar que o objetivo da gramática é servir ao ensino da língua escrita culta, a qual acaba se tornando um ponto de referência lingüístico, o padrão a ser descrito. Do contrário, qual seria o parâmetro que a escola assumiria, dada a heterogeneidade da 24 língua? Dessa forma, acreditamos que é a partir do modelo eleito pela gramática tradicional que o professor deverá ampliar as reflexões sobre a língua que, de acordo com os princípios funcionalistas, sofre as pressões do uso. É interessante lembrar que mesmo a língua escrita sofre mudanças com o tempo, e é preciso que a gramática as acompanhe. Sendo assim, temos como pressuposto que abordagens de caráter formal da língua, segundo o que se discute aqui, sejam insuficientes para um ensino que vise garantir o aperfeiçoamento da competência comunicativa ao aluno, visto que não consideram seus aspectos semânticos e pragmáticos. Uma vez que acreditamos que essa “insuficiência” pode ser suprida por uma abordagem de caráter funcional, apresentamos, a seguir, princípios gerais do Funcionalismo, destacando-se as principais concepções que estão na base de nossa proposta, bem como os autores representativos dessa vertente teórica e alguns pressupostos e conceitos básicos que foram utilizados no decorrer do trabalho. 2. A proposta funcionalista Muitas são as tendências funcionalistas3 no estudo da língua (assim como as formalistas), as quais apresentam características particulares. No entanto, há um fio condutor que as une: “em primeiro lugar, a concepção de linguagem como um instrumento de comunicação e de interação social e, em segundo lugar, o estabelecimento de um objeto de estudos baseado no uso real, o que significa não admitir separação entre sistema e uso” (Pezatti, 2004:168). Basicamente, portanto, admite-se que o uso atua na estrutura lingüística, o que justifica que nossa crítica ao formalismo não se dá devido à consideração que faz da estrutura da língua. O que o torna limitador no trabalho em sala de aula é o fato de considerar apenas a estrutura da língua. De acordo com Neves (2001:2), retomando Dik (1989), 3 De acordo com Nichols (1984, apud Neves, 2001), pode-se estabelecer três modelos de funcionalismo: 1) o conservador, que aponta a inadequação da abordagem formalista ou estruturalista, sem propor uma análise da estrutura; 2) o extremado, que nega a existência de uma estrutura, considerando que as regras se baseiam internamente na função, não havendo restrições sintáticas; 3) o moderado, que além de apontar a inadequação da abordagem formalista/estruturalista, propõe uma análise funcionalista da estrutura, admitindo, portanto, sua existência. 25 “qualquer abordagem funcionalista de uma língua natural, na verdade, tem como questão básica de interesse a verificação de como se obtém a comunicação com essa língua, isto é, a verificação de como os usuários da língua se comunicam eficientemente”. Dessa forma, considera-se a língua em sua funcionalidade e dinamicidade, reconhecendo a instabilidade entre função e estrutura. Na concepção funcionalista da língua, a gramática – entendida num sentido mais amplo – integra componentes sintáticos, semânticos e pragmáticos, ou seja, a estrutura da língua é analisada dentro dos propósitos da situação comunicativa em que se inserem seus usuários. Logo, é legítima toda ocorrência que satisfaça as necessidades dos falantes. Para Givón (1995: xv), “todos os funcionalistas concordam ao menos com um pressuposto fundamental sine qua non, o postulado da não-autonomia: que língua (e gramática) não pode ser descrita nem explicada adequadamente como um sistema autônomo4”. De acordo com o autor, a gramática não é autônoma e arbitrária, mas flexível; o significado é dependente do contexto e a gramática deve ser variável, influenciável e emergente. Halliday (1994) define a gramática funcional como uma gramática “natural”, visto que tudo é explicado com referência ao uso da língua. Ele afirma que os componentes fundamentais do significado na língua são componentes funcionais. Todas as línguas se organizam a partir do significado ideacional (reflexivo), cujo propósito é entender o ambiente, e do significado interpessoal (ativo), que rege o princípio da interação entre os indivíduos. Como se pode ver, a consideração do uso é prioritária no que diz respeito a uma abordagem funcional da língua. A esses dois componentes (ideacional e interpessoal), é atribuído um terceiro – o textual – que lhes confere relevância, uma vez que “une” os elementos da língua à situação em que é usada. Segundo Neves (2001:73), “questão fundamental, na gramática funcional de Halliday, é o modo como os significados são expressos, o que coloca as formas de uma língua como meios para um fim, e não como um fim em si mesmas”. Pode-se dizer que, nesse modelo – que se enquadra dentro de um 4 “All functionalists subscribe to at least one fundamental assumption sine qua non, the non-autonomy postulate: that language (and grammar) can be neither described nor explained adequately as an autonomous system.” 26 funcionalismo moderado – admite-se a estrutura da língua como codificadora de seus significados e ponto de partida para sua compreensão. A gramática é o estudo das formas lingüísticas, sem ignorar, contudo, diferentes possíveis significados construídos a partir de situações específicas de uso da língua. Halliday (1994: xiii) define sua gramática como sendo funcional, uma vez que “é elaborada considerando como a língua é usada. Todo texto – quer dizer, qualquer coisa que seja dita ou escrita – revela-se em algum contexto de uso; além disso, são os usos da língua que, há mais de dezenas de milhares de gerações, têm moldado o sistema” 5. Dentro ainda do que se considera um funcionalismo moderado, possuem também destaque os estudos de Dik (1989). Para o autor, o interesse principal de quem estuda uma língua natural é compreender a atuação de seu usuário, ou seja, “como os falantes e destinatários são bem sucedidos comunicando-se uns com os outros através de expressões lingüísticas6”. De acordo com Dik (op. cit.: 3): Do ponto de vista funcional, então, a lingüística deve trabalhar com dois tipos de sistemas de regras, ambos ratificados pela convenção social: ( i ) as regras que governam a constituição das expressões lingüísticas (regras semânticas, sintáticas, morfológicas e fonológicas); ( ii ) as regras que governam os padrões de interação verbal em que essas expressões lingüísticas são usadas (regras pragmáticas)7. O sistema ( i ) é instrumental em relação ao sistema ( ii ). Logo, as expressões lingüísticas são explicadas a partir das condições de produção dos enunciados. Embora se reconheça a distinção entre o sistema e o uso, não se estuda um separado do outro. 5 “… it is designed to account for how language is used. Every text – that is, everything that is said or written – unfolds in some context of use; futhermore, it is the uses of language that, over tens thousands of generations, have shaped the system”. 6 “How do speakers and addressees succeed in communicating with each other through the use of linguistic expressions?” (p. 1) 7 “From the functional point of view, then, linguistics has to deal with two types of rule systems, both ratified by social convention: ( i ) the rules which govern the constitution of linguistic expressions (semantic, syntactic, morphological, and phonological rules); ( ii ) the rules which govern the patterns of verbal interaction in which these linguistic expressions are used (pragmatic rules)”. 27 Uma vez que nosso trabalho focaliza as relações de coordenação e subordinação nos períodos compostos, utilizar-nos-emos de alguns estudos realizados por Dik (1989, 1997) no que diz respeito às orações complexas (complex clauses), os quais serão apresentados a seguir. 2.1 A organização da oração segundo Dik (1989, 1997) De acordo com o autor, qualquer texto de uma língua natural constitui-se de elementos oracionais (cláusulas) e extra-oracionais (extra-cláusulas). As cláusulas são o que tradicionalmente chamamos de orações principais e orações subordinadas. Os elementos extra-oracionais, por sua vez, não são orações nem partes de orações, uma vez que não participam de sua estrutura interna. No exemplo: Bem, João, eu acredito que seu tempo acabou. 8, os constituintes Bem (“iniciador”) e João (“vocativo”) são extra-oracionais; “eu acredito” é a oração principal e “que seu tempo acabou” é a oração subordinada. Para Dik (1997: 380), algumas das razões pelas quais os constituintes extra-oracionais não têm recebido a devida atenção nos estudos gramaticais são: i) são comuns na linguagem oral, enquanto a descrição dos estudos tradicionais baseia-se na escrita; ii) são expressões típicas da progressão discursiva, enquanto os gramáticos têm se concentrado no estudo de sentenças isoladas; iii) dificilmente se associam à estrutura interna da cláusula, o que dificulta sua análise; iv) sua compreensão depende da compreensão da esfera pragmática em que o texto se insere. 8 Well, John, I believe that your time is up. (p. 45) 28 Embora tais questões não sejam discutidas neste trabalho, achamos por bem situá- las, uma vez que constituem um dos aspectos que distinguem o funcionalismo de outras teorias de estudo e análise da língua. Buscando descrever tanto propriedades semânticas quanto propriedades formais dos enunciados, Dik sugere que estes se organizam em uma estrutura subjacente, a qual é projetada em sua forma lingüística por regras de expressão, as quais determinam a forma, a ordem e os padrões entoacionais dos constituintes da estrutura subjacente. A partir dessa estrutura complexa abstrata, é proposta a distinção de vários níveis – camadas – de organização formal e semântica do enunciado, de acordo com o quadro a seguir: NÍVEL UNIDADE ESTRUTURAL TIPO DE ENTIDADE 4 oração ato de fala 3 proposição fato possível 2 predicação Estado-de-coisas 1 termo entidade predicado propriedade/relação Níveis de organização formal e semântica do enunciado (Dik, 1989) Primeiramente, observa-se a necessidade de um predicado, o qual determina as propriedades e as relações que serão necessárias à aplicação dos termos – entidades que representam argumentos9 e satélites10 – constituindo, assim, uma predicação. A predicação (nível 2) representa um estado-de-coisas: algo que ocorre no mundo, que pode ser localizado no tempo e no espaço. É nesse nível, por exemplo, que atuam os operadores de tempo. No nível 3 tem-se a proposição, ou conteúdo proposicional11, ou fato possível. É algo que pode ser verdadeiro ou falso, mencionado, negado, rejeitado, lembrado (p. 48). Por fim, a proposição revestida de força ilocucionária resulta na oração, que constitui o ato 9 Elementos exigidos pela estrutura semântica do predicado (verbo); logo, são obrigatórios. 10 Elementos que acrescentam informações suplementares, portanto são facultativos. 11 O conteúdo proposicional diz respeito à informação propriamente dita, veiculada pela oração. 29 de fala. Quando o falante produz uma expressão, seleciona uma “força ilocucionária” para sua proposição, que tem por objetivo modificar a informação pragmática do interlocutor. Para Dik (1989:256), todas as línguas dispõem de tipos específicos de enunciados, gerados por diferentes operadores ilocucionários: Declarativo (DECL); Interrogativo (INT); Imperativo (IMP); Exclamativo (EXCL). É nesse nível que atuam, também, as funções pragmáticas extra-oracionais: tópico e foco, que determinam a posição dos elementos que constituem o enunciado. O tópico é o constituinte sobre o qual se predica algo (geralmente a informação já compartilhada pelo interlocutor), e o foco, a informação mais saliente, sobre a qual recai a ênfase da cláusula (logo, a informação a ser introduzida pelo locutor). A este trabalho interessam especificamente a caracterização do terceiro e quarto níveis, que tentamos utilizar para a distinção entre orações coordenadas explicativas e orações subordinadas adverbiais. 3. O período composto por coordenação e subordinação12 Nossa opção em fazer um recorte no conteúdo da sintaxe, especificamente em relação à organização dos períodos compostos, motivou-se por acreditarmos que essa esfera é a mais produtiva – e ao mesmo tempo a mais complexa – quando pensamos na integração dos níveis sintático, semântico e pragmático. Ao mesmo tempo, é a que está mais próxima do uso efetivo da língua, uma vez que esses processos têm por finalidade a constituição de textos (sejam orais, sejam escritos), ou seja, a interação entre usuários. Para o estudo dos períodos compostos por coordenação e subordinação, partimos da categorização trazida pelos manuais de gramática tradicional, na tentativa de aperfeiçoá-la, refletindo sobre alguns de seus problemas e propondo a consideração de outros aspectos que julgamos relevantes, tanto para o que sejam, propriamente, as relações de coordenação 12 Não serão descritos agora os diferentes tipos de subordinação, uma vez que serão tratados em capítulo específico. 30 e subordinação, quanto para a identificação da relação semântica que se estabelece entre as orações dos períodos13. Por ora, retomaremos brevemente os conceitos tradicionalmente conhecidos, os quais serão aprofundados no decorrer do trabalho. De acordo com os manuais, o critério principal utilizado na distinção entre os períodos compostos por coordenação e subordinação é o da independência x dependência sintática: “No período composto, a coordenação ocorre quando orações sintaticamente equivalentes se relacionam. (...) Nenhuma das três orações desempenha papel de termo de outra. São orações sintaticamente independentes entre si e, por isso, coordenadas. (...) considera-se subordinada a oração que desempenha função de termo de outra oração, o que equivale a dizer que existem orações que atuam como determinantes de outras orações.” (Pasquale, 2003: 400-401) “Coordenação é o relacionamento de termos de mesma função sintática dentro da oração, ou de orações de funções equivalentes dentro de um período. (...) Na coordenação há nexo semântico, mas não nexo sintático entre as orações, porque no plano sintático não há dependência entre uma e outra. Dentro de um período, na subordinação, uma oração depende de outra. Assim, também há uma oração regente, chamada principal , e uma regida, de nome subordinada.” (Sacconi, 2006: 281-284) Alguns autores, como Sacconi (op.cit.) reconhecem a existência de um nexo semântico entre orações de um período composto por coordenação, no entanto, esse aspecto não é aprofundado. Outro critério comum no que diz respeito à classificação das orações coordenadas e subordinadas adverbiais é a conjunção que as introduz. A maior parte dos autores analisados atribui o sentido estabelecido entre as orações exclusivamente ao valor semântico pré-determinado para cada conjunção. De acordo com Cunha (2001): 13 Como dissemos, no que se refere à subordinação, serão estudados apenas os períodos compostos de natureza adverbial. 31 “Classificam-se, pois, as ORAÇÕES COORDENADAS SINDÉTICAS em: 1. COORDENADA SINDÉTICA ADITIVA, se a conjunção é ADITIVA... 2. COORDENADA SINDÉTICA ADVERSATIVA, se a conjunção é ADVERSATIVA... (...) [As orações subordinadas adverbiais] funcionam como ADJUNTO ADVERBIAL de outras orações e vêm, normalmente, introduzidas por uma das CONJUNÇÕES SUBORDINATIVAS (com exclusão das integrantes que, vimos, iniciam ORAÇÕES SUBSTANTIVAS). Segundo a conjunção ou locução conjuntiva que as encabece, classificam-se em: 1. CAUSAIS, se a conjunção é subordinativa causal... 2. CONCESSIVAS, se a conjunção é subordinativa concessiva...” Para Decat (1997), os critérios propostos para a distinção dos períodos compostos por coordenação e subordinação constituem um problema, pois a idéia de dependência – principal fator de distinção presente nesses manuais – ora baseia-se em princípios sintáticos, ora semânticos. Também, a presença da conjunção é um elemento que determina a relação de subordinação entre orações, parecendo não ser possível admitir, assim, a existência da subordinação sem o intermédio do conectivo. No entanto, a autora analisa o seguinte exemplo: Achou o vale brinde... ganhou. Neste caso, tem-se sintaticamente um período composto por coordenação: orações aparentemente independentes, justapostas, que dispensam a presença da conjunção – o que caracterizaria uma coordenação assindética. Porém, essa ausência do conectivo não elimina a relação adverbial de condição (própria da subordinação) que existe no período, permitindo que o mesmo seja equivalente a Se achar o vale-brinde, ganha. A partir disso, pode-se dizer que a definição e classificação das orações coordenadas e subordinadas constituem uma lacuna, uma “incompletude”, da gramática tradicional, que tem implicações negativas no trabalho com a Língua Portuguesa na escola, uma vez que tais relações não se dão apenas nos moldes descritos por essa gramática. 32 A postura purista, dogmática, da análise tradicional não concebe enunciados que não se “encaixam” na descrição de língua que propõe, uma vez que estabelece um padrão de linguagem a partir de obras clássicas, tomando daí exemplos que “ilustrem” as regras prescritas (também determinadas a partir dessas obras) ou – o que talvez seja pior – criam- se enunciados cujo objetivo é exemplificar as regras. Não se tem, consequentemente, o propósito de analisar a língua em situações diversas de uso, o que acaba sendo um problema, pois a língua não acontece em sentenças isoladas, apenas na modalidade culta, como as que se têm por objeto de análise pela gramática tradicional. CAPÍTULO 2 – GRAMÁTICA E ENSINO Neste capítulo, fazemos primeiramente um percurso sobre a origem dos estudos gramaticais, a fim de justificar questões que hoje se fazem presentes no que diz respeito a essa disciplina, tão criticada no âmbito escolar (Franchi, 1998; Travaglia, 2001, entre outros). Em segundo lugar, discutiremos o conceito de gramática difundido entre professores e alunos – lembrando que o termo gramática possui três acepções fundamentais – e, por fim, problemas relacionados ao seu ensino. 1. Breve histórico dos estudos gramaticais Ao tratarmos de gramática, acreditamos que a compreensão da origem dos estudos gramaticais é relevante, uma vez que pode esclarecer concepções erradas sobre o que seja a disciplina gramatical e o que signifique o seu ensino, tal como se tem hoje (o qual, como dissemos, tem sido muito criticado); por exemplo, o próprio caráter normativo da disciplina está atrelado à sua origem purista, o qual tinha finalidade pedagógica, como veremos a seguir. Os estudos gramaticais, tendo a princípio base filosófica, não tinham a análise da língua como um fim em si mesma, mas como um caminho para se chegar à organização do pensamento, do qual seria a expressão. Mesmo assim, é de inquestionável valor esse início do “pensar sobre a linguagem”, uma vez que impulsionou, ainda que indiretamente, as investigações lingüísticas. Estudar a tradição gramatical necessariamente remonta aos estudos gregos (Neves, 2005: 13) e, ao apresentar esse longo percurso de estudos, contribui tanto para a compreensão quanto para a valorização do que hoje se conhece por gramática tradicional. No século V a.C., os primeiros estudos acercavam-se indiretamente da linguagem. Toda atividade desenvolvida pelos sofistas centrava-se nas técnicas do discurso, da persuasão, não oferecendo, portanto, discussões gramaticais. A grande preocupação deles era o ensino da “arte política”, ou seja, recursos que permitiriam vencer em qualquer 34 discussão. Protágoras, mesmo a partir de discussões retóricas, apresenta questionamentos de valor gramatical, e propõe como gêneros das palavras o masculino, o feminino e o neutro, além de pensar em diferentes tipos de frases. Também neste século, tem-se com Platão a distinção entre substantivo e verbo que, para o filósofo, constituíam elementos fundamentais da proposição (Mattos e Silva, 1996: 16), embora não fossem considerados elementos lingüísticos (Neves, 2003); além disso, questiona-se a natureza do signo lingüístico (naturalidade x arbitrariedade), sendo a denominação o centro de suas reflexões sobre a língua. Aristóteles, um século mais tarde, também questiona a significação do nome, sugerindo que a mesma seja convencional (portanto, arbitrária), observa a categoria de tempo dos verbos – um progresso significativo nos estudos gramaticais – e acrescenta, às categorias de Platão, o conceito de conjunção (Lyons, 1979), mais uma parte no discurso, cuja função é “fazer de muitas coisas uma unidade” (Neves, 2005: 81). É com este filósofo que se tem a primeira definição das partes do discurso enquanto elementos do plano da expressão. Seu procedimento geral é o da definição e classificação, o qual será imitado nas gramáticas alexandrinas e nas gramáticas ocidentais. Os estóicos, nos séculos III e II a.C., tomam como objeto de estudo o enunciado e não os termos que os compõem. Assim, a conjunção tem destaque em seus estudos, apresentando alto valor lógico, uma vez que representa a expressão de juízos. A partir disso pode-se compreender o fato de a gramática tradicional considerar apenas o valor lógico para as conjunções. O artigo também é objeto de estudo e apresenta força articuladora (Neves, 2003: 38-39). A base da preocupação lingüística estóica está no significado. É interessante lembrar que, para os estóicos, apenas a “linguagem certa” era considerada obra da natureza, e por isso evitavam a mistura dos padrões gregos com os dialetos. Disso já se percebem sinais que deram origem ao caráter normativo da disciplina gramatical, o qual se mantém até hoje e é criticado justamente por reconhecer apenas um padrão de linguagem, taxando como incorretos os usos que não se encaixam no determinado padrão. Com os alexandrinos, tem-se uma continuação do trabalho dos estóicos. Dionísio, o Trácio, já no final do século II a.C, é um ponto de referência na sistematização dos estudos gramaticais dos alexandrinos, e modelo sobre o qual os gramáticos ocidentais se apoiaram. Introduz na análise dos elementos o critério morfológico da flexão. O gramático propõe um 35 quadro de categorias gramaticais para a língua grega (a saber, nome, verbo, particípio, artigo, pronome, preposição, advérbio, conjunção) que, embora tenha implicações filosóficas, “tem como objeto a língua e não o pensamento” (Neves, 2003:46). Este será um modelo para a gramática ocidental, cuja base está no estabelecimento de paradigmas. É interessante observar que tais categorias gramaticais deram origem às classes de palavras tal como conhecemos hoje, apenas com a diferença de que o particípio foi substituído pelo adjetivo, e hoje se tem a classe do numeral e da interjeição. De acordo com Neves, op. cit., são os gramáticos alexandrinos que representam a consolidação da passagem de reflexões filosóficas para reflexões lingüísticas acerca da linguagem. “É, pois, numa sistematização de base nocional, assentada sobre o fundamento da lógica, que se vê a consideração da linguagem preparar-se para ser abstraída da filosofia, trabalho que levará à constituição da gramática, ciência que nascerá normativa, sobre o modelo da arte de bem- dizer, tanto na prosa como na poesia. E, por meio de toda tradição ocidental, a gramática procurará pôr as normas da eficiência na comunicação, bem como da excelência na expressão” (Neves, 2005: 84) A partir desse breve histórico sobre os estudos gregos gramaticais, pode-se dizer que o trabalho dos gramáticos corresponde a uma formalização dos elementos da língua, o que acaba por instituí-la objeto autônomo de análise, distinto dos questionamentos filosóficos. Toda essa sistematização, presente até hoje nos manuais de gramática tradicional, nada mais é que a compilação de uma longa tradição de pesquisas sobre a linguagem iniciada, como já dito, com os filósofos gregos. É possível observar que os estudos sobre a linguagem caminharam em “ordem crescente”, de acordo com a complexidade “natural” de organização de seus elementos. A sintaxe – que é objeto de estudo deste trabalho – é, a princípio, deixada de lado. Segundo Neves (2003:51): “Condicionada por sua finalidade prática, a gramática elege para exame, especialmente, a fonética e a morfologia, fixando-se nos fatos de manifestação depreensível, passíveis de organização em quadros concretos. Se considerada nesse estágio, a sintaxe teria fatalmente compromisso com a lógica, constituindo uma deriva das considerações filosóficas. Ela é, portanto, praticamente ignorada, não tendo lugar nessa nova disciplina, que, pelas condições de surgimento, só tem sentido se empírica”. 36 Apesar de os primeiros sinais da preocupação com a organização do discurso aparecerem nos estudos dos estóicos, uma vez que já consideravam enunciados para análise, é apenas no século II d.C que os estudos sintáticos tornam-se objeto de estudo, com Apolônio Díscolo. A sintaxe, propriamente, é vista como um conjunto de regras que regem a síntese dos elementos que constituem a língua (Neves, 2003: 63). Em sua extensa obra, o gramático busca o arranjo (sýntaxis) em todos os níveis (fonológico, morfológico), mas é a oração o domínio específico da sintaxe, cujo objetivo é a “oração completa” (ou seja, junção do nome e do verbo, seus elementos fundamentais). Dada a regularidade existente na união dos elementos, a partir da observação dos fatos da língua, Apolônio é o único gramático antigo que escreve sobre a sintaxe (Neves, 2003: 70). É interessante observar que o mesmo já considera duas perspectivas de análise: a do contexto e a da forma. Assim, a oração depende tanto da congruência do significado como da forma e da função das palavras em relação ao nome ou ao verbo. Apesar de o método do gramático ainda estar ligado ao tratamento lógico dos elementos da língua, que permeara sua análise até então, Apolônio não desconsidera o uso. Na classificação das palavras, já assume que a classe pode variar em função do contexto em que aparecem; ao estudar as conjunções (Livro IV, Da Sintaxe), atribui-lhes um sentido autônomo, isolado, adquirido a partir das relações que estabelecem. Não se pode deixar de lado, porém, que tal sentido é depreendido a partir do uso que os escritores “ideais” fazem da língua. Conclui-se, portanto, que ainda reconhecendo a interferência do uso, esse “uso” é observado no modelo de linguagem considerado “correto”. No século I d.C. registram-se, em Roma, os primeiros estudos gramaticais de uma língua diferente do grego: o latim clássico (o que reforça o caráter purista da disciplina). Donato (IV d.C) e Prisciano (V d.C) têm destaque na Idade Média: o primeiro apresenta um minucioso estudo fonético do latim, fazendo comparações com o grego; o segundo propõe a primeira definição de sintaxe do ocidente, “a disposição que visa à obtenção de uma oração perfeita” (Mattos e Silva, 1996: 20), e a primeira sintaxe da língua latina, baseada na obra de Apolônio Díscolo. As gramáticas desses autores foram usadas como manuais de ensino durante toda Idade Média. O trabalho dos gramáticos latinos baseou-se fortemente nos estudos gregos. A partir de então, os estudos gramaticais que se seguiram basearam-se nas 37 obras desses autores, sempre na busca da sistematização da língua através de sua observação, descrição (de um “modelo escolhido”) e do estabelecimento de paradigmas. Com base nesse breve percurso sobre a origem os estudos gramaticais, podemos afirmar que o caráter normativo e purista da disciplina, presente nos manuais de abordagem tradicional que são base para o ensino de língua portuguesa até hoje, é resultado de uma postura assumida desde os primeiros questionamentos sobre a linguagem, ainda de base lógica e filosófica. A necessidade de mudança existe, no entanto, é ilusório acreditar que pode ser feita repentinamente, e sem obstáculos. Faz-se necessária uma conscientização dos problemas e limitações apresentados pelo modelo tradicional e o acesso a novas abordagens da língua que permitam novas reflexões e novas posturas. 2. Conceitos de gramática Sem dúvida alguma, as concepções sobre gramática e ensino da língua portuguesa têm motivado inúmeras discussões (Possenti, 1996; Antunes, 2003; Neves, 2003, entre outros). Entre as críticas ao ensino da gramática, propriamente, estão sua normatividade e dogmatismo, suas falhas e incompletudes quando considerada a língua em seu funcionamento, na realidade dos alunos (falantes nativos!), enfim, no uso efetivo. Ao ensino do conteúdo gramatical vincula-se exclusivamente a idéia de aprender a falar e escrever corretamente. Segundo a visão tradicionalista – que está presente na base do ensino – a gramática deve se voltar para a “arte de escrever bem”, tendo como principais preocupações 1) a formulação de regras de boa linguagem e 2) a definição e classificação dos termos de acordo com a lógica (Ignácio, 2002). No entanto, é preciso situar essa gramática, alvo de tantas críticas, entre “outras gramáticas”, a fim de se compreender melhor seus propósitos e, então, buscar possíveis mudanças. Basicamente, distinguem-se três conceitos básicos de gramática. De acordo com Travaglia (2001), o primeiro remete ao que se tem no senso comum em relação à disciplina gramatical: um conjunto de “regras de bom uso da língua a serem seguidas por aqueles que querem se expressar adequadamente” (p. 24). Essa é a conhecida GRAMÁTICA NORMATIVA , ensinada nas escolas. A concepção de língua veiculada por essa gramática 38 é bastante limitada, uma vez que compreende apenas sua variedade culta. Segundo Nege (2002: 22), “os fatos lingüísticos apresentados para exemplificação da teoria são arbitrários, geralmente ‘emprestados’ da literatura pertencente a várias épocas e são mostrados como se fossem expressões fechadas e auto-suficientes, ou seja, independentes de um contexto de situação mais amplo”. Conclui-se, assim, que a escrita que não segue esse conjunto de regras é inadequada, sendo a oralidade, por sua vez, ignorada. No segundo conceito de gramática tem-se como objetivo descrever a estrutura (forma) e o funcionamento (função) da língua. É a chamada GRAMÁTICA DESCRITIVA . Seu objeto de estudo é tanto a língua escrita quanto a língua falada, em quaisquer de suas variedades. Diferentemente da gramática normativa, esta não possui intenção prescritiva. Todas as formas utilizadas pelos falantes na construção de enunciados reais são passíveis de explicação. Por fim, a GRAMÁTICA INTERNALIZADA constitui um terceiro conceito que, como o próprio nome diz, é “interna”, portanto, “natural”, compreendendo todo o conhecimento lexical e sintático-semântico do usuário da língua, muitas vezes construído a partir de hipóteses (comer – comi, fazer – fazi*). Não se pode falar em erro lingüístico, mas em inadequação em relação à situação comunicativa. É essa gramática, por exemplo, que condiciona o uso do artigo sempre antes do substantivo, e nunca depois. Essa é uma regra natural, e não prescrita, arbitrária. Segundo Travaglia (op.cit.), é essa a gramática que “sustenta” a competência comunicativa dos usuários da língua, permitindo-lhes criar um número infinito, embora “regular”, de frases. Possenti (1996) destaca a importância de se ter claramente definido o conceito de gramática com que se trabalha, uma vez que “nem todos que se dedicam ao estudo desse aspecto [gramatical] das línguas a definem [a gramática] da mesma maneira” (p. 63). O autor resume os três tipos de gramática como: - conjunto de regras que devem ser seguidas (GRAMÁTICA NORMATIVA) - conjunto de regras que são seguidas (GRAMÁTICA DESCRITIVA) - conjunto de regras que o falante da língua domina (GRAMÁTICA INTERNALIZADA) 39 Com base nessa breve caracterização das três concepções de gramática, é possível afirmar que a única presente no dia-a-dia de professores e alunos é a primeira, a normativa. Arriscamos dizer, até mesmo, que seja a única conhecida pelos professores do Ensino Fundamental e Médio e, portanto, presente na sala de aula. Seu caráter prescritivo, somado a algumas falhas e limitações, denota ao termo “gramática” um sentido negativo, que a princípio gera uma atitude de receio e/ou resistência, tanto por parte dos alunos, como por grande parte dos professores. Aqueles se vêem pressionados a, de certa forma, substituir a variedade que dominam pela variedade culta, veiculada por essa gramática; esses, muitas vezes são surpreendidos pela arbitrariedade das regras prescritas e sua incompatibilidade com o uso da língua. Vejamos, pois, alguns problemas presentes no ensino, dos quais partimos para nossa reflexão, e para os quais pretendemos sugerir, com esta pesquisa, possíveis saídas. 3. Problemas no ensino No âmbito escolar, a dificuldade que os alunos apresentam na compreensão dos conceitos e os questionamentos dos porquês de aprender gramática constituem um grande obstáculo para o trabalho com a língua materna, criando certa resistência ao seu estudo e a imagem de que não é possível estudá-la. Ao mesmo tempo, é justificável a inquietude dos alunos diante das lacunas encontradas nas nomenclaturas, na definição de conceitos e funções, presentes nos manuais de gramática que são base para o ensino. Infelizmente, as diversas falhas na nomenclatura gramatical bem como os conceitos e os rigores dogmáticos não permitem que os alunos vejam “utilidade” em aprender gramática, em estudar a Língua Portuguesa. Logo, pode-se dizer que o resultado desses fatores reflete-se no baixíssimo nível de desempenho lingüístico – tanto na produção quanto na compreensão de textos – apresentado pelos estudantes, o qual pode ser considerado o pior dos resultados obtidos pelo precário sistema educacional brasileiro, pois não se restringe à disciplina de Língua Portuguesa, mas estende-se a todas as demais disciplinas que, de certo modo, dependem da leitura e da compreensão de textos. É possível identificar essa deficiência através das 40 redações dos alunos, das provas dissertativas, entre outros. De acordo com Geraldi (2002: 39), “No inventário das deficiências que podem ser apontadas como resultados do que já nos habituamos a chamar de ‘crise do sistema educacional brasileiro’, ocupa lugar privilegiado o baixo nível de desempenho lingüístico demonstrado por estudantes na utilização da língua, quer na modalidade oral, quer na modalidade escrita.” Embora muitos professores (e até mesmo a sociedade em geral) entendam “bom desempenho lingüístico” como maior correção e domínio do padrão culto da língua (Neves, 1990), assume-se nesse trabalho que o bom desempenho na língua seja tanto a produção quanto a compreensão eficiente de textos, em quaisquer situações de uso, inclusive nas quais o normativismo da língua culta não é requerido. Refletindo sobre o papel da escola e considerando que este é o lugar onde o aluno tem (ou deveria ter) a oportunidade de conhecer mais profundamente a língua para desenvolver o seu domínio, Neves (2003) faz uma observação pertinente quanto à postura a ser assumida no trabalho com a linguagem: a escola é um espaço institucional responsável pelo “bom uso”14 lingüístico, cabendo-lhe promover a discussão sobre a língua materna, relacionando o uso da linguagem e atividades de análise lingüística15. A autora defende o uso de uma gramática escolar vinculada aos processos reais de constituição dos enunciados, o que viabilizaria, a nosso ver, a “atualização” da nomenclatura gramatical e, consequentemente, o preenchimento de suas lacunas. A partir dos problemas gerais relatados, e dada nossa preocupação com o ensino de gramática, buscamos verificar problemas específicos (relacionados ao tema por nós pesquisado) presentes na sala de aula. Para isso, procedeu-se a um trabalho com professores de língua portuguesa, o qual será relatado a seguir, mostrando aspectos interessantes principalmente no que diz respeito à atitude desses professores no ensino da sintaxe. 14 Por “bom uso” da língua a autora entende desde a produção de enunciados bem compostos (do que se percebe certo caráter normativo/prescritivo) até a produção de enunciados socialmente adequados. (p. 26) 15 Entendemos por “atividades de análise lingüística” exercícios que explorem o funcionamento da língua, descrevendo a sua estrutura nos vários níveis de análise: fonético/fonológico, morfossintático e semântico. 41 3.1 A pesquisa realizada com os professores Realizamos uma pesquisa com vinte professores do Ensino Fundamental e Médio, com o intuito de esclarecer, verificar, algumas hipóteses sobre o ensino de gramática, num primeiro momento, e sobre o trabalho com a sintaxe, num segundo momento, dado o recorte feito neste trabalho. Através de um questionário (ver Apêndice), pediu-se primeiramente que os professores respondessem, por escrito e na presença da pesquisadora (a fim de se evitarem dúvidas), perguntas referentes à formação acadêmica e profissional, opinião sobre a importância do ensino de gramática e da existência da metalinguagem, organização das aulas e metodologia de ensino dos conteúdos, limitações do material didático que utilizam, objetivos a que se propõem com o ensino de gramática e dificuldades apresentadas pelos alunos na aprendizagem da disciplina. Dos professores entrevistados, a maioria (80%) possui mais de 10 anos de profissão e atua em escola pública (95%), nos níveis Fundamental e Médio, numa jornada de no mínimo 20 horas-aula semanais, sendo que alguns chegam a 44. Metade dos professores considera que a formação acadêmica que tiveram não contribui suficientemente para que atuem como professores de gramática, fazendo-se necessário que busquem se aperfeiçoar com leituras e cursos, além da experiência que só a prática permite adquirir. Em relação ao material didático (manuais de gramática e livros didáticos) a que têm acesso, as principais limitações apresentadas pelos professores foram: “explicações complicadas”, “ falta de exercícios”, “ falta de exemplos do uso” e “conceitos vagos”. Ao serem questionados sobre a importância do ensino de gramática, 85% dos professores afirmam ser este muito importante, embora existam opiniões tanto de caráter conservador (2A, 19G) quando inovador (1A, 16D, 17E): “Ensinar gramática parece mais aula de português”. (2A) “É importante em contextos que requerem maior elaboração do discurso”. (19G) 42 “ [A gramática] deve ser ensinada como instrumento da língua, e não isolada”. (16D) “Tem que saber ensiná-la, dentro de textos, no contexto. Não como eu aprendi.” (1A) “O modo como é ensinada não a faz muito importante. Ensinam a gramática pela gramática. A gramática tem que servir para a leitura e compreensão.” (17E) Dentre os objetivos aos quais os professores, em geral, se propõem com o ensino de gramática, temos: - que os alunos dominem a norma padrão quando exigida - que os alunos sejam bons produtores e leitores de textos - que os alunos reconheçam o problema de textos mal construídos - que os alunos reconheçam as variações da língua - que os alunos sejam capazes de utilizarem diferentes registros - que os alunos reflitam sobre a língua a partir dos quais é possível concluir que parte dos professores acredita, sim, que a gramática é importante para que o aluno, além de dominar a norma padrão, produza bons textos, reflita sobre a língua, seja capaz de reconhecer problemas em textos, enfim, acreditam que a gramática não é apenas para “decorar”. Ao serem indagados sobre mudanças que achavam ser necessárias no que diz respeito ao ensino de gramática, os professores sugeriram: - trabalhar com a gramática de maneira “mais leve” - os livros deveriam explorar mais textos - não separar gramática – literatura – redação - estudos mais práticos - o professor precisa mudar de abordagem - gramática é instrumento e não fim 43 - a cobrança de nomenclatura deveria acabar - “[a gramática] ser menos dogmática. Mas o professor tem quer estar muito bem preparado.” (14C) - “levar o aluno a refletir sobre as categorizações. É possível.” (18F) Grande parte dos professores reconhece que é preciso mudar algo no ensino da gramática. No entanto, percebemos ainda certa insegurança, ou mesmo desconhecimento de como proceder. A metodologia que utilizam na abordagem dos conceitos revela algumas contradições. Quando perguntamos aos professores de que maneira costumam introduzir os conceitos gramaticais, muitos professores (70%) mostraram se utilizar da exposição do conceito, exemplificação e realização/repetição de exercícios. Ou seja, partem das definições e terminam com exercícios de fixação. É importante ressaltar que há, sim, professores que buscam fazer com que os alunos compreendam o funcionamento das entidades para, depois, categorizá-las. Contudo, estes não são a maioria. Outra questão que se destacou é a confusão existente entre o que seja metalinguagem e/ou nomenclatura, bem como a falta de clareza a respeito de suas finalidades pedagógicas. Quando perguntamos sobre a importância de haver uma metalinguagem, algumas das respostas foram: “ [A metalinguagem] não é pra decorar.” (1A) “ O professor precisa ser bem preparado. Tem que saber a gramática.” (5A) “O Estado diz pra não dar nomenclatura [metalinguagem] mas cobra no SARESP.” (11B) “Traduz o objeto de estudo – a língua.” 15D 44 Pode-se perceber que a metalinguagem é “reduzida” à nomenclatura, no que diz respeito à categorização dos elementos da língua, à exceção do que diz 15D, por exemplo. Outros acreditam que metalinguagem é gramática (5A). Assim, faz-se necessário um esclarecimento do que determinam tais conceitos, uma vez que ambos permeiam o ensino da língua. Por metalinguagem, segundo o consenso entre os professores que trabalham no Ensino Fundamental e Médio, entendem-se os conceitos, definições e explicações, ou seja, os termos técnicos, utilizados na descrição dos elementos que fazem parte da língua e do seu funcionamento. A nomenclatura, por sua vez, diz respeito ao conjunto de termos específicos (terminologia) com que se nomeiam os elementos lingüísticos, segundo critérios metódicos de classificação, cujo objetivo é estabelecer uma unidade no tratamento dos elementos da língua. De acordo com Ignácio (op.cit.), a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) tem finalidade didático-pedagógica, buscando a simplificação e a unificação taxionômica, dada a multiplicidade de denominações atribuídas pelos gramáticos aos elementos da língua. Podemos dizer que ambos os conceitos se aproximam e que o problema, na verdade, não está em utilizá-los, propriamente, mas sim na maneira como se faz isso. Toda história de ensino nos mostra a cobrança das categorias lingüísticas e classificação sem reflexão. Exercícios como “siga o modelo”, em que se cobravam a identificação e classificação de elementos em frases idênticas, de fato apenas requeriam que o aluno “soubesse” (na verdade, decorasse) os termos técnicos, e os aplicasse. Para Geraldi (op.cit.), ensinar uma língua é diferente de ensinar uma metalinguagem. Um dos grandes problemas que se põem é o ensino (e a cobrança!) de uma metalinguagem que descreve uma variedade de língua que a maioria dos alunos ainda não domina (se é que chegam a dominá-la): a padrão. A partir de exercícios contínuos de descrição gramatical e estudo de regras – as quais, muitas vezes, nem mesmo especialistas estão seguros de resolver – cobra-se o uso da metalinguagem da língua, deixando de lado a observação de seu funcionamento. Consequentemente, acaba-se confundindo metalinguagem e nomenclatura ao conjunto de regras prescritas pela gramática normativa. A metalinguagem/nomenclatura deve ser um instrumento auxiliar na análise e ensino da língua. Possenti (1996, 2002) afirma que o domínio efetivo e ativo de uma língua 45 dispensa o domínio de uma metalinguagem técnica. No entanto, acreditamos que esta se faz imprescindível no trabalho com a língua em sala de aula, ainda que o aluno não domine todos os termos técnicos utilizados em sua descrição. Defendemos, portanto, uma abordagem diferente no estudo da língua, especialmente no ensino de gramática, e acreditamos que os princípios funcionalistas podem auxiliar nessa mudança. Foi com esse objetivo que tentamos, na segunda parte da entrevista realizada com os professores, especificar aspectos relativos à sintaxe, que constitui tema desse trabalho, para que pudéssemos, além de identificar problemas, oferecer subsídios. Tínhamos como hipótese inicial que a sintaxe constituiria o domínio gramatical de maior dificuldade a ser trabalhado em sala de aula. De fato, dos vinte professores entrevistados, dezoito deles (90%) afirmaram ser essa a área em que os alunos apresentam maiores problemas na aprendizagem dos conceitos, uma vez que se consideram as relações entre as palavras, entre as orações, ou seja, “complica-se” o nível de análise. Em relação ao conteúdo específico dos processos de coordenação e subordinação, enfocados nesse trabalho, os professores enfatizaram as seguintes dificuldades: - diferenciar coordenação e subordinação - fazer os alunos compreenderem as orações substantivas - explicar o sentido das conjunções - diferenciar orações subordinadas adverbiais causais e orações coordenadas explicativas Propusemos aos professores que analisassem alguns períodos compostos, que fazem parte de nosso corpus de análise, a fim de observar a atitude deles diante de construções que fogem aos moldes propostos pela análise tradicional. O que constatamos foi um grande apego ao modelo trazido por essa abordagem. Os períodos analisados foram: a) Quando ele soube que o seu nome estava sendo ligado a uma bebida alcoólica, mandou seu advogado parar a produção. (FSP) 46 b) Mas enquanto não surgir neste país um governo que crave a questão social como prioridade absoluta, não haverá um governo de fato decente. (FSP) c) Os operários foram colocando peso em excesso sobre a viga, quando esta se partiu e um deles caiu no fosso. (JT) d) Além disso, Carlota objetaria que a presunção, em se tratando de cavalheiro já um tanto maduro, é de que seja casado, ainda quando não use aliança (nesta altura me repreenderia por não ter mandado fazer outra, desde que, há cinco anos, perdi a minha). (ABD-R) Dos vinte professores, apenas 6 (30%) classificaram as orações subordinadas em destaque de acordo com o contexto (respectivamente como causal, condicional, consecutiva e concessiva), ou seja, de acordo com a relação de sentido que emerge entre as cláusulas, independentemente do valor previsto para a conjunção presente em cada período. Os outros 14 professores (70%) partiram da conjunção (prototipicamente subordinativa temporal), muitas vezes sem mesmo lerem o período todo, o que revela o grande apego à nomenclatura gramatical proposta pelos manuais (às vezes por comodismo, às vezes por insegurança em dizer algo que contrarie o que a tradição propõe). Em seguida a essa análise, foram propostos mais alguns períodos, já classificados de acordo com o contexto. Foi pedido que os professores imaginassem tais períodos classificados por seus alunos, em uma avaliação: a) - Pois é verdade. Já gostei muito dela, quando era tolo... mas hoje! (CCU-R) CAUSA b) O percentual preciso a ser cedido pelo Bamerindus ao grupo HSBC somente será revelado quando a transação estiver completada e aprovada pelo Banco Central. (FSP) CONDIÇÃO 47 c) Mas, enquanto as entrevistas entre Truffaut e Hitchcock são sistemáticas, dissecando quase cena a cena a obra do diretor inglês, as conversas entre Bogdanovich e Welles são caóticas, repletas de digressões, piadas e histórias paralelas. (FSP) COMPARAÇÃO O resultado foi interessante, uma vez que revelou a “insegurança” dos professores diante da possibilidade de uma classificação diferente da que se encontra nos manuais e livros didáticos: 16 professores (80%) disseram que aceitariam tal classificação, desde, no entanto, que os alunos soubessem justificá-la. Os demais professores (20%) disseram que não aceitariam, que “iriam para a lousa” e explicariam todo o conteúdo novamente, principalmente as conjunções: “Gramaticalmente estão erradas.” (17E) “O sentido é estabelecido pela relação lógica entre as orações. Portanto, o emprego dessas conjunções é inadequado pois QUANDO e ENQUANTO têm o sentido restrito de tempo.” (15D) “Colocaria errado, mas levaria os exemplos pra lousa e os explicaria, substituindo pelas conjunções adequadas.” (10B) “Aceitaria mais como tempo.” (7B) “Precisam saber as conjunções.” (3A) Como pudemos comprovar a partir das falas dos professores, há um apego grande aos padrões propostos pelo modelo tradicional. Verificamos, com essa entrevista, a importância de um conhecimento maior sobre o que seja a gramática, de um modo geral, e sobre o que seja a gramática ensinada na escola – bem como quais são os seus limites (uma vez que eles existem!). É preciso que os professores tomem consciência de que estudos 48 lingüísticos dão um respaldo teórico que acompanha as variações de uso da língua, como o funcionalismo, por exemplo. A nosso ver, é a postura assumida pelo professor e sua abordagem que determinarão, de fato, o verdadeiro papel da gramática na sala de aula. De acordo com Neves (2003: 19), “... o tratamento escolar da linguagem tem de fugir da simples proposição de moldes de desempenho (que levam a submissão estrita a normas lingüísticas consideradas legítimas) bem como da simples proposição de moldes de organização de entidades metalingüísticas (que levam a submissão estrita a paradigmas considerados modelares)”. A autora, com base nessas considerações, faz as seguintes indicações, básicas, para o trabalho com uma gramática que possa ser operacionalizada na escola: “a. O falante de uma língua natural é competente para, ativando esquemas cognitivos, produzir enunciados de sua língua, independentemente de qualquer estudo prévio de regras de gramática. b. O estudo da língua materna representa, acima de tudo, a explicitação reflexiva do uso de uma língua particular historicamente inserida, via pela qual se chega à explicitação do próprio funcionamento da linguagem c. A disciplina escolar gramatical não pode reduzir-se a uma atividade de encaixamento em moldes que dispensem as ocorrências naturais e ignorem zonas de imprecisão ou de oscilação, inerentes à natureza viva da língua”. Pode-se dizer, com isso, que é possível trabalhar com gramática além do que se tem nos manuais e livros didáticos que servem aos professores. Pode-se partir desse material e ir além, propondo a reflexão dos elementos da língua em uso. Deve-se, sim, garantir aos alunos o acesso à norma culta, mas isso não significa cobrar que decorem toda a nomenclatura e regras trazidas pelos manuais. É em função dessa realidade que se deu o desenvolvimento desta pesquisa. Pensar a gramática unicamente como um conjunto de regras a serem “decoradas”, para se “escrever corretamente”, é reduzir o trabalho que pode ser desenvolvido com a língua na escola. Sendo o funcionalismo uma abordagem mais abrangente da língua, uma vez que qualquer uso que desta se faça estará inserido num contexto (Halliday, op. cit.), numa 49 situação de comunicação, abordar a língua sob esta perspectiva aproxima o trabalho que sugerimos ser realizado em sala de aula e a realidade do aluno. Com base nesses princípios podem-se conduzir reflexões sobre as variações que a língua sofre, os diferentes usos determinados por diferentes situações comunicativas, mantendo-se como ponto de partida a norma culta (a norma culta, cujo domínio cabe à escola garantir ao aluno). É importante ressaltar que o problema principal da gramática tradicional – a qual “representa” a norma culta – é seu dogmatismo. Acreditamos que tanto o estudo da forma como o estudo da função sejam fundamentais na compreensão dos fenômenos da linguagem. De acordo com Halliday (1976: 135), “... não podemos explicar a linguagem com simplesmente arrolar seus usos, e um arrolamento que tal poderia, de qualquer modo, ser prolongado indefinidamente. (...) Ao mesmo tempo, uma abordagem da estrutura lingüística que não considere as demandas que fazemos da linguagem carece de perspicácia, uma vez que não oferece princípios para explicar por que a estrutura da linguagem está organizada de um modo e não de outro”. Nossa preocupação em verificar a viabilidade de uma prática pedagógica que concilie o trabalho com as abordagens tradicional16 e funcional17 da língua teve como pressuposto a crença de que ambas podem auxiliar o trabalho dos professores na escola, contribuindo para que os alunos atinjam um desempenho lingüístico satisfatório, e também dominem o português padrão. 16 Classificação e definição dos termos constituintes dos enunciados a partir de critérios lógicos, formais e semânticos, considerando aspectos morfológicos, sintáticos, estilísticos, entre outros. Esse seria o ponto de partida, a nosso ver, para o estudo da língua padrão, a qual chamamos “referencial lingüístico” (e cujo aprendizado cabe à escola garantir), uma vez que busca mostrar a organização desse sistema lingüístico. 17 A principal tarefa de uma gramática funcional é “fazer correlações ricas entre forma e significado dentro do contexto global do discurso”. (Beaugrande, 1993: cap. III, apud Neves, 2001: 3). CAPÍTULO 3 – CONCEITO DE COORDENAÇÃO E SUBORDINAÇÃO Recebem os nomes de coordenação e de subordinação as relações que se estabelecem entre palavras e orações, caracterizando-se estas relações como de independência ou de dependência, respectivamente. Consideraram-se, neste trabalho, as relações que ocorrem entre orações, formando períodos compostos. Said Ali (1964), por exemplo, nomeia tais relações de combinação coordenativa e combinação subordinativa. Na primeira tem-se uma oração inicial seguida de uma ou mais orações. Na segunda, tem- se uma oração principal e uma ou mais orações secundárias (o que denota a hierarquia entre essas orações). Em Carone18 (1988) verifica-se a observação de aspectos importantes na definição dessas relações. Segundo a autora, “A oração subordinada não se articula com outra oração, considerada esta em sua totalidade; ela contrai uma relação de dependência com um termo de outra oração” (p. 91). Assim, ocorre que um elemento de nível inferior (presente na oração principal) é central, ao que se articula um elemento de nível superior (a oração subordinada). É interessante observar que a condição de elemento subordinado “minimiza” a oração, colocando-a no mesmo nível que o termo ao qual se liga. Carone (1999) afirma que é a conjunção subordinativa e o pronome relativo (este, no caso das orações subordinadas adjetivas) que têm a propriedade de realizar tal mudança de valores (oração � termo). A coordenação, por sua vez, é tida como uma relação mais complexa do que parece. A acepção de que esse processo relaciona orações independentes, de acordo com a autora, é insuficiente, pois se baseia em critérios lógicos (os quais também podem ser observados no processo de subordinação). Carone (1988) atenta para o fato de que, em se tratando de sintaxe, a coordenação se dá entre duas orações, enquanto a subordinação, entre um termo de oração e uma oração. A autora (1999) questiona, ainda, a autonomia – traço distintivo – das orações coordenadas. Considerando-se as conjunções alternativas, por exemplo, não se 18 É importante ressaltar que a autora insere-se numa abordagem formalista da língua. No entanto, ela traz observações importantes no que diz respeito ao tratamento da sintaxe, especificamente à caracterização do período composto, as quais satisfazem os objetivos deste trabalho que propõe, entre outras coisas, a rediscussão dos processos de coordenação e subordinação. 51 pode pensar em independência de orações tendo em vista que “uma alternativa é uma segunda opção; logo, uma primeira é um pressuposto seu” (p. 61). Os limites entre os processos de coordenação e subordinação, tratados segundo o modelo tradicional, apenas no que diz respeito ao período composto (Carone, 1999: 16; Neves, 2003: 23), não são tão claros e precisos que permitam, sem questionamentos, a célebre dicotomia entre tais relações. De um modo geral, a diferença é estabelecida fundamentalmente pelo critério de independência/dependência sintática e semântica (partindo esta de um ponto de vista lógico). No entanto, mesmo o estabelecimento desse critério – o qual, como dito, está na base do tratamento tradicional da construção de períodos – não é livre de questionamentos. Vejamos o trabalho de alguns gramáticos. Said Ali (1964) define a coordenação como a combinação de uma ou mais orações seqüentes ou coordenadas que se combinam com o auxílio de alguma partícula (e, mas, ou, portanto...); assim, quando não houver uma partícula tem-se um caso de coordenação assindética. Em seguida, o autor apresenta os diversos tipos de conjunções que caracterizam a coordenação sindética. A “combinação subordinativa”, por sua vez, “consta de uma oração principal e uma ou mais secundárias ou subordinadas” (p. 130). Estas são, de acordo com o autor, desdobramentos do sujeito, do complemento (substantivas), dos determinantes atributivos (adjetivas) ou adverbiais (adverbiais). Ao apresentar as partículas que estabelecem as relações de subordinação, faz referência à possibilidade de construção diversa (coordenada), ao que denomina “equivalente estilística”. Dessa forma, a construção subordinada “Se tomares este remédio ficará curado.” tem como equivalente estilística a construção coordenada “Toma este remédio e ficarás curado". Como se pode perceber, o que determina, de fato, a caracterização de um período como coordenado ou subordinado é sua organização sintática. Porém, percebemos que ambos são dependentes semanticamente, e isso não é considerado pelo autor. Melo (1970: 227-228), ao apresentar o período composto, mostra que este pode ser constituído por a) orações independentes, em que cada uma representa “um pensamento autônomo”, coordenadas entre si; b) uma oração principal, “que teve um de seus termos desdobrados em outras orações, as quais recebem o nome de orações subordinadas”; 52 c) “uma oração principal acompanhada de várias orações subordinadas”, as quais se coordenam uma vez que desempenham a mesma função; d) “orações interdependentes (correlação)” – processo não reconhecido, segundo o autor, pela NGB; e) orações organizadas a partir de dois ou três dos processos sintáticos considerados pelo autor: coordenação, subordinação e correlação. É de grande importância a crítica que o autor faz à oposição coordenação x subordinação. Para ele, são “coisas diferentes”, o que justifica o problema em se colocar tais processos simplesmente como opostos, numa dicotomia que mais complica que esclarece [grifo nosso]. Enquanto “a oração coordenada é a que está posta ao lado de outra, de igual natureza e igual função” (p. 230), a subordinação “é a relação de dependência entre funções sintáticas” (p. 233). A oração subordinada nada mais é que a expressão de um termo por uma oração (do que podemos observar uma análise formal do processo), daí sua não autonomia – assim como diz Carone (1988). Embora nos interessemos, neste trabalho, apenas pelas relações de coordenação e subordinação em períodos compostos, é interessante ressaltar que este é o único autor que estende a aplicação de tais conceitos às relações entre termos da oração (artigo/substantivo). Convém lembrar que, na subordinação, há sempre uma relação de dependência entre a oração subordinada e um “termo” da oração principal, que pode ser o verbo (núcleo do predicado), um substantivo ou