OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 1 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIA E CIÊNCIAS EXATAS Programa de Pós Graduação em Educação Matemática Adailton Alves da Silva OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista – Júlio Mesquita Filho, no Programa de Pós Graduação em Educação Matemática - Campus de Rio Claro-SP, para a obtenção do Título de Doutor em Educação Matemática. Orientador: Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrosio Rio Claro – SP 2013 OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 2 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante FICHA CATALOGRÁFICA 510 Silva, Adailton Alves da S586a Os artefatos e mentefatos nos ritos e cerimônias do danhono: por dentro do octógono sociocultural A’uwẽ/Xavante / Adailton Alves da Silva. - Rio Claro, 2013 348 f. : il., figs., tabs., fotos. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Ubiratan D’Ambrosio 1. Matemática. 2. Etnomatemática. Etnografia. I.Título. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 3 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Adailton Alves da Silva OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista – Júlio Mesquita Filho, no Programa de Pós Graduação em Educação Matemática - Campus de Rio Claro-SP, para a obtenção do Título de Doutor em Educação Matemática. COMISSÃO EXAMINADORA _________________________________ Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrosio - UNESP Orientador _________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Sebastiani Ferreira - UNICAMP Membro ___________________________________________________ Profª Drª Bernadete Ap. Caprioglio de Castro Oliveira - UNESP Membro ___________________________________________________ Profª Drª Dulce Maria Pompêo de Camargo – UNICAMP/PUC Membro ____________________________________ Profª. Drª Roseli Corrêa Alvarenga - UFOP Membro ____________________________________ Profª. Drª Mirian Godoy Penteado - UNESP Suplente ___________________________________________ Prof. Drª Wanderléia Nara Gonçalves Costa - UFMT Suplente _____________________________ Prof. Dr. Ole Skovsmose - UNESP Suplente Rio Claro - SP, 09 de abril de 2013 OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 4 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Dedico à minha querida mãe e heroína, Dona Eva, pela garra, dedicação, simplicidade e força nos ensinamentos. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 5 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante AGRADECIMENTOS À Dona Eva, minha querida mãe, pelo amor incondicional, pela garra, pela dedicação e pelo exemplo de grandeza mesmo em situações de extrema fragilidade. À Gabriela e Loissa, minhas filhas, pela alegria, pelo prazer, pelo colorido, pela luz e pelo orgulho que me proporcionam. À Lucimar, minha esposa, amiga, companheira de todas as horas e para todas as batalhas, pela alegria, pela paz que me proporciona, pela dedicação e pela parceria na vida e na caminhada. Aos meus irmãos, Pedro e João, pelo apoio, colaboração e aconchego nas horas alegres e tristes nessa jornada da vida. O nosso profundo agradecimento a todas as comunidades A’uwẽ/Xavante pertencentes à Terra indígena Pimentel Barbosa, que gentilmente e de forma prestativa nos acolheu em suas aldeias, casas, famílias, e nos confiaram seus saberes, conhecimentos, sentimentos, histórias, esperanças, utopias, etc. Em especial, e muito carinhosamente, agradecemos os anciãos, as anciãs, as lideranças e os professores que nos inspiraram, moveram, orientaram, mostrando os caminhos a trilhar nessa jornada. À família Ribeiro, em especial ao Valderson, Valderson Jr., Eliana, Messias e Roberto que sempre me acolheram de braços abertos nos seus lares e que nunca mediram esforços para me servir e atender nas idas e vindas pelas aldeias. À família Barros, de maneira especial ao Mauro, que sempre se dispuseram a me ajudar durante as estadias nas aldeias Pimentel Barbosa, Ẽtẽnhiritipá e Wederã. Aos amigos do “Cortiço”, Edson, Joãozinho, Renato, Sinval, Marta, Ivone, Luana, Elma, Gustavo, Aldo, Lina, Joaquim, Marcos Lübeck, Sérgio pelos momentos de alegria, apoio e, sobretudo, pela amizade. À Laura, Angélica, D. Izabel, D. Valderez, Oto, Vitalina, Eva, Gisele, pelo acolhimento e a amizade durante as idas, vindas e estadias nas aldeias. À Dona Sebastiana, minha sogra, por não medir esforços para nos servir e ajudar cuidando da nossa filha Gabi, quando era impossível conciliar as nossas agendas nas idas e vindas para cumprir compromissos. Ao Edson, Jura, Joãozinho, Cidinha, Nice, Luiz Gouveia, Gê, Joides, Inedio, Epitácio, Marcos Lübeck, meus amigos de antes e de sempre, pelo apoio em diferentes situações. À Rai e ao Nilson, meus amigos e compadres, pela amizade, companheirismo e acolhimento durante todo tempo que nos conhecemos. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 6 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Ao Lucas (meu afilhado), Nícolas e Cássio, pela amizada e as discontrações que me proporcionaram nos momentos de angustia durante a escrita da tese. Ao professor, amigo e orientador, o professor Ubiratan, que além de me orientar nessa árdua jornada, me apoiou e incentivou nos momentos que às vezes pareciam não ter uma solução para os problemas apresentados. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Educação Matemática de Rio Claro, em especial aos meus amigos Sérgio Nobre, Marcos Teixeira, Rômulo Lins, pelo apoio incondicional quando pensei que não suportaria as situações indesejadas. Ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Estudo Etnomatemática (GEPEtno) da Unesp de Rio Claro-SP, pelas contribuições durante as calorosas discussões e debates de ideias. À Universidade do Estado de Mato Grosso, em especial ao Departamento de Matemática de Barra do Bugres-MT, que sempre me proporcionou condições para a realização desse trabalho. Aos professores do meu Departamento, em especial aos professores William, Márcio Urél, Inedio e Daise que, de maneira incondicional, me proporcionaram condições ministrando minhas disciplinas para que eu pudesse afastar das atividades pedagógicas para dedicar integralmente a este trabalho. Ao CNPq, por me proporcionar condições concedendo uma bolsa de estudo para realizar a pesquisa. A todos, os meus eternos agradecimentos. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 7 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Descartes nos ensinou, a nós modernos, a dizer “eu penso, logo existo” - a dizer, portanto, que a única vida ou existência que consigo pensar como indubitável é a minha própria -, o perspectivismo ameríndio começa pela afirmação duplamente inversa: “o outro existe, logo pensa”. E se esse que existe é outro, então seu pensamento é necessariamente outro que o meu. Quem sabe até deva concluir que, se penso, então também sou um outro. Pois só o outro pensa, só é interessante o pensamento enquanto potencia de alteridade. Eduardo Viveiros de Castro1 1 Cf. Castro (2008, p. 117). OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 9 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante R E S U M O O presente trabalho trata de uma pesquisa sobre o processo de geração, sistematização e difusão dos saberes e fazeres dos A’uwẽ/Xavante, a partir da celebração de um dos principais rituais do povo, o Danhono. É uma investigação de natureza qualitativa que se insere, sob o ponto de vista teórico/metodológico, nos pressupostos do programa Etnomatemática na vertente “dambrosiana” que, por sua vez, dialoga transdisciplinarmente com diferentes áreas do conhecimento. Nessa vertente, priorizamos os aspectos antropológicos e políticos relacionando-os com os aspectos culturais da matemática e aos fundamentados políticos e pedagógicos freireano. Durante o desenvolvimento da pesquisa buscamos abordar os saberes, fazeres e conviveres A’uwẽ/Xavante a partir dos mitos, ritos e cerimônias celebradas no processo de formação e autoformação (Danhono) dos adolescentes, os Wapté e as Azarudu, pertencentes ao grupo de idade Nozö’u, no período de 2006 a 2010 nas aldeias pertencentes à Terra Indígena Pimentel Barbosa. Nessa perspectiva, o método de caráter etnográfico foi amplamente utilizado, buscando ressaltar os elementos matemáticos relacionados aos mitos, ritos e cerimônias do povo A’uwẽ/Xavante. Para a composição do corpus, permanecemos nas comunidades investigadas durante um período de 12 (doze) meses acompanhando as atividades cerimoniais e cotidianas. Através desta convivência buscamos entender/compreender a forma como os mitos, ritos e cerimônias estão articulados com os saberes matemáticos do povo. Como desdobramento dessa investigação, tem-se a construção de uma visão teórica/metodológica/epistemológica dos saberes e fazeres do povo A’uwẽ/Xavante a partir do seu funcionamento no interior da cultura. Palavras chave: A’uwẽ/Xavante. Danhono. Ritos. Cerimônias. Etnomatemática. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 10 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante A B S T R A C T The present work is a research about the A’uwẽ/Xavante’s knowledge and practices generation, systematization and diffusion process, starting from Danhono people’s main ritual celebration. That is a qualitative nature investigation, under the theoretical / methodological point of view, inserted in the presuppositions of the Ethnomathematics program, in the “dambrosiana” aspect which dialogues transdisciplinarily with knowledge different areas. In that aspect, we prioritized the political and anthropological aspects relating them to the mathematics cultural aspects and to Freire’s political and pedagogical concepts. During the research development we tried to approach the A’uwẽ/Xavante’s knowledge, practices and way of living, starting from the myths, rites and ceremonies celebrated in the (Danhono) adolescents’ formation and self-formation process - the Wapté and Azarudu which belonged to the Nozö’u age group in the period of 2006-2010 in the villages belonged to Pimentel Barbosa Indigenous Land. In this direction, the ethnographic character method was widely used, attempting to highlight the mathematical elements related to the A’uwẽ/Xavante people’s myths, rites and ceremonies. For the corpus composition, we stayed in the researched communities for 12 months, accompanying the ceremonial and daily activities. Through this familiarity, we tried to understand as the myths, rites and ceremonies are articulated with the people’s mathematical knowledge. Unfolding that investigation, we have the A’uwẽ/Xavante’s knowledge and practices theoretical/ methodological/epistemological vision construction, up from its functioning in the culture interior. Keywords: A’uwẽ/Xavante. Danhono. Rites. Ceremonies. Ethnomathematics. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 11 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante S U M Á R I O INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 13 1 - PAVIMENTAÇÕES, CAMINHOS, FUNDAMENTOS E CONCEPÇÕES .................................. 21 1.1 - Uma Pavimentação Etnomatemática e Dinâmica do Solo que Pisamos ................................... 21 1.1.1 - O Problema e a Trama da Pesquisa .................................................................................... 29 1.1.2 - Cultura, Comunicação e Espacialização ............................................................................ 34 1.2 – De Perto e de Dentro dos Caminhos e Trilhados – fundamentos metodológicos .................... 41 1.2.1 - Fundamentos Metodológicos ............................................................................................. 41 1.2.2 - Procedimentos Metodológicos – a busca da compreensão ................................................ 45 1.2.3 - O Ponto de Partida e o Percurso ......................................................................................... 48 1.2.4 – (Re)estabelecendo as Relações – solicitação de permanência ........................................... 51 1.2.5 - (Re)significando Vivências e Convivências - constituição do corpus e do objeto ............ 53 1.2.6 - O Recorte ........................................................................................................................... 60 2 - O MUNDO A’UWẼ / XAVANTE - Construção, Constituição e Organização ............................... 65 2.1 – Construção e constituição da Esfera: espaço e lugar A’uwẽ/Xavante ...................................... 65 2.2 - A Organização Social e Espacial da Esfera A’uwẽ/Xavante ..................................................... 69 2.2.1 - Por Dentro do Círculo Sociocultural A’uwẽ/Xavante – o Ró ............................................. 71 2.3 - A Organização Social e Política A’uwẽ/Xavante ...................................................................... 73 2.3.1 - Os Clãs - constituição e função social ................................................................................ 73 2.3.2 - O Warã: o conselho dos anciãos - constituição e função social ........................................ 76 2.3.3 - O Hö – lugar e espaço da impermanência .......................................................................... 79 2.3.3.1 - Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante – o ciclo dos grupos etários........................................................................................................................................ 82 2.3.3.2 - As Classificações Etárias A’uwẽ/Xavante.................................................................. 87 3 - RITOS E CERIMÔNIAS A’UWẼ/XAVANTE - Constituindo e Interligando os Sujeitos ............ 91 3.1 - O’ió - A Luta dos Adolescentes A’uwẽ/Xavante ...................................................................... 93 3.1.1 - A descrição da luta do Oi’ó ................................................................................................ 95 3.2 - A Entrada dos Wapté no Hö ...................................................................................................... 98 3.4 - Daporedzapu - Furação de Orelha dos Adolescentes ............................................................. 120 3.5 - Cerimônia do Uiwedezadarã .................................................................................................. 124 3.6 – Ubdöwarã – A Corrida de Tora de Buriti .............................................................................. 128 3.7 - Wa’í - A Luta dos Wapté com seus Padrinhos ........................................................................ 136 3.8 - Noni – A Corridas da Seriema (’Waritidirê) ........................................................................... 139 OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 12 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante 3.9 – A Grande Caçada com Fogo .................................................................................................. 152 3.10 – Wamnhoro - as máscaras cerimoniais .................................................................................. 161 3.10.1 - Os Tebe – os adoradores da lua ...................................................................................... 166 3.10.2 - Os Pahöri’wa – os adoradores do sol ............................................................................ 170 3.11 – Wanorĩdobê - a dança dos padrinhos e madrinhas ............................................................... 175 3.12 – A Corrida do Sa’uri .............................................................................................................. 180 3.13 – Ĩsirã’rῖ - revelação das meninas prometidas aos Wapté ....................................................... 188 3.14 – Apresentação do novo grupo de idade à comunidade .......................................................... 191 4 - SABERES, FAZERES E CONVIVERES A’UWẼ/XAVANTE - Um Olhar Etnomatemático Sobre as Forças Motrizes do Octógono Sociocultural ................................................................................... 197 4.1 – O Espaço e o Tempo dos Saberes e Fazere nos Ritos e Cerimônias ...................................... 200 4.1.1 - Dia e noite - horários A’uwẽ/Xavante .............................................................................. 211 4.2 - Saberes e Fazeres Sócioeducativos e a Constituição do Ser A’uwẽ/Xavante .......................... 220 4.3 - Do Cerrado à Mesa – alguns aspectos dos saberes e fazeres agrícola/ecológicos do povo A’uwẽ/Xavante ................................................................................................................................ 244 4.4 - A Dimensão Artística/Tecnológica nos Ritos e Cerimônias A’uwẽ/Xavante ......................... 261 4.5 – A Matemática do Lugar e o Lugar da Matemática nos Ritos e Cerimônias ........................... 290 4.5.1 - Da Complementarida à Ação de Contar ........................................................................... 292 4.5.2 - Da Ação de Dividir à Ação de Partilhar ........................................................................... 299 4.5.3 - Sobre a Circulação de Bens – alguns aspectos da economia A’uwẽ/Xavante .................. 313 CONSIDERAÇÕES ............................................................................................................................ 317 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 325 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ..................................................................................................... 331 ANEXOS ............................................................................................................................................. 337 APÊNDICE ......................................................................................................................................... 343 OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 13 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante INTRODUÇÃO Fig. nº 01 – (A) e (B) Aldeia Ẽtẽnhiritipá vista de cima da serra Réb’ré’éure2 Atualmente há registro de mais de 220 diferentes povos indígenas em território brasileiro, cada um com seus hábitos, seus costumes, suas tradições, sua cosmovisão de mundo e, muitos deles, com suas respectivas línguas maternas em uso. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI, 2005)3, dos cinco milhões de pessoas das diversas etnias que viviam no Brasil quando essas terras foram “descobertas” pelos colonizadores, atualmente são em torno de 358 mil. Desse universo populacional, 15.315 são A’uwẽ/Xavante, que vivem em mais de 190 aldeias (FUNASA/10)4 localizadas nas Terras Indígenas (TI)5: São Marcos (Merure), Sangradouro/Volta Grande, Parabubure (Chão Preto e Ubawawe), Areões (Areões I e Areões II), Marechal Rondon, Pimentel Barbosa e Maraiwatsede, todas geograficamente descontínuas e sob a jurisdição da FUNAI. Com essa estatística, numericamente, o povo A’uwẽ/Xavante está entre os dez maiores grupos indígenas brasileiros. Dessa população, mais de 10% habitam a Terra Indígena Pimentel Barbosa, distribuídos nas seguintes aldeias: Pimentel Barbosa, Belém (antiga Água Branca), Caçula, Tanguro, Wederã, Ẽtẽnhiritipá, Atséréré, Reata, Canoa6 e Ẽtẽza’itipré7. Aldeias estas que constituem o universo onde desenvolvemos a presente pesquisa. 2 A Terra Indígena Pimentel Barbosa está localizada entre as latitudes 13°00’00’’S e 14°00’00’’S; e longitudes 51°30’00’’W e 52°30’00’’W. 3 Disponível em http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/indio/numeros.html. Acessado em 26/11/11. 4 Disponível em http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral. Acessado em 15/11/11. 5 Terras Indígenas é a denominação dada aos espaços físicos reconhecidos oficialmente pela União como sendo de posse permanente dos povos indígenas que as ocupam. Vale ressaltar que, segundo a legislação brasileira, os povos indígenas não são donos da terra, mas têm o direito de fazer uso dela. 6 Com o processo de reabertura da antiga aldeia São Domingo (Wedeze), a aldeia Canoa ficou apenas com duas pessoas, um casal de anciãos com grande prestígio político. 7 Essa aldeia foi fundada em 15/04/12, devido ao processo de separação da aldeia Caçula, desencadeado devido problemas políticos internos. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 14 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante De maneira geral, quando se trata de algum grupo social específico, principalmente quando se refere aos povos indígenas, é comum se iniciar falando a respeito do seu processo histórico e, na grande maioria, a partir de registros dos não-índios, ou seja, de uma versão da história contada pelo não-indígena, uma história externa. E, devido ao nosso intuito de falar a partir de uma perspectiva interna da cultura do povo A’uwẽ/Xavante, como explicitamos no título deste trabalho, vamos adiantar que não será priorizada essa vertente externa do referido processo. Não porque julgamos menos importante e menos relevante, mas por entendermos que há uma vasta bibliografia que dá visibilidade a essa perspectiva histórica8 e também por entender que esse aspecto é pouco relevante para a nossa discussão. Nesse sentido, consideramos que as informações históricas dos parágrafos anteriores desta introdução são suficientes para o que nos propomos neste trabalho. Isso porque priorizamos, na medida do possível, os aspectos relacionados às formas tradicionais A’uwẽ/Xavante de produzir conhecimento e as práticas socioeducativas de difundi-las, buscando ressaltar, a partir dos rituais e cerimônias, as concepções e percepções inerentes aos diferentes saberes e fazeres do povo. O povo A’uwẽ/Xavante dispõe e usufrui de uma sofisticada organização sociocultural onde o princípio da complementaridade é ressaltado em todas as circunstâncias e atividades desenvolvidas no dia a dia. Nessa organização, cada indivíduo, ao nascer, passa a pertencer a um dos dois clãs: Poreza’õno (girino) ou Öwawẽ (água grande). Quando a pessoa alcança a fase de watébrémi (para os meninos) ou azarudu (para as meninas) são submetidos a um dos 08 (oito) grupo de idade (Ẽtẽpá, Tirówa, Nozö’u, Abare’u, Sadaró, Anhanarówa, Hötörã e Ai’rere) para cumprir o seu processo de formação de acordo com os princípios do povo. Formação essa que é realizada via celebração dos ritos e cerimônias que constitui uma das principais instituições socioeducativas do povo, o Danhono (dormir). O Danhono é constituído de um conjunto de celebrações de ritos, cerimônias, provas de vários gêneros que introduzem rapazes (Wapté) e moças (Azarudu) A’uwẽ/Xavante na vida adulta, na vida social e os preparam para novas responsabilidades. No geral, são atividades que têm como objetivo difundir aos mais jovens os saberes e conhecimentos tradicionais dos A’uwẽ/Xavante. Sendo assim, o Danhono se torna um dos principais balizadores do processo de formação e autoformação dos adolescentes (Wapté e Azarudu) e da socialização do indivíduo na aldeia. Os ritos e cerimônias elaboradas e celebradas na grande festa do Danhono, ricos em significados, traduzem e explicitam a natureza de grande parte dos saberes 8 Possíveis leitores interessados nos aspectos históricos do povo A’uwẽ/Xavante consultar as referências bibliográficas e ver, por exemplo, Maybury-Lewis (1984), Ravagnani (1976), Lopes da Silva (1986), entre outros. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 15 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante e fazeres dessa cultura. Os gestos, performances, cores, tecnologias, economia, sistema socioeducativo, formas, etc., consolidam esse processo de geração, sistematização e difusão dos saberes/fazeres e conhecimentos do povo A’uwẽ/Xavante. Considerando todo esse processo, a postura que assumimos para essa investigação foi o de olhar e, na medida do possível, buscar compreender o funcionamento desses saberes e fazeres por dentro da cultura A’uwẽ/Xavante e, consequentemente, procurar revelar suas múltiplas dimensões. Sendo assim, o nosso objetivo de pesquisa é compreender como os saberes e os fazeres do povo estão sedimentados e articulados nos mitos, ritos e cerimônias, principalmente os relacionados ao Danhono. Nesse enfoque, abordamos principalmente os saberes e fazeres gerados, sistematizados e difundidos a partir da celebração desse conjunto de rituais, buscando aproximar e fazer dialogar várias áreas do conhecimento. No que diz respeito aos pressupostos teóricos, o presente trabalho trata-se de uma investigação de natureza qualitativa que se insere, sob o ponto de vista metodológico, no programa Etnomatemática que, por sua vez, dialoga transdisciplinarmente com diferentes áreas do conhecimento, como por exemplo, a Antropologia, Matemática, Sociologia, História, Psicologia, Educação, Filosofia, etc. e, sobretudo, com o entrelaçamento teórico/metodológico produzido e difundido pelos próprios anciãos e anciãs A’uwẽ/Xavante. Programa esse que propõe uma nova epistemologia e também procura entender a aventura dos grupos sociais humanos na busca da geração, aquisição, acúmulo e difusão de saberes e conhecimentos necessários para a pulsão da vida. Trata-se de uma associação de conceitos relacionados com os aspectos culturais da matemática e com os aspectos políticos e pedagógicos fundamentados nos ideais de Freire (2005). A partir da perspectiva “dambrosiana” que estamos adotando, enfatizamos duas abordagens: a antropológica e a política. A antropológica pelo fato de entendermos que se faz necessário olhar para a matemática do grupo dando ênfase aos conhecimentos e práticas experimentadas no cotidiano cultural do povo (D’AMBROSIO, 1985). Nessa perspectiva, todos os elementos da cultura, como: a linguagem, os valores, os mitos, os ritos e os hábitos do povo são muito significativos, pois são elementos que sedimentam esse processo de saberes e fazeres matemáticos. Já na abordagem política, entendemos que esses saberes e fazeres matemáticos estão embebidos de uma ética, que tem como foco o respeito e a dignidade cultural do ser humano (D’AMBROSIO, 1998). Nessa abordagem, os artefatos confeccionados e utilizados pelo povo deixam de ser vistos como elementos apenas decorativos; os mitos, os ritos e as cerimônias celebradas nas ocasiões específicas possuem os seus verdadeiros significados e valores científicos e não são tratados apenas como aspectos OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 16 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante folclóricos, ou seja, todos os saberes e fazeres do povo deixam de ser relacionados como algo periférico, inferior, limitado, etc. Ao longo da nossa vivência e convivência com as comunidades A’uwẽ/Xavante, aprendemos que uma das primeiras coisas que devemos fazer quando chegamos à aldeia é ir ao Warã (conselho dos anciãos) comunicar aos anciãos e lideranças o objetivo da estadia e o que veio fazer, ou seja, se apresentar aos anciãos e, por extensão, à comunidade. Com isso, achamos que aqui também devemos fazer algo semelhante, ou seja, explicitar como chegamos ao tema e como fomos interagindo com a temática dessa pesquisa. Podemos dizer que a nossa busca de interação, entendimento e compreensão dos saberes e fazeres do povo A’uwẽ/Xavante já vem de longa data até se constituir no que hoje resulta nesta investigação. Podemos dizer que ela surgiu de um interesse ainda na graduação9 de entender e compreender outras relações entre sociedade e natureza, particularmente em grupos sociais distintos, onde se percebe uma sabedoria/conhecimento expressando sentidos distintos da concepção euro-ocidental (D’AMBROSIO, 2001) e mantendo uma organização de sociedade não inteiramente cooptada pelo capitalismo. Sabedoria esta que nos ensina que a realidade pode ter outros significados. De certa maneira são essas características da produção de saberes e fazeres dos grupos sociais que têm nos desafiado. De lá para cá, a cada momento dessa trajetória fomos colocando uma peça no quebra- cabeça com o intuito de aprofundar nessa temática. A primeira peça colocada nessa construção, como já mencionado anteriormente, foi quando desenvolvemos o trabalho de monografia de graduação, intitulada “A Geometria na Construção da Takãra”. Nesse trabalho buscamos entender os aspectos Matemáticos que se fazem presentes no processo de construção e na estrutura da Takãra – casa dos homens Apyãwa/Tapirapé10. Na realização da pesquisa para a monografia de especialização em História da Matemática11, que teve como título “Viola de Cocho: História, Arte e Matemática”, buscamos entender os aspectos físico/matemáticos e a arte e a técnica desenvolvida e aplicada na confecção da Viola de Cocho Matogrossense, especificamente a viola da baixada cuiabana. Já com a pesquisa realizada para a Especialização em Educação Escolar Indígena12, Etnomatemática e a Sala de Aula: Uma Experiência Desenvolvida Com os Professores Xavante de Pimentel Barbosa, o nosso foco de interesse foi ver quais os aspectos culturais 9 Licenciatura Plena Parceladas/UNEMAT-LUCIARA, turma 1992/1997. 10 O povo Tapirapé pertence ao tronco linguístico Tupi e habita a Terra Indígena Urubu Branco nas seguintes aldeias: Tapi’itãwa, Xapi´ikeatãwa, Wiriaotãwa e Akara´ytãwa, Majtyritãwa (dados levantados pelos alunos durante as investigações – março 2011). 11 Especialização em História da Matemática – UNEMAT/Barra do Bugres, 2001/2002. 12 Especialização em Educação Escolar Indígena – UNEMAT/Barra do Bugres, 2002/2004. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 17 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante que os cursistas/professores traziam, via oficinas de Formação Continuada de Matemática, do seu contexto cultural para a sala de aula de matemática, ou seja, ver os aspectos culturais que interferiam na matemática escolar daquelas comunidades. Outra importante peça colocada nesse quebra-cabeça foi a pesquisa que desenvolvemos no mestrado13 - A Organização Espacial A’uwẽ-Xavante: Um Olhar Qualitativo Sobre o Espaço – e que de certa forma foi o nosso primeiro exercício de olhar os saberes e fazeres de um povo a partir da sua própria ótica. Nesse trabalho, buscamos tratar da concepção e percepção do povo A’uwẽ/Xavante sobre o espaço, envolvendo uma discussão a respeito de outras formas de geometrizar os lugares e o espaço que habitam (CERTEAU, 2007). Nessa perspectiva, podemos dizer que foi o desenvolvimento desses trabalhos mencionados anteriormente que nos possibilitou perceber a existência de uma forte relação estabelecida pelos A’uwẽ/Xavante entre seus saberes e fazeres com os mitos, ritos e cerimônias e daí o motivo de desenvolvermos a presente investigação. Considerando esse retrospecto, podemos dizer ainda que a presente pesquisa é, de certa maneira, a continuidade da experiência desenvolvida no mestrado e, neste sentido, um aprofundamento de questões teóricas e conceituais que permaneceram abertas e que demandaram um maior tempo de investigação e amadurecimento de leituras. As informações e os elementos culturais que constitui a base para as reflexões e análises dessa pesquisa são oriundos do nosso envolvimento nas cerimônias constituintes do Danhono (celebrado em 2010) e atividades cotidianas da comunidade, principalmente as relacionadas às caçadas, pescarias, rituais, cerimônias, reuniões, roças, etc., durante 12 (doze) meses de nossa permanência nas aldeias da Terra Indígena Pimentel Barbosa. Atividades estas que nos possibilitaram perceber princípios, concepções e conceitos relacionados aos saberes e fazeres do povo. Dessa forma, podemos dizer que o presente trabalho é resultado dessa experiência de vida e de um árduo trabalho de campo entre/com o povo A’uwẽ/Xavante. Vale ressaltar que diante da expressividade que é o ritual do Danhono, podemos dizer que buscar entender e compreender como esses saberes e fazeres estão sedimentados nesse processo é uma tarefa complexa e desafiadora. É uma busca que suscita uma discussão transdisciplinar e que perpassa pela diversidade epistemológica e cultural, além de nos exigir um desprendimento, uma relativização dos nossos valores/verdades e uma postura de alteridade em relação aos saberes e fazeres diferente do nosso, ou seja, desvencilhar da perspectiva que nos é imposta, principalmente via escola, de que há uma única matemática, uma única ciência, uma única maneira de ver o mundo que nos cerca. 13 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Rio Claro-SP, 2004/2005. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 18 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Nesse período de acompanhamento das atividades e rituais, enfrentamos uma jornada árdua, mas possível; sofrida, mas divertida; dolorosa, mas prazerosa; de muitas incertezas, mas de muita esperança; de muitos momentos de insônias, mas de muitos sonhos. Sendo assim, podemos dizer também que as afirmações presentes aqui neste trabalho não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais, tampouco, de outro lado, resultado apenas de leituras, por mais importante que elas tenham sido. São informações que estão sempre ancoradas em situações vivenciadas e convivências durante o período que permanecemos em área. Nessa perspectiva, podemos dizer que o êxito deste trabalho pode ser atribuído a três importantes fatores: o primeiro à feliz circunstância do trabalho de campo ter sido realizado no ano que foi celebrado a Danhono, que acontece aproximadamente de cinco em cinco anos, o que nos proporcionou vivenciar grande parte dos ritos, cerimônias e das atividades relacionadas; o segundo, ao reconhecimento do nosso trabalho durante os últimos 14 (quatorze) anos por parte das comunidades; e o terceiro, à tomada de consciência por parte dos anciãos e liderança da importância do registro ser um dos poucos meios que permitem preservar e difundir o próprio patrimônio cultural aos mais jovens, como ressalta Serebuerã et al (1998, p. 22): Que as palavras, transformadas no papel [...], sejam uma forma de fortalecer o espírito criador contra o avanço do lado escuro. Algo bastante difícil de ser confiado a uma pessoa que não seja pertencente à comunidade. Por isso, sobretudo por estes dois últimos aspectos, todas as pessoas da comunidade – de criança a adulto, de ambos os sexos - se dispuseram com satisfação, paciência e entusiasmo excepcional em narrar, informar; orientar-nos e conduzir nas atividades que buscávamos desenvolver para entender/compreender algum aspecto; repetir e corrigir qualquer informação quando se tratava de saberes e conhecimentos específicos e de sua responsabilidade de difundir. Com essa abertura das comunidades em relação ao desenvolvimento da pesquisa, durante o trabalho de campo, ativemo-nos a um método de cunho etnográfico que nos permitiu a mais natural possível das informações, sem as contaminar com os nossos esquemas e perguntas diretas e pré-estabelecidas ou pré-intencionadas. Com essa postura metodológica, somente após 12 (doze) meses de observação e participação direta da grande festa do Danhono, é que passamos ao trabalho de sistematização e organização dos cadernos de campo. Este sistema, embora artificioso e trabalhoso, tornou-se muito apropriado, porque, após a participação de todo o ciclo cerimonial foi que muitas informações levantadas no início do Danhono nos tornaram compreendidas. Somente após esses dois estágios da investigação que aprofundamos na busca de outros trabalhos de pesquisa relacionados ao povo A’uwẽ/Xavante. Essa foi uma opção que OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 19 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante acreditamos que foi acertada, pois tivemos a oportunidade de conferir muito do que já está nas referências bibliográficas relacionadas ao povo, e, principalmente, perceber o quanto esses ritos e cerimônias já foram atualizados, ou seja, o quanto o aspecto dinâmico da cultura desse povo se faz presente nos ritos e cerimônias. O estudo em questão constitui-se de quatro capítulos. No primeiro capítulo - Pavimentações, Caminhos, Fundamentos e Concepções: uma pavimentação Etnomatemática e dinâmica do solo que pisamos – apresentamos o recorte da área de estudo, o marco conceitual e a perspectiva teórica que utilizamos na interpretação das informações empíricas que integram esse trabalho, buscando estabelecer um diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento, principalmente antropologia cultural, sociologia, matemática, entre outras. Nesse capítulo apresentamos ainda o caminho percorrido para delimitar o tema da pesquisa, o recorte da área de estudo, os objetivos, os passos dados nessa caminhada e a maneira como foi desenvolvida a pesquisa e, consequentemente, parte da nossa atuação junto às comunidades onde realizamos a pesquisa de campo, principalmente as aldeias Pimentel Barbosa, Ẽtẽnhiritipá, Caçula e Tanguro, que celebraram a festa do Danhono. No segundo capítulo - O Mundo A’uwẽ/Xavante: Construção, Constituição e Organização - explicitamos a forma como o povo concebe, constitui e organiza o mundo, assim como também os aspectos da organização social do povo. No terceiro capítulo – Ritos e Cerimônias A’uwẽ/Xavante: Constituindo e Interligando os Sujeitos - detemo-nos em apresentar de forma detalhada as performances cerimoniais/rituais que acompanhamos durante os trabalhos de campo, mostrando os ritos e cerimônias que permearam o processo ritual do Danhono. Esse detalhamento, perceptível na descrição dos artefatos e mentefatos relacionados a este ritual, nos permitiu visualizar situações e fatos em que os saberes e conhecimentos se faziam presentes, mas que numa descrição menos densa (GERTEZ, 1989) não apareciam. É o caso, por exemplo, da contagem por agrupamento dos fios de seda no ato da confecção do Wamnhoro, como pode ser conferido mais adiante. E, no quarto e último capítulo – Seres, Saberes, Fazeres e Conviveres A’uwẽ/Xavante: Um Olhar Etnomatemático Sobre as Forças Motrizes do Octógono Sociocultural – explicitamos, a partir da perspectiva da Etnomatemática, a maneira como os saberes e fazeres, principalmente os relacionados ao tempo, ao processo socioeducativo, às práticas agrícolas/ecológicas, ao artístico/tecnológicos e à matemática são produzidos e como estão inseridos nas atividades do cotidiano do grupo. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 20 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Apesar de essas temáticas estarem apresentadas em capítulos separados, todas elas buscam mostrar a lógica e os princípios que sedimentam os saberes e fazeres A’uwẽ/Xavante de forma a sintetizar as partes em totalidades organizadas.14 14 Os termos da língua A’uwẽ/Xavante utilizados neste trabalho obedecem ao padrão e a política linguística adotada pelos falantes desta língua pertencentes à Terra Indígena – Pimentel Barbosa e, quando necessário, essas palavras serão acompanhadas do significado em português. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 21 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante PAVIMENTAÇÕES, CAMINHOS, FUNDAMENTOS E CONCEPÇÕES Fig. nº 02 - Detalhes da pintura e adereços dos Wapté durante a dança dos padrinhos - Aldeia Ẽtẽnhiritipá. 1.1 - Uma Pavimentação Etnomatemática e Dinâmica do Solo que Pisamos A abordagem das distintas formas de saber/fazer/conhecer de povos culturalmente distintos é a essência do programa Etnomatemática. Essencialidade essa que se manifesta nas conexões, complementaridade e conflitos entre indivíduo � realidade para sobrevivência do indivíduo; indivíduo � outro/sociedade para continuidade da espécie; sociedade � natureza para sobrevivência da espécie (D’AMBROSIO, 2001, p. 71). Podemos dizer ainda que a interação a um só tempo complementar e conflitiva do processo de geração, sistematização e difusão desses saberes/fazeres e conhecimentos, constitui o suporte da Etnomatemática. Nessa mesma perspectiva, Vergani (2003) vai nos dizer que, [...] a Etnomatemática assume o novo paradigma holístico, cujos horizontes transcendem as múltiplas cegueiras massificadoras, standardizadas e parcializadas. Sensível (naturalmente) à própria matemática, entendida como processo de entendimento, comunicação, socialização é simultaneamente sensível à pessoa humana entendida como sujeito/espaço/tempo. O que significa ser sua abertura constante e atenta à sociedade, cultura, história, economia, justiça, ética, intuição, estética, [...] uma essência constitutiva do seu processo transdisciplinar globalizante (p. 127). A Etnomatemática dessa forma, a nosso ver, busca tratar das múltiplas e diversas formas de ser, saber, fazer, viver, conviver, transcender humanos, o que, consequentemente, busca também romper com a visão de conhecimento universal, uma vez que sugere a adoção de conhecimentos locais, de abordagens culturais ao conhecimento. Ela coloca em discussão as verdades absolutas, já que trabalha com a concepção de verdades contextuais, portanto, 01... OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 22 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante provisórias (D’AMBROSIO, 2004). E, como D’Ambrosio (op. cit.) não se cansa de fazer notar, a Etnomatemática, [...] se destaca pelos aspectos abrangentes a uma teoria do conhecimento. Esses aspectos são reflexos do momento atual de exame crítico do paradigma dominante, que remonta ao século XVII, e da busca de novos paradigmas para explicar a realidade, em todas as suas dimensões: individual, que inclui o imaginário; social, que inclui o cultural; planetário, que inclui a natureza; cósmica, que serve de suporte às religiões (p. 14). Nessa perspectiva, coube à Etnomatemática pensar, conhecer e refletir a questão do outro como diferente e que, para isso, se armou de um olhar holístico, trans/multi/inter/intra para constatar que o outro não é uma imagem do eu. Nessa mesma perspectiva, Larrosa e Lara (1998) vão nos alertar dizendo que as imagens que fabricamos e as formas como elas funcionam classificando e excluindo pessoas que não são como nós, pertencentes a culturas que não sejam a nossa, concepções diferentes da nossa, etc., e que necessitam ser engaioladas em aparatos pedagógicos, em modelos pré-definidos ou algo semelhante, [...] têm como função fazer os loucos entrarem em nossa razão, as crianças em nossa maturidade, os selvagens em nossa cultura, os estrangeiros em nosso país, os delinqüentes em nossa lei, os miseráveis em nosso sistema de necessidades e os marginalizados e deficientes em nossa normalidade (p. 8). De maneira geral, podemos dizer que é nesse debate da diferença, do outro e do eu que a Etnomatemática se coloca para enfrentar o desafio de inverter esse olhar e compreender o processo de geração, sistematização e difusão de saberes e conhecimentos dos grupos sociais distintos da maneira que são. Como dizem Larrosa e Lara (op.cit. p.8), “a imagem do outro não como a imagem que olhamos, mas como a imagem que nos olha e que nos interpela”. É neste sentido, também, que a Etnomatemática busca revelar os múltiplos processos de geração, sistematização e difusão de saberes e conhecimentos presentes nos grupos sociais distintos, mas que se fazem invisíveis aos olhos e ouvidos dado que nossa percepção encontra-se cativa de nosso pensar por princípios e valores da nossa cultura, tidos por nós como universais, verdadeiros, legítimos e únicos (GUSMÃO, 1999). Dessa forma, a Etnomatemática não é somente um programa de pesquisa, mas também assume uma postura filosófica em que o seu princípio motivador é estabelecer uma ponte de compreensão, respeito e tolerância ativa (BOFF, 2006) entre distintos grupos sociais. Neste sentido, ela pode nos oferecer apoio e direcionamento científico e metodológico em favor da salvaguarda dos processos de geração, sistematização e difusão de saberes e conhecimentos dos grupos socialmente distintos que constituem um patrimônio humano inestimável da cultura universal (POSEY, 1987). OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 23 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Diferentemente do que sugere o nome, Etnomatemática não é apenas o estudo de “matemática das diversas etnias”. Esse é um termo que foi escolhido para designação de um domínio de estudo/pesquisa bastante recente – só foi reconhecido “oficialmente” como novo campo de investigação/ação em 1983/8415 – através do qual a matemática assume uma dimensão histórica, cognitiva, epistemológica, conceitual, educacional e política o seu caráter transdisciplinar no seio de uma experiência reconhecidamente antropológica. Esse nome pode não explicitar toda a sua amplitude (geração, sistematização e difusão de saberes de grupos culturalmente distintos), mas foi sob essa designação que essa nova área de pesquisa acedeu sua tática ética (CERTEAU, 2007) de estímulo ao desenvolvimento individual e sociocultural. Nesse sentido Vergani (2007) diz que, [...] mas vale possuir um nome [etnomatemática] do que não ser nomeada e permanecer inexistente aos olhos dos que traçam hoje os grandes rumos das mudanças educacionais [investigação] exigidas por uma sadia integração na contemporaneidade (p. 24). Ao abordar a Etnomatemática, convém estarmos conscientes de que este movimento ainda jovem se apresenta hoje diferente daquela maneira como foi concebido inicialmente, em que a Etnomatemática consistia em conhecê-la, reconhecê-la e traduzi-la a partir dos instrumentos da linguagem matemática universal os saberes e conhecimentos dos grupos socialmente distintos e identificáveis. A abordagem a partir da qual buscamos sedimentar a presente pesquisa, parte da vertente e concepção, segundo Vergani (2007), que: [...] a Etnomatemática tem uma missão no mundo de hoje que transcende o interconhecimento das alteridades socioculturais. Cabe-lhe apontar um caminho de transformação crítica das nossas próprias comunidades ocidentais, solidariamente abertas a outras formas de refletir, de saber, de sentir e de agir. Saberes e comportamentos estes que questionam o nosso modo de conhecer e que induza atitudes mais globalizantes, mais justas, mais decididamente enraizadas em autênticos valores sociais e humanos (p. 09). O termo Etnomatemática é, nessa perspectiva, entendido de forma particularmente vasto e abrangente. Como já mencionamos anteriormente, ela tem sido olhada como o estudo das essências: a essência do corpo, da percepção, do espaço, do tempo, da consciência, do vivido, etc. E sendo assim, convém olhá-la como uma atitude que conduz a uma forma de saber distinta de “especializações” ou de “técnicas/treinamentos”. Justamente porque ela não busca 15 Em agosto de 1984, no V Congresso Internacional de Educação Matemática, em Adelaide/Austrália, algumas novas tendências em Educação Matemática estavam em foco, tais como “Matemática e Sociedade”, “Matemática para todos” e “História da Matemática e de sua pedagogia” entre outras. Foi neste congresso que o professor Ubiratan D’Ambrósio apresentou sua teorização para uma linha de pesquisa que se apresentava timidamente, já há alguns anos. Nascia então o Programa de Pesquisa Etnomatemática, motivado pela procura de entender o saber/fazer matemático ao longo da História da Humanidade, contextualizado em diferentes grupos de interesse, comunidades, povos e nações (D’AMBRÓSIO, 2002). OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 24 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante descrever/analisar ou explicar dedutivamente a experiência do homem no mundo, mas sim a partir da experiência tal como é vivenciada pelo sujeito. Dessa forma, a Etnomatemática sustenta que o homem só pode ser compreendido a partir do seu contexto sociocultural (D’AMBROSIO, 1990, 2001; VERGANI, 2007). Mas compreender e respeitar a maneira como cada uma dessas essências estão articuladas no/com processo de geração, sistematização e difusão de saberes/conhecimentos matemáticos dos grupos sociais distintos é algo que exige de nós, além de desprendimento, sensibilidade, respeito, humildade e uma grande dose de vontade, pois compreender essa matemática exige compreender muitos aspectos adjacentes a ela, e faz-se necessário buscar também compreender outros saberes que estão articulados com seus saberes. Aspectos estes que, muitas vezes, são gerados e concebidos pelo grupo em questão, e que são tidos como fios condutores da tecelagem da malha cultural daquele povo. São essas premissas, questionamentos e postura que balizam o trabalho do Etnomatemático ao buscar compreender o modo pelo qual cada grupo sociocultural (etno) desenvolve as técnicas e as ideias (ticas) para aprender e trabalhar com as medidas, cálculos, inferências, comparações, classificações e maneiras diferentes de modelar o ambiente social e natural no qual os indivíduos estão inseridos, para explicar e compreender (matema) os fenômenos que neles ocorrem (D’AMBROSIO, 1990). Na busca de uma articulação e não apenas uma junção dos elementos etno, matema e tica, a Etnomatemática assume a postura de trabalhar a holicização16 dos seres humanos, buscando compreender, aceitar e conviver com as diferentes realidades e as inteligências múltiplas de cada ser humano em seus grupos diversos e como agem em suas diferenças. Nessa perspectiva, Scandiuzzi (2009) vai nos dizer ainda que para trabalhar a holicização dos seres humanos, faz-se necessário estabelecer um diálogo simétrico. Nas suas palavras, o diálogo simétrico consiste em: [...] um diálogo franco, aberto, que exigirá do eu e do outro diferente de mim, um crescer no conhecimento da arte ou na técnica de explicar, de compreender, de entender, de interpretar, de relacionar, de manejar e lidar com o entorno sociocultural (p.18). A Etnomatemática encarada nessa vertente vai além da multidisciplinaridade ou da interdisciplinaridade, ou seja, ela abre largamente os horizontes da transdisciplinaridade e assume um novo paradigma holístico caracterizado pelos princípios da não dualidade (superação de disjunções redutoras); da não separação (desenvolvimento do espírito de 16 O holismo aqui está sendo adotado como uma propriedade do todo ou da totalidade da vida social. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 25 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante síntese); da indissociabilidade espaço/energia; da integração dos contrários (flexibilidade, aceitação de incertezas); da integração do sujeito (participação do ser na sua inteireza); do relativismo das verdades; da associação do quantificável ao qualificável; do reconhecimento dos valores éticos; da criatividade como processo psicoemocional e cognitivo; do equilíbrio e respeito mútuo entre Leste-Oeste e Norte-Sul (SANTOS, 2005); da procura de axiomática comum entre os diferentes saberes/conhecimentos, etc. Nessa perspectiva, a Etnomatemática se posiciona justamente na busca de uma estratégia formativa capaz de integrar as pessoas num mundo mais humano e mais justo que atualmente se esboça, mas sem os amputar dos valores socioculturais específicos do meio no qual se inserem. Atende ao significado de um conhecimento nascido da contemporaneidade, da comunicação, da solidariedade e da esperança (VERGANI, 2002). Dessa forma, como propôs D’Ambrosio na introdução do livro “A Surpresa do Mundo – ensaios sobre cognição, cultura e educação” de Vergani (2003), a essência da transdisciplinaridade reside numa postura de reconhecimento de que não há espaço e tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar, como mais correto ou mais certo ou mais verdadeiro, complexos de explicações e convivência com a realidade que nos cerca. A transdisciplinaridade repousa sobre uma atitude aberta, de respeito mútuo, sobre mitos, religiões e sistemas de explicações e conhecimentos, rejeitando qualquer tipo de arrogância e prepotência. A transdisciplinaridade é, na sua essência, transcultural. Exige a participação de todos, vindo de todas as regiões do planeta, de tradições culturais, formação e experiência profissional as mais diversas (D’AMBROSIO In VERGANI, 2003, p. 16). Dessa forma, a Etnomatemática ao invés de buscar compreender apenas a matemática dessas pessoas ou grupos socioculturais, busca compreender a vida desses seres humanos que fazem matemática. Nessa perspectiva, Freire (199617) nos alerta dizendo que antes de ensinarmos aos nossos alunos que quatro por quatro são dezesseis, devemos propor e mostrar a eles que há uma forma matemática de estar no mundo. Esse talvez seja um dos principais focos do nosso constante debate e reflexão nessa área de investigação. Nesse sentido, podemos dizer que a Etnomatemática que aqui buscamos assumir procura re-situar o pensamento da ciência in lócus, sobre o solo fecundo da experiência humana, onde a inteligência sensível se ergue para construir, constituir e organizar um mundo habitável por humanos em vivência e convivência harmoniosa com o meio que lhe cerca. Nessa vertente, Larrosa (2002) vai dizer o seguinte: 17 Trecho da gravação enviada para o Congresso Internacional de Educação Matemática, em Sevilha, em 1996. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 26 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular; ou, de um modo ainda mais explícito, trata- se de um saber que se revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas [ou grupo social específico], ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual a sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo [ou grupo social] concreto em que encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria (p. 27). Nessa perspectiva está fora a concepção da Etnomatemática admitir, por exemplo, a simples identificação de objetos matemáticos no interior dos grupos sociais se restringindo à comparação entre as diferentes matemáticas. Pelo contrário, entendemos sim, que ela é a arte e a técnica de compreender os problemas e suas possíveis soluções postos por cada grupo social, não a de achar soluções para os problemas postos pela Matemática e também por outras ciências consideradas ocidentais aos grupos sociais. Perspectiva essa carregada de preconceitos, discriminação e exclusão do outro. Antes de qualquer elaboração conceitual, o mundo já existia diante de nós, presente e independente de qualquer conjectura teórico-filosófica que sobre ele venha a incidir. O mundo é bem mais do que um conjunto de conceitos: sua hibridez é flutuante e múltipla. Não é fácil conjugar diferentes lógicas socioculturais com um sistema cognitivo aberto ao porvir de um mundo onde os saberes/fazeres dos grupos sociais distintos representam uma força vivencial de entendimento mútuo. Quando dizemos que as coisas nos transcendem isso significa que não as possuímos, que em certa medida as desconhecemos, embora possamos afirmar a sua inegável existência, mas só podemos vivenciá-las na medida em que encontrarmos, em nós próprios, o projeto que irá nos unir a elas, e é a partir dessa união que desencadeia o processo de geração, sistematização e difusão dos saberes e conhecimentos (VERGANI, 2007). Situar a Etnomatemática nesse contexto de transcendência significa situarmos seus domínios epistemológicos de maneira inequivocamente globalizante. Se fosse possível situar todos os domínios que compõem a perspectiva transdiciplinar da Etnomatemática, poderiamos representar em algo semelhante a uma rosássea (ver figura nº 03). Nela podemos OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 27 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante perceber que suas pétalas possibilitam um caminho (diálogo) que nos leva às diferentes áreas de conhecimento, ou seja, nos possibilitam visitar outros universos epistemológicos conforme a nossa necessidade de entendimento de um determinado fenômeno. Se fosse necessário localizar o domínio propriamente dito da Etnomatemática nesse contexto, diríamos que ela está (ou se encontra) na fluidez do centro de intersecção das áreas de conhecimento. Fig. 03: Pavimentação dinâmica de saberes e conhecimentos Vale ressaltar que esta é uma representação constituída de vários domínios disciplinares, mas que não significa que a Etnomatemática seja constituída pelo coletivo de disciplinas, mas sim, por um disciplinar coletivo. E isso faz muita diferença, pois a Etnomatemática não é e nem poderia ser caracterizada por apenas uma ou por um conjunto limitado de disciplinas. A partir desse sistema de representação, podemos inferir que nenhum domínio é e nem poderia ser absoluto em si mesmo, ou seja, possuir exclusivamente um carater disciplinar. Podemos perceber que, de uma forma ou de outra, eles estão se relacionando pelo menos com domínios circunvizinhos. Dentro dessa (in)completude, as reticências dentro desse sistema estariam representando aquelas áreas de domínio que não são explicitadas como merecem ser, como por exemplo, os cheiros, os movimentos, os olhares, o som dos movimentos, etc., e que são tão importantes quanto qualquer outra pétala da rossácea. Talvez aí resida o alicerce de transcendência do interconhecimento das alteridades socioculturais, como nos alerta Vergani (2007, p. 09). Transcendência essa que, muitas vezes, é impossibilitada pelo nosso “disciplinarcentrismo”, adquirido durante a nossa formação academicista. A beleza da flor não está numa ou num conjunto de pétalas, mas sim no seu conjunto, inclusive do lugar onde ela se encontra. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 28 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Na perspectiva da Etnomatemática, podemos dizer que nenhum saber ou conhecimento pode ser visto como um fenômeno explicável isoladamente. Não se trata de dividir o processo de geração, sistematização e difusão do conhecimento para entender os aspectos culturais de um grupo, fazendo dele um fenômeno individualizado e redutível a uma de suas partes, mas tomar o próprio grupo social partindo da sua totalidade. Os fatos, artefatos e mentefatos olhados dessa forma tornam-se capazes de coagirem e, sobretudo, de não serem redutíveis a domínios epistemológicos isolados (D’AMBROSIO, 1990, 2001). É claro que os fatos sociais possuem aspectos individuais e até mesmo isolados, mas não é isso que faz deles um fenômeno socialmente significativo. Ao contrário, na perspectiva da Etnomatemática, esses fatos tornam fatos sociais quando eles se tornam socialmente significativos para o grupo. Os fatos sociais, assim, não se reduzem a nenhum fenômeno individual, mas adotam sempre a perspectiva da totalidade onde vários elementos podem tornar-se ou não, socialmente significativo. Nessa perspectiva, como diz Vergani (2007), [...] a primeira característica híbrida da Etnomatemática a levar em conta é o seu empenho no diálogo entre identidade (mundial) e alteridade (local), terreno onde a matemática e a antropologia se intersectam. Mas tecer essas pontes viáveis de comunicação implica que o mundo da matemática se reconheça como “etno” (local), e que os mundos “etno” se reconheçam no domínio da matemática (universal). O vetor da comunicação tem dois sentidos e a linguagem da etnomatemática é uma linguagem de tradução, isto é, reciprocidade (p. 14). No que diz respeito a esses dois domínios epistemológicos, vale ressaltar que o domínio antropológico, por exemplo, não está ancorado exclusivamente nas vertentes cognitiva, cultural ou social. Nela existe também uma âncora da esperança, vivência, convivência e da transcendência humana. Acreditar nelas implica um imenso processo qualitativo no campo da Etnomatemática. Já a matemática, outro domínio predominante da vertente que assumimos neste trabalho, adquire validade à medida que se integra, localmente, em um grupo humano. O seu caráter “universal” é relativizado pelo crédito que o grupo social interessado lhe atribui. Diante dessa complexidade que é o campo epistemológico da Etnomatemática, aqui nesse trabalho serão essas duas vertentes o pano de fundo das discussões. E é sob a égide de um olhar globalizante que buscamos entender/compreender esse processo de geração, sistematização e difusão dos saberes e conhecimentos praticados e experienciados no cotidiano do povo A’uwẽ/Xavante. Nesse sentido, podemos dizer ainda que este é o chão matricial da pavimentação dinâmica do solo que pisamos e que vai sendo refletido em diferentes espelhos suscetível de nos darem outras imagens da matemática A’uwẽ/Xavante. Ou seja, outras tantas validações da OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 29 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante sua existência criativa e formativa reveladora de uma tessitura de (com)fluência e de (com)incidência que amplamente nos conformam e nos incitam cada vez mais prosseguir a entender e compreender o processo de geração, sistematização e difusão da matemática desse povo. 1.1.1 - O Problema e a Trama da Pesquisa Fig. nº 04 – Detalhe do processo de confecção da esteira de dormir - aldeia Pimentel Barbosa. Todo o patrimônio sociocultural A’uwẽ/Xavante, como os mitos, a religiosidade, os cânticos, as danças, os ritos, as cerimônias estão integradas e inter-relacionadas. Os fenômenos se prendem uns aos outros com conexões e articulações coerentes. Mas entender/compreender como essas articulações e conexões se constituem, se organizam e se difundem no meio onde estão inseridas é uma tarefa complexa, tendo em vista a pluralidade de valores e crenças próprios dos indivíduos e/ou grupos e, isso tudo, suscita uma discussão que perpassa pela diversidade de saberes e conhecimentos que reside numa postura transdisciplinar. Nesse contexto, percebe-se que um dos problemas de grande parte dos estudos sobre a produção dos saberes e conhecimentos e, de forma especial, os matemáticos, é retirar esses saberes de seu contexto de produção, dissociando-o de seu sistema de representação simbólica. Quebrando o elo de uma cadeia de significações e acabando por inserir esses saberes em outro sistema de representação, muitas vezes inoperante, capaz mesmo de criar “barreiras epistemológicas” no sentido da compreensão desses objetos e das sociedades que os produzem (D’AMBROSIO, 1999 e 2001). Dessa forma, buscam produzir e promover sua presunção como um saber ingênuo, com pouca ou nenhuma consciência sociocultural. Com uma formulação de compreensão que recai apenas nas suas funções utilitárias ou em aspectos comparativos - o que de modo algum consideramos sem importância - mas que deixam de OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 30 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante lado os aspectos de valor e qualificação internos a seus arcabouços socioculturais. Por enquanto assistimos ainda a brutal desintegração das representações e dos valores dos grupos mais desprotegidos, obrigados a aceitarem silenciosamente ou taticamente (CERTEAU, 2007) o discurso da cultura dominante. Parte dessa relação de superioridade de uma ciência sobre a outra é justificada pelo desenvolvimento de uma ciência que, em detrimento do poder, determina a face tecnológica do progresso. Ciência esta que, enquanto sistema particular de representação, é um subcomponente da cultura; e a técnica, enquanto sistema particular de ação, é apenas a concretização da ciência aplicada à materialidade do nosso quotidiano. E sendo assim, a sua carência tecnológica nunca poderá ser sinônimo de inferioridade cultural. Nesse mesmo sentido, Clastres (2003, p. 209) observa para o fato de que não se pode falar em tecnologia inferior ou superior, mas que só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade. Dessa forma, não seria exagero dizer que a ciência acadêmica limita-se a disciplinar o que o pensamento lógico pode dominar. Não seria exagero também dizer que ela não controla o excesso disponível de significados – o poder irracional - que permite a geração de outros saberes, outros conhecimentos, outras soluções, ou deste imaginário que voluntariamente reclama enquanto princípio de pensamento inovador. Como, por exemplo, o pensamento simbólico ou o pensamento mítico que, por sua vez, possuem o mesmo grau de coerência que o pensamento racional (VERGANI, 1995). Ainda nessa linha de raciocínio, Santos (2005) nos alerta dizendo que é insustentável a situação, por exemplo, de uma ou algumas poucas áreas do conhecimento continuarem a descrever e interpretar o mundo em detrimento de teorias, de categorias e de metodologias desenvolvidas para lidar com os diferentes grupos sociais, quando a maioria dos grupos existentes não só apresenta características e dinâmicas históricas diferentes, como também tem gerado, sistematizado e difundido as suas próprias formas de conhecimentos decorrentes de suas experiências sociais e históricas e produzindo contribuições significativas para as ciências de maneira geral, ainda que remetidas para as margens destas. Nas palavras desse autor, [...] pode-se afirmar que a diversidade epistêmica do mundo é potencialmente infinita, pois todos os conhecimentos são contextuais. Não há nem conhecimentos puros, nem conhecimentos completos; há constelações de conhecimentos. Consequentemente, é cada vez mais evidente que a reivindicação do caráter universal da ciência moderna é apenas uma forma de particularismo, cuja particularidade consiste em ter poder para definir como particulares, locais, contextuais e situacionais todos os conhecimentos que com ela rivalizam (p. 54 - 55). OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 31 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante Pensando nessa constelação de saberes e conhecimentos na perspectiva da diversidade cultural, podemos dizer que todo grupo étnico possui uma maneira específica de gerar, sistematizar e difundir seus saberes (D’AMBROSIO, 2001). Cada cultura atribui significados, sentidos e destinos à existência do grupo, balizando as suas próprias regras e constituindo-se de verdades relativas aos atores sociais que nela aprenderam porque e como existir. Dessa forma, demonstram o quanto a subjetividade do olhar influenciado pelo contexto sociocultural é determinante na elaboração e sistematização dos saberes. Podemos dizer ainda que essa é uma característica que reflete uma concepção de saberes como produção coletiva, onde a experiência vivida e os valores culturais sistematizados se entrelaçam dando singularidade à forma como produzem tais saberes em cada momento da existência do grupo. Ao longo da história da humanidade se reconhecem esforços de indivíduos e de todos os grupos sociais para encontrar explicações, formas de lidar e conviver com a realidade natural, e sociocultural. Nesse sentido, Cardona (1985), vai dizer que: [...] todas as formas de classificação que o homem escolheu para dar ordem e nome àquilo que ele vê em torno a si são substancialmente equivalentes, são todas substancialmente científicas, se mais não fosse que pelo sentido óbvio através do qual o substantivo scientia deriva de scio, ‘sei’, e, portanto toda organização do nosso conhecimento é uma scientia; cada uma responde a uma fundamental exigência do homem, aquela de reecontrar-se, medir-se, dar-se ordem medindo, conhecendo, ordenando tudo o que se encontra em torno, semelhante ou não a ele (p. 10). Na verdade, podemos assumir que essa é uma capacidade dos grupos sociais desenvolvida no decorrer de centenas de anos quando viviam isolados e isso os tornava diferentes uns dos outros. Mas essa não era uma finalidade sentida pelos grupos e muito menos desenvolvida sistemática ou metodicamente para diferenciar uns dos outros. Esse processo foi apenas o mero resultado das condições que prevaleceram durante um período bastante longo. Diante dessas condições, não podemos pensar que isso seja um ponto negativo ou que essas diferenças sejam eliminadas em detrimento das condições encontradas. Na realidade, como preconizou Lévi-Strauss (1989), devemos vitalizá-las, pois o desenvolvimento das ciências se deu a partir dessas diferenças sociais. Sendo assim, atualmente o desafio reside naquilo que denominamos de conectividade cultural, ou seja, de buscar entender/compreender exatamente o que se passa nos demais grupos para que nos tornemos mais humanos e estimulados à criatividade. Na perspectiva da alteridade cultural, podemos dizer que essa revitalização das diferentes formas de saberes renova duplamente o nosso olhar. Por um lado, abre-nos um campo de experiência de convivências que nos alargam a novas dimensões humanas. Por outro, afina e aprofunda a avaliação que fazemos de nós próprios. Mas não nos iludamos, OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 32 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante porque só podemos ter acesso a uma visão interpretativa do outro, refletida na matéria do nosso próprio espelho, ou seja, tudo que sabemos sobre o mundo, mesmo através da ciência, sabemos a partir da nossa visão ou a partir da nossa experiência de mundo, sem as quais os símbolos da ciência careceriam de qualquer significado. Mas o problema não se põe em termos de objetividade, mas em termos de comunicação cada vez mais compreensiva entre alteridade e identidade, entre imagem e espelho (VERGANI, 2002, 2007). De fato, não é possível ignorar a predominância da visão etnocêntrica nas relações entre grupos sociais, entendendo esta visão como sendo um processo no qual as ideias de um indivíduo ou de um grupo sobre a sua forma de apreender e compreender a realidade que lhe cerca é considerada superior a qualquer outra. Assim um determinado grupo social ou indivíduo se vê como centro de tudo e vê/pensa o outro a partir dos seus próprios valores e definições do que é a existência, culminando em muitas das vezes na intolerância e no desrespeito ao outro. Isto causa situações de conflitos, dominação e opressão de um indivíduo sobre o outro ou até de uma sociedade sobre outra. No que diz respeito a essa concepção de anulação do outro, se olharmos para a história de contato dos povos indígenas com a sociedade envolvente, vamos perceber que é uma realidade atual. Isso acontece em todas as áreas do conhecimento, mas se observarmos a matemática acadêmica18, como exemplo, vamos perceber o quanto ela tem se instalado e se destacado nas mais distintas comunidades indígenas em detrimento dos conhecimentos específicos de cada povo. Conforme diz Fernández (2002): Por formação e por hábito, costumamos nos situar na matemática acadêmica, dá-la por su-posta (isto é, posta debaixo de nós, como solo fixo) e desde aí, olhar para as práticas populares, em particular, para os modos populares de contar, medir, calcular... Assim colocados, apreciamos seus rasgos tendo os nossos como referência. Medimos a distância que separa essas práticas das nossas, isto é, da matemática (assim mesmo, no singular) e, em função disto, consideramos que certas matemáticas estão mais ou menos avançadas ou julgamos que em certo lugar podemos encontrar “rastros”, “embriões” ou “intuições” de certas operações ou conceitos matemáticos. As práticas matemáticas dos outros ficam assim legitimados – ou deslegitimados – em função de sua maior ou menor parecença com a matemática que aprendemos nas instituições acadêmicas. Mas, o que ocorre se invertemos o olhar? Que enxergamos se, em lugar de olhar as práticas populares a partir “da matemática”, olhamos a matemática a partir das práticas populares? 19 Quando se observa os malefícios do etnocentrismo, seja matemático ou não, em relação aos saberes dos povos culturalmente distintos percebe-se a importância e a necessidade de 18 Este termo “matemática acadêmica” será usado como sinônimo de “matemática da escola formal”. 19 Trecho da palestra proferida no II Congresso Internacional de Etnomatemática (CD-ROM), realizado no período de 05 a 07 e agosto 2002 em Ouro Preto – MG. OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 33 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante buscar compreender o outro a partir da sua própria visão de mundo. É importante que trabalhos dessa natureza trilhem pelo caminho que vai do etnocentrismo à relativização demonstrando que o “outro” não é melhor nem pior, mas apenas diferente. Nessa perspectiva, Malerba e Santos (1995, p. 09) nos alertam dizendo que “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. A diferença, enquanto qualidade humana nos estimula à criatividade, ao pensamento, à interação, à sociabilização. Dá-nos outras possibilidades do real. A diferença é um elemento que nos proporciona um conhecimento, assim como o reconhecimento do outro e de nós mesmos. Mas há muitas formas de fazer isso, muitas formas de considerar o diferente e a ação do que nos é diferente. O que diferencia os humanos dos demais seres vivos é a sua capacidade de prever e dar respostas aos diversos desafios que a realidade lhes impõe e é na busca de respostas aos desafios, às questões de seu contexto que constroem seus saberes e conhecimentos. Para Paulo Freire, esses saberes e conhecimentos são resultados desse processo, dessa construção coletiva, onde todos ensinam e todos aprendem. Por isso Freire (2005) afirma que “ninguém educa ninguém, educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (p. 78). Analogamente à concepção freireana, podemos dizer que todo ser humano faz matemática. A matemática é indissociável à vida do ser humano e, sendo assim, todo grupo sociocultural possui uma matemática que é capaz suficientemente de resolver os problemas e obstáculos no curso da vida dessas pessoas e possivelmente de grande parte dos problemas do grupo social que pertence. Como nos afirma D’Ambrosio (2001): Em todas as espécies vivas, a questão da sobrevivência é resolvida por comportamentos de respostas imediatas, aqui e agora, elaborada sobre o real e recorrendo a experiências prévias [conhecimento] do indivíduo e da espécie [incorporada no código genético]. O comportamento se baseia em conhecimentos e ao mesmo tempo produz novo conhecimento. Essa simbiose de comportamento e conhecimento é o que denominamos instinto, que resolve a questão da sobrevivência do indivíduo e da espécie (p. 27). Mas, nessa apreensão da realidade e nesse agir no mundo, qual matemática que está na essência do ser humano e que está na essência daquele grupo que ele pertence? Qual o tipo de matemática que cada grupo faz? Em que uma matemática de um determinado grupo difere das demais? Não basta simplesmente reconhecermos as diferenças entre os processos de geração, sistematização e difusão dos saberes e conhecimentos matemáticos, OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 34 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante é preciso compreender também o processo de constituição das diferenças desses saberes, a sua finalidade e como elas se relacionam. No que diz respeito ao contexto do povo A’uwẽ/Xavante não é difícil perceber o quanto essa tensão entre a maneira própria de ser do povo e a forma como ela é vista pelos indivíduos de fora se faz presente. Tensão essa que surgiu com o contato e que perdura até os dias atuais. Mas se olharmos para todo o tempo existencial desse grupo social, muitas questões podem ser levantadas, tais como: quais as lógicas que regem os saberes e conhecimentos do povo A’uwẽ/Xavante? O que ocorre se invertermos o olhar, como nos questiona Fernandez (2002)? O que enxergaremos se, em lugar de olhar os saberes A’uwẽ/Xavante a partir de um referencial externo qualquer, olhássemos esses saberes a partir das suas próprias práticas e experiências? Como esses saberes se articulam na relação com os saberes alheios? Os saberes etnomatemáticos do povo contribuem para a sua resistência frente às diferentes formas de silenciamento e/ou anulação vinda de fora? Esses são alguns dos questionamentos que ao longo desse trabalho buscaremos entender/compreender e, na medida do possível, respondê- los a partir dos princípios socioculturais do povo A’uwẽ/Xavante. 1.1.2 - Cultura, Comunicação e Espacialização Fig. nº 05 - Dança dos padrinhos – ato pedagógico da formação dos Wapté - que acontece periodicamente durante o período de reclusão dos adolescentes no Hö. Aldeia Ẽtẽnhiritipá. Pensar a cultura é pensar como se produz, como se sistematiza e como se compartilha valores, princípios, verdades, significados no interior de um grupo social específico, e deste com outro(s) grupo também específico. Podemos dizer que cultura é teia, é trama que se tece no cotidiano das relações sociais dos indivíduos e dos grupos. Portanto, não existe uma sociedade, uma economia, uma política, uma religião e uma cultura. Existem teias e tramas ordenadas e ordenadoras de significados e de orientação de conduta e das relações entre os homens e a natureza e entre eles. Tal concepção nos conduz a refletir sobre as significações OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 35 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante que estamos dando, aos trançados que estamos fazendo, as teias que estamos construindo a partir dos eixos balizadores da Etnomatemática. Nessa perspectiva, pensar a cultura então é, consequentemente, pensar o processo de geração, sistematização e difusão dos saberes e conhecimentos A’uwẽ/Xavante numa perspectiva relativa ou plural, de forma a propiciar o respeito às diferenças do povo, ou seja, respeitar as diferenças dentro do seu grupo social é uma necessidade vital e emergente para o multiculturalismo, ainda mais quando pensamos na forma como ocorreu/ocorre a relação entre os povos indígenas brasileiros com a sociedade envolvente. Nesse sentido, acreditamos que discutir as múltiplas formas de geração, sistematização e socialização dos saberes A’uwẽ/Xavante, evitando posturas etnocidas, é um recurso válido para se fazer perceber que assim como não há verdades absolutas, da mesma forma não existe, e nem poderia existir, uma única visão de mundo capaz de definir, interpretar e compreender a realidade social e o sentido desta como um todo. Existem, no entanto, verdades construídas de acordo com a história, o local, a época e a cultura de cada povo, fruto da incessante busca humana pelo conhecimento, que é necessário à sua sobrevivência e fundamental ao indivíduo que busca conhecer a origem e o significado de tudo que lhe cerca para melhor resolver os problemas encontrados. Indivíduo este que carrega consigo as características culturais do grupo a que pertence, ou seja, a pessoa é a “célula” vital da qual se difundem todas as relações culturais. Relações essas que são estabelecidas a partir dos valores e princípios comuns dos indivíduos e da convivência com o outro e com o que lhe cerca. De certa forma, podemos dizer ainda que este seja um dos fatores que nos possibilita estudar grande parte dos fenômenos culturais de um grupo social. Se olharmos por outro prisma, vamos perceber também que o indivíduo não está sozinho nesse processo e que não é uma ilha fechada em si mesma e, sendo assim, é levado não só a refletir sobre si mesmo, mas também, a olhar para fora de si e, consequentemente, estabelecer relações com o natural e o sobrenatural. Dessa forma, o indivíduo é preso na malha cultural do grupo a que pertence e é submetido às normas, valores e princípios estabelecidos pelo próprio grupo. Assim, podemos dizer que uma das maneiras de compreendermos o outro e, consequentemente, o seu processo de geração, sistematização e difusão de saberes do grupo é observando os artefatos e mentefatos (D’AMBROSIO, 1990) utilizados por este grupo para tecer a própria malha cultural. Segundo Santos et al. (1975), dentro do processo de tecelagem da malha cultural de um determinado grupo social, podemos encontrar vários mecanismos que contribuem para a sua confecção, mas o sistema de comunicação é uma das suas principais ferramentas para esse OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 36 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante empreendimento. Para essas mesmas autoras, esse sistema se subdivide em comunicação horizontal (verbal) e comunicação vertical (não verbal), que por sua vez possuem funções distintas, mas que se inter-relacionam e se complementam. Nas palavras dessas autoras, a comunicação horizontal é entendida como sendo: [...] a forma como as mensagens são transmitidas de seres humanos para seres humanos. Esse sistema de comunicação ocorre por meio de elementos visuais, auditivos e táteis, convencionando uma imagem mental através destes elementos que podem também ser transformados em escrito (p. 17). Já a comunicação vertical para essas mesmas autoras é entendida como sendo: [...] a edição do som, do gesto e do movimento, não tem espaço a preencher e prescinde de qualquer interpretação ou individualidade. É a leitura de uma linguagem universal que não pode se alterar nem em ordem de tempo nem em ordem de espaço, uma vez que seu mundo de significados se encontra no relacionamento “forma-conteúdo” e não no pensamento convencional do usufrutuário. Cada conteúdo pertence a uma única forma, com possibilidades de ilações, mas não de modificações (op. cit. p. 16 - 17). Dentro do campo da comunicação vertical, Santos et al. (1975) distinguiram três tipos de editoração não verbalista: o mito, o rito e a cerimônia. Nesse sistema de comunicação o rito constitui a base editorial e a cerimônia a sua exteriorização. Para Polia (1994, p.130) o mito, do ponto de vista cultural, nesses contextos da comunicação assume duas funções distintas e essenciais ao povo. A primeira no sentido vertical – o controle exercido por aqueles que têm o poder religioso e político (controle ético sobre a sociedade); e o segundo, no sentido horizontal – o controle exercido entre os pertencentes à mesma tradição, já que o comportamento ético é julgado por adesão às normas tradicionais. Ou de maneira mais ampla, podemos conceber o mito de acordo com Ribeiro, D. (1986, p. 43), como sendo um “relato impregnado de fé, sobre as ações de personagens que criaram ou transformaram o mundo, a vida e a cultura e implantaram a ordem social vigente”. Dessa forma, pode-se dizer que o mito é a primeira tentativa de controlar e explicar a realidade. O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no início de tudo. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito são deuses ou heróis. Por esta razão, suas proezas constituem mistérios e, sendo assim, o homem comum não poderia conhecê-los se não lhe fossem reveladas. O mito é a história do que se passou no início, a narração daquilo que os deuses ou os seres dotados de poderes fizeram no começo. Revelar um mito é proclamar o que se passou na origem. Uma vez revelado, o mito torna-se verdade, funda-se uma verdade absoluta (ELIADE, 1992). É assim porque foi assim no inicio! É assim porque foi dito pelos nossos OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 37 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante antepassados!, declaram os A’uwẽ/Xavante quando buscam justificar a validade de suas narrativas e suas tradições religiosas. Ainda segundo Eliade (1992), O mito proclama a aparição de uma nova “situação” cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma “criação”: conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser. É por isso que o mito é solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente, do que se manifestou plenamente (p. 85). Na perspectiva da Etnomatemática, podemos dizer que o mito é uma das principais âncoras no processo de geração, sistematização e difusão dos saberes e conhecimentos, pois, segundo Eliade (1992): A função mais importante do mito é, pois, “fixar” os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação, etc. Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer se trate de uma atividade social, econômica, cultural, militar etc. (p. 87). Ainda nesse contexto e também com a mesma importância que o mito, o rito é uma manifestação cultural que está ligada diretamente ao mito e é através dele que o indivíduo comunica consigo mesmo, com os outros, com a sociedade, com a natureza e com o sobrenatural. Santos et al. (1975, p. 18) definem essa manifestação, o rito, como sendo um conjunto de leis ordenadas, racional e experimentadas, as quais, utilizando veículos específicos e finalidades particulares, permitindo o manifestar-se de uma mensagem de comunicação vertical. Para essas autoras, são os ritos que formam os códigos das regras estabelecidas para cada tipo de comunicação vertical. São realizados para definir e dividir papéis sociais em universos altamente totalizantes, onde as relações sociais se multiplicam e todos se ligam com todos. Neste sistema, e aqui já incluímos o sistema A’uwẽ/Xavante, a teia de relações sociais tem uma realidade maior do que o indivíduo, de modo que separar papéis é um ponto básico, realizado com o auxílio dos rituais, sobretudo dos ritos de passagem. Sendo assim, como diz Caillois (1979), [...] o rito realiza o mito e permite a sua vivência. É essa a razão por que se encontram freqüentemente ligados: na verdade, a união é indissociável e, de fato, a separação sempre foi a causa da sua decadência. Separado do rito, o mito perde, se não a sua razão de ser, pelo menos o melhor da sua força de exaltação: a capacidade de ser vivido. Passa a ser literatura apenas, como a maior parte da mitologia grega na época clássica, tal como os poetas a transmitiam, irremediavelmente falsificada e normalizada. (p. 25). Em todos os grupos sociais, a passagem – denominada como rito de passagem ou rito de iniciação – da infância para a idade adulta é um momento que requer de cada sociedade um conjunto de práticas sociais associadas às referências culturais do próprio grupo, que OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 38 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante implicam na eleição de estratégias e objetivos específicos da pessoa que quer se formar. Segundo Gennep (1977), dentre as estratégias de passagem podemos distinguir três categorias especiais: os ritos de separação, os ritos de margem e os ritos de agregação. Mas vale ressaltar aqui, que estas três categorias não são igualmente celebradas em um mesmo grupo social nem em um mesmo conjunto cerimonial, pois cada um deles possui características e funções distintas. Os ritos de separação, por exemplo, são mais celebrados nas cerimônias dos funerais; os ritos de agregação, nas do casamento. Quanto aos ritos de margem, por exemplo, na gravidez, no noivado, na iniciação, se reduzem ao mínimo na adoção, no segundo parto, no novo casamento, na passagem da segunda para a terceira classe de idade, etc. Na prática, estamos longe de encontrar uma linha divisória que determina onde termina uma categoria e onde começa a outra entre esses três grupos, quer no que diz respeito à sua importância, quer no grau de elaboração que possui. O noivado constitui realmente um período de margem entre a adolescência e o casamento. Mas a passagem da adolescência ao noivado comporta uma série especial de ritos de separação, de margem e de agregação à margem. E a passagem do noivado ao casamento supõe uma série de ritos de separação da margem, de margem e de agregação ao casamento. Esta mistura é também verificada no conjunto constituído pelos ritos da gravidez, do parto e do nascimento. Embora procure agrupar todos estes ritos com a maior clareza possível, podemos dizer, de acordo com Gennep (1977), que essa classificação é impossível de ser feita como acontece em outras áreas, como por exemplo, na botânica. [...] estou longe de pretender que todos os ritos de nascimento, da iniciação, do casamento, etc. sejam apenas ritos de passagem. Porque, além de seu objetivo geral, que consiste em assegurar uma transformação do estado ou passagem de uma sociedade mágico-religiosa ou profana para outra, estas cerimônias têm cada qual sua finalidade própria. Assim, as cerimônias do casamento admitem ritos de fecundação, as do nascimento comportam ritos de proteção e de previsão, as dos funerais, ritos de defesa, as da iniciação, ritos de propiciação, as da ordenação, ritos de apropriação pela divindade, etc. Todos estes ritos, que possuem uma finalidade especial e atual, justapõem-se aos ritos de passagem ou se combinam com estes, às vezes de maneira tão íntima que não se sabe se tal rito é, por exemplo, um rito de proteção ou um rito de separação. Este problema levanta-se, entre outros, a propósito das diversas formas dos ritos chamados de purificação, os quais podem ser uma simples suspensão do tabu, e, por conseguinte retirar somente a qualidade impura, ou ser ritos propriamente ativos, que dão a qualidade de pureza (p. 31). Qualquer rito é codificado, por isso é realizado num determinado momento e lugar, executado por determinados indivíduos pertencentes a uma determinada cultura e é através das cerimônias que esses códigos são difundidos entre os indivíduos pertencentes ao mesmo grupo. Cerimônia aqui nesse contexto será entendida como sendo o conjunto de OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 39 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante representações visuais, auditivas e, muitas vezes, táteis, que utiliza veículos especiais com finalidades particulares, organizadas de maneira a manifestar “textos” de informação. Ou seja, as cerimônias são os elementos constituintes de um ritual e formam a gramática e a sintaxe destes textos (SANTOS et al., 1975, p. 21-27). Nessa perspectiva, uma das funções das cerimônias é assimilar os indivíduos à ordem social propiciadoras do “nós”, do coletivo e que, ao mesmo tempo em que integra buscando homogeneizar, diferencia cada um por suas características pessoais, por gênero, por idade, garantindo o equilíbrio da vida em sociedade. As cerimônias realizam-se, então, no interior da sociedade, e de acordo com a sua organização, visando um certo controle sobre a existência social, de modo a assegurar sua reprodução por formas sociais coletivamente difundidas. As cerimônias, nessa forma primeira, são modalidades de ajustamento psicossocial que resulta numa forma de controle social, com base na organização social e no horizonte cultural partilhado pelo grupo. Nesse sentido, podemos considerar as cerimônias como uma estratégia social de manipulação da consciência, da vontade e da ação dos indivíduos, com a finalidade de modelar as personalidades humanas dos membros do grupo social. No contexto do povo A’uwẽ/Xavante, percebe-se que são esses elementos da comunicação vertical (mitos, ritos e cerimônias) repensáveis pelo equilíbrio das relações entre os humanos; entre os humanos e a natureza; entre os humanos e o sagrado; e entre o sagrado e a natureza, dando assim forma e sentido na maneira de “ver o mundo” e de “estar no mundo”. É um equilíbrio que é mais que garantia de futuro, é certeza de permanência. Dentre as diversas manifestações culturais do povo A’uwẽ/Xavante o mito, o rito e as cerimônias são as principais manifestações responsáveis pelo seu legado de saberes, por isso existe uma relação constante entre si, e isso torna possível a comunicação entre as pessoas, a sociedade, a natureza, o sobrenatural e que de certa forma são os pilares das demais manifestações do grupo. Nessa mesma perspectiva da comunicação horizontal/vertical, podemos dizer ainda, com base em Certeau (2007), que esses três elementos são os principais responsáveis pela espacialização dos lugares constituintes do mundo A’uwẽ/Xavante. Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidade de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. O espaço estaria para o lugar como a palavra quando falada, isto é, quando percebida na ambigüidade de uma efetuação, mudada em um termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo), e modificado pelas transformações devidas a proximidades OS ARTEFATOS E MENTEFATOS NOS RITOS E CERIMÔNIAS DO DANHONO 40 Por Dentro do Octógono Sociocultural A’uwẽ/Xavante sucessivas. Diversamente do lugar, não tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio” (p. 202). Já na perspectiva da Etnomatemática que estamos adotando, podemos dizer que essas três manifestações socioculturais do povo - o mito, o rito e a cerimônia – estão relacionadas diretamente com as vertentes internas do programa etnomatemático, ou seja, os mitos estão relacionados aos mentefatos, ao processo de geração dos saberes e conhecimentos; enquanto que os ritos estão relacionados com o processo de sistematização, validação; e as cerimônias estão relacionadas ao processo de difusão, concretização, ou seja, aos artefatos. Dessa forma, podemos dizer também que é através destas três formas de manifestações culturais e de espacialização que o povo A’uwẽ/Xavante guarda e vigia os saberes e conhecimentos que invocam a fundação do mundo e sua cultura singular. Saberes estes tecidos com a mesma perfeição refletida na arte e na técnica e repletos de texturas sutis e discretas, que revelam e ocultam. Saberes e conhecimentos estes que obedecem a uma lógica que é colocada a serviço de um pensamento responsável pela complexidade (MORIN, 2001) do real e pela singularidade da vida. O pensamento complexo parte dos fenômenos simultaneamente complementares, concorrentes, antagônicos, respeita as coerências diversas que se associam em dialógicas ou polilógicas e, por isso, enfrenta a contradição por vias lógicas. O pensamento complexo é o pensamento que quer pensar em conjunto as realidades dialógicas/polilógicas entrelaçadas juntas (complexos) (p. 429). Olhando dessa perspectiva da complexidade partimos da premissa de que, para conhecer/compreender as matemáticas do povo A’uwẽ/Xavante, faz-se necessário entendermos/compreendermos como essas manifestações