unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP FRANCISCO VANDERLEI FERREIRA DA COSTA REVITALIZAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA INDÍGENA: interação entre sociedade e gramática ARARAQUARA – S.P. 2013 FRANCISCO VANDERLEI FERREIRA DA COSTA REVITALIZAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA INDÍGENA: interação entre sociedade e gramática Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Ensino Aprendizagem de Línguas: Análise dos procedimentos linguísticos desenvolvidos pelos falantes no ensino/aquisição da língua materna. Orientadora: Profª. Drª. Cristina Martins Fargetti ARARAQUARA – S.P. 2013 Ferreira da Costa, Francisco Vanderlei Revitalização e ensino de língua indígena: interação entre sociedade e gramática / Francisco Vanderlei Ferreira da Costa – 2013 354 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Cristina Martins Fargetti l. Língua tupi. 2. Língua indígena. 3. Ensino de língua Indígena. 4. Revitalização da língua. 5. Comunidade tupinambá. I. Título. FRANCISCO VANDERLEI FERREIRA DA COSTA REVITALIZAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA INDÍGENA: interação entre sociedade e gramática Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Ensino e Aprendizagem de Línguas: Análise dos procedimentos linguísticos desenvolvidos pelos falantes no ensino/aquisição da língua materna. Orientador: Profª. Drª. Cristina Martins Fargetti Data da Defesa: 23/05/2013 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Profª. Drª. Cristina Martins Fargetti Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Membro Titular: Prof. Dr. Wilmar da Rocha D’Angelis Universidade Estadual de Campinas Membro Titular: Profª. Drª. Rosane de Andrade Berlinck Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Membro Titular: Profª. Drª. Gladis Massini-Cagliari Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Membro Titular: Profª. Drª. Mônica Veloso Borges Universidade Federal de Goiás Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À Odete Gomes Pereira (mamãe), sem a visão futurista desta mulher, eu não teria a garra para este trabalho. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, irmãos e demais familiares. À minha orientadora Cristina Martins Fargetti, aceitou acompanhar-me neste trabalho e, sempre muito presente, foi decisiva nos encaminhamentos adotados nesta empreitada. Aos indígenas Tupinambá, eles me aceitaram em suas comunidades e colaboraram muito com este trabalho. Posso citar alguns nomes: Cacique Valdelice, Cacique Valdenilson, Cacique Kátia, Cacique Sinval, Cacique Juvenal, Cacique Babau, Cacique Alício, entre outras lideranças Tupinambá, todas empenhadas na luta do grupo. Glicéria Tupinambá, Dona Maria e seu Liro de Serra do Padeiro. Também Macica, liderança de Acuípe de Baixo, com sua família que inúmeras vezes me recebeu em sua casa. Professores Katu, Amatiri (Gersonilda), Fernanda, Driele. A diretora da Escola Tupinambá de Olivença Cleuza com sua equipe. Aos vários velhos e velhas que se dispuseram a falar sobre suas experiências, fato que possibilitou a coleta de dados e consequentemente esse trabalho. Aos vários amigos que incentivaram muito para a realização deste trabalho. Especialmente João Veridiano, por suas leituras atentas; Solange Lustosa, sempre mantendo contato para animar a produção da tese. A José Daniel da Silva, aluno de computação, parceiro na coleta de dados e na elaboração de Software Livre para devolver as palavras coletas à escola. Oração ao sol Oração tupinambá, recolhida no século XVI Grande espírito, cuja voz ouço nos ventos e cujo alento dá vida a todo mundo, ouve-me! Sou pequeno e fraco, sou pequena e fraca, necessito de tua força e sabedoria. Deixa-me andar em beleza e faz com que meus olhos possam sempre contemplar o vermelho e o púrpura do pôr-do-sol. Faz com que minhas mãos respeitem tudo o que fizeste e que meus ouvidos sejam aguçados para ouvir a tua voz. Faz-me sábio, faz-me sábia para que eu possa compreender as coisas que ensinaste ao meu povo. Deixa-me aprender as lições que escondeste em cada folha, em cada rocha. Busco força, não para ser maior que meu irmão, que minha irmã, mas para lutar contra meu maior inimigo – eu mesmo, eu mesma. Faz-me sempre pronto, faz-me sempre pronta para chegar a ti com as mãos limpas e o olhar firme a fim de que, quando a vida apagar, como se apaga o poente, meu espírito possa estar contigo sem se envergonhar. RESUMO Este trabalho discute a interação da Comunidade Tupinambá com a língua indígena Tupi/Tupinambá, língua que se encontra em processo de revitalização. Para isso, adota- se a postura de iniciá-lo trazendo a própria comunidade Tupi, com suas várias nomeações, isso nos séculos XVI e XVII, indicando as particularidades desse vasto e heterogêneo grupo que ocupava grande parte do litoral da região que seria nomeada de Brasil. Esse primeiro estudo tem a função de localizar a ancestralidade reclamada pela comunidade Tupinambá, mostrando o espaço do grupo Tupi na construção da História nacional. Em seguida, o trabalho volta-se para a comunidade Tupinambá do final do século XX e início do século XXI. Nesta etapa, já mostra a comunidade atual com sua luta para ser reconhecida oficialmente, a luta pela terra e pelos seus direitos, os quais continuam sendo desrespeitados. A História do grupo continua sendo feita, assim é importante mostrar que ele não ficou parado no tempo enquanto as autoridades brasileiras não os reconheciam sequer como índios. Eles continuaram a existir, mantendo sua cultura e sendo sujeitos de suas próprias mudanças étnicas. Por meio de seu movimento organizado, obtiveram as vitórias conquistadas. A partir da localização deste grupo, foi possível direcionar este estudo para a língua que ele pretende revitalizar. Desta forma, revitalização é o assunto seguinte da tese. Nessa seção, discute- se a situação das línguas no mundo, trazendo as políticas internacionais que estão em voga para tentar frear a morte de línguas. Dessas, atinge-se o cenário nacional e local, chegando ao grupo Tupinambá e expondo os motivos da escolha pela revitalização de uma língua indígena, também explorando o porquê dessa língua ser aquela mais estudada no Brasil, o Tupi. Nessa parte, verifica-se a forte ligação da língua escolhida com a identidade da comunidade Tupinambá, pois há fortalecimento do grupo advindo da volta da língua Tupi/Tupinambá. Assim o assunto seguinte é o levantamento dos dados da língua indígena ainda presente na comunidade Tupinambá, coletados com Tupinambá das três comunidades envolvidas: Olivença, Serra do Padeiro e Patiburi. A discussão final traz o ensino da língua indígena na comunidade Tupinambá. Nesta parte, o estudo concentrou-se nas escolas e nos profissionais que possuem a incumbência de ensinar a língua escolhida, além de verificar os materiais didáticos e paradidáticos disponíveis nas salas de aula. A soma destes temas apresenta a situação da língua indígena na comunidade Tupinambá do Sul e Extremo-Sul da Bahia. Palavras-chave: Língua Tupi/Tupinambá, Comunidade Tupinambá, Revitalização de língua, Ensino de língua Indígena, Língua indígena. ABSTRACT This thesis intends to discuss the interaction with the Tupinambá Community and the Tupi/Tupinambá language which is nowadays in a process of revitalization. In order to do so the Tupinambá started the revitalization inside the community, which has several names. These names came from the XVI and XVII centuries indicating particularities of this large and heterogeneous ethnic group whose territory is a large part of the seaside. This place nowadays is named Brasil. This first study intends to reach the Tupinambá Community claimed ancestry, in order to expose the Tupi group participation on the National History development. Afterwards the thesis intends to study the Tupinambá community between the last years of the XX Century and the beginning of the XXI Century. During this period which shows the community and its struggle in order to be officially recognized as an indigenous group, besides that it shows the struggle for the land and the rights which are not respected so far. The history of this group is still on development, therefore it is important to show that the Tupinambá history is not part of the ancient history, although the Brazilian decision makers do not recognize this group as indigenous. The Tupinambá still exist keeping their culture and acting as masters of their own ethnic changes. They have achieved many victories through their organized movement. From the Tupinambá localization, it was possible to stablish objectives to study the language which this people intends to revitalize. Therefore, revitalization is the subject of this thesis. In this section it is discussed the situation of languages all over the world, reviewing the current international politics to avoid the death of endangered languages in the national and local territory. The Tupinambá was the chosen one. The thesis intends to show the reasons to the indigenous language revitalization, besides that analyzes the reasons why Tupi is the most studied language in Brasil. In this section, it is verified the strong bonds between the chosen language with the Tupinambá community identification because the language revitalization strengthens the Tupi/Tupinambá identity. The subsequent subject is the search for data from indigenous language (words) still present in the Tupinambá community. These data were collected from 3 (three) communities: Olivença, Serra do Padeiro e Patiburi. The final discussion is the indigenous language teaching in the Tupinambá community. In this section the research focused on the schools and teachers who have the responsibility to teach the chosen language, besides that it has verified the textbooks and other teaching materials available in classrooms. These themes present the indigenous language situation on the Tupinambá community from South and Far South of Bahia. Key-words: Tupi/Tupinambá language, Tupinambá Community, Revitalization of a language, Indigenous Language Teaching, Indigenous Language Ilustrações Figura 1-Extensão Territorial dos Povos Tupi-Guarani no Século XVI. Métraux (1928). ......... 26 Figura 2- Construção de malocas voltadas para o mesmo núcleo, onde se veem mulheres dançando em torno do prisioneiro Hans Staden. Staden (2009). ................................................ 34 Figura 3- Tupinambá, figura apresentada por Jean de Léry, cronista do século XVI. (LÉRY, 2009) ........................................................................................................................................... 56 Figura 4- Fonte: Fundação Nacional do Índio – Coordenação Técnica Local de Ilhéus ............ 73 Figura 5- Mapa das Comunidades Tupinambá. Fonte: Fundação Nacional do Índio – Coordenação Técnica Local de Ilhéus. ....................................................................................... 74 Figura 6- Cacique Valdelice na X Caminhada Tupinambá – 2010. ............................................ 80 Figura 7- Esquema das retomadas em Serra do Padeiro. Fonte: Teti (José Aelson) Tupinambá de Serra do padeiro. Desenho inicialmente feito a lápis. ................................................................. 91 Figura 8- Mapa das línguas em perigo no mundo. Fonte: www.unesco.org (Acesso agosto de 2011) ......................................................................................................................................... 107 Figura 9- Mapa das línguas em perigo no Brasil. Fonte: www.unesco.org (Acesso em 06 agosto de 2011) ..................................................................................................................................... 113 Figura 10- Quadro das línguas indígenas ainda faladas no Brasil. Fonte: Aryon Rodrigues (2005) ........................................................................................................................................ 129 Figura 11 - Escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença ................................................ 233 Figura 12 - Núcleo Gravatá ....................................................................................................... 234 Figura 13 - Núcleo Itapoã.......................................................................................................... 235 Figura 14 - Núcleo de Taba Jairy .............................................................................................. 236 Figura 15 - Salas de aulas da Escola de Serra do Padeiro ........................................................ 237 Figura 16 - Construção da escola definitiva em Serra do Padeiro ............................................ 238 Figura 17 - Posto de saúde, sala de aula e cantina da Escola de Patiburi .................................. 243 Figura 18 - Construção de sala de aula (visão frontal e traseira) .............................................. 244 Figura 19 - Cartilha Tupy utilizada nas escolas ........................................................................ 277 Figura 20 - Apostila utilizada na escola .................................................................................... 278 Figura 21 - Apostila utilizada na escola .................................................................................... 279 Figura 22 - Texto extraído do livro Método Moderno de Tupi Antigo de Eduardo de Almeida Navarro ...................................................................................................................................... 281 Figura 23 – Exemplo de avaliação de Tupi aplicada na escola ................................................. 286 Figura 24 – Espaço para guardar livros na Escola Indígena Patiburi ........................................ 287 Figura 25 - Tradução de música para o Tupi............................................................................. 290 Sumário INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 13 1. A COMUNIDADE TUPI OU TUPINAMBÁ NOS PRIMEIROS SÉCULOS DE CONTATO COM NÃO-ÍNDIO ................................................................................................. 24 1.1 Localização do povo Tupinambá ................................................................................. 24 1.2 Habitantes Tupinambá ................................................................................................ 28 1.3 Organização nos grupos locais .................................................................................... 30 1.4 Subsistência Tupinambá .............................................................................................. 35 1.5 A guerra para a sociedade Tupinambá........................................................................ 39 1.6 Língua Tupi ou Tupinambá .......................................................................................... 46 1.7 A pessoa Tupinambá ................................................................................................... 54 2. A SOCIEDADE TUPINAMBÁ NO FINAL DO SÉCULO XX E NA CONTEMPORANEIDADE........................................................................................................ 57 2.1 Auto-denominação e denominação oficial ....................................................................... 60 2.2 Território, localização espacial e população .................................................................... 67 2.3 Caciques e lideranças ........................................................................................................ 77 2.4 Economia ........................................................................................................................... 83 2.5 Retomadas......................................................................................................................... 87 2.6 Língua ................................................................................................................................ 94 3. REVITALIZAÇÃO DE LÍNGUA INDÍGENA ................................................................................... 99 3.1 Línguas em Perigo ........................................................................................................... 105 3.2 Línguas ameaçadas de extinção no Brasil ....................................................................... 110 3.3 Revitalização de línguas .................................................................................................. 119 3.4 Revitalização da língua indígena para a comunidade Tupinambá .................................. 130 4 A DESCRIÇÃO DE ELEMENTOS LINGUÍSTICOS CARACTERÍSTICOS DOS TUPINAMBÁ DO SUL E EXTREMO-SUL DA BAHIA COLETA DE DADOS ........................................................................ 140 4.1 Descrição da língua coletada entre os Tupinambá do sul e extremo-sul da Bahia dados ............................................................................................................................................... 161 4.2 Palavras e língua indígena ............................................................................................... 183 4.3 Indicações fonéticas/fonológicas e gramaticais dos dados coletados ............................ 193 4.3.1 Fonemas vocálicos orais ........................................................................................... 194 4.3.2 Fonemas vocálicos nasais ......................................................................................... 196 4.3.3 Fonemas consonantais ............................................................................................. 199 4.4 Nome da língua indígena mais conhecida no Brasil e o Tupinismo ................................ 209 5. ENSINO DE LÍNGUA INDÍGENA ..................................................................................... 215 5.1 Educação Escolar Indígena .............................................................................................. 215 5.2 Ensino de Língua Indígena na comunidade Tupinambá .................................................. 248 CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 292 Referências Bibliográficas ......................................................................................................... 300 ANEXOS ..................................................................................................................................... 308 ANEXO A Entrevista com Cacique Babau ........................................................................... 309 ANEXO B Entrevista com seu Liro ....................................................................................... 318 ANEXO C Entrevista com Dona Maria mãe de Babau ........................................................ 323 ANEXO D Entrevista com Núbia ......................................................................................... 327 ANEXO E Entrevista com Pedrísia ....................................................................................... 335 ANEXO F Entrevista com Cacique Valdelice ....................................................................... 343 13 INTRODUÇÃO O debate de língua indígena na região Nordeste do Brasil, a qual apresenta uma realidade que ainda espraia por estados de outras regiões brasileiras como Minas Gerais e Espírito Santo, exige que seja iniciado mostrando que a língua não é condição básica para o reconhecimento de um grupo como indígena, ou seja, falar uma língua indígena não indica, por si só, que um grupo seja índio. Apresentado por esse viés, essa afirmativa parece nula; entretanto, ao invertê-la, ganhará novos significados. Assim, não falar uma língua indígena não indica por si só que uma comunidade seja considerada não-índia. Nesta situação, encontram-se muitos dos grupos indígenas brasileiros e quase todos os da região Nordeste do Brasil. As diversas etnias do Nordeste brasileiro, com exceção dos Fulni-ô, não falam mais uma língua indígena, têm no português sua primeira e única língua, sendo que essa substituiu a língua dos ancestrais nas interações com índios e não-índios. Esse fato descontextualizado não consegue justificar essa pesquisa, pois o ato de não falar mais a língua não pode ser usado, e não será aqui usado, para aferição de indianeidade. Ser índio não tem na língua sua condição única de existência, essa será a premissa deste pesquisador. A direção adotada neste trabalho considera que a língua é um importante dado cultural e uma não pode ser substituída por outra sem algum tipo de perda, entretanto, não considera que a perda da língua signifique igualmente a perda da cultura. Os grupos possuem diversas maneiras de reagir aos ataques sofridos e mesmo nesta região do país, a qual sofreu inúmeras violações dos direitos dos povos ameríndios, eles conseguiram manter traços culturais específicos, que os diferenciam da comunidade envolvente. Ver a relação do grupo com sua língua não significa que se deve simplesmente considerar a morte de uma língua como um fator natural, nem ver a 14 língua como um organismo vivo que tem nascimento, amadurecimento e morte. Significa, muito mais, pensar que a morte da língua está ligada a políticas externas a ela. As interações dos grupos decidem o futuro das línguas. Políticas podem ser adotadas e sempre o foram para dar status ou enfraquecer determinados falares. A substituição de uma língua é uma escolha, na maioria das vezes, com uma única opção. Adotar a língua de uma maioria ou de um grupo economicamente mais forte é uma estratégia quase sempre imposta e não adotada livremente. Assim, considerar que a língua indígena, ao deixar de ser falada, leva junto consigo a cultura de um grupo representa muito mais um problema que uma possibilidade de olhar as línguas das comunidades indígenas nordestinas. A direção mais acertada parece configurar outra plataforma, aquela que mostra que mesmo sem a língua, o grupo permanece indígena e detém o direito de tentar voltar a falar um idioma que considere mais diretamente ligado à sua ancestralidade. Isso aponta para a revitalização de uma característica social que o grupo adquiriu o direito de reivindicar. Como a perda foi forçada, não permitir políticas que deem apoio para aprendizagem dessa língua de construção identitária étnica significa forçar novamente um caminho, principalmente, porque a própria ciência, a Linguística, não conseguiu provar que a revitalização de uma língua desta região não é possível, até porque não se dedicou a isso. Inicialmente a direção dos trabalhos científicos deve ser de buscar demonstrar a possibilidade da revitalização. Na situação nordestina, as línguas passam por um processo de revitalização ainda mais complexo, não havendo falantes em quase todas elas. Nesta parte do país, falar em revitalização e ensino de língua é pensar em uma construção que passa muitas vezes pela necessidade de busca detalhada em várias fontes para se construir um novo falar. As etnias deixaram de falar a língua do grupo e adotaram o português, isso dentro 15 de contextos, quase sempre violentos. Agora querem fazer o movimento inverso, sem, no entanto, abandonar o português. Pretendem ser bilíngues. Como já existem casos de revitalização de uma língua que funcionaram, e outros que estão em processo, sem dados conclusivos, é válido e científico posicionar o processo de retorno de um língua como uma questão ainda em estudo, que precisa ser melhor explorada para oferecer subsídios para a tomada de decisão do grupo. Não que a ciência consiga frear ou acelerar o processo que hoje acontece em muitas etnias, que é a busca da língua indígena deixada de ser falada, pois os grupos estão construindo alternativas, mas seria interessante a Linguística não ignorar as demandas que surgiram e surgem nas comunidades, quando essas adotam políticas próprias com poucos recursos e apoios técnicos. Desta maneira, esta tese busca estudar a revitalização da língua Tupi1 (ou Tupinambá) pela comunidade Tupinambá do sul e extremo-sul da Bahia, buscando debater as ações educacionais adotadas por esse grupo em prol desse objetivo. Ou seja, esse grupo possui uma discussão sobre voltar a falar a língua Tupi, ao mesmo tempo e em consequência disso, criou em suas escolas disciplina que versa sobre esse idioma, entretanto, não possui em seus quadros professores que o falem. Assim, esse ambiente escolar, que responde a uma necessidade da comunidade, é um dos espaços deste estudo. Somam-se a ele a própria língua indígena que ainda se mantém em parte com os 1 Nesta tese, será adotado o termo “Tupi” para definir a língua que está em processo de revitalização. Essa escolha se deve ao fato de que a maioria das pessoas ouvidas sobre a revitalização da língua sempre afirmou querer voltar falar a língua Tupi e não Tupinambá, o termo concorrente. Assim, mesmo que este estudo considere todos os debates sobre a língua Tupi, Tupinambá e Geral, ainda se percebe a importância do nome que é dado pelo próprio grupo, sendo que assim ele reflete de forma mais adequada e completa o que o povo espera. Entretanto, durante as pesquisas é perceptível que os estudos feitos pelos professores Tupinambá, com auxilio de linguistas, direcionam-se para nomear a língua de Tupinambá. Os professores de Olivença, Ilhéus, estão mais propensos a nomear a língua por esse segundo nome, considerando-o mais atual. Mesmo assim, as pesquisas de campo, pelas especificidades desse grupo, não indicam que essa tendência deverá ser mantida; o grupo de profissionais da educação ainda precisará fazer um longo trabalho para convencer as lideranças. Assim ainda não é seguro afirmar qual das duas nomeações ficará, então adotar aqui uma ou outra não representa a escolha para a adoção da aqui colocada, indica somente o respeito ao que foi visto com a maioria, fato que pode ser alterado ou mantido independentemente da pesquisa. Essa discussão aparecerá nestas duas formas nas seções da tese, como direito político da comunidade na terceira seção e como o debate acadêmico apresenta na quarta seção. 16 Tupinambá mais velhos e as propostas e motivos do grupo para voltar a falar a língua indígena mais estudada no Brasil. Os dois tópicos centrais do estudo são a revitalização e o ensino da língua Tupi. Todavia, o Tupi aqui não se trata somente da língua descrita nos séculos XVI e XVII. É esse, acrescido do que já há na fala dos mais velhos da própria comunidade. Essa é somente uma das várias variáveis que surgem quando se inicia um estudo desta natureza. Espera-se que várias outras surjam, fato que tem acontecido. A metodologia adotada para esse estudo é bastante diversificada. Ele mesmo exigiu isso. Assim talvez seja interessante já falar da metodologia ligando-a às seções da tese. Isso se deve ao fato de que o estudo exigiu diferentes etapas e durante cada etapa surgiram exigências de confirmação de dados. Assim a primeira seção versa sobre os Tupinambá da época da colonização portuguesa, grupo vasto e que ocupou grande parte do território nacional a beira mar. Os Tupinambá do século XXI são diversos daqueles do início da colonização portuguesa, entretanto, é nestes que está presente grande parte da referência que aqueles buscam para afirmação cultural e política. Escutam-se muito as comparações que o grupo faz entre si e os outros de tempos atrás. Considerando que toda comunidade muda e uma que sofreu muita pressão externa não poderia ser diferente, não se espera encontrar hoje na Bahia os Tupinambá do século XVI, o grupo atual é Tupinambá, tem ligações com aquele grupo de séculos atrás, mas, sem dúvida, apresenta traços culturais com muitas diferenças. Para essa seção, em virtude da quantidade de material disponível, o trabalho foi bibliográfico, havia muitas leituras para serem efetuadas. A quantidade de dados históricos, linguísticos e culturais disponíveis, inclusive com bons materiais sendo reeditados, contribuiu ao oferecer os dados que esta seção precisaria. O objetivo desta 17 parte é mostrar como era esse grupo e como foi o contato com o não-índio. Mostrando inclusive traços culturais que ainda podem estar presentes no grupo atual, então, não fazia parte do objetivo, ao escrever sobre esse grupo, a comparação com o grupo atual, mas mostrar o espaço da etnia Tupinambá na história do Brasil e suas lutas contra as ocupações de suas terras, fato que ainda hoje se repete. Já a segunda seção ocupou-se com a comunidade Tupinambá atual, mostrando sua luta para voltar a ser reconhecida enquanto indígena e, também, mostrando que após o reconhecimento a luta continua. Os desafios enfrentados encontram no preconceito sua grande barreira. Mostrar onde está esse grupo, seu tamanho, seus traços culturais, para tudo isso já era necessária uma pesquisa etnográfica, sendo que os dados observados eram comprovados por meio de entrevistas com lideranças. Assim, para saber sobre a língua, a qual esperavam voltar a falar, era importante, além da observação, também questionar, porque as dúvidas que a observação levantaria poderiam ser sanadas na entrevista. Essa metodologia trouxe bons resultados, foi uma somatória que esclareceu muitas dúvidas. Essas entrevistas são analisadas tanto na seção dois quanto na seção três da tese. Como as perguntas já nasceram de um ambiente de inserção do pesquisador, elas trazem embutidos detalhes que a observação já havia respondido, sendo, então, complementares para a observação. Isso traz um aprofundamento para o debate. Não invalida a observação, pois tais perguntas só surgiram após a observação, após a etnografia com o grupo. Essa somatória é interessante para um ambiente em que a questão de pesquisa não está somente no próprio grupo, mas na ancestralidade dele, sendo que essa história do grupo é de imenso conhecimento acadêmico. Além disso, como para a língua indígena voltar, tema desta tese, é importante considerar a língua que existia há quatro ou cinco séculos, a comunidade lida com esses dois elementos, o 18 antigo em livros e o atual com os mais velhos. Essa soma traz questões que precisam ser explicitadas e não somente observadas. Na seção três, a questão da revitalização com suas várias faces surge. Nela é debatida a situação atual das línguas do mundo, com um afunilamento passando pelas línguas brasileiras, até chegar ao grupo Tupinambá com a língua Tupi. O processo global de morte de língua precisa ser explanado, pois a realidade local está sendo perpassada pela realidade global e vice-versa. O interesse internacional por línguas em perigo demonstra o quadro atual das línguas minoritárias, há muitos programas internacionais para revitalização de língua e também estão em franco desenvolvimento programas nacionais sobre o mesmo assunto. Não será esse, contudo, o enfoque dessa seção, a qual se restringirá a mostrar o quadro atual de perigo em que muitas línguas se encontram, a discussão sobre revitalização e o processo de revitalização adotado pela comunidade Tupinambá. A quarta seção tem a finalidade de mostrar os dados linguísticos presentes na própria comunidade, os quais são nomeados internamente e externamente de “língua de índio”. Nessa seção, estão descritos elementos da língua indígena ainda presente na comunidade Tupinambá do Sul e Extremo-Sul da Bahia. São dados coletados junto principalmente aos mais velhos das aldeias, e entre esses, alguns adultos não velhos também colaboraram. A coleta aconteceu nas três comunidades – Olivença, Serra do Padeiro e Patibury2 – onde pessoas que conheciam a língua eram indicadas. O conteúdo dessa seção exigiu que sua metodologia estivesse presente na introdução dela mesma. Isso foi necessário em decorrência da relação íntima entre a metodologia e a análise, e nesta seção estão muito mais próximas. A coleta de dados exigiu especificidades bastante singulares. Separá-la da análise que será empreendida pode prejudicá-las, pois 2 A divisão política do grupo será apresentada na seção dois. 19 ambas caminham paralelas. As ações empreendidas para coleta de dados são responsáveis pelos encaminhamentos adotados para analisá-los, assim, colocar um ao lado do outro trouxe mais clareza para o entrelaçamento de dados e a análise. A quinta seção direcionou-se para o ensino da língua indígena dentro da comunidade, tendo a escola como um espaço privilegiado para a divulgação e ensino da língua indígena, em que há profissionais com carga horária específica para a lida com essa prática. Nessa seção, fica bastante palpável como a língua indígena tem ganhado espaço político dentro do grupo e na comunidade envolvente, deixando inclusive o lugar de morta para adentrar no espaço de uma língua que tem muito a contribuir na luta do grupo. As lutas indígenas levaram os grupos a acreditarem na possiblidade de recuperar característica cultural muito visível nas relações interetnicas: a língua. As ações adotadas pela etnia Tupinambá para formalizar na escola essa necessidade do grupo, constituem essa seção, a qual mostra a escola indígena Tupinambá dentro de um contexto de escola indígena com suas várias lutas em comum e com suas, talvez muito mais, especificidades. A metodologia é novamente etnográfica, com dados coletados a partir da convivência com o grupo pesquisado. A tese ainda conta com uma conclusão e com Referências Bibliográficas, e algumas entrevistas com lideranças e idosos da comunidade. À guisa de introdução ao que se irá desenvolver a seguir, pode-se dizer que a metodologia de pesquisa adotada como carro chefe no levantamento de dados foi a pesquisa qualitativa. Essa “trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” (MINAYO, 2011, p. 21). Dá espaço para levantamentos menos exatos e quantificáveis, mas que possuem real poder para alavancar explicações seguras para dados sociais com entornos largos e fora de grandes grupos quantificáveis. Esse universo de signicados ajudou a construir a coleta das 20 informações para todos os capítulos. Lidar com um grupo com tantas especificidades pode ser impossível se o intuito for buscar números fora do contexto de seus significados. Não se desencoraja, com isso, o uso de dados quantitativos, tanto que aparecem nesta tese, mas mostraram que precisam, para este estudo, estarem dentro das especificades de uma metodologia mais abrangente. Para Pires (2010), a metodogia não pode estar presa a hierarquias e a dogmas, ela precisa se libertar de elementos que a coloca como uma prisioneira de métodos e técnicas: “A liberdade criadora quanto às regras de métodos não se obtém por via anárquica: ela se domestica na própria prática da pesquisa” (p.44). Assim não foi a priori a escolha da metodogia, mas durante a coleta de dados se percebia que era necessária uma metologia que abrisse caminho para novas maneiras de olhar os dados, pois eles abriam uma imensidão de possibilidades com muitas alternativas explicativas. A criatividade colocada não é referente somente ao pesquisador, mas muito mais aos contextos sociais que são inerentes aos grupos pesquisados. Surgem tantas conotações e direções que fechá-las em grupos estanques as impediriam de expressar as riquezas que portam de seus grupos. Álvaro Pires (2010, p. 53) ainda coloca que uma pesquisa qualitativa não deve apenas estar voltada para mostrar algo escondido, algo que não é visto, mas que será revelado pela pesquisa. Muitas vezes o que mais deve ser debatido está na superfície dos dados, é óbvio, mas não é desnudado o suficiente para tornar-se elemento de discussão. Muitas pesquisas centram-se na descoberta como se essa fosse a procura por algo quase invisível, senão invisível. É fato que muitas pesquisas trazem elementos a tona, elementos submersos, mas elas podem também esclarecer dados que estão às claras, mas que não têm sua significação plenamente explicada, ou que ainda a significação não está completamente encaixada no objetivo que a gerou. Os dados são 21 então capazes de revelar não somente o escondido, mas o presente e reconhecio como externo. Mais do que uma técnica de coleta de dados, e menos do que um novo paradigma de análise e de interpretação, o procedimento qualitativo traz, poderíamos dizer, uma nova visão, um novo questionamento permitindo reconceituar as problemáticas sociais. (GROULX, 2010, p. 102) Groulx confirma que a posição de qualitativa não pode ser encarcerada dentro de uma técnica de pesquisa, porque não se trata disso. Não é uma nova metodologia, sendo mais rico vê-la dentro de um campo macro de possibilidades ao estudar determinado processo. As problemáticas sociais exigem outros procedimentos que não são atendidos em estatísticas, por exemplo, não que essas não possam contribuir em um estudo, mas não abrangem o campo macro de debates que nascem dentro de uma coleta de dados em uma sociedade. Os quais se particularizam e levam a várias interpretações, pois muitas vezes se entrelaçam, mas muitas vezes de distanciam. Este jogo é interessante, mas não é visto em sua plenitude fora de uma visão qualitativa. A preocupação com a metodologia deve ser somente para evitar problemas com a análise dos dados, tornando o trabalho de pesquisa mais claro para os leitores. Não se deve, portanto, transformar a pesquisa em um excessivo compartilhamento de metodologias, trazendo desordenadamente diversas teorias metodológicas. Luna (2010) utiliza todo o seu capítulo de livro para demonstrar o outro lado dessa preocupação. Na parte inicial do parágrafo é descrita uma grandiosa preocupação com métodos e técnicas envolvidos na pesquisa, fato que leva muitos a classifacar um pesquisador com essas características de Positivista. Em outra direção também é complicado, não apresentar métodos pode dificultar o entendimento dos objetivos alcançados. Nesta direção que Sérgio Luna procura desafiar seus leitores, mostrando que não se deve usar a metodologia como um limitador de pesquisa, mas se precisa reconhecer sua 22 importância. A preocupação inicial do autor é afirmar que faz pesquisa “calcada sobre uma metodologia experimental” (p. 25), contudo não se considera positivista. Esta tese foi uma pesquisa que certamente não pode ser nomeada de positivista, pois está ligada a uma metologia que conseguiu coletar os dados oferecendo segurança para a análise teórica, mantendo equilíbrio ao escolher uma metodologia não fechada e pronta para dados sociais. Esta pesquisa desenvolvida com os Tupinambá foi do tipo etnográfica qualitativa. A pesquisa etnográfica, para André (2005, p. 25), trata-se de um tipo muito usado pelos antropólogos, isso em estudo dos grupos sociais. Obviamente para uma pesquisa linguística que tem um grupo social como o sujeito da pesquisa, essa metodologia será muito bem vinda. A convivência com o grupo social mostra com mais clareza os processos que estão em funcionamento, tornando o pesquisador menos estrangeiro aos movimentos no grupo. Essa observação interna também facilita a aplicação de métodos complementares como entrevista e questionários, já que as questões levantadas serão mais familiares ao pesquisador. Erickson (1984) considera a etnografia como um processo guiado pela visão. A observação é central para levantamento dos dados da pesquisa: O etnógrafo procura descrever o grupo social da forma mais ampla possível – sua história, religião, política, economia e ambiente –, pois parte do princípio de que descrição e compreensão do significado de um evento social só são possíveis em função da compreensão das inter-relações que emergem de um dado contexto. (Godoy, 1995, p.28) Essa pesquisa trabalha com essa forma ampla, mostrando que a revitalização da língua indígena é um passo grande, o qual para manter-se equilibrado necessita do envolvimento de toda a sociedade Tupinambá. Esse envolvimento do todo mostra que não é possível chegar a conclusões seguras com metodologias que não englobem as várias características que surgirão durante a pesquisa. Assim, a metodologia que se 23 mostrou mais profícua para a coleta de dados e o tratamento dado a eles foi a pesquisa qualitativa de cunho etnográfico. O acompanhamento e as observações das discussões do grupo mostraram mais que palavras em uma língua, vislumbraram uma relação de apropriação e uso de uma língua indígena em ambientes internos e extenos à comunidade. Assim, a escolha da metodologia obedeceu às exigências dirimidas pela ação de coleta de dados, a partir da qual, foi-se desenhando qual técnica e método melhor ofereceria a liberdade necessária para se chegar aos dados e, com clareza, analisá-los. Com a visão geral do grupo e com a escolha da metodologia, os instrumentos foram surgindo: o levantamento de material bibliográfico sobre os Tupi dos séculos XVI e XVII; as entrevistas informais acompanhadas de outros índios para coleta de palavras da língua indígena; as entrevistas com lideranças, professores e caciques; coleta de provas dadas na aula de Tupi; documentos disponíveis sobre as aulas e as observações no convívio com a comunidade. Estes instrumentos forneceram os dados e, em sua somatória, conseguiram dar segurança para a análise. Com a metodologia escolhida, a pesquisa de campo foi iniciada e a contextualização da pesquisa ganhou direção, mostrando, inclusive, a divisão interna necessária para a tese. A qual se segue. 24 1. A COMUNIDADE TUPI OU TUPINAMBÁ NOS PRIMEIROS SÉCULOS DE CONTATO COM NÃO-ÍNDIO O povo Tupinambá, como já é de conhecimento geral, mantêm contato com o não-índio desde a chegada destes ao Brasil. Foi um contato que trouxe muitas mudanças para índios e não-índios. Pode-se afirmar que comunidades indígenas e não indígenas não passaram incólumes pelos séculos de contato. Olhando a sociedade indígena e não-indígena em território brasileiro verificam-se influências múltiplas advindas desse novo contato, ainda hoje nomeado de descoberta. Não poderia ser diferente. A influência dos costumes e línguas das sociedades tradicionais afetou a vida dos não-índios europeus que chegaram a terras brasis, também o inverso aconteceu. Nesta seção, não serão ainda tratadas as mudanças, mas o povo Tupinambá do início da colonização brasileira, sem, no entanto, estar falando de uma só etnia, pois muitas vezes os cronistas do século dezesseis usam essa denominação para falar de um grupo maior, no qual estariam agrupadas outras comunidades, portanto “parece-me lícito, portanto, o uso do têrmo Tupinambá para indicar os grupos tribais assim designados nas próprias fontes. Sabe-se atualmente que de fato êles constituíam grupos tribais distintos, espacialmente segregados e solidàriamente diferenciados.” (FERNANDES, 1948. p. 17). Assim, nesta primeira seção, a intenção é trabalhar com as comunidades que foram nomeadas pelos primeiros cronistas como Tupinambá ou Tupi, mostrando a localização, as interações e a língua deste grupo. 1.1 Localização do povo Tupinambá Hans Staden ([1557] 2009), já em sua bastante citada obra de 1557, fala da localização do povo Tupinambá dos quais foi prisioneiro, afirmando que este povo vivia perto do mar, mas tendo um território que adentrava várias milhas para o interior, rodeados por outras etnias, das quais muitas eram inimigas. O autor faz questão de 25 mencionar a quantidade de lutas empreitadas por esse grupo, mostrando que se tratava de um povo preparado para defender seu território e ainda conquistar novos espaços. Tanto que o próprio aprisionamento de Staden fora realizado fora de um combate, mas dentro de uma ação organizada de enfrentamento aos portugueses. A destreza com arco e flecha é outra questão que esse autor procura descrever com detalhes, mostrando que esses guerreiros eram muito bons no manuseio destes objetos. O exemplo trazido pelo autor também é esclarecedor do valor funcional destas armas, pois não eram somente usadas para atacar os inimigos, faziam parte da caça e pesca, com o objetivo de angariar alimento para o grupo. Como conseguiam localizar os animais nas árvores e dificilmente não os pegavam, demonstravam como eram arqueiros de primeira. Transferindo isso para a guerra, certamente eram perigosos em posse de um arco e flecha. Quanto ao local em que viviam e como plantavam, Hans Staden esclarece como cortavam árvores e depois as queimavam para tornar a terra própria para o plantio. Sendo que ao considerar aquele local não mais produtivo ou seguro, o abandonavam e iam para outros lugares. Isso revela que esse povo era migrante, exigindo um espaço territorial grande para manterem seus costumes. Nestes deslocamentos poderia haver alguma etnia para ser desalojada. Voltando à localização espacial dos Tupinambá, Fernandes (1948) detalha a localização destes nos estados do Rio de Janeiro, da Bahia, do Maranhão e do Pará, além de fazer alguns comentários sobre Pernambuco. No mapa, fornecido por Métraux (1928), é fácil verificar que os povos Tupi-Guarani ocupavam vasta extensão do território hoje brasileiro. Todo o litoral do Nordeste, região do Rio de Janeiro e São Paulo, além do interior do Estado, indo em direção à região pertencente à Espanha. 26 Figura 1-Extensão Territorial dos Povos Tupi-Guarani no Século XVI. Métraux (1928). 27 Os costumes destes grupos eram ecoados por grande parte do espaço português no Novo Mundo, com isso não é difícil imaginar que esse grupo certamente representou um marco na conquista do além-mar português. Assim, enquanto eram aliados dos europeus conquistadores/invasores, não representando um obstáculo, foram mantidos, quando não aceitaram as imposições e se rebelaram, tornaram-se um obstáculo forte a ser vencido para que o empreendimento de uma colônia pudesse ser colocado em ação. O Nordeste, com seus terrenos que logo viraram plantação de cana de açúcar (DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992), foi um local que para satisfazer aos interesses do colonizador teve os indígenas expulsos de seus locais tradicionais de morada e este entregue a novos donos, para cumprir novas funções, das quais os grupos indígenas não faziam parte, a não ser enquanto trabalhadores. Junto ao fato de serem muitos, eram fortes guerreiros, prontos para defenderem seu território, isso contra qualquer invasor. Como o novo habitante destas terras não estava disposto a dividir o território com o antigo morador, índio e não-índio envolveram-se em disputa. Os Tupinambá eram bem localizados, conheciam seus territórios e sabiam bem se administrar, isso talvez justifique o fato de os europeus terem sido categóricos em não só vencer a guerra, mas tentar exterminar o índio inimigo. O reflexo disso foi a quantidade de confrontos com mortes para ambos, sendo que o indígena, além de ser retirado de sua morada, foi obrigado a abrigar-se em novos lugares, os quais também em seguida não mais seriam dele. As páginas precedentes mostram que o contacto com os brancos teve efeitos letais para os Tupinambá. Primeiramente, foram desalojados de suas posições na biosfera pelos portugueses. Em conseqüência, abandonaram o litoral e as regiões mais férteis de seu primitivo habitat. Mais tarde precisaram tentar migrações mais extensas, abandonando as terras do Rio de Janeiro e da Bahia. Os grupos tribais Tupi que se fixaram no Maranhão, no Pará e na Ilha de Tupinambarana tiveram posteriormente o mesmo destino. Em todos esses lugares, os que persistiram em contacto com os brancos foram exterminados lentamente (FERNANDES, 1948, p. 53). 28 Portanto, foram tratados como inimigos pelos portugueses, e o fato de terem um bom espaço na costa brasileira de então, certamente, fez com que a perseguição do não-índio fosse ainda mais voraz. Não era somente a briga com o morador da terra, era uma guerra pelas riquezas que esse novo continente poderia trazer. A grande extensão ocupada pelos grupos Tupi era fértil, tinha madeira, era possuidora de riquezas que interessavam aos novos moradores. 1.2 Habitantes Tupinambá O número de habitantes do grupo Tupi é bastante representativo, são muitos moradores. Levando em consideração a grande extensão ocupada, a quantidade de aldeias, os cronistas acabaram por fazer vários levantamentos. Só índios aldeados na Bahia, ainda no século XVI, seriam cerca de 40.000 (FERNANDES, 1948). Levando em consideração que vários estavam foragidos e muitos foram assassinados, a quantidade de Tupi nesta região era muito maior. Esta quantidade estava dentro das fronteiras impostas pelos missionários, e como nestes espaços havia tentativas de romper com as tradições e a imposição de novas maneiras de agir e interagir, muitos indígenas saíram destes aglomerados. Fernandes também ressalta que com toda essa quantidade, ainda naquele século, desceram da Bahia mais 20.000 para os missionários e continuou-se a transportar indígena para suprir a carência das lavouras, em número próximo a 2.000 por incursão. Este mesmo autor mostra que a marcha deste povo fugindo das agressões no Rio de Janeiro era composta por mais de 30.000 indivíduos. Isso, portanto, era pós- lutas, pois mesmo com um número alto de mortes ocorridas durante as batalhas, nas quais morriam guerreiros, mulheres e crianças, ainda restava um número alto de pessoas 29 que, sem alternativa, migravam para outras terras à procura de lugar mais tranquilo para viver. Já no Maranhão e Pará, as estimativas de Fernandes (1948) contabilizam, sempre mostrando que são abaixo do número real, em torno de 35.000 Tupi. Outro número alto. São indígenas advindos de outras migrações por alguns consideradas tendo origem mais ao Sudeste do Brasil e para outros vindos da Bahia. De qualquer maneira, representa um número alto de habitantes que teriam muitas contribuições para com o local, mas que também representavam uma dificuldade social, pois uma quantidade significativa de pessoas exige uma quantidade adequada de terra, isso para poderem viver e a falta de espaço sempre geraria novas guerras, acabando por envolver também os europeus. Outra contribuição interessante de Fernandes (1948) mostra que os desequilíbrios provocados pela falta de víveres eram numerosos. E em conseqüência da elevada concentração demográfica em certas áreas do litoral, a taxa de mortalidade da população nativa aumentou sensivelmente. A relação é bastante direta, falta de alimentos não aceita alta concentração de pessoas, esse encontro é desastroso, só podendo resultar em ações desesperadas. Como antes da chegada dos portugueses, essas questões eram resolvidas, as sociedades indígenas não ficaram à mercê da situação, resultando em vários massacres. Foram desalojados de suas terras e envolvidos em um grande número de guerras, tanto que tiveram que sair do Rio de Janeiro e Bahia, deslocando-se para outros estados, porém as perseguições continuaram, resultando em um quase extermínio já no século dezoito. Como era um grupo que estava oferecendo muita resistência aos colonizadores, declará-lo extinto era maneira para enfraquecê-lo e desarticulá-lo. Ou seja, mesmo que ficasse no litoral submetendo seus costumes aos missionários ou à 30 escravidão portuguesa, ou ainda migrasse para o sertão e outros locais no litoral, não representaria segurança para os europeus, pois era um grupo inteiro que não aceitava o projeto europeu. Fernandes (1948, p. 55) indica que os números quanto à população indígena não são satisfatórios. Os dados fornecidos estão ligados a grupos específicos e são advindos de contato direto de algum cronista. Situação que após cinco séculos não mudou muito. Os censos continuam ineficientes em relação à população indígena brasileira, as políticas ainda não conseguem dar conta de dados seguros quanto ao número das comunidades indígenas. Por isso, é possível pensar que nos séculos dezesseis e dezessete a falta de estatísticas deixava os grupos indígenas à mercê de políticas do conquistador. Assim, como o grupo Tupi foi considerado um obstáculo para os objetivos da coroa, várias políticas de extermínio e escravização foram praticadas. A quantidade de habitantes indígenas Tupinambá na Bahia, segundo ainda Fernandes, é pouco precisa, pois os cronistas conheciam mal esse local. Para o Maranhão é mais precisa devido à quantidade de visitas oficiais. Mas sempre se levava em consideração a quantidade de grupos locais, às vezes inferindo sobre a quantidade geral de indivíduos. “Deve-se, portanto, abandonar por impraticável a possibilidade de estabelecer conjecturas seguras ou prováveis sobre o número de grupos locais Tupinambá existentes nos séculos XVI e XVII.” (FERNANDES, 1948, p. 59). A falta de dados quanto à quantidade de grupos gera uma incerteza quanto à quantidade de membros. Também outra semelhança com dados atuais. Por outro lado, a falta de dados contundentes facilita a manipulação dos números que são apresentados. Facilita inclusive a criação de dados. 1.3 Organização nos grupos locais 31 Pode-se iniciar essa discussão mostrando o posicionamento que os velhos recebiam na comunidade. Jean de Lery3 ([1578] 2009) discute com bastante precisão essa questão, mostrando que tanto o homem quanto a mulher mais velhos casavam4-se com mais jovens. A escolha pelo parceiro mais jovem revela a preocupação desta sociedade indígena com a perpetuação de seus costumes e modos de vida, sendo que não raro havia líderes com muitas mulheres e elas conseguiam, para surpresa dos cronistas, espaços definidos e sem brigas. Cada uma tinha sua roça e sua responsabilidade para com o homem, criança e grupo com que vivia. Isso aparece de outra maneira também, os principais (lideranças) tinham várias mulheres, todas com suas ocupações definidas, porém havia ciúmes entre elas, principalmente em direção da primeira que era normalmente a mais velha e que tinha mais privilégios (GABRIEL SOARES DE SOUSA5, [1587] 1971). A importância dada aos velhos também era percebida na ida para a guerra, neste caso eram os mais velhos, mas não anciões, que, por já terem mudado várias vezes de nome em decorrência de ter capturado e comido inimigos, podiam ir à frente de um grupo (LERY, [1578] 2009). Essa é mais uma demonstração da importância dada à experiência, pois somente quem podia provar seu valor ocuparia determinados espaços. Neste caso, as mulheres mais velhas também podiam repassar valores às mais jovens. Esse respeito para com o conhecimento que é adquirido durante anos de vivência mostra como o povo Tupi construiu uma base grupal com ocupações específicas para seus membros, dando à experiência um local privilegiado. 3 Cronista do século XVI. 4 A escolha desta palavra não consegue abarcar o que era essa relação, certamente para eles essa aproximação não representava o mesmo significado que é para sociedade não-índia. Não estava relacionado, por exemplo, a convívio para toda a vida, mesmo que várias vezes isso pudesse acontecer. Parece estar muito mais relacionado, isso quando acontecia entre mais jovens com mais velhos, à necessidade de perpetuar o modo de vida daquele grupo. 5 Cronista do início da colonização portuguesa. 32 A liderança principal da aldeia também era alguém com experiência, tanto que Gabriel Soares de Sousa ([1587] 1971) afirma com segurança que em cada aldeia havia um cabeça, que deveria ser índio antigo e aparentado, para que os outros que vivessem nestas casas possuíssem respeito. O tratamento respeitoso era dirigido a alguém que prestou anteriores serviços à comunidade; esses normalmente já haviam ido para guerra e mostrado a bravura esperada das lideranças. Esse mesmo autor esclarece que os mais velhos eram quem despedaçava o “contrário” capturado e morto para ser comido. Após a morte do prisioneiro, os velhos cortavam-no para ser então assado, sendo que “velhos e velhas eram os que mais comiam”. Fernandes (1952, p.156) mostra que para esse grupo um “homem alcançava o máximo de “poder6” depois de quarenta anos”. Com essa idade ele poderia ocupar posições sociais privilegiadas “os indivíduos podiam ser chefes de malocas, de grupos locais, líderes guerreiros e pajés.”. A valorização da experiência e a bravura do guerreiro se somavam para formar os grandes líderes. Para esse autor, era esse o ápice da vida masculina, portanto o tujuáe era, então, a soma de valores reconhecidos pela comunidade. Eram insígnias que marcavam o sujeito e concediam direitos e, claro, mais deveres. O jovem Tupinambá para ter uma companheira em sua responsabilidade teria que provar possuir condições para isso. Por exemplo, quantos inimigos teria comido. Como para comer o inimigo, ele teria de adquirir certa idade para antes ir à guerra e, então, comer aquele capturado por ele, isso tinha como conseqüência a idade avançada para poder casar. Os grupos locais Tupinambá constituíam na maloca um importante espaço social (FERNANDES, 1948; STADEN, [1557] 2009). Neste local, várias famílias eram 6 Marcação do autor. 33 organizadas. Nele vivia um grupo grande de pessoas, em um espaço sem divisórias, e cada família possuía sua incumbência dentro do grupo. Não só cada família, mas cada membro devia cumprir sua função naquele grupo. E naquele espaço, portanto, a maloca imprimia deveres aos seus moradores e estes também cumpririam atividades relacionadas ao grupo local (ou aldeia). Como a extensão do grupo local dependia de vários fatores, entre eles quantidade de membros e fertilidade da terra, a maloca era o espaço mais restrito dentro deste grupo. A manutenção da maloca era atribuição geral. O crescimento vegetativo de uma família resultaria na necessidade de construção de uma maloca, na qual a nova liderança deveria ter cerca de quarenta homens e mulheres que o acompanhariam (HANS STADEN, [1557] 2009). Esta forma de organização da maloca era uma maneira de manter um grupo capaz de defender seu espaço e contribuir com o fortalecimento do grupo maior, ou seja, a aldeia estaria melhor defendida se cada maloca tivesse uma quantidade adequada de habitantes, sem mencionar que essa quantidade também prevenia a necessidade de construção de muitas moradias. Era um espaço com regras até para sua constituição. Desta forma, a coletividade possuía primazia, pois mesmo quando se queria sair de um grupo e construir outro espaço, esse novo espaço também seria coletivo e teria funções sociais garantidas. A maloca constituía um espaço micro dentro do macro, representado pela comunidade indígena. Os cronistas mostram sempre mais de uma dessas habitações por comunidade, sendo que o centro de cada comunidade estava localizado no espaço compreendido entre essas ocas. Cada uma era direcionada para o mesmo local, gerando um terreiro coletivo (FERNANDES, 1948) e neste aconteciam os vários rituais que a comunidade Tupinambá fazia. Os desenhos estampados na obra de Hans Staden mostram bem a funcionalidade desta maneira de formar as comunidades, em que o 34 núcleo, espaço entre as malocas, era usado pelos Tupinambá de muitas maneiras, tanto para os rituais de antropofagia quanto para a defesa contra inimigos. Figura 2- Construção de malocas voltadas para o mesmo núcleo, onde se veem mulheres dançando em torno do prisioneiro Hans Staden. Staden (2009). O grupo Tupinambá, como já mencionado, possuía muitas comunidades, estas podiam distanciar-se bastante umas das outras, não havendo um tamanho uniforme padrão, nem uma distância mínima entre elas. Como suas terras não conheciam os limites hoje impostos, havia outros elementos que definiam estes distanciamentos, por exemplo, a capacidade de expulsar outras etnias, e também a capacidade de negociação (ou luta) com portugueses. Inclusive a quantidade de moradores por maloca e/ou comunidade era variável. Fernandes (1948) mostra bem essa inconstância ao esclarecer que vários cronistas apresentam distâncias diferentes entre as comunidades indígenas Tupi, fato que leva à conclusão de distâncias diferentes entre comunidades deste grupo. A movimentação do grupo acontecia em prazos não regulares, tanto que Fernandes (1948, p. 95) traz o seguinte quadro. 1) De cinco a seis meses (Léry, p. 209); 2) De ano a ano (Pe. Navarro, Cartas Avulsas, pgs. 50-51); 3) De três em três anos (Evreux, pgs. 71-72); 35 4) De três a quatro anos (Luís da Grã, Novas Cartas, pg. 186; Gabriel Soares, pg. 366; Cardim, pg. 271; Salvador, pg. 56); 5) De quatro a cinco anos (Nóbrega, Novas Cartas, pg. 105) 6) De cinco a seis anos (Abbeville, pg. 222); Fernandes coloca esses dados, mas prefere corroborar com o prazo de três a quatro anos, entretanto, sugere que essas fontes são muito confiáveis, inclusive com autores que viveram bastante tempo no país. Esses dados revelam também que vários fatores influenciavam no tempo de permanência de um grupo em um local específico. A migração é um fator socialmente influenciado, questões culturais, de guerra e de subsistência contribuíam para mudanças do grupo. Os grupos migravam, mas não com tempo definido. Os movimentos de conquista foram sempre bastante importantes, tanto antes quanto depois da chegada dos brancos (FERNANDES, 1948). A expansão do espaço dos Tupinambá, por meio das migrações, é fator relevante para conhecer os costumes deste grupo. Também a guerra como ação reguladora, organizadora e expansionista para essa comunidade, levando inclusive a novos espaços, será discutida posteriormente. Esses indígenas conheciam muito bem seu terreno, isso pode ser explicado por toda essa movimentação que empreendiam. Conseguiam movimentar-se também fora dos espaços conhecidos, pois sabiam orientar-se dentro da floresta. Um exemplo de Sousa ([1587] 1971) mostra que um indivíduo após fugir do Rio de Janeiro, onde estava preso, deslocou-se para a Bahia, revelando que seu senso de localização e orientação era bastante desenvolvido. Visto que se deslocava pelo mato para não ser novamente capturado, não bastava somente conhecer os locais, mas era preciso orientar-se de alguma forma a conseguir chegar a seu grupo na Bahia. 1.4 Subsistência Tupinambá 36 A quantidade de bens produzidos por essa comunidade advinda da caça, pesca e raízes era a suficiente para sua subsistência. A palavra ‘bens’, portanto, não dá conta da economia desse povo, mas é válido mantê-la pela proximidade que faz para com a produção atual das comunidades, que não conseguem distanciar-se da necessidade de bens produzidos fora dos grupos. A caça e a pesca eram função essencialmente masculina; a plantação e colheita da mandioca e outros produtos agrícolas, essencialmente feminina. O preparo da terra para plantio ficava a cargo dos homens (FERNANDES, 1948). As funções eram divididas, e havia justificativa para cada uma delas, mas não eram exclusivas de cada grupo, eram bem adequadas para cada membro da sua sociedade. Não é preciso ir aos cronistas para concluir que as mulheres trabalhavam mais tempo na produção de alimentos, tendo como recompensa a proteção que era obrigação masculina e essa atribuição cobrava mais tempo deles. Essa comunidade adotou horários dedicados também à roça, para a qual ambos, homens e mulheres, começavam cedo e iam até bem após o almoço trabalhando na terra; somente almoçavam após o trabalho, quando voltavam para a aldeia. Os homens roçavam, limpavam e queimavam e as mulheres plantavam a roça. Os homens buscavam a lenha e as mulheres acendiam e mantinham o fogo (SOUSA, [1587] 1971). Era uma troca social que não se distribuía em classe social, mas organizava atividades por grupos. Métraux (1928) mostra que o povo Tupinambá era essencialmente agrícola, retirando da terra quase a totalidade do necessário. Eram amigos da lavoura (SOUSA, [1587] 1971). Desta forma, a fertilidade da terra e a fartura de peixe e caça eram elementos importantes para fixação do grupo em determinada área. E também influenciavam nas proporções de área requerida para um grupo; desta maneira, as fontes econômicas de qualidade não requereriam uma área grande, enquanto o contrário 37 exigiria mais terra. Para Lery ([1578] 2009, p. 142), o país dos Tupinambá “tem capacidade para alimentar dez vezes mais gente do que possui atualmente, posso gabar- me de ter tido à minha disposição mais de mil jeiras de terras melhores que as de Beauce.”. À disposição dos indígenas havia muita terra e de qualidade suficiente para suprir suas necessidades. Uma comunidade agrícola tendia a conhecer bem o clima, associando acontecimentos a mudanças climáticas. A chuva era outro fator importante para essa comunidade, assim tendia a estudar elementos ligados à previsão da chuva, como, por exemplo, o vento (FERNANDES, 1948). Também conhecia regularidades que eram capazes de indicar os fenômenos climáticos. Este mesmo autor mostra que eles usavam o conhecimento dos movimentos do sol e da lua para pescar. Inclusive sabiam bem sobre a piracema, aproveitando-se desta migração dos peixes para conseguirem mais alimentos. Para o enfeite, gostavam de pedras e cristais, também ligados à terra. Fernandes (op. cit.) descreve que normalmente não faziam trocas, comprar não era prática, então produziam esses elementos culturais em suas dependências mesmo. As atividades da economia eram caça, pesca, hoticultura, coleta de plantas, de frutos nativos, de ovos e filhotes de pássaros, de pedras e cristais suficientes, sem sobras. (FERNANDES, 1948, p. 81). A falta de tato para a permuta pode ser vista na narrativa sobre um acontecido que foi repassado por um intérprete a Lery. A troca era entre um Maracajá (Morgaiat) ou Carajá (Cara-ía) ou Tupinambá (Toüoupinambaoult) com um inimigo Guaitacá (Ouetaca): Mostram-lhe de longe o que têm a oferecer, foice, faca, pente, espelho ou qualquer outra mercadoria e perguntam-lhe por sinais se quer fazer a troca. Se concorda, o Oueteca exibe por sua vez plumas, pedras verdes que coloca nos lábios, ou outros produtos de seu território. 38 Combinam então o lugar da troca, a 300 ou 400 pés de distância; aí o ofertante deposita o objeto da permuta em cima de uma pedra ou pedaço de pau e afasta-se. O Oueteca pega o objeto e deixa no mesmo lugar a sua oferta, afastando-se igualmente, a fim de que o Margaiat ou outro venha buscá-la. Enquanto isso se passa, são mantidos os compromissos assumidos. Acabada, porém, a troca, a trégua é rompida e assim que ultrapassam os limites do lugar fixado para a permuta cada um procura alcançar o outro a fim de arrebatar-lhe a mercadoria. E parece-me inútil dizer quem quase sempre leva a melhor, pois como sabe, os Oueteca são excelentes corredores (LERY, [1578] 2009, p. 101). Portanto, a permuta não era algo seguro, principalmente com alguém que conseguia correr como o Oueteca, neste caso o melhor era procurar outras formas de negociação. Ou ignorar a produção que não era conseguida no interior do seu grupo social. Vale ainda ressaltar que a permuta com o inimigo era negativa, mas com os amigos, inicialmente portugueses e depois franceses, acontecia. Tanto que o Pau Brasil tornou-se uma boa mercadoria para negociação com os franceses. A não-adoção do comércio por essa nação era evidenciada quando ela mostrava não ter interesse pelas “coisas deste mundo” (LERY, [1578] 2009, p. 174). Sentiam vergonha quando viam um vizinho sentindo falta de algo que eles possuíam. Desta forma, a coletividade era fortalecida a ponto de dividir com os outros qualquer produto adquirido. Isso, inclusive, evitava a divisão em classes sociais. Eram grupos em que não havia bem para uns e não para outros, todos eram donos daquilo que os membros do grupo adquiriam. Então, a permuta dentro do grupo não era bem vinda, devia-se dar ao outro o que se tinha e o outro precisava, sendo vergonhoso possuir algo e o vizinho ter a falta disso. Sousa ([1587] 1971) nomeia os Tupinambá de Frades Franciscanos, fazendo alusão à não pretensão de São Francisco na aquisição e manutenção de bens. Como esse grupo não acumulava bens e preferia comer pouco a deixar o outro membro da comunidade sem comer, isso mostra uma postura bastante 39 diferente daquela adotada pelos europeus conquistadores e invasores do continente americano. 1.5 A guerra para a sociedade Tupinambá A guerra pode representar um fator social de organização e reorganização para uma sociedade. Em se tratando da Tupinambá, as lutas eram um momento de envolvimento de todo o grupo. Todos participavam das batalhas, fosse na saída do grupo combatente, fosse na volta desse. Havia sempre maneiras para inserir todos da população. Tanto que quando comiam o inimigo, esse era inimigo do povo e não do guerreiro que o capturara. Em diferentes atividades pós-guerra, principalmente, se percebe a participação do grupo indígena e não somente dos que iam às batalhas. Staden ([1557] 2009) mostra que ao chegar capturado na aldeia foi recebido por um grupo de mulheres que cantavam e dançavam em torno dele, depois afirma que isso pôde ser visto em outros retornos com prisioneiros. As mulheres e os mais velhos também participavam ativamente do ritual da morte, elas pintavam o instrumento, maça, para a morte do inimigo, também pintavam o rosto dele, além de colaborarem com os insultos que eram proferidos e, por último, comiam bastante carne dos sacrificados, junto com os mais velhos. Também estavam presentes no ritual gente de outras aldeias e crianças (LERY, [1578] 2009). A presença das crianças é bastante significativa, pois ao contrário de muitas mulheres que também iam à guerra, a idade necessária para participar das batalhas não permitia que crianças fossem. Elas tinham outras funções, mas participavam das batalhas por meio dos rituais. Eram, portanto, um público ativo e cativo dos rituais. Não eram meros espectadores de uma ação gerida pelos adultos, estavam ali para também comerem aqueles que eram inimigos de todos no grupo. Isso 40 também construía uma base para continuidade desta prática, esses futuros guerreiros aprendiam suas funções, sabendo que a guerra era um elemento sempre presente nesta comunidade. A entrega da mulher Tupinambá para o contrário aprisionado, o que não eliminava a morte ritual dele e consequente antropofagia, também mostra como a sociedade Tupinambá era participativa no evento guerra (LERY, [1578] 2009; FERNANDES, 1948). A mulher deveria adotar o prisioneiro como seu homem, porém não poderia atrapalhar o ritual para morte dele, pelo contrário, deveria participar tendo função importante, entregando-o para sacrifício e tecendo lamentações após a morte, nem por isso, deixando de comer da carne dele. Ou seja, são questões complexas e históricas, que não se limitavam ao embate no campo de batalha, pois a guerra vinha para a sociedade Tupinambá mesmo que os inimigos não estivessem duelando nessa aldeia. Outra forma do envolvimento dessa sociedade, mesmo no pós-guerra, eram as entregas dos capturados como presente para outros da comunidade, e com isso, esses outros teriam o direito ao sacrifício e à troca de nome. A guerra não acabava na batalha, ela estava suspensa em relação ao que estava distante, mas continuava presente na presença do capturado. Desta forma, aquele que não foi à luta por qualquer motivo possível e aceito pela comunidade, ou que foi, entretanto não capturou alguém, poderia ser presenteado, fazer o ritual e mudar de nome. A guerra continuava rotineiramente presente. Também a entrega do capturado ao homem mais jovem, para que esse o sacrificasse e pudesse adquirir mulher para si, era representativo do poder da guerra. Tratava-se de um incentivo para que os jovens guerreiros lutassem, conseguindo trazer seu próprio prisioneiro. Os homens mais jovens sentiriam essa necessidade, pois de 41 outra maneira não poderiam ter mulher. Aos jovens que ainda não pudessem ir à guerra ou não conseguiram capturar algum inimigo, eram entregues, como presente, o inimigo para o ritual antropofágico (LERY, [1578] 2009). O inimigo capturado era visto também de forma coletiva, tanto que não era um guerreiro inimigo, esse era representante de todo um grupo de inimigos. Staden ([1557] 2009) era chamado sempre de português, pois esse povo era inimigo dos Tupinambá, naquele momento. Além dos outros indígenas, essa etnia somente mantinha contato com portugueses e franceses, sendo que os franceses eram aliados e os portugueses inimigos. Um alemão7, que não era francês, só poderia ser português. Desta forma, o inimigo era um representante do povo português e deveria ser comido, afinal, de outra forma ele não poderia ser tratado. Inclusive, ao comer essa pessoa, estariam vingando as mortes causadas por todos os membros da tribo dele. Portanto, eram envolvidos todos os Tupinambá e todos da etnia contrária:a guerra era coletiva para os dois lados. A guerra era algo constante, não se limitava a questões pontuais. Por isso, as batalhas podiam acontecer sempre, pois a questão da vingança de seus pais e amigos presos e comidos pelos inimigos podia gerar sempre novos embates. Lery ([1578] 2009) discute com riqueza de detalhes essa necessidade de novas batalhas, mostrando que os porquês da guerra normalmente não eram pontuais e resolvíveis. Mesmo que certamente houvesse a luta pela posse de novos territórios, alguns cronistas (STADEN, [1557] 2009; SOUSA, [1587] 1971) oferecem exemplos de ataques de que não tinham conhecimento ou, para os quais, não havia uma motivação explícita diferente da vingança pelos antepassados comidos8. 7 Staden era alemão. 8 Florestan Fernandes, em sua clássica obra A função social da guerra na sociedade Tupinambá(1952), confirma que vários cronistas citam, com riquezas de detalhes, como a vingança era uma marca 42 Os selvagens não se guerreiam para conquistar países e terras uns aos outros, pois sobejam terras para todos; tampouco pretendem enriquecer com os despojos dos vencidos ou o resgate dos prisioneiros. Não são movidos por nada disso. Eles próprios confessam serem impelidos por outro motivo: o de vingar pais e amigos presos e comidos, no passado, do modo que contarei no capítulo que segue (LERY, [1758] 2009, p. 183). Esse ódio eterno representava não somente o presente, mas todo o passado de um povo. O inimigo era desde sempre, pois como ele conseguia comer parentes e amigos, ou seja, membros do grupo Tupi, aos contemporâneos era imputada a responsabilidade pela vingança. Esse motivo social inviabilizava um fim para batalha, transformando esse povo em um grupo totalmente pronto para lutar. O antes da guerra também era muito importante e coletivo, tanto que havia reuniões de conselhos, em que a participação era permitida às lideranças, para decidirem sobre como fariam a guerra (SOUSA, [1587] 1971). A liderança central, além de participar dessa decisão, precisava repassá-la a todos os demais, passava de moradia em moradia falando sobre a importância da guerra e porque cada um devia dela participar9. Então, não saía um grupo de guerreiros, todos da comunidade estavam envolvidos desde esse momento que fora decidido pelo conselho e repassado pela liderança principal. Nas ações que eram empreendidas antes do embate, deviam os membros ocupar vários lugares. Havia a confecção das armas, feitas pelos homens, a comida (farinha), feita pelas mulheres. Eram espaços que realmente envolviam o grande grupo, pois possuíam muitas armas e diferentes maneiras para usá-las. Até os sonhos que todos tinham serviam para a empreitada: se a maioria sonhasse com a carne do inimigo sendo comida isso seria bom, porém se sonhasse com a própria carne sendo preparada, não importante para guerra nessa sociedade.Tanto que exemplifica com uma mulher Maracajá, que preferiria ver seu filho ficar e vingar dos Tupinambá a ir para a França viver em “segurança”. 9 Sousa (1971) chama de pregação, talvez pelo poder de convencimento, seguido da necessidade de motivar todos para tornar a luta vitoriosa. 43 deveria continuar (STADEN, [1557] 2009). Não se tratava de um único sonho, seria o sonho da maioria, para garantir a ida à guerra. Andavam juntos, realizando paradas providenciais (SOUSA, [1587] 1971), eram vários dias para chegar aos inimigos e para não se cansarem, claro, era necessário parar e dormir com qualidade, quase sempre à beira de rios. A batalha era, então, o ponto culminante, mas não o único. Todos os passos antes e depois dela eram feitos com cuidado e recebiam significações importantes. Essa é a justificativa para deixar a batalha para ser mencionada em derradeiro nesta parte dedicada à guerra. Nesta a vontade de lutar aparecia nos urros que eram emitidos no contato com o inimigo e na vontade com que se deslocavam para encarar a batalha. Todos os presentes não representavam a vontade de somente um líder, o qual não estaria lá (como acontece com as guerras ocidentais), mas estariam lutando em causa própria, vingando os seus. Desta forma, a guerra nessa sociedade integrava o sistema organizatório tribal, ou seja, os fins para a guerra eram determinados de maneira social10 (FERNANDES, 1952). Nesse ínterim, o envolvimento, como em toda guerra, trazia os reflexos de vitórias e derrotas, todos venciam a batalha, mas todos a perdiam, quando fosse o caso. Os constantes deslocamentos, dos quais os grupos serviam-se, representavam bem esse envolvimento coletivo. As mortes dos guerreiros sofridas na volta da batalha também mostravam esse envolvimento de todos. A determinação cultural para guerra era latente, havia uma busca para confirmação de movimentos concretos para manutenção e renovação de tradições. A guerra não era somente interna e Fernandes (1952) discute a relação que era mantida entre as etnias por meio da guerra, tanto que os vários cronistas deixam sempre claro quem eram os amigos e quem eram os inimigos de cada tribo. Citam-se 10 Esse autor deixa claro que em “nenhuma situação a guerra constitui um fim em si mesma” (FERNANDES, 1952, p. 40). Fala isso buscando confirmação em vários autores. 44 sempre os portugueses como inimigos dos Tupinambá e os franceses como amigos. Os Maracajá eram inimigos, entre vários outros. Essa relação de amizade e cooperação, por um lado e de inimizade e batalhas, por outro, localizava as etnias, sendo um ponto de referência para os estudiosos. O homem Tupinambá não era separadamente o guerreiro ou o caçador. As armas que eram usadas na guerra podiam ser usadas durante a caça. Esses instrumentos, como o arco e a flecha, acompanhavam o guerreiro e o caçador, identidades que se entrecruzavam no mesmo guerreiro adulto – avá ou tujuáe (FERNANDES, 1952). A impregnação social transformava os instrumentos de caça em armas de guerra a depender da necessidade. Pode-se portanto encarar a atividade da caça como um treinamento para a guerra, pois, mesmo que isso não possa ser confirmado pelos estudiosos, pode-se chegar a essa conclusão quando se percebe que ao caçar o guerreiro tornava-se um arqueiro melhor e mais seguro. Certamente essa especialização era útil para a batalha. Lery ([1578] 2009) exemplifica sua visão de batalha, narrando sobre uma que ele presenciou. Vê-se claramente em sua fala que a sua visão européia da guerra, com suas organizações próprias, contribuiu para com a conclusão desse cronista, sugerindo uma batalha muito mais apaixonada que organizada. Logicamente suas conclusões não podem ser consideradas por si. Florestan Fernandes (1952) se preocupa em mostrar que com a quantidade de guerreiros aliada às distâncias percorridas e ao tempo gasto, era necessária uma organização deste grupo. Tanto que se preparavam para os ataques, escolhiam os melhores horários e como seria sua retirada. Não se tratava de um grupo de homens armados e lutando com ‘primitivos’ desorganizados e sem objetivos. Eram treinados e se comportavam como especialistas, que inclusive seguiam orientações de lideranças, desde a conversa inicial para dirigir-se à guerra. Staden 45 (2009), ao narrar sua ida à batalha com esse grupo, apresenta vários momentos de organização antes do combate e alia isso ao furor quando estavam no embate corpo-a- corpo. Mesmo sendo um grande contingente de combatentes, esses não saíam em marcha sem direção, marchavam juntos e organizados e com locais específicos para descansarem, além de pararem para reabastecer se isso fosse necessário. A visão às vezes um pouco obscura dos cronistas pode ser revista na fala de Lery ([1578] 2009, p. 187): depois de nomeados os chefes entre os velhos que já mataram e comeram maior número de inimigos, põem-se todos a caminho. Não observam ordem de marcha nem categoria dos combatentes; os mais valentes, porém, vão na frente e marcham todos juntos, parecendo incrível que tanta gente se possa acomodar espontaneamente e se erguer para uma nova marcha ao primeiro sinal. Tanto no momento da partida como ao levantarem acampamento nos lugares onde param, sempre há alguns com cornetas da grossura e comprimento de meia lança, mas de quase meio pé de largura O pequeno trecho “não observam ordem de marcha nem categoria de combatentes” fica espremido e desconexo, pois antes ele mostra uma organização – os velhos são nomeados – e para que isso acontecesse havia exigências, eles precisavam ser experientes na guerra, e já ter matado e comido inimigo. Já após o trecho, esclarece- se que os mais valentes iam primeiro, levando o cronista a admirar como a comunidade conseguia mover-se com tranquilidade, isso dentro de uma possível desorganização. Logicamente, havia ordem e organização, porém diferentes do modelo adotado pelos europeus. O som emitido pelas ‘cornetas’, o qual elevava o ânimo para a guerra, representa outra forma de mostrar como seguiam elementos externos ao próprio ser. Não havia caos, havia posturas e decisões que precisavam ser respeitadas por todos. A batalha não se restringia ao elemento masculino da sociedade. As mulheres tinham seu espaço nos comboios destinados à guerra. Durante os 46 deslocamentos, elas eram responsáveis por várias atividades, como carregar a alimentação, garantindo a farinha como alimento. Não participavam das atividades militares, mas apoiavam os guerreiros para conseguirem combater com a veemência necessária. Neste caso, elas também poderiam ser capturadas pelos inimigos, sendo também comidas por essas outras comunidades. Igualitariamente, as mulheres inimigas eram muitas vezes capturadas e levadas para a comunidade Tupinambá. Então, a batalha militar era função masculina (FERNANDES, 1952), contudo outras funções diretamente envolvidas na luta, as mulheres assumiam. Os membros Tupinambá participavam da batalha, antes, depois e durante. Com posições específicas, mas significativas para que o grupo obtivesse êxito na empreitada. 1.6 Língua Tupi ou Tupinambá A língua Tupi era a mais falada na costa do Brasil, “ainda que os tupinambás (sic) se dividiram em bandos, e se inimizaram uns com outros, todos falam uma língua que é quase geral pela costa do Brasil” (SOUSA, [1587] 1971). Os Tupinambá tinham a língua que maior contato teve com os colonizadores, pois essa língua era falada por muitos habitantes do Novo Mundo e esses mantinham bastante contato com os portugueses, mais que com indígenas falantes de outros idiomas. Esse contato pode ser medido pela quantidade de estudos que essa língua recebeu, tornando- se uma das poucas línguas indígenas com razoável documentação e estudos. Logicamente, os estudos e a documentação acerca desse povo não se restringiram à sua linguagem, há estudos sobre suas armas, seu modo de ser e outras informações que tem favorecido a perpetuação dos debates sobre ele. O Tupi é incontestavelmente a língua indígena mais conhecida pelos brasileiros, não que isso signifique que é falada pelo povo, mas quando se fala em 47 língua indígena, a memória dessa nação direciona-se para a língua do povo Tupinambá. A quantidade de palavras dentro da língua portuguesa que nasceu na língua indígena – empréstimos – mostra a importância e a dimensão que essa língua possuiu durante muitos anos. Até o século dezoito, o Brasil certamente não se via como monolíngüe, diferentemente do que se insiste atualmente, a língua indígena possuia seu merecido espaço. Rodrigues (2002) mostra que, até o século XVIII, o uso da língua Tupi era geral entre a população luso-brasileira, isso de norte a sul do Brasil, tanto que precisou de um decreto português para iniciar a imposição da língua européia. Esse autor esclarece ainda sobre o espaço assumido pelo Tupi ao mencionar a quantidade de palavras dessa língua que está em uso para denominar nome de aves – de mil nomes, trezentos e cinqüenta são de origem indígena. Entre os nomes de peixe essa percentagem aumenta ainda mais – de 550 nomes colhidos, 225 têm origem na língua autóctone. O inverso parece não ser verdadeiro, na língua Tupi, pelo menos no início do contato, não há empréstimos do português. Os empréstimos eram unilaterais, o tupi fornecia e o português incorporava (BACELAR & GOIS, 1997). Porém, essa prática não foi duradoura além desse período, tanto que as modificações que o Tupi sofreu mudaram- no para Nheengatu. O Tupi Moderno apresenta muitas influências do português. Em uma obra com pretensões limitadas, Ribeiro (2004) traz uma contribuição bastante interessante. O nome da obra é Contribuições da Língua Tupi e da Jê ao português no Brasil, o título não é capaz de mostrar como o conteúdo pesa para o lado Tupi: enquanto as “contribuições” das línguas Jê se limitam a menos que duas páginas, as da língua Tupi roubam a maior parte do livro. Isso lembra Urban (1992), ao referir-se à falta de estudo sobre o tronco macro-jê. Ele discute a necessidade de se aumentar os debates em direção a essas línguas, pois no caso do tronco Tupi existe um 48 conhecimento bastante promissor. Essa falta de conhecimento do povo brasileiro em relação a essas línguas gerou menos influência sobre a língua portuguesa. Essa língua de maior penetração na sociedade brasileira é hoje muito mais denominada Tupi Antigo, ou seja, a língua falada na costa do Brasil é hoje nomeada de Tupi Antigo (MONTSERRAT, 2000). Essa nomeação serve ainda para realçar o Nheengatu, uma língua com origem no Tupi Antigo. Muitos a chamam de Tupi Moderno. Como há muitas diferenças entre essas duas línguas, prefere-se nomeá-las diferentemente. Também existe o fato do espaço que o Tupi possui na nação brasileira, é muito conhecido e estudado, esses fatores pedem essa dupla nomenclatura, caso contrário, não haveria problema em não se realizar tal divisão. A palavra ‘tupi’ já era uma generalização de várias línguas faladas na costa do Brasil, então, a preocupação para diferenciar Tupi de Nheengatú não está somente na diferenciação interna da língua, está também na representatividade que o Tupi tem na nação brasileira. Essa proximidade de várias línguas, as quais eram colocadas como se fossem uma, é evidenciada pelas línguas Chiriguano, Guarani e Tupinambá, mostrando uma rota de migração desse povo; são três línguas que eram muitas vezes colocadas como uma só (URBAN, 1992). Seki (2000) mostra que ‘tupi’ é uma denominação que abrange algumas variedades de fala, mostra que também foi chamada de brasílica, recebendo esses dois nomes durante os séculos XVI e XVII; já no século XVIII recebeu o nome de língua Tupinambá e Tupi-guarani. Porém para a comunidade nacional o nome ‘tupi’ para essa língua continua tendo ampla aceitação. Já a comunidade Tupinambá atual, quando quer se referir à sua língua tradicional, prefere a palavra ‘tupi’, pois, mesmo que ‘tupinambá’ pareça ser mais diretamente ligado ao nome da própria etnia, não é essa a escolha, a outra denominação é a que melhor consegue abranger o que o povo reconhece ser sua 49 língua. Nos meios acadêmicos também se escuta mais essa denominação, tanto que os estudiosos dessa língua são denominados Tupinólogos e estudam, com mais ênfase, a língua dos dois primeiros séculos, a língua descrita nos anos 1.500 e 1.600, portanto, dentro da classificação Tupi. Essa autora (SEKI, 2000) ainda sugere que os estudos dessa língua ficaram em mãos de religiosos, os quais tinham como ofício (ou objetivo) a catequese, uma vez que as línguas mais descritas no início da colonização – Tupi, Guarani Antigo, Kariri – foram estudadas para embasar a aproximação dos missionários para conseguirem falar de Deus e da necessidade da conversão. Essa prática levou à produção de Catecismos, Vocabulários, Orações e Artes de Gramática e outros textos em diversas línguas indígenas. Sobretudo hoje é fácil encontrar publicações de bíblias na língua indígena. Ou seja, os missionários continuam nas comunidades, porém cada vez mais o estudo científico das línguas ocupa espaço, sendo realizado por linguistas não-missionários. Então esta tese chamará de Tupi essa língua descrita nos séculos XVI e XVII e parte do XVIII, mas também, por hora, será Tupi a língua que a comunidade atual está revitalizando, pois além de ser assim nomeada por eles, também é na língua registrada nos primeiros séculos da chegada dos portugueses que a comunidade Tupinambá atual está buscando apoio para voltar a ter uma língua indígena. Um comentário muito conhecido sobre a língua Tupi aparece no texto de Sousa ([1587] 1971), cronista quinhentista que relaciona a falta de “letras” (sic) com a falta de funções na sociedade Tupinambá. As letras que faltam são F, L, R coisa muito para se notar; porque, se não têm F, é porque não têm fé em nenhuma coisa que adorem; nem os nascidos entre os cristãos e doutrinados pelos padres da Companhia têm fé em Deus Nosso Senhor, nem têm verdade, nem lealdade a nenhuma pessoa que lhes faça bem. E se não têm L na sua pronunciação, é porque não têm lei alguma que guardar, nem preceitos para se governarem; e cada um faz lei a seu modo, e ao som da sua vontade; sem haver entre eles leis com que se governem, nem têm leis uns com os outros. E se não têm esta 50 letra R na sua pronunciação, é porque não têm rei que os reja, e a quem obedeçam, nem obedecem a ninguém, nem ao pai o filho, nem o filho ao pai, e cada um vive ao som da sua vontade; para dizerem Francisco dizem Pancico, para dizerem Lourenço dizem Rorenço, para dizerem Rodrigo dizem Rodigo; e por este modo pronunciam todos os vocábulos em que entram essas três letras (p. 302). A análise não é sofisticada, nem poderia ser, não se trata de um estudioso de linguagem, no entanto, tal comentário embasa uma análise muito usada, fornecendo dados históricos ricos para conhecer a língua Tupi. Ou seja, essa análise mostra que a língua não possuía alguns sons, logicamente a explicação dada pelo cronista para essa falta não é linguística, mas é social. Justifica a falta de atores sociais que eram considerados importantes para a sociedade europeia. Análise centrada no mundo europeu. Entretanto, para esse caso essa análise é válida, não por ela mesma, mas pela fotografia da língua de uma época. São exemplos que trazem dados na língua portuguesa, mas que mostram a ausência de sons na língua indígena. Revelam, contudo, como a língua aparece em textos que olham a sociedade Tupinambá e não somente a língua que esse grupo usava. Vale aqui trazer o trecho da obra de Gândavo11 ([1576] 1980), “A lingua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de tres letras —scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.”, ao mencionar essas duas falas, o intuito é mostrar como havia uma construção pejorativa sobre a língua indígena. Mesmo que essa fosse a mais usada, certamente, não possuía o mesmo status que a língua européia. A visão, também aqui, é sobre a sociedade indígena, a língua é somente a base para sustentar a argumentação. Há um registro da realidade, o qual é acessível somente pela vivência que vários cronistas tiveram. Documentaram o que viram, trouxeram os diferentes elementos constitutivos da sociedade indígena em questão, 11 Outro cronista dos primeiros séculos da chegada dos portugueses. 51 etnocentricamente, mas cabe aos estudos atuais direcionarem seus olhares críticos e realizarem pesquisas em que se problematize o contato com o outro Essas várias falas sobre a língua indígena posicionam essa língua ainda em relação ao que existia nas línguas européias, pois tratava-se de uma análise que mantinha no centro o povo e a língua do velho mundo, colocando a língua e consequentemente o povo do novo mundo como inferiores. Não se pode negar, em uma visão centralizadora, a posição negativa para o indígena ao não ter rei, ou fé, isso facilitava as ações dos missionários e dos colonizadores portugueses. Quando mais de um cronista traz a mesma informação pode-se concluir que essa forma de ver a sociedade indígena era recorrente, ou seja, havia já um olhar negativo sobre a língua e o povo, ambos eram de menor importância. Essa documentação histórica tem um valor inestimável para estudos linguísticos. Mesmo que muitos desses autores não tivessem formação na área, forneceram dados que contribuíram com os estudos atuais. Rodrigues (2009), no prefácio à edição de 2009 da obra de Jean de Lèry, confirma como este autor trouxe significativas contribuições para o conhecimento da língua Tupi. Mostra que esses vários cronistas, ao descrever atividades sociais de contato, colocaram palavras que ajudaram a mostrar como era a língua e a sociedade daquela época. Aryon Rodrigues reforça esse debate em outra obra sua, mostrando que ainda no século XVI o Tupi Antigo foi documentado, “em 1575 e 1578 foram publicados os primeiros textos nessa língua pelos franceses André Thevet e Jean de Léry, sendo que este último publicou também as primeiras observações gramaticais sobre a mesma” (Rodrigues, 2002, p. 20). Esses dois franceses vieram ao Brasil com funções menos descritivas da língua e da sociedade indígena e mais religiosas, mas ao relatar suas vivências, construíram vias de perpetuação de uma comunidade e também da língua desse povo. 52 Rodrigues (2002) ainda apresenta outro autor, agora com preocupações mais gramaticais, portanto mais voltadas para a língua: foi a publicação em 1595 da gramática da língua Tupi do padre Anchieta. Para Drumond (1990), essa obra é portadora do “legítimo tupi falado pelos grupos indígenas do litoral brasileiro” (p. 8), nomeando como legítimo, aquele que ainda não tinha sofrido influências da língua européia, que ainda não era a língua geral, conhecida por índios e não-índios residentes na nova nação. Trata-se de outro texto significativo para o estudo da língua indígena, sendo que esse é muito mais promissor para a revitalização de língua que está sendo discutida pelas comunidades atuais. Ele essencialmente traz a língua que ainda era somente indígena. A valorização que os Tupinambá do sul e extremo sul da Bahia dão ao Tupi pode ser um reflexo dessa tentativa de retomar uma língua ainda sem influência das línguas européias. Drumond (1990) ainda ressalta o tempo de estudos, para somente em seguida se publicar tal obra: para ele foram pelo menos quarenta anos de dedicação à língua dos indígenas, só então Anchieta produziu a gramática12. O posicionamento de Drumond em relação à primeira gramática Tupi chega ao argumento final de que se se levar em conta o momento histórico da elaboração desta obra, ela conseguirá resistir a todas as críticas. Leite (2003) também argumenta a favor de tal gramática, mostrando que todas as obras dessa natureza são construídas seguindo padrões de alguma teoria, além de sempre terem determinado objet