0 Universidade Estadual Paulista Faculdade Arquitetura, Artes e Comunicação Programa de Pós-graduação em Design THE HORN OF PLENTY DE MCQUEEN UMA CONJUNÇÃO PARÓDICA ENTRE O DESIGN, A MODA E A ARTE NO CONTEMPORÂNEO Andréa Barbosa Camargo Orientador | Prof. Olimpio José Pinheiro Coorientadores | Profa Monica Moura e Prof. Mario de Carvalho Bauru 2015 1 Universidade Estadual Paulista Faculdade Arquitetura, Artes e Comunicação Programa de Pós-graduação em Design THE HORN OF PLENTY DE MCQUEEN UMA CONJUNÇÃO PARÓDICA ENTRE O DESIGN, A MODA E A ARTE NO CONTEMPORÂNEO Andréa Barbosa Camargo Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Campus de Bauru, para obtenção do Título de Doutor em Design Bauru 2015 2 metamorfose liberdade beleza, ELE materializou-se azul borboleta, contemplou se orgulhou, hoje, sua semente germinou Ao meu pai (in memoriam) todo o meu amor e minha saudade eterna A minha avó (in memoriam) Com amor por aquela que sempre vibrou com minhas conquistas 3 AGRADECIMENTOS A Deus por me dar força para continuar mesmo diante das adversidades; A minha mãe e minha irmã pela paciência e apoio incondicional, na reta final deste projeto; A minha tia Boy pelo carinho sempre devotado a minha pessoa; A minha tia Melânia pela força que me impulsionou em momentos difíceis; A todos os meus familiares e amigos pela compreensão da minha ausência em vá- rios momentos de nossas vidas nesses últimos 4 anos; A Helena e a Teca pela dedicação durante todo o processo de finalização da minha tese. A minha amiga Cristiana Pimenta pelo apoio sempre presente; A minha amiga Flavia Zimmerle pelos inúmeros conselhos epistemológicos; A minha amiga Nara Rocha que mesmo distante emanou energias positivas; A todos do Dinter, Marcela, Tércia, Danilo, Manoel, Renata, Emílio, Charles, pelas horas compartilhadas em conjunto; Aos coordenadores do programa prof. Paschoarelli e profa Paula, sem esquecer a profa Marizilda, pelo exemplo de dedicação; Aos meus orientadores, prof. Olímpio Pinheiro e profa Monica Moura, pela atenção e comprometimento com meu projeto; À profa Kathia Castilho pelas propostas valiosas durante o exame de qualificação; A Luiz Augusto, Helder, Sílvio, por desempenharem suas funções de forma desme- dida na transmissão de toda a burocracia exigida pela Secretaria da pós-graduação; Por fim, mais uma vez mencionados: a meus pais, pelo exemplo de dignidade e per- severança, minha eterna gratidão; À Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE); E, a todas as pessoas que contribuíram direta ou indiretamente com este trabalho. 4 RESUMO Nosso objetivo é entender como o designer de moda McQueen se utiliza da arte, do espetáculo, como cenário de ativação contestatória diante dos acontecimentos do mundo contemporâneo. Para tal, iremos analisar 5 looks de sua coleção The horn of plenty, de 2009. Esta coleção tem um caráter conceitual que a identifica com a arte. No design de moda o termo conceitual se refere ao lado artístico e fantasioso do designer, no qual ele pode esboçar ideias contrastantes com o usual visto no mer- cado, mas que conotam estilos que irão fazer parte de sua coleção comercial (aque- la vendida ao mercado consumidor). É pelo design conceitual que o designer fica conhecido na mídia, pois ele representa a apoteose do seu trabalho; é o espetáculo, onde o criador mostra todo seu talento à espera de aprovação da audiência. Porém, além do caráter publicitário, o espetáculo atual possui uma vertente contestatória, idealista, a ser reconhecida, nesta pesquisa, como um potente canal de comunica- ção. De onde podemos questionar: Como o contemporâneo é revelado criticamente pela obra de McQueen, the horn of plenty? Utilizaremos como aporte teórico para responder tal questionamento, a teoria da Transtextualidade que surgiu a partir da Intertextualidade de Kristeva, essa alicer- çada pela noção de dialogismo de Bakhtin. A Transtextualidade foi proposta por Ge- rard Genette a partir do conceito de Intertextualidade mais abrangente. Essa teoria diz respeito à definição de um conjunto de textos e às relações estabelecidas entre os mesmos e, também, constitui-se na reelaboração do passado textual. Assim, percebemos o viés paródico da obra de McQueen que atrelado a intertextos diversos geraram personagens com carga crítica e irônica, e ao mesmo tempo per- meada de expressão artística. 5 ABSTRACT Our goal is to understand how McQueen uses art, spectacle, as anti-establishment activation scenario before the contemporary world events. To this end, we will examine five looks from the collection The horn of plenty, 2009. This collection has a conceptual character that identifies with art. In fashion design conceptual term refers artistic and fanciful side of the designer, in which he can sketch contrasting ideas with the usual seen in the market, but that connote styles that will be part of its commercial collection (the one sold to the consumer market) . It is the conceptual design that the designer is known in the media because it represents the apotheosis of their work; is the show where the creator shows all his talent waiting for approval from the audience. However, in addition to advertising character, the current show has a contester characteristic, idealistic, to be recognized in this research as a powerful communication channel. Where we may ask: How contemporary is revealed critically the work of McQueen, the horn of plenty? We use as theoretical framework to answer these questions, the theory of transtextuality that emerged from the Intertextuality of Kristeva, this underpinned by the notion of dialogism Bakhtin. The transtextuality was proposed by Gerard Genette from the broader concept of Intertextuality. This theory concerns the definition of a set of texts and the relationships established between them and also constitutes the reworking of textual past. Thus we see the parodic bias McQueen's work that linked to many intertexts generated characters with critical and ironic charge, while permeated with artistic expression. 6 LISTA DE FIGURAS Figura 1. McQueen desenvolvendo a técnica de moulage [p. 20] Figura 2. Espartilho na coleção, 2001, da Chloé [p. 25] Figura 3. Pintura de Toulouse-Lautrec, Mulher com espartilho (1896) [p. 25] Figura 4. Chapéu sapato [p. 27] Figura 5. Vestido lagosta. [p. 27] Figura 6. Vestido tear. [p. 27] Figura 7. Vestido Mondrian, coleção de Yves Saint Laurent, 1965. [p. 28] Figura 8. Vestido Mondrian, coleção de Yves Saint Laurent, 1965. [p. 28] Figura 9. Pleated dress, Miyake, 1994. [p. 29] Figura 10. Ombreiras de plumas costuradas em lugares irregulares, Kawakubo, 1997. [p. 29] Figura 11. Herchcovitch, 2001. [p. 30] Figura 12. Chalayan, 2007. [p. 30] Figura 13. Margiela, 2009. [p. 30] Figura 14. Thierry Mugler, 1997. [p. 31] Figura 15. Coleção The Golden Shower, 1998. [p. 32] Figura 16. Lady Gaga. [p. 33] Figura 17. New Look de Christian Dior. [p. 37] Figura 18. Chanel coleção alta-costura, primavera 2014. [p. 37] Figura 19. H&M x Saint Laurent. [p. 38] Figura 20. Coleção de Christian Lacroix para a Maison Schiaparelli, 2014. [p. 38] Figura 21. Loja de prêt-à-porter Rive Gauche. [p. 40] Figura 22. Amostras de tecidos e aviamentos. [p. 45] Figura 23. McQueen no estúdio entre painéis de referências. [p. 47] Figura 24. Quadro preto, exemplo de painel de inspiração. [p. 47] Figura 25. Calça bumster, 1995. [p. 48] Figura 26. A modelo Kate Moss vestindo a calça bumsters. [p. 49] Figura 27. Coleção Plato’s Atlantis, 2010. [p. 50] Figura 28. Coleção Plato’s Atlantis, 2010. [p. 50] Figura 29. Coleção Plato’s Atlantis, 2010. [p. 50] Figura 30. Variações de croquis a partir de uma peça base (vestido). [p. 51] Figura 31. McQueen fazendo uma moulage em seu ateliê. [p. 52] Figura 32. McQueen fazendo uma moulage em seu ateliê. [p. 52] Figura 33. Instalação de Chalayan. [p. 56] Figura 34. Peça da coleção N° 13, 1999. [p. 60] Figura 35. Peça da coleção N° 13, 1999. [p. 60] 7 Figura 36. Aimee Mullins. [p. 61] Figura 37. Prótese criada por McQueen. [p. 61] Figura 38. Desfecho do espetáculo N° 13, 1999. [p. 62] Figura 39. Alexander McQueen Eyes. [p. 67] Figura 40. Espetáculo da coleção Deliverance, primavera/verão, 2004. [p. 68] Figura 41. Look da coleção primavera/verão, The hunger, 1996. [p. 69] Figura 42. Looks da coleção primavera/verão, The hunger, 1996. [p. 69] Figuras 43. Obra McQueen. [p. 70] Figura 44. Obra McQueen. [p. 70] Figura 45. Obra McQueen. [p. 70] Figura 46. Look primavera/verão 2005 It’s only a game. [p. 71] Figura 47. Look primavera/verão 2005 It’s only a game. [p. 71] Figura 48. A ilusão que McQueen proporcionou à audiência via holografia. [p. 71] Figuras 49. McQueen, o Deus arte do contemporâneo, desafiando o Deus racional modernista. [p. 72] Figura 50. Look primavera/verão 1994, Nihilism. [p. 73] Figura 51. Look primavera/verão 1994, Nihilism. [p. 73] Figuras 52. É uma nova era na moda. Não há regras. [p. 73] Figura 53. Peças da coleção In Memory of Elizabeth Howe, Salem, 1692, 2007/2008. [p. 74] Figura 54. Peças da coleção In Memory of Elizabeth Howe, Salem, 1692, 2007/2008. [p. 74] Figura 55. Peças da coleção In Memory of Elizabeth Howe, Salem, 1692, 2007/2008. [p. 74] Figura 56. Sapato Armadillo, com cerca de 30 cm de altura. [p. 79] Figura 57. Acessório sadomasoquista. [p. 80] Figura 58. Acessório sadomasoquista. [p. 80] Figura 59. Versão do look, desfilado na coleção horn of plenty, em 2009. [p. 81] Figura 60. Cenário do espetáculo Voss, 2001. [p. 82] Figura 61. Performance da modelo. [p. 83] Figura 62. Instalação de McQueen no espetáculo Voss, 2001. [p. 83] Figura 63. Obra Sanitarium do fotógrafo Joel Peter Witkin. [p. 84] Figura 64. Leigh Bowery, artista performático australiano. [p. 88] Figura 65. Leigh Bowery, artista performático australiano. [p. 88] Figura 66. Peça da coleção Gareth Pugh 2006, inspirada em Leigh Bowery. [p. 88] Figura 67. Cornucópia. [p. 104] Figura 68. Cenário the horn of plenty. [p. 104] Figura 69. Looks da coleção Jack The Ripper Stalks His Victims. [p. 105] Figura 70. Look da coleção the horn of plenty. [p. 105] Figura 71. Quadro normal liberation. [p. 106] 8 Figura 72. look da coleção the horn of plenty. [p. 106] Figura 73. Perfomance de Leigh Bowery. [p. 107] Figura 74. Bota estampada com pied-de-poule. [p. 107] Figura 75. Tema Pássaro. [p. 108] Figura 76. Tema Japonismo. [p. 109] Figura 77. Tema Releitura. [p. 109] Figura 78. Tema Arlequim. [p. 110] Figura 79. Tema Sadomasoquismo. [p. 110] Figura 80. Tema Silhueta. [p. 111] Figura 81. Tema Lixo. [p. 111] Figuras 82|83|84|85|86. Corpus de pesquisa. [p. 112] Figura 87. Look da coleção birds, 1995. [p. 113] Figura 88. Look da coleção Voss, 2001. [p. 113] Figura 89. Performance de Leigh Bowery. [p. 116] Figura 90. Vestido sereia. [p. 117] Figura 91. Cenário The horn of plenty sem acabamento. [p. 118] Figura 92|93|94. Adornos cabeça com latas, sacos, tampa de lixeira, etc. [p. 118] Figura 95. Performance de Leigh Bowery. [p. 118] Figura 96. Looks com padronagem pássaro e pied-de poule. [p. 119] Figura 97. Estilização da pega-rabuda e a imagem do pássaro. [p. 120] Figura 98 | Modelagem de Shingo Sato. [p. 120] Figura 99. Intertextos, cujos diálogos geraram a obra resultante de McQueen. [p. 121] Figura 100. Perfomance de Leigh Bowery. [p. 121] Figura 101 | obra de Hendrik Kerstans. [p. 121] Figura 102 | Primeira é plataforma dos anos 70, já a de cor azul e denominada de Mock-Croc. [p. 122] Figura 103. Adorno cabeça. [p. 122] Figura 104. Look com penas brancas. [p. 125] Figura 105. Look The horn of plenty. [p. 125] Figura 106. Painel de inspiração. [p. 125] Figura 107. Adorno cabeça. [p. 126] Figura 109. Look Arlequim. [p. 128] Figura 110. Performance de Leigh Bowery. [p. 128] Figura 111. Obra de Escher. [p. 129] Figura 112. Obra de Escher. [p. 129] Figura 113. Desenho de McQueen. [p. 129] Figura 114. Astronauta. [p. 129] 9 Figura 115. Performance de Leigh Bowery. [p. 129] Figura 116. Sheila Legge, 1936. [p. 130] Figura 117. Leigh Bowery. [p. 130] Figura 118. Margiela. [p. 130] Figura 119. Magritte, 1928. [p. 130] Figura 120. Capa Vogue, 1939. [p. 130] Figura 121. McQueen. [p. 130] Figura 122. Look McQueen. [p. 133] Figura 123. Look Dior. [p. 133] Figura 124. Detalhe laço pied de coq. [p. 134] Figura 125. Pied de poule clássico. [p. 134] Figura 126. Sapato pelo de macaco. [p. 135] Figura 127. Bolsa e luvas de Schiaparelli, 1938. [p. 135] Figuras 128|129|130|131|132. Diálogo de objetos para obter a bota pied de poule McQueen. [p. 136] Figura 133. Arlequim. [p. 136] Figura 134. Palhaço. [p. 136] Figura 135. Look guerreira. [p. 138] Figura 136. Arte com cobra de Guido Mocafico. [p. 138] Figura 137. Shape de sereia. [p. 138] Figura 138. Look da coleção Eye, 2000. [p. 138] Figura 139. Look coleção Eye, 2000. [p. 140] Figura 140. Look coleção The horn of plenty, 2009. [p. 140] Figura 141. Guerreira de frente para a plateia. [p. 141] Figura 142. Ilustração. [p. 144] Tabela 1. [p. 98] Tabela 2. [p. 123] Tabela 3. [p. 127] Tabela 4. [p. 132] Tabela 5. [p. 137] Tabela 6. [p. 141] Tabela 7. [p. 142] 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO [11] CAPÍTULO 1. Design, moda e arte [16] 1.1 O que vem a ser o design? [16] 1.1.1 Relação design e arte [18] 1.2 Indagando sobre o design de moda [20] 1.3 Moda e arte numa mesma concepção estética [27] CAPÍTULO 2. Entendendo uma coleção de moda [37] 2.1 Alta-costura & prêt-à-porter [37] 2.2 O processo de design na configuração de uma coleção de moda [44] CAPÍTULO 3. A estética no Design de McQueen [59] Lee Alexander McQueen: o enfant terrible [64] 3.1 Os polos opostos, pelo menos na grafia, entre o belo e o sublime [72] 3.2 A condição dionisíaca no espetáculo do contemporâneo [76] 3.3 A pitada surrealista na obra de McQueen [87] 3.3 A performance [92] CAPÍTULO 4. Procedimentos metodológicos [100] CAPÍTULO 5. Transtextualidade, tranvisualidade: ensaio ou possível decodificação semiótica das criações de McQueen [103] CAPÍTULO 6. Decifrando as criações de McQueen [116] 6.1. The Horn of Plenty, o show [116] 6.2. O corpus de pesquisa [120] 6.3. A Análise [131] CONCLUSÃO [158] REFERÊNCIAS 11 INTRODUÇÃO ESTAMOS imersos nos estudos das ciências sociais aplicadas, ou seja, o design é reconhe- cido como fazendo parte deste segmento científico. Porém, nossa qualificação como cien- tistas, no Brasil, ainda está fadada a questionamentos, haja vista o passado recente da entrada do design na academia. Tal aspecto nos permite se valer de teorias referentes a outras áreas de conhecimento, visando respaldar nossas pesquisas, além de contribuir para o desenvolvimento do design no campo científico. Diante do exposto, e levando em consideração o caráter interdisciplinar do design, elencamos áreas que irão nortear este estudo, tais como: a estética, a psicologia, a sociologia, a linguística, a semiótica. A moda, para Maffesoli, vinculada às diversas modulações da aparência, influencia- da pelo seu caráter teatral e espetacular, constitui um conjunto significativo que exprime uma dada sociedade. Nesse viés, teremos como objeto de estudo, cinco looks da coleção prêt-à-porter feminina, outono/inverno, 2009, intitulada The horn of plenty, criada por Alexander McQueen. Esta foi a escolhida para a pesquisa, pois durante os 17 anos de car- reira (1994-2010) do designer analisado, foi a coleção que McQueen mais reproduziu seus principais elementos de estilo1. Esses capazes de identificar seu trabalho e determinar seu estilo individual, algo que seria explicado a partir de sua alteridade. Assim, pontua Knox (2010), a coleção The horn of plenty, foi um patchwork de referências estéticas da própria carreira de McQueen. O design conceitual de McQueen, com moldes no espetáculo, no surrealismo, na ar- te performática, mantém sintonia com o desfile empreendido na moda contemporânea. McQueen implementa a performance às suas modelos, sugerindo uma alegoria ao seu desfile. A performance, termo relativo às condições de expressão, de percepção, “designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. (ZUMTHOR, 2014, p. 51). Momento vivenciado durante cerca de 14 minutos de fantasia 1 Por estilo, Sabino (2007) explica que se refere ao conjunto de elementos que caracterizam determinada expressão ou época, isso tanto na moda quanto na arquitetura e decoração. Na moda é instigante perceber os elementos de estilo em uma coleção, esses constituídos a partir de “uma certa identidade visual fundada em valores estéticos e caracteri- zada por uma maneira específica de combinação de formas, volumes, cores, padrões e, obviamente, de elementos de- corativos de uma determinada época, cultura. (BRAGA, 2006, p. 15). Na moda dos anos de 1970, por exemplo, figura como principais elementos de estilo, os saltos de plataforma, os hot pants, a calça boca de sino, as camisas de poliéster, colares de miçangas, franjas. Tais itens representam esta época e sua detecção enriquece a história da moda, além de ser repertório para um criador que deseje voltar ao tempo, tendo estes subsídios como fonte de inspiração para sua criação. 12 estética (duração do desfile), característica recorrente nos espetáculos de moda da atua- lidade, denotando o espírito do nosso tempo (Zeitgeist). (CALDAS, 2004). No design de moda o termo conceitual se refere ao lado artístico e fantasioso do designer, no qual ele pode esboçar ideias contrastantes com o usual visto no mercado, mas que conotam estilos que irão fazer parte de sua coleção comercial (aquela vendida ao mercado consumidor). É pelo design conceitual que o designer fica conhecido na mí- dia, pois ele representa a apoteose do seu trabalho; é o espetáculo, onde o criador mos- tra todo seu talento à espera de aprovação da audiência. Porém, além do caráter publici- tário, o espetáculo atual possui uma vertente contestatória, idealista, a ser reconhecida, nesta pesquisa, como um potente canal de comunicação. De onde podemos questionar: Como o contemporâneo é revelado criticamente pela obra de McQueen, the horn of plenty? Utilizaremos como aporte teórico para responder tal questionamento, a teoria da Transtextualidade que surgiu a partir da teoria da Intertextualidade de Kristeva, essa alicerçada pela noção de dialogismo2 de Bakhtin. A Transtextualidade foi proposta por Gerard Genette a partir do conceito de Intertextualidade mais abrangente. Essa teoria diz respeito a definição de um conjunto de textos e às relações estabelecidas entre os mes- mos e, também, constitui-se na reelaboração do passado textual. Iremos nos deter mais precisamente a esta teoria no último capítulo, onde serão analisados os cinco looks da coleção the horn of plenty, selecionados para corpus desta pesquisa. Um look3 de McQueen, já pronto para o desfile, pode ser considerado uma obra de arte, tamanha é a carga sensorial inserida na sua concepção. Em se tratando da coleção analisada, envolta por uma aura surrealista e performática, não temos outra forma de assimilar que não seja conceber, o espaço (passarela) como um teatro e, as modelos co- mo as atrizes, além do designer, como o artista. Em escala global, McQueen não foi o único designer a trabalhar com o não-usual e o provocativo na criação de imagens de moda, vinculadas à arte performática. “Thierry 2 Intertextualidade ou dialogismo é uma referência ou uma incorporação de um elemento discursivo a outro, podendo- se reconhecê-lo quando um autor constrói a sua obra com referências a textos, imagens ou a sons de outras obras e autores e até por si mesmo, como uma forma de reverência, de complemento e de elaboração do nexo e sentido deste texto/imagem (BARROS; FIORIN, 1999). 3 Por look entende-se a apresentação estética resultante da combinação de diversos elementos, como vestuário, aces- sórios, cabelo, maquiagem, etc. (MATHARU, 2011, p. 6). 13 Mugler e Moschino na década de 1980, e John Galliano, [...], Martin Margiela, Hussein Chalayan, Rei Kawakubo, Jum Nakao, Karlla Girotto, Ronaldo Fraga” (AVELAR, 2009, p. 118) são referências de designers que evidenciam tal tipo de criação em seus portifólios. Eram criações extravagantes, com cenários inusitados, silhuetas diferentes, com elemen- tos contraditórios, onde o modelo funcionava como o próprio performer. Para Duggan (2002), estes designers de moda contemporâneos promovem eventos que simulam peças teatrais, designadas como “teatro sem trama”, e que para nós são de grande importância, uma vez que estão agregando ao design, uma linguagem imagética que contribui com o pensar da sociedade vigente. Para desenvolver a coleção, objeto deste estudo, McQueen imergiu na década de 1950, sem falar da releitura4 do New Look (Dior), de 1947. Este retorno ao passado é co- mum no movimento cíclico da moda, pois “entrar em contato com o passado, conhecer novas formas de conceber o corpo são atividades que permitem estruturar construções discursivas mais abrangentes, [...]”. (CASTILHO, 2009, p. 137). No decorrer deste estudo, iremos tratar, também, da relação do design de moda com a arte, tema bastante debatido, mas que contemplará positivamente nossa investi- gação. Porém, vale mencionar que a destreza da modelagem das roupas, com perfeito caimento, costura invisível, encaixe das formas, denota o trabalho de um designer de moda com todas as suas especificidades. Isto porque o designer, através do conhecimen- to prático e teórico, possui a técnica específica e direcionada para a confecção do seu trabalho, assim como, qualquer profissional que se utiliza da tecnologia como ferramenta de trabalho. No ato de sua criação, o designer de moda elabora, implementa, testa, modela, tu- do minuciosamente feito a seu tempo e com consideráveis graus de precisão e exaustão, porém, quando as pessoas vestem roupas, não têm noção do que se passou antes que fossem roupas. Elas não têm a experiência dos intricados estágios iniciais da cons- trução, da escolha do tecido e do desenho e arranjo das peças do molde, da sen- sação de cortar o tecido, do encaixe dos componentes abstratos e da construção da roupa final. (MCDOWELL, apud JONES, 2005, p. 152-153). 4 Resgata elemento de construção do passado, reorganizadas ou reconstruídas plasticamente segundo uma nova pro- posta adequada a um novo momento, novo tempo. (CASTILHO, 2009, p. 136). 14 O que caracteriza um designer é justamente o trabalho sistêmico que emana uma conjunção de atividades para a composição de um produto industrial. A citação descrita demonstra, mesmo que de forma incompleta, o intricado sistema que deve ser cada vez mais integrado e no qual o designer de moda é o “maestro”, ou seja, ele administra, nor- teia sua equipe, visando a eficácia na concepção projetual. Se desprendendo, neste momento, da técnica do designer descrita, temos que o sociólogo M. Guyau, inspirador de Nietzsche e Durkheim, se baseia no entendimento da estética como vinculada aos desígnios da necessidade e do desejo social. Seu desenvolvi- mento, segundo Guyau representa a “pedra bruta”, a partir da qual irá ser construída uma sociedade. Ele estabelece, então, uma estreita ligação entre “a gênese do sentimen- to estético e a história das necessidades e dos desejos” (GUYAU, 1911 apud MAFFESOLI, 1996, p. 60). Portanto, há essência vital na estética, ela é um elemento estrutural do mundo, por que não dizer das imagens dos produtos de moda. Assim, certos designers transformam a apresentação de sua obra, o espetáculo, em uma oportunidade para investigar e refletir sobre as complexidades da vida contemporâ- nea. Assim, dão origem, como afirma Duggan (2002, p. 4), a “uma nova arte performática híbrida quase totalmente desvinculada dos aspectos tradicionalmente comerciais da in- dústria da confecção”. É o caso de Alexander McQueen, que, acima de sua maestria téc- nica, construiu uma reputação internacional com base em apresentações extravagantes e subversivas. Essas caracterizadas pela valorização de formas grotescas, que vão desde o design de calçados, de trajes, de acessórios, de maquiagem, até mesmo os cenários dos seus shows. Esses passam a extrapolar o entendimento do que vem a ser o simples espa- ço da passarela, para se transformar em um palco de teatro, com direito enredo, música, personagens performáticos. A subversão é tratada por McQueen através de looks, performances e acessórios, inclusos aos temas de coleção, capazes de chocar a opinião pública. Exemplos são muitos, mas vale lembrar os acessórios sadomasoquistas, das caveiras, dos chifres, das máscaras, dos looks que evocavam a loucura/hospício, dentre outros. Todos cobertos por um ideal surrealista. 15 Para adentramos mais especificamente no conteúdo deste projeto, iremos fazer uma breve explanação sobre seus capítulos: O CAPÍTULO 1 descreve os conceitos de design, arte e moda, assim como as rela- ções existentes entre eles. O CAPÍTULO 2 introduz o conceito de alta-costura e prêt-à-porter, viabilizando o en- tendimento sobre uma coleção de moda. O CAPÍTULO 3 aborda a estética instaurada no design de McQueen, com destaque para o belo e o sublime, o trágico, o surrealismo e a performance. O CAPÍTULO 4 é dedicado aos procedimentos metodológicos utilizados pelo pesqui- sador para realização desta pesquisa. O CAPÍTULO 5 discorre sobre a transtextualidade e sua abordagem analítica no cor- pus deste estudo. O PORQUÊ DA PESQUISA Indagando sobre o fundamento do design de moda ser, também, concebido como arte e a atuação do designer, no espetáculo, configurar um cenário de ativação contesta- tória diante dos acontecimentos do mundo contemporâneo, torna-se fundamental que compreendamos como tal fenômeno está sendo implementado. Para tanto, nos guiare- mos por um objetivo geral e três específicos. OBJETIVO GERAL Identificar como o contemporâneo é revelado criticamente pela obra the horn of plenty de McQueen. OBJETIVOS ESPECÍFICOS 1. Pesquisar dentre as coleções conceituais criadas por McQueen, aquela que pos- sui mais referências visuais do seu trabalho; 2. Observar quais os movimentos artísticos influenciaram a obra analisada; 3. Perceber de que forma ele se utiliza da arte para revelar sua reflexão crítica a- cerca do contemporâneo. 16 CAPÍTULO 1. Design, moda e arte 1.1. o que vem a ser o design? A etimologia da palavra design, em especial no Brasil, onde o vocábulo é importado do inglês, é afeito a gerar confusões e desconfianças. Em inglês, a palavra design se refere tanto “à ideia de plano, desígnio, intenção, quanto à de configuração, arranjo, estrutura (e não apenas de objetos de fabricação humana, pois é perfeitamente aceitável, em in- glês, falar do design do universo ou de uma molécula)” (CARDOSO, 2000, p. 16). Uma ori- gem remota da palavra design está no latim designare, verbo que significa tanto designar como desenhar. Observamos, então, que pelo viés etimológico, o termo já gera ambigui- dades, algo que Cardoso (Ibid) explana a partir de uma tensão dinâmica “entre um aspec- to abstrato de conceber / projetar / atribuir e outro concreto de registrar / confi- gurar/formar”. Dentre as definições do design, a maioria concorda que esse trabalha a união dos dois níveis citados, integrando a forma material aos conceitos intelectuais. Bürdek (2006) discorre que na virada do século XX para o século XXI ele sugeriu que em vez de criarem novas definições ou descrições do design fossem designados alguns problemas que o de- sign deveria atender. Por exemplo, visualizar progressos tecnológicos; priorizar a utilização e o fácil manejo de produ- tos [...]; tornar transparente o contexto da produção, do consumo e da reutiliza- ção; promover serviços e a comunicação, mas também, quando necessário, exer- cer com energia a tarefa de evitar produtos sem sentido. (BÜRDEK, 2006, p. 16). Os problemas designados para o profissional do design estão coerentes com a mis- são de um designer numa indústria, porém Bürdek, nesta citação, não discute a função estética e simbólica do design. Essas concepções entram em consonância com o lado be- lo, pois uma forma com design é um produto com valor agregado. Maffesoli (1999, p. 127) discorre que a “reflexão sobre a ‘forma’ insiste simultane- amente na importância da globalidade e, de maneira paradoxal, na ‘profundidade’ da a- parência”. Seria uma forma de identificação em detrimento da individualidade modernis- ta. Podemos situar, então, que a aparência, ou ainda, os objetos que permeiam a vida do 17 homem são capazes de se identificar com a história de uma dada época, no caso em questão, o momento presente. Os objetos aqui explanados, não estão mais escondidos por trás de sua funcionalidade, eles agora são imaginados, são vinculados ao imagético, ao emocional. “Em suma, o objeto, em suas diversas modulações, doméstica, pública, ar- quitetural, lazer, etc. torna-se o totem em torno do qual se organiza a vida social” (idem, p. 287). As relações sociais do homem levam em consideração a informação, a comunica- ção, a interação e a percepção social, enquanto a relação do homem com os objetos é caracterizada pelos campos da ciência vinculados a teoria da informação, percepção esté- tica, semiótica e simbolismo (LÖBACH, 2001). Para Maffesoli (1999), não há essa separação entre os mundos social e “objetal”, ou seja, existe uma espécie de simbiose entre ambos, gerando a necessidade de compreen- são das questões sociais e estéticas envolvidas em conjunto. Sendo assim, o design é uma profissão necessária para a construção de uma socie- dade onde há a ênfase nos objetos de consumo. Não estamos querendo dizer, com isso, que seria uma profissão vinculada ao supérfluo, muito pelo contrário, é através da ação projetual de um designer que esses objetos são gerados. O designer tem como responsa- bilidade a criação do projeto, com uma análise sistêmica de todas as etapas da criação até o produto final. Deste modo, este profissional deve também ir ao “chão de fábrica” para conhecer e viabilizar a confecção de seu artefato. O diferencial construtivo será percebido pelo consumidor, diante dos aspectos fisiológicos (funções práticas), estéticos e simbóli- cos, proferidos por Löbach. Essas pensadas a partir das necessidades de um público espe- cífico, que hoje objetiva consumir bens concebidos segundo à visão da macrotendência mundial de preservação do meio ambiente. De modo mais completo, Niemeyer (1998, p. 25) salienta que design é o “equacio- namento simultâneo de fatores sociais, antropológicos, ecológicos, ergonômicos, tecno- lógicos e econômicos, na concepção de elementos e sistemas materiais necessários à vi- da, ao bem-estar e à cultura do homem”. Aqui é englobada a interdisciplinaridade do de- sign, ao mesmo tempo em que o mantém conectado a outras fundamentações teóricas — áreas afins —, há o momento da desconexão, da imersão do designer em sua obra, corroborando o ato criador. 18 O design é um campo de atuação permeado por contradições e disputas, sobretu- do, como sinaliza Cardoso (2005), entre os que se consideram detentores morais dos va- lores da profissão, como é o caso de certas faculdades, associações de classe. O início do design no Brasil5 destaca, certamente, esta vertente que designa o poder formador do ofício ora debatido, a determinado grupo, instituição, período. É óbvio que há de serem percebidas, com certeza, concepções que compactuem com a identidade brasileira nativa e que foram rompidas pelos paradigmas importados do modelo ulmiano/concreto. Tal embate é perceptível nos dias atuais, onde aumenta o número de cursos de design no Brasil, mantendo a mesma temática e raízes vinculadas aos solos estrangeiros, figurando como nomenclatura a prevalência da terminologia inglesa, design. São eles, design de produto, design gráfico, design de moda, webdesign, design de interiores, design de inter- faces, e até mesmo as designações como, hair design, cake design. 1.1.1. Relação design e arte Para muitos profissionais design é técnica, para outros design é técnica e arte, têm aque- les, ainda, que dizem que o design com a técnica está vinculado à arte. Bom, não iremos gerar uma discussão que sabemos não ter fim, mas iremos compartilhar ideias que nos auxiliarão a ter um pensamento mais objetivo sobre o assunto. Tolstoi (2002) em seu livro ‘o que é arte?’ admite que a atividade de um alfaiate (no caso, cita Worth por ser seu contemporâneo), de um perfumista, de um cabeleireiro, de um figurinista, de um cozinheiro são atividades artísticas. As pessoas que não percebem, são leigas, não estudaram questões da estética. Cita ainda que existiu uma discussão so- bre “o fato de ser arte a arte do costureiro, e sobre a insensibilidade e limitação das pes- soas que não veem no traje de uma mulher um assunto da mais elevada arte” (ibid, p. 32). Jean-Marie Guyau, filósofo francês também considerava como arte, “as artes do ves- tuário, do gosto e do tato” (idem). Posteriormente, os estetas incluíram, também, o olfa- to, a audição e a visão ao mundo das artes, tornando difícil a percepção da arte apenas como manifestação da beleza, pois, agora atrelada a arte também estão os nossos senti- dos. 5 A formação da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), em 1963 é tida geralmente como marco definitivo do início dos cursos de design no Brasil (CARDOSO, 2000). 19 Seria então a nossa percepção sensorial que nos direcionaria para um objeto estéti- co — um objeto de arte? Este questionamento também não seria pertinente para um ob- jeto com design? Em nossa opinião sim, pois ambos, produtos, são capazes de estimular nossas potencialidades seletivas de captar mensagens do mundo exterior, através de nos- sos órgãos de sentido. Para a designer Gloria Coelho (TREFAUT, 2014, p. 21), “ainda que muitas vezes faça ‘peças artísticas’, ela acha que moda é comércio”. Já na opinião de McQueen (WATT, 2012), a moda é apenas o meio que canaliza sua expressão artística. A primeira trabalha no Brasil, onde o recurso financeiro para o mercado da moda é limitado, tendo como ob- jetivo principal as coleções comerciais. O segundo era proprietário de uma marca de luxo, em Londres, recebia patrocínio de empresas para seus espetáculos e a sua coleção con- ceitual, além de vir com algumas peças passíveis de serem usadas, expressava ideias que estimulavam a consciência da audiência, através da percepção sensorial. Percebemos opiniões diversas acerca do enunciado, mas quem sabe ambas estejam corretas, dentro do conhecimento adquirido por cada indivíduo. Pois, se formos falar do design esse é a linguagem a partir da qual se constitui o objeto, além de ser o responsável por confeccionar as mensagens que eles carregam. “O papel dos designers sofisticados, hoje, tanto é ser contadores de histórias, fazer um design que fale de uma forma que transmita essas mensagens, quanto resolver problemas formais e funcionais” (SUDJIC, 2010, p. 21). Atributos que, em sua maioria, encontram-se fincados também na arte. E como grande parte das obras de arte habitam os museus, produtos de design de moda também possuem este espaço. Moura (in PIRES, 2008) salienta que tanto Gaultier quanto Lacroix, Versace, Westwook, Viktor & Rolf, entre outros, possuem espaços dedi- cados e abertos à sua produção nos museus europeus. Viktor & Rolf, inclusive, doaram recentemente as peças da coleção primavera/verão 2015 para o museu Boijmans Van Beuningen, na Holanda. Há tempo já existe a parceria da dupla de designers com o mu- seu, algo que gerou encomendas de peças doadas ou emprestadas ao museu, como parte do projeto Fashion on the edge, de Han Nefkens. Este projeto teve início em 2006 e desde então tem investido no desenvolvimento de vestidos e instalações feitas por Viktor & Rolf, Hussein Chalayan, dentre outros. 20 1.2. Indagando sobre o design de moda O sociólogo alemão Georges Simmel, precursor da sociologia “surrealista”, foi quem, no início do século XX, atraiu a reflexão filosófica e a análise sociológica para as futilidades da “moda”, do “galanteio”, das “grandes cidades” (Roma, Florença, Veneza...), do “aventu- reiro”, do “jogador”, do “retrato”, etc. (SIMMEL, 1904 apud DURAN, 2004, p. 54). Poderíamos pontuar que o dito anteriormente pode significar o início do estudo da moda, ou propriamente, o interesse dos teóricos sobre o fenômeno da moda. Muito do desprezo da comunidade científica pela moda, vem em parte por ela ser considerada “su- perficial que visa sustentar o consumo de maneira artificial (Crane & Bovone, 2006; Ka- wamura, 2005; Lipovetsky, 1987; Monneyron, 2006; Waquet & Laporte, 2002)” (GODART, 2010, p. 9). Porém, tal percepção não é real, visto que, dentre outros aspectos, a moda é um segmento que emprega milhares de pessoas, promovendo o desenvolvimento de na- ções inteiras. Assim, além de ser uma importante atividade econômica, a moda significa um objeto social singular no cruzamento das artes com a indústria. Godart (2010, p. 14) salienta que “a moda além de ser uma atividade econômica pe- lo fato de produzir objetos, ela é também uma atividade artística porque gera símbolos”. Sendo assim, a moda (vestuário) atual não se contenta em transformar tecidos em rou- pas, pois seu intuito é gerar objetos com significação, algo que desqualifica a citação que afirma que a moda é superficial. Se a moda gera signos é porque ela é portadora de uma linguagem que comunica, ou seja, “as roupas são ‘máquinas de comunicar’” (MAFFESOLI, 1999, p. 161). O dito acima corrobora com o pensamento de Castilho (2009, p. 34) que afirma que “dentro das possibilidades humanas criadas para o fenômeno da comunicação, a moda pode ser compreendida como expressão de um conteúdo e, assim, ela pode ser lida como um texto, que, por sua vez veicula um discurso”. Esse discurso serve para indicar, infor- mar, ou mesmo incitar, como no caso da obra de McQueen. Castilho (idem) informa, ainda, que a moda de vestuário é “uma das mais espetacu- lares e significativas formas de expressão articulada e desenvolvida pela cultura humana”. Como peça de adorno, o vestuário, faz parte de um discurso maior, a moda, e com ela estabelece uma relação dialógica, do mesmo modo como ocorre com relação ao corpo humano. Ao ser utilizado em um corpo, o vestuário transmite o que o seu emissor atribui 21 a outro sujeito, pois, “além de marcar a presença de tal sujeito, já direciona um certo tipo de comportamento dos ‘outros’ — e do próprio sujeito”. (id.) No que concerne a presença da mídia na moda, essa vai difundir sua marca para a- lém das fronteiras comerciais, em busca da construção de um projeto de sentido. Esse tem como função, também, “a escolha das ferramentas comerciais mais adequadas, que devem ser aplicadas em prol da construção da imaterialidade da marca” (FAÇANHA; MESQUITA, 2012, p. 222). O imaterial deve ser concebido como o simbólico, ou seja, é nesta dimensão que a moda faz prevalecer os desejos e os projetos pessoais dos indiví- duos — criadores e usuários. Aqui podemos vincular a moda ao design. Nesse momento, o designer de moda tem como função conceber produtos, no caso em questão, moda de vestuário, que traduza o imaginário social. Nessa acepção, o profissional citado deverá ter um conhecimento minucioso do seu público alvo e do seu mercado, assim como a per- cepção de suas aspirações simbólicas. Jones (2005) salienta que os designers de moda não podem confiar apenas na intui- ção. Eles têm que se manter em constante pesquisa e aguçar a percepção para captar os sinais das mudanças. Pois, como afirma Chanel a “moda não é algo que existe apenas em vestidos. A moda está no céu, na rua; a moda tem que ser feita com ideias, de acordo com a maneira que vivemos, e mediante ao que está acontecendo” (CHANEL apud DK, 2012, p. 255). Um designer de moda comprometido com sua obra precisa pesquisar em demasia e desenvolver um tema ou um conceito que servirá como inspiração para sua criação. Este tema norteará o designer na sua ação projetual, promovendo um trabalho coeso, além de definir certos limites quando da utilização de elementos de estilo, algo que fará com que a coleção tenha uma unidade visual. Descobrir inovações na área têxtil, e áreas afins, também é ação do designer de moda. É preciso que o profissional entenda as propriedades e qualidades do tecido, pois o peso e caimento de um tecido influirão na silhueta de uma roupa. No que tange a cons- trução projetual é imprescindível que o designer domine a técnica de modelagem e/ou moulage, pois é ela que vai tornar sua obra tangível através da tridimensionalidade gera- da. O desenho de moda, portanto, só poderá ser fielmente seguido se o designer tiver o 22 conhecimento estrutural de sua obra, caso contrário o que está sendo demonstrado no desenho planificado não acompanhará sua evolução na tridimensão. A técnica de moulage (Figura 1) que faz parte do sistema de pro- dução de um produto de moda de vestuário é a preferida por McQue- en para a confecção de suas roupas. Jones (2005, p. 149) discorre que “moulage é esculpir com tecido, e funciona melhor com tecidos male- áveis e em quantidades bem gene- rosas”. Para trabalhar o tecido pode ser utilizada, como base, a modelo propriamente dita, caso essa tenha disponibilidade, ou pode ser usado um manequim. A preferência de McQueen por esta técnica tridimensional de modela- gem, em detrimento da modelagem plana — feita a partir de moldes planificados —, de- ve-se em grande parte, além do seu talento, pelas formas exóticas criadas a partir da moulage. Diante das habilidades do designer de moda, Rech as apresenta como uma inter- pretação das habilidades do designer de produto, assim descritas: capacidade para pesquisar, organizar e inovar; habilidade para desenvolver res- postas apropriadas para problemas novos; aptidão para testar essas respostas, a- través de peças-piloto; treinamento para comunicar esses desenvolvimentos atra- vés de croquis, modelos, modelagem e pilotagem; talento para combinar forma, técnica, condições humanas e sociais e arrebatamento ético; sabedoria para pre- ver consequências ecológicas, econômicas, sociais e políticas da interferência do design; compreensão para trabalhar em equipes multidisciplinares. (RECH, 2002, p. 49). A esta lista de habilidades, iremos acrescentar a necessidade do designer de conhe- cer o mercado no qual irá trabalhar, seu público-alvo, pois o que vai influir positivamente Figura 1. McQueen desenvolvendo a técnica de moulage Fonte: WAPLINGTON, 2013 23 para a aceitação de sua criação é o correto entendimento comportamental dos consumi- dores. As mudanças anuais das estações foram sempre os parâmetros para o desenvolvi- mento de diferentes coleções. Na atualidade, porém, segundo Duarte6 (2011), “as cole- ções são orientadas pelo mercado”. Há de ser destacado que grande parte das bibliogra- fias de moda ainda possui a referência das estações do ano, como parâmetro para a mu- dança de coleção. Isso se deve ao fato de que muitos dos autores destes livros, não são designers de moda atuantes no mercado, o que denota o distanciamento da teoria com a prática do designer. Outro fato a ser considerado é que, assim como o ciclo da moda, ca- racterizado pelo período que se inicia a partir dos estágios introdutórios da moda, pas- sando pelos estágios aceitação, até chegar aos estágios de regressão (obsolescência), as publicações da área também seguem este caminho. Como a moda também é comportamento e, na atualidade, o mercado vive em constante mutação, o que é dito hoje sobre moda, não o é representado no amanhã. Os livros de moda que se relacionam com a moda contemporânea, rapidamente entram em desuso, deixando com uma maior constância os livros que narram a história da moda. Uma questão pertinente, neste momento, seria discernir sobre a diferença entre o design de produto e o design de moda, afinal a moda de vestuário também é um produto confeccionado em indústria. O que temos a revelar é que o “tempo” é o principal diferen- ciador das ênfases citadas. É justamente a partir da “obsolescência programada”, do tempo do produto na prateleira, que a moda de vestuário se diferencia. O ciclo da moda enfatiza a necessidade de mudança em curtos períodos. Por isso, de seis em seis meses, somos convidados a adquirir peças novas, e com o advento do fast-fashion o tempo foi restrito a semanas. Já um eletrodoméstico, por exemplo, possui uma vida útil maior ao ser comparado a uma roupa. É certo que os produtos industriais, eletrodomésticos, ele- troeletrônicos, automóveis, mobiliários, etc., não possuem a mesma durabilidade do pas- sado, mas nada é tão fugaz quanto o ciclo de vida dos produtos da moda de vestuário. A indústria da moda, seguindo as bibliografias pesquisadas, trabalha com duas da- tas de entrega essenciais: “primavera/verão (fim de janeiro/início de fevereiro), e outo- 6 Luiz Clério Duarte é designer de moda, diretor criativo da Dijolly, confecção de roupas femininas de Caruaru Pernam- buco, e instrutor de moda do Senac PE. 24 no/inverno (fim de julho/início de agosto)” (MATHARU, 2011, p. 86)7. Isso quando se trata de empresas de pequeno porte, pois empresas maiores produzem duas coleções meno- res que vão para as lojas no período natalino e no alto verão. Sorger e Udale (2009) ex- planam que a coleção de Natal, também conhecida como coleção “cruzeiro”8, pode inclu- ir roupas de festa ou roupas para as férias de inverno. Já a coleção do alto verão é focali- zada em roupas de praia e de verão. Segundo Cietta (2010, p. 130) as coleções cruzeiro, “são verdadeiras minicoleções apresentadas por volta de dois a três meses antes da cole- ção principal”. É a partir da moda (vestuário) comercial, ou seja, aquela cujo enfoque se situa na produção e consumo em grande escala que ocorre a “obsolescência programada”. É o canal fincado no obsoleto que constitui a principal diferença do design de produto para o design de moda. A característica do descarte planejado é propriedade da indústria da moda, pois a moda de vestuário “move-se rapidamente em comparação a outras indús- trias criativas e isso se reflete na pressão constante para lançar tendências a cada esta- ção”. (SORGER; UDALE, 2009. p. 16). No entanto, é importante mencionar que a moda feita por designers não está só vinculada ao vestuário, mas também inclui, mobiliário, carros, relógios, utilitários de casa e escritório, etc. A designer Gloria Coelho, por exemplo, além da produção de sua marca, desenha meias para a Trifil, luminárias e, atualmente, está decorando os quartos do hotel Best Western Plus Arpoador Fashion, no Rio de Janeiro, tendo por base suas coleções: Pokémon, Luis XIV, Neutrinos. (TREFAUT, 2014). O designer francês, Alexandre Vauthier, membro da alta-costura parisiense, enfatiza, em seu site, que o seu viés criativo se esten- de a partir dos diversos universos artísticos, tais como: figurinos, perfumes, música, de- sign de interiores. Estes produtos, prioritariamente, não seguem o calendário da moda de vestuário que realmente é cíclico e veloz, com vistas a tornar o produto obsoleto em, no mínimo, 6 meses de uso, mas utilizam traços da indústria do vestuário. Geralmente, estes traços levam em consideração as pesquisas de estilos que estão em voga no momento da criação. 7 No Brasil, o calendário da indústria da moda é mais flexível, mas, em geral, os lançamentos outono/inverno aconte- cem entre janeiro e fevereiro e os de primavera/verão entre junho e julho. (MATHARU, 2011, p. 86). 8 No Brasil, as coleções “cruzeiro” são de verão e ocorrem no final do ano. (ibid). https://www.facebook.com/pages/Alexandre-Vauthier/245989379252 25 No que concerne ao explanado anteriormente, Lipovetsky (1989, p. 183) salienta que “esta é a idade da moda concluída (ou completa), da extensão de seu processo para instâncias da vida coletiva cada vez mais amplas. Ela deixa de ser um setor específico e periférico e passa a ser uma ‘forma geral’ que opera no todo social”. Efetivamente, mui- tas das esferas da vida social, econômica, política estão sujeitas às mudanças cíclicas e renovação permanente. Esta “forma geral” evidenciada por Lipovetsky se encontra, na atualidade, em muitas esferas da visa social. Como exemplos podemos citar: [...], o fato de que a marca francesa de cosméticos, a L’Oreál, assinala sistemati- camente sua origem geográfica (Paris) a faz participar da mesma utilização da mo- da no tocante à indústria como referência. O universo do luxo também foi consci- entemente adotado por numerosas marcas do domínio da indústria alimentícia, conhecida por suas margens muitos estreitas e competição exacerbada. Por e- xemplo, a marca de café Nespresso organizou seus locais de distribuição inspiran- do-se no universo da joalharia: localizações exclusivas, vendedoras e vendedores elegantes e distintos, universo visual luxuoso e sóbrio. Num registro próximo, o dono do restaurante Dalloyau, em Paris, utiliza a referência às coleções “primave- ra/verão” e “outono/inverno” para apresentar suas criações culinárias. (GODART, 2010, p. 141-142). Assim, podemos observar que a moda centrada no design oferece um típico exem- plo do impacto que ela pode gerar na economia, na cultura e na sociedade. Poderíamos até concordar com Lipovetsky de que estamos vivendo a “idade da moda”. Apesar dessa ter sofrido forte abalo após a crise econômica de 2008, considerado o pior colapso finan- ceiro desde a Segunda Guerra Mundial, o que causou o desmoronamento de sistemas financeiros em diversas áreas, entre eles a falência das marcas de luxo Cristian Lacroix e Escada. (MATHARU, 2011). Diante da evidência da crise do crédito ocorrida na primeira década no século XXI, as marcas de moda independentes e os grandes conglomerados necessitaram reavaliar suas estratégias de mercado para se manterem competitivas. Apesar disso, Sudjic (2010) discorre que mesmo que a moda seja vista por alguns, como uma arte menor, é ela que combina sexo, status, celebridade, conferindo poder, tanto financeiro quanto cultural, a seus detentores. 26 Atualmente o designer de moda é uma celebridade. São pessoas que assim como as estrelas do cinema e da televisão têm uma ampla visibilidade e responsabilidade social, pois são parâmetros de comportamento para a sociedade. Em 2008, Karl Lagerfeld, dire- tor criativo da Chanel, participou como garoto propaganda de uma campanha para a se- gurança nas estradas, na qual ele exibia um colete amarelo refletor, sobre sua roupa — um smoking com gravata borboleta —, declarando: “É amarelo, é feio, não combina com nada, mas isto pode salvar sua vida” (GODART, 2010, p. 93). Essa personificação da moda alterou profundamente a estrutura da indústria ao dispor à frente o criador e sua grife. Herchcovitch (2007, p. 51) salienta que “o interesse pela figura pública do designer aumentou e muito: vai desde o motivo pelo qual você sai na rua de jeans e moletom ao roteiro de suas viagens de férias”. Recentemente, muitos dos designers de moda não são mais proprietários de suas marcas, essas estão nas mãos de conglomerados de grifes de luxo, também conhecidos como “impérios”9, que aglutinam marcas de moda, assim como demais produtos de luxo, tais como bebidas, relógios, canetas, etc. Porém, mesmo que a identidade da grife perca um pouco à associação com o estilo do designer, é preponderante a necessidade de iden- tificação com o criador para indicar o valor imaterial da marca diante do público consu- midor. Em muitos momentos, o designer de moda é chamado de estilista, porém há dife- rença entre estes profissionais. O designer tem uma relação com a indústria e com o mer- cado, além da visão objetiva do produto, com vistas à satisfação do público-alvo. Contu- do, Cardoso (1998) salienta que os produtos não são apenas soluções para necessidades objetivas dos usuários, pois esses mesmos usuários também possuem necessidades sub- jetivas – desejos, expectativas, sonhos. Assim, se o designer deve levar em consideração as necessidades subjetivas do usuário e os significados adquiridos pelos produtos, “sua atuação não está vinculada apenas às questões produtivas e técnicas, mas também às 9 No caso da moda, a metáfora “império” é quase sempre utilizada para designar mais particularmente os dois maiores conglomerados da indústria da moda, os franceses PPP (antigamente Pinault-Printemps-Redoute) e LVMH (Moët Hen- nessy-Louis Vuitton). A ancestral da PPR, Pinault AS, foi fundada em 1963 por François Pinault. Em sua origem ela é uma empresa especializada na produção e comercialização de madeira. [...]. Em 1999, o grupo entra no setor da moda e do luxo com a compra da Gucci, que agrupa atualmente todas as suas atividades de moda e luxo. Em 2005, o grupo torna- se PPR. A LVMH tem uma história diferente, e suas raízes encontram-se em algumas marcas mais antigas do luxo e da moda franceses. LVMH [...] agrupa, com efeito, marcas tão antigas como Moët et Chandom (o champanhe) ou Hen- nessy (o conhaque), fundadas no século XVIII, e Louis Vuitton, fundada em 1854. O grupo nasceu em 1987. Seu principal acionista é Bernard Arnault, que detém a maioria por meio de uma estrutura financeira complexa que inclui o “Groupe Arnault” e a Christian Dior. (GODART, 2010, p. 132,136). 27 questões expressivas e simbólicas” (CHRISTO, In: Pires, 2008, p. 34). Algo que configura o pensamento de Löbach sobre a concepção de um produto industrial ser pautada a partir das funções práticas, estéticas e simbólicas. Por sua vez, o estilista está mais vinculado ao viés artístico da produção. É um artista, “um profissional criativo, livre para a conceituação de um objeto e desvinculado das questões que en- volvem o mercado, um sujeito livre para criar peças únicas” (i- dem). O designer tem uma visão macro de sua criação, pois ele es- tá presente e atuando em todos os segmentos referentes a criação de uma coleção de moda, desde a escolha do tema à apresentação nos desfiles/espetáculos. Vale esclarecer que um bom designer não trabalha isoladamente. Para obter sucesso em sua carreira é necessário que o designer de moda seja apoiado por um grupo de profissionais, tais como, produtores de moda e estilo, relações pú- blicas, jornalistas, ilustradores, maquiadores, fotógrafos, agentes comerciais, cenografistas, etc. Profissionais esses que estejam en- gajados no mercado da moda. 1.3. Moda e arte numa mesma concepção estética Diante de um desfile de moda conceitual, experienciamos sensa- ções diversas que nos mantém absortos no espetáculo que se re- vela. A concentração entra em sintonia com a percepção dos sen- tidos que ora aflorados por imagens, sons, cores, geram um ima- ginário que agrada aos olhos. Por vezes, também desagradam, a depender do repertório da audiência. Porém, a moda no sentido vinculado a arte não está restrita apenas ao cenário, ao desfile de moda, mas também possui em sua especificidade a fonte de inspi- ração para criações de peças de vestuário, como também destaca o viés artesanal da alta- costura que configura a noção de obra de arte. Figuras 2 | 3. Espartilho na coleção, 2001, da Chloé. Seguida da pintura de Toulouse- Lautrec, Mulher com espartilho (1896) Fonte: PEZZOLO, 2013, p. 76-77 28 A arte, dentre outras, sempre foi fonte de inspiração para os designers de moda, como podemos ver na coleção da Chloé (Figura 2-3), desfilada em março de 2001. Essa coleção mostra o espartilho, que segundo Evans (2003, p. 22), retornou ao mundo fashi- on “a partir das criações de Vivienne Westwood e Jean-Paul Gaultier em meados dos anos de 1980”. O espartilho é uma peça de vestuário muito aplicada em pinturas do século XVI e XVII, período no qual era recorrente sua utilização no vestuário feminino. Esse elemen- to caiu em desuso no início do século XX, por diversas razões, dentre elas, as conjunturas sócio-econômicas da época e investidas do costureiro Paul Poiret, no sentido de liberar o corpo feminino das amarras impostas pelo corset. Seeling (2013) salienta que a amizade de Poiret com artistas, a destacar com o pin- tor Raoul Dufy, participante do terceiro grupo Les fauves10 (as feras), contribuiu para as concepções artísticas dos seus projetos, além de permitir o desenvolvimento de uma i- deia fixa do costureiro: reunir a moda e a arte numa mesma expressão estética. Pezzolo (2013) discorre que Dufy criou motivos belíssimos a serem estampados nos tecidos sun- tuosos criados por Poiret. Assim, Poiret pode ser considerado o primeiro designer a aspirar a ideia de uma o- bra de arte completa. Ele apresentou seu ideal na boutique Martine, em 1924, onde a moda de vestuário estava conjugada aos acessórios, ao design de interiores, sem falar do seu perfume Rosine. (SEELING, 2013). Pensamento similar era promovido pelos artistas da Secessão vienense11 que cultuavam a presença da “obra de arte total”, a qual a moda deveria estar incorporada. No decorrer da história da moda, a conjunção moda e arte figura no trabalho de costureiros como Elsa Schiaparelli, que mantém amizades que datam do início da década de 1920 com artistas dadaístas e surrealistas, como Francis Picabia, Man Ray, Marcel Du- champ e Salvador Dalí. Sua moda era provocativa e permeada de símbolos exóticos. 10 Os fauvistas, do francês Les fauves, faziam das cores o elemento principal dos seus quadros e eram unânimes na sua rejeição das nuances da paleta impressionista e na sua procura pela força expressiva das cores puras, onde a reprodu- ção realista da natureza não fazia parte das suas preocupações. (MATISSE, 2005, p. 14). 11 A Secessão vienense foi um movimento liderado pelo pintor Gustav Klimt, concebido pela recusa da tradição acadê- mica nas artes. (BRANDSTÄTTER, 1999). 29 Salvador Dalí, que desenhou o chapéu sapa- to (Figura 4) para a coleção de 1937 de Schiaparel- li, foi também igualmente responsável por dar o suporte a dois ícones do vestuário, na década de 1930. O vestido de seda criado por Schiaparelli, em 1937, com grande lagosta pintada por Dalí (Fi- gura 5) e o vestido tear, em 1938. (Figura 6). Poiret e Schiaparelli viam a moda como uma forma de teatro ou performance, daí, por exten- são, uma forma de arte. Temos, então, que a visão artística empreendida pelos designers citados con- tribuiu para conceber a moda, da arte em função do apelo popular, mas se vincula mais propria- mente com a disseminação das criações artísticas entre grupos sociais. Grupos esses que tiveram pouco contato com a dita arte erudita ou com a- queles que se sentiam desconfortáveis para abor- dar o assunto. Quando Yves Saint Laurent, em 1965, con- fecciona o vestido “Mondrian” (Figura 7-8), pode- mos observar a relevância que a arte desperta nos criadores de moda, pois neste mo- mento o corpo humano se transforma em um expositor de obra de arte. Assim, no que tange à relação da moda com a arte é correto afirmar que há um interesse do mundo da moda em relação ao mundo das artes. Sobre a moda conceitual, temos que emergiu nos anos de 1980 uma geração de de- signers que tinham um viés intelectual preparado para agir, alusivamente, aos artistas conceituais12 da década de 1970. Eram criadores que se colocavam diante da sociedade com questionamentos acerca de problemas sócio-econômico-culturais, e que, para mui- tos, representavam um enigma. É justamente o estabelecimento de uma forma de pensar 12 A Arte Conceitual opera na contramão dos princípios que norteiam o que seja uma obra de arte e por isso representa um momento tão significante na história da arte contemporânea. Em vez da permanência, a transitoriedade; a unicida- de se esvai frente à reprodutibilidade; contra a autonomia, a contextualização; a autoria se esfacela frente às poéticas da apropriação; a função intelectual é determinante na recepção. (FREIRE, 2006, p. 8). Figuras 4|5|6. Acima, Chapéu sapato; direita superior, ves- tido lagosta; direita inferior, vestido tear. Fonte: SEELING, 2013, p. 90-87 30 que não se caracterizava pelo cartesianismo, mas sim pondera- va, muito conhecimento, indagações e observação do imaginá- rio da sociedade. Neste período, discorre Steele (2012), onde houve um aumento da discussão sobre a moda e a arte, é des- tacado a conexão com as exibições de moda em museus. O reconhecimento do vanguardismo realizado pela moda, através das inovações criativas ofertadas pelos designers de moda, na década de 1980, teve como um do seus ápices o tra- balho dos designers japoneses, em especial, Issey Miyake (Figu- ra 9), Yohji Yamamoto e Rei Kawakubo (Figura 10) da Comme des Garçons. Clark (2012) salienta algumas características do moda dos designers japoneses: o vestuário que eles criavam não eram familiar aos olhos; eles cobriam grande parte do cor- po e não faziam alusão a sua forma natural; suas criações podi- am vestir diferentes gerações, e não só os jovens; e a moda ja- ponesa não necessariamente deveria seguir tendências, ela era atemporal. Para os designers japoneses, a aparente desvanta- gem concebida por não fazerem parte do mundo ocidental, foi suplantada pela atenção que eles receberam da mídia. Assim como na história da arte existiam grupos de artistas que defendiam determinados ideias, demonstrados a partir de suas criações artísticas, como os expostos pelos surrealistas, pe- los dadaístas, pelos cubistas, etc., também na moda figuravam os grupos que praticavam a moda de forma não tradicional. Um exemplo, é o grupo denominado de Antwerp Six, que segundo Clark (2012) foi um influ- ente grupo de designers de moda, graduados na Royal Academy of Fine Arts, na Antuér- pia, entre 1980 e 1981. O grupo era formado por Walter Van Beirendonck, Ann Demeu- lemeester, Dries Van Noten, Dirk Van Saene, Dirk Bikkembergs e Marina Yee. O grupo Antwerp Six perturbou vários dos fundamentos da moda europeia, como por exemplo, o corte das roupas, a elegância, o estilo. Eles trabalhavam, explorando temas como a me- tamorfose, a sedução, a identidade, a androginia, temas esses, expressados a partir de Figuras 7|8. Vestidos Mondrian, coleção de Yves Saint Laurent, 1965. Fontes: GECZY; KARAMINAS, 2012, p. 83 | SEELING, 2013, p. 151 31 histórias de contos de fada, de violên- cia, de agressão, através do estabele- cimento de convenções que desafia- vam o fazer e o vestir das roupas. Outro designer, formado na Ro- yal Academy of Fine Arts, considerado o mais influente designer belga até o momento, chama-se Martin Margiela (CLARK, 2012). Em 1988, com sua ha- bilidade artesanal e o conhecimento do vestuário e do corpo, Margiela es- tabeleceu sua obra vinculada às ca- racterísticas demonstradas pelos de- signers de moda conceituais. O trabalho de Margiela surgiu para desconstruir as técnicas científicas que regiam a alta-costura, criando a partir de roupas desvalorizadas, exempla- res com novas formações, por exemplo, a partir da desconstrução de velhas meias do e- xército, ele gerava um suéter. (EVANS, 2003, p. 35). Para Nathalie Khan (In SVENDSEN, 2010, p. 121), porém, o trabalho de Margiela é arte e não design, pois suas roupas contêm “um comentário reflexivo sobre a indústria da moda real da qual ele mesmo é parte”. Para que fique mais claro, temos que em 1997, Margiela criou novos looks a partir de coleções antigas e depois as tornou velhas nova- mente, pulverizando-as com mofos, bactérias, antes de colocá-las em exposição no Mu- seum Boijmans van Beuningen, em Roterdam. O fato é que o ato da reflexão que Margie- la proporcionou com este trabalho, é crescente na moda contemporânea e é característi- ca de designers da atualidade, apesar de termos consciência de que é difícil gerar conflito num mercado dominado pelo capital. Outra instituição de ensino que foi preponderante para a formação de designers com o viés artístico e inovador foi a Central St. Martins College of arts & design (CSM). De acordo com Hussein Chalayan (In STEELE, 2012, p. 24), ex-aluno da CSM, a escola “era a própria instituição de arte, a moda somente figurava em um dos seus departamentos. Figuras 9|10. Direita, Pleated dress, Miyake, 1994 | Esquerda, Ombreiras de plu- mas foram costuradas em lugares irregulares do vestido de Kawakubo, 1997. Fontes: SEELING, 2013, p. 181 | SORGER; UDALE, 2009, p. 38 32 [...]. Nós éramos como artistas do corpo, porém nós tínhamos que aprender como fazer nossas roupas serem vendidas”. Para Holzmeister (2010), os anos 1990 acrescentaram muito ao mundo da moda. Aquelas eram roupas que propu- nham um novo corpo, que era o oposto da década de 80. Ao longo desta década, o belo metamorfoseou-se em feio e vice- versa. Entre os estilistas emblemáticos na seara do estranho (estética), ela destaca o brasileiro Alexandre Herchcovitch (Figu- ra 11); o inglês Alexander McQueen pelo flerte com a arte e com o sombrio; o turco Hussein Chalayan (Figura 12) pelo uso da tecnologia; e os estilistas belgas de uma maneira geral, como Martin Margiela (Figura 13) e Dries Van Noten. No Brasil, Alexandre Herchcovitch é um representante da moda que instaura o desfile-espetáculo como forma de exposi- ção de sua obra. Ele é o representante mais expressivo da gera- ção de 1990, formada por designers com formação universitária que saíram do anonimato para as passarelas. Herchcovitch de- monstra seu caráter excêntrico como designer de moda, já no desfile de sua formatura em 1993, onde as imagens mais recor- rentes foram marcadas por vestidos manchados de vermelho, simulando sangue, roupas inspiradas em camisa de força e ar- ranjos de cabeça com chifres e algodão nos ouvidos. Foi tão somente um show de graduação que marcou a estética do de- signer na vanguarda da moda brasileira. Na verdade Herchco- vitch inaugura no Brasil dos anos 1990, uma nova fórmula desfi- le-espetáculo – implementada por Thierry Mugler na década de 1980 –, porém com uma imagética diferenciada, essa se inter- pondo à estética do feio, do belo, do estranho. O destaque para Thierry Mugler (Figura 14), na década de 1980, é devido ao modo extravagante como expunha suas idei- as ao público consumidor. Seus desfiles, com estética primoro- Figuras 11|12|13. De cima para baixo, respectivamente, Herchcovitch, 2001| Chalayan, 2007| Margiela, 2009. Fontes: ADES; PACCE, 2002, p. 64 | VILA- SECA, 2011, p. 89 | SEELING, 2013, p. 392 33 sa, trilha sonora sofisticada, eram mais concorridos do que estreias de filmes de cinema. Segundo Svendsen (2010, p. 112), na época, “Mugler foi criticado por deixar que o espe- táculo eclipsasse as roupas por completo, mas logo esses espetáculos de moda passaram a ser a regra, não a exce- ção”. A Londres de 1990 ficou conhecida como um campo fértil para a criação da moda espetáculo. Em meados da dé- cada de 90, o número de espetáculos de moda, primeiro em Londres, depois em Paris, sugeriu que a moda havia se tor- nado “a nova performance” (DUGGAN, 2001). Nesse perío- do, houve uma maior convergência entre a arte e a moda. A realidade comercial por detrás desses espetáculos inovado- res, entretanto, era devido a falta de infraestrutura da in- dústria britânica. Os primeiros espetáculos de McQueen foram alvo de ataque da mídia, para a qual se tratava de um designer a- depto da misoginia — aversão ao feminino. Os desfiles fo- ram concebidos a partir da visão das modelos machucadas e maltratadas, consubstanci- ando o possível viés agressivo e controverso do designer. Porém, depois que conseguiu um financiador para seus desfiles, esses se tornaram menos violentos, porém mais espe- taculares. Em um dos seus depoimentos, McQueen discorre: Eu quero ser o fornecedor de uma determinada silhueta ou inventor de um corte inusitado, de modo que, quando eu estiver morto e enterrado, as pessoas vão saber que o século XXI começou com Alexander McQueen (FOX, 2012, p. 6). McQueen era obstinado no seu trabalho. Dedicava sua vida a sua maior paixão — a criação, e assim como todo artista e/ou designer, gostava de ser reconhecido pelas suas aptidões. Na verdade, ele não queria ser mais um profissional de moda, ele desejava ser “o profissional de moda” e, embora, com apenas 40 anos tenha falecido, no auge de sua carreira em 2010, fez de sua vida um capítulo à parte na história da moda. Figura 14. Thierry Mugler, 1997 Fonte: KODA, 2001, p. 71 34 A arte sempre foi motivo de inspiração para McQue- en. E, apesar do poder empresarial que patrocinava as apre- sentações de moda, com vistas a coibir, por vezes, o imagi- nário do criador, ele sempre manteve seu pé fincado no es- petáculo dionisíaco que transcende a aparência. Há aqui a valorização do sensório, impregnado ao viés artístico do de- signer. Dentre os desfiles promovidos por McQueen, vamos nos reportar ao ano de 1998, quando McQueen desenha a coleção feminina de outono/inverno, intitulada The Golden Shower (Figura 15), onde, assim como o conjunto de sua obra, perfaz o caminho para a identificação com uma ex- pressão artística. Esta coleção foi patrocinada pela American Express que havia lançado seu novo cartão Golden. Svendsen (2010, p. 115) discorre sobre as criações de McQueen, argumentando que “elas quase gritam que são arte e não algo banal como roupas ‘comuns’”. Porém, na coleção supracitada há o exem- plo de como o lado financeiro, provedor e capitalista é detentor de uma marca em detri- mento da arte. No período descrito, McQueen estava à frente da Givenchy, como diretor criativo, e a patrocinadora, a American Express desaprovou o título da coleção. O protes- to foi devido a possíveis conotações sexuais que, porventura, pudessem ser associadas a patrocinadora. (idem). Neste momento, entre em cena o artista McQueen que renomeia a coleção para Untitled, nome aprovado pelo patrocinador, sem desqualificar sua coleção que com óbvias características de arte, fortalece o caráter contestador e irônico do desig- ner. No entanto, a mídia desaprova a atitude de renomear a coleção, e mesmo com a i- niciativa criativa de McQueen, é redigido pela jornalista britânica Suzy Menkes, repórter e editora de moda do International Herald Tribune, o seguinte relato: “não foi um show i- novador, na medida que nele havia uma tentativa de purificar o viés comercial da marca, mas a apresentação foi fabulosa cumpriu as expectativas desejadas”. (In GLEASON, 2012, p. 52). Figura 15. Coleção The Golden Shower, 1998. Fonte: Watt, 2012, p. 145 35 No que tange ao início do século XXI, em especial nos seis primeiros anos do século, ocorre o inesperado. Holzmeister (2010) salienta o retorno ao que parecia ilusório na dé- cada de 1990. Mais uma vez, a moda estava em sintonia com seu passado glorioso e idea- lizado pelo belo e pelo sonho. Em 2005, entretanto, ocorre o retorno à estética de 1990, tanto no que diz respeito à forma da roupa, às imagens e seus dramas. Desejamos, então, alicerçar o espetáculo da moda ao da arte performática, visando a formação de uma linguagem reflexiva. Tendo ciência de que a performance é o elo contemporâneo de uma corrente de expressões es- tético-filosóficas que se firmou no século XX, mantendo-se efetiva no século XXI. (COHEN, 2013). Ainda sobre o espírito artístico da moda, temos que na primeira década do século XXI, uma determinada artista a- dentra no universo fashion, implementando sua arte, caso que ocorreu em setembro de 2010 na entrega do prêmio MTV, em Los Angeles. A artista em questão é a canadense Ja- na Sterbak que cria um look, para a premiada cantora Lady Gaga, concebido a partir de um vestido feito com carne crua (Figura 16). A partir de um design ácido e provocativo, a obra, cuja duração é ínfima, levando em consideração a ausência de refrigeração para o acondicionamento ideal do alimento, teve por objetivo, um protesto contra as forças armadas dos EUA (GECZY; KARAMINAS, 2012). Aqui, mais uma vez o corpo é o expositor da obra de arte, porém essa concebida por uma ar- tista de vertente conceitual. As conexões entre a arte e a moda possibilitam uma comunhão mais híbrida, mas também mais forte mais diversa e mais interessante. O maior sucesso da moda conceitual tem sintonia com as efetivas transmissões de ideias, inovações, experimentações e desafia sua apresentação diante de sua audiência. Um fato a ser enal- tecido, é que esta comunhão entre a arte e a moda tem beneficiado, substancialmente, as habilidades e técnicas de seus designers e de seus fabricantes. Figura 16. Lady Gaga Fonte: http://ruhilasraras.wordpress.com/2011/07/20/la dy-gagas-meat-dress-stinks-literally/ 36 Mesmo com a atenção na moda conceitual, os designers continuam gerando produ- tos que estejam vinculados ao desejo e necessidade do consumidor. Isso, para manterem, financeiramente vivas suas marcas, porém é a partir da moda conceitual que o designer demonstra todo o seu potencial artístico. Geczy e Karaminas (2012, p. 74) explanam que “o designer de moda não é acostu- mado a partilhar suas ideias em discursos ou escrita”, eles são efetivamente ligados às imagens. E, é a partir do imagético apresentado nos espetáculos que ele se comunica com o mundo. É óbvio que isto não é imutável, pois o designer é um profissional camaleônico, dotado de diferentes processos criativos, cujo entendimento do ponto de vista metafóri- co dá conotações de imaginário infinito, vivendo em um mundo onde as mudanças são o sentido da vida. A moda contemporânea está mais presente em galerias internacionais, museus, es- paços públicos, do que em passarelas. Com isso, a moda também tem o potencial de cau- sar um grande impacto intelectual que é refletido na sua configuração, e também nas pessoas, nos corpos, nas identidades, na ética, na estética, noções de beleza que para Clark (2012), representam a própria matéria-prima da moda. Para finalizar, falaremos de arte e design sobre o ponto de vista de Rafael Cardoso. Esse afirma que se tomássemos a arte no seu sentido específico, de artes plásticas, o de- sign não seria arte. Para nós, no entanto, a alta-costura está imbricada à arte, na configu- ração de obra de arte, percepção que é respaldada por Cardoso (2012) quando situa que só os projetos mais sofisticados de design poderiam ser considerados arte. Porém, se “tomarmos ‘Arte’ em seu sentido amplo, com A maiúscula, design é uma de suas manifes- tações, sem dúvida. Arte é um meio de acesso ao desconhecido, em pé de igualdade com a ciência, a filosofia, a religião” (idem, p. 246). Daí a importância da interdisciplinaridade no design, pois há de ser fortalecido o in- tercâmbio desse com outras áreas que busquem a criação plástica, formal ou visual, mas não só com as artes plásticas. Incluímos, também, a fotografia, o cinema, a animação, o artesanato, a cultura de um modo geral, etc. O que nos faz pensar que a busca por novas correntes do saber, impulsiona o designer na concepção inovadora do projeto. 37 CAPÍTULO 2. Entendendo uma coleção de moda 2.1. Alta-costura & prêt-à-porter Apesar de Paris ser conhecida como a capital da moda no século XVIII, foi um costureiro inglês que após 6 anos de aprendizagem na indústria têxtil de Londres, chega à Paris, dando início ao que mais tarde seria chamado de alta-costura. Seu nome: Charles Frede- rick Worth, conhecido como o primeiro costureiro, funda no ano de 1858, 13 anos após sua chegada à Paris, um ateliê de costura para comercializar vestidos e mantôs de sedas. Lipovetsky (1989) denomina esse período de a moda de cem anos, fase em que a alta- costura e os grandes costureiros imperaram como referencial. Segundo Godart (2010), a alta-costura se organiza desde 1868 em torno da “Chambre syndicale de la confection et de la couture pour dames et enfants”, que se transforma na “Chambre syndicale de la couture parisienne” em 1911. Essa câmara sindical (hoje chamada “Chambre syn- dicale de la haute couture”) está integrada, desde 1973, no conjunto mais amplo da “Fédération française de la couture, du prêt-à-porter des couturiers e des créa- teurs de mode” e da “Chambre syndicale de la mode masculine”. Ela cuida dos in- teresses dos profissionais de alta-costura. (GODART, 2010, p. 43) Essa instituição foi criada para demarcar o território da alta-costura, que é uma prá- tica originalmente parisiense, com sede também em Paris, que pode ser desenvolvida por costureiros franceses e estrangeiros. No entanto, esta prática só poderá ser feita por a- queles que estejam registrados no “Chambre syndicale de la haute couture”, em portu- guês, Câmara Sindical da Costura Parisiense. Os estrangeiros começam a figurar na instituição descrita a partir do ano de 1980, com a denominação de “membres invités”, membros convidados. Logo, Londres, Milão, Roma e Nova York representaram os novos grupos de criadores. Estas cidades apesar de se tornarem centros referenciais de desfiles do prêt-à-porter, não deveriam ir de encon- tro ao luxo e a alta-costura parisiense. Avelar (2009) cita que para evitar possíveis rivali- dades entre os membros convidados e Paris, a Câmara Sindical, outorgou diretrizes a se- rem seguidas por uma casa de alta-costura, são elas: 38 produzir, ao todo, setenta e cinco peças novas e originais, para o dia e para a noi- te; apresentar duas coleções (primavera-verão e outono-inverno) por ano em Pa- ris, no próprio ateliê; empregar, no mínimo, vinte pessoas que trabalhem efetiva- mente na parte técnica da produção no ateliê. Além disso, deve-se conceber a pe- ça quase toda à mão (70 por cento dela) e integrar bordados em seu feitio. (AVE- LAR, 2009, p. 53). Diante do exposto, podemos perceber os níveis de restrições a que são submetidas as casas de alta-costura, o que nos leva a relatar que além da criatividade imposta aos designers, há o pré-requisito do feito à mão que agrega ao designer o papel do artesão. Antes da alta-costura, a prática era conhecida como couture à façon, onde o profis- sional que produzia a peça de roupa era apenas um técnico que utilizava o tecido e dese- nho sugeridos pelo cliente (TROY, 2003). A palavra “couturier” foi cunhada por Worth, pois ele foi o profissional que entendeu como combinar as técnicas de alfaiataria inglesas com o talento francês. No que tange ao design, temos que a alta-costura figurava como uma prática mais próxima do seu conceito. Nela o costureiro se responsabilizava pela escolha do tecido, por toda a produção, distribuição e apresentação da coleção. Neste momento, o costurei- ro não é mais um artesão comum, pois ele passa a impor suas ideias de criação. Troy (2003) discorre que Worth tornou-se um dos primeiros costureiros a atender concomi- tantemente várias mulheres, para as quais escolhia os tecidos, o desenho, os ornamentos e todos os detalhes do produto final. Com Worth apareceram os modelos vivos que desfilavam para os clientes particula- res, visando facilitar a escolha das peças a serem adquiridas. Lipovetsky (1989, p, 72) des- creve que estes modelos eram denominados de “sósias”, pois deveriam parecer com o cliente em questão, para que esse pudesse se imaginar com a roupa. Avelar (2009) sinali- za que essas peças eram reproduzidas sob rígidas leis e altos preços. Esses preços eram praticados, pois as roupas eram feitas para ajustar-se a clientes individuais, onde o designer utilizava tecidos exclusivos e artesãos extremamente qualificados. Worth foi a primeira pessoa a entender como fazer do seu nome, um objeto de de- sejo na moda. Ele cria uma etiqueta a ser aplicada em suas roupas, com sua assinatura bordada, gerando a inauguração de sua marca. 39 Originalmente, as criações de alta-costura eram elabora- das lentamente e centradas no cliente, “no entanto, depois do revolucionário New Look (Figura 17) criado por Christian Dior, em 1947, as coleções passaram a ser feitas cada vez mais a despeito dos desejos individuais dos clientes e conforme a visão do criador” (JONES, 2005, p. 39). Em 1991, Pierre Bergé, diretor executivo da Yves Saint- Laurent, “declarou que a alta-costura estaria morta em dez a- nos” (JONES, 2005, p. 39). Apesar do passado promissor, edifi- cada sobre o prestígio das peças únicas, criadas sob medida e finalizadas à mão, no contemporâneo ela está fadada a desapa- recer. Com opinião contrária, Didier Grumbach, ex-presidente da federação francesa de alta-costura, declara que “até hoje, ninguém que tenha parado de fazer alta-costura lucrou com isso. A alta-costura dá às casas uma visibilidade única, po- dendo tornar a marca eterna” (In SABINO, 2007, p. 37) Dando sequência ao pensamento de Bergé, Bresser (2012) salienta que há algumas temporadas a moda assis- te a uma mudança significativa nos conceitos da alta- costura, que vem vagarosamente se aproximando de um prêt-à-porter de luxo. Quando nos defrontamos com mo- delos trajando tênis, pochetes (Figura 18) e até joelheiras em um desfile como o da Chanel, é sinal de que este é um caminho sem volta. O flerte da alta-costura com uma pro- posta de moda mais viável financeiramente, faz como que os grandes conglomerados, que se sustentam muito mais da venda de perfumes e acessórios do que de roupas, mantenham-se abertos a novas mudanças. Figura 17. New Look de Christian Dior Fonte: SEELING, 2013, p. 116. Figura 18. Chanel coleção alta- costura, primavera 2014 Fonte: http://www.fashionising.com/runwa y/b--chanel-details-haute-couture- s14-69684.html#15 40 Bresser (2013) descreve que a coleção mostrada por Raf Simons, da Dior, na semana de alta-costura de Paris, para o outono/inverno 2013, não representa o mercado de luxo, assim como o fez Karl Lagerfeld para o desfile da Chanel. Uns falam que tal fenômeno tem haver com o rejuvenescimento do mercado de luxo, outros (empresários) veem com apreen- são o fato de poder não possuir mais compradores para o te- atro criativo, que só no cenário da passarela é permitido. Na verdade, Bresser tenta compreender o que se passa no mun- do da moda atual e sintetiza que talvez a alta-costura tentou flertar com as coleções de prêt-à-porter que por sua vez des- fila uma coleção que já se encontra nas araras das fast fashi- on. Um exemplo é Saint Laurent com seus looks à la H&M. (Figura 19). Estamos em 2015, o presságio de Bergé ainda não se instaurou, mas já fez desmoronar várias mai- sons de alta-costura. A última derrocada foi a de Christian Lacroix, em meados de 2009. De acordo com Lasky (2013), as coleções femini- nas prêt-à-porter da marca Christian Lacroix foram suspensas em 2009, o que provocou a demissão de 90% dos seus funcionários, inclu- indo o próprio designer. No entanto, ausente do mercado da alta-costura, desde 2009, Christian Lacroix é convidado por Diego Della Valle, proprietário da Maison Schiaparelli, pa- ra criar uma coleção que marca o retorno de Elsa Schiaparelli ao calendário da alta- costura, em 2014 (Figura 20). A questão do desaparecimento da alta- costura é vista em termos efetivos e numéri- Figura 19. H&M x Saint Laurent Fonte: http://blogdadb.com/2013/07/02/alta- costura-virou-pret-a-porter-que-virou-fast-fashion/ Figura 20. Coleção de Christian Lacroix para a Maison Schiaparelli, 2014. Fonte: http://nymag.com/thecut/2013/09/meet- schiaparellis-new-designer-marco-zanini.html 41 cos. Como podemos observar no comentário de Godart (2010) sobre a quantidade de ca- sas de alta-costura na França. O autor cita que em 1945 existiam 106 casas de alta- costura, já em 1975 não existiam mais de 23 casas, quantidade que vai decaindo ao en- trarmos no século XXI, precisamente em 2002, onde figuram apenas 11 casas de alta- costura. Em 2009, Matharu (2011) confirma a permanência das 11 maisons de alta- costura em Paris, no entanto, de 2009 a 2014, o número de maisons aumenta, como é abordado na revista ‘IstoÉ Dinheiro’, em dezembro de 2014. Diante da apelação “alta- costura”, protegida juridicamente na França, foi concedida à maison Alexandre Vauthier a integração ao seleto grupo da alta-costura. Ao todo, agora são 14 empresas: Alexandre Vauthier, Adeline André, Alexis Mabille, Atelier Gustavolins, Bouchra Jarrar, Chanel, Chris- tian Dior, Frank Sorbier, Giambattista Valli, Givenchy, Jean Paul Gaultier, Maison Martin Margiela, Maurizio Galante e Stéphane Rolland. Essas empresas necessitam atender a certos critérios, entre eles o trabalho à mão realizado em ateliês de costura, e um número mínimo de 25 modelos apresentados por coleção. Jean-Jacques Picart (VARELLA, 2005), consultor de moda francês, afirma que “a ati- vidade alta-costura como venda de vestidos caríssimos para bailes que não existem mais é obsoleta, mas como geradora de desejos e promotora do consumo ela é imbatível”. Isso quer dizer que para a alta-costura sobreviver, ela deve funcionar no sistema de pirâmide, onde o topo é a sua localidade. As demais bases da pirâmide são salientadas por produtos prêt-à-porter, perfumes e acessórios. Produtos esses, de luxo, que conseguem manter a lucratividade da marca, porém segundo o seguinte preceito: carregar em suas configura- ções o imaginário do luxo, experienciado pelos sentidos de quem consome a alta-costura. Pois, segundo Bernard Arnauld, presidente da LVMH, proprietário da Maison Dior, a alta- costura é uma fantástica ferramenta para demonstrar o prestígio de uma marca. (TUN- GATE, 2008). Tal pensamento entra em sintonia com o dito por Svendsen (2010) sobre a alta-costura no contemporâneo. Para o autor essa “deixou de ser uma norma para a mo- da de massa e agora pode ser vista principalmente como uma publicidade com ambições artísticas” (idem, p. 179). Por volta de 1960, final da moda dos cem anos proposta por Lipovetsky, irá ser con- cretizada a indústria de confecção. Até esta data, a indústria de massa existente, “apenas copiava alguns modelos da alta-costura sem nenhuma pesquisa de estilo nem qualidade, 42 organizando a produção por ‘grade de tamanho’”. (AVELAR, 2009, p. 52). Neste contexto, a indústria de massa citada não produz uma coleção de moda propriamente dita, cria a- penas peças de roupas sem a preocupação em manter uma unidade visual entre os seus produtos. Na década supracitada, a alta-costura que aplicava um alto preço de consumo (cer- ca de milhares a algumas dezenas de milhares de euros), começa a perder terreno para os designers de butiques de moda, como por exemplo, Mary Quant, Rudi Gernreich e Ralph Lauren. Caldas (2004) explana que as butiques formaram um novo conceito de loja, in- corporando o espírito jovem empreendido pelos costureiros da vanguarda13, além de res- saltar o profissional que vivencia hoje a designação de designer de moda. Esse criador in- seri seu estilo individual, não como norma, mas para ser identificado pelos consumidores da marca. O essencial é a sutileza em manter sua identidade, adaptando-a as tendências e ao estilo da empresa ao qual trabalha. Antes das butiques descritas, surge nos Es- tados Unidos (EUA) o ready-to-wear (pronto pa- ra vestir), “expressão que será traduzida, ao pé da letra, por prêt-à-porter pelos empresários franceses Jean Weill e Albert Lempereur, em 1948”. (CALDAS, 2004, p. 56). A partir desta tra- dução, a França foi quem primeiro utilizou os métodos de produção norte-americanos, segui- da pela Itália. O uso do termo prêt-à-porter foi instaurado para diferenciar o novo processo in- dustrial de confecção da indústria de massa. O essencial no prêt-à-porter era a instauração do estilo, da grife, da etiqueta com a assinatura do designer, algo que não existia na indústria de massa. Matharu (2013, p. 69) descreve que “o 13 Vanguarda é a preocupação de se renovar, de não ficar parado, estático. É um estado de espírito revolucionário; a vanguarda é aquela preocupada em se rever sempre, criar formas novas, estar sempre se fazendo, sem sacralizar nada. É a negação da arte acadêmica, convencional, presa a regras e normas; ser vanguarda é não estar preso a nenhum es- quema definitivo, e duvidar das coisas. (VELHO, 1977). Figura 21. Loja de prêt-à-porter Rive Gauche Fonte: JONES, 2005, p. 40 43 prêt-à-porter proporciona ao cliente a liberdade de selecionar as peças diretamente na loja, em tamanhos e cartela de cores diversas”. O primeiro salão do prêt-à-porter, segundo Avelar (2009), realizou-se em 1961 em Paris, porém “Pierre Cardin foi o primeiro costureiro a desfilar uma coleção de prêt-à- porter, em 1959, e Yves Saint-Laurent foi o primeiro a abrir uma loja de prêt-à-porter, chamada Rive Gauche (Figura 21), no Bairro Saint-Germain” (JONES, 2009, p. 41). Em 1959, mesmo não tendo o incentivo da Câmara Sindical da Costura Parisiense, Cardin im- pulsionou a ideia que foi disseminada pela abertura da Rive Gauche. O nascimento das butiques independentes deu início a uma verdadeira revolução no consumo, por incenti- varem uma espécie de democratização do “luxo”. Em 1966, quando Yves Saint-Laurent e o empresário Pierre Bergé lançam a linha de prêt-à-porter da marca, denominada de Yves Saint-Laurent Rive Gauche, surgem também os escritórios de estilo. “A função desses escritórios é prestar consultoria às indústrias têxteis, bem como ao setor de confecções” (AVELAR, 2009, p. 65). A criação norte-americana, ready-to-wear, caracterizada pela forma rápida e efici- ente de produção e distribuição de roupas, foi gerada pela necessidade imposta pela Se- gunda Guerra Mundial em otimizar a produção industrial. É quando os EUA intensificam o desenvolvimento da tecnologia de confecção que foi iniciado nos anos de 1930. “Com a resolução de alguns problemas fundamentais, como a grade de tamanhos (inexistente até então), ficou mais fácil produzir roupas de qualidade em escala industrial” (CALDAS, 2004, p. 55). É importante assinalar que há uma grande confusão de significados entre o prê-à- porter e a indústria de massa, porém esta última já se encontra em plena atividade desde o século XIX. Já o prêt-à-porter, mesmo dando sinais de aparecimento na segunda metade do século XIX, somente é plenamente difundido em meados no século XX, cujo termo é incorporado à Câmara Sindical da Costura Parisiense, em 1973. Delpierre (1997) aponta uma divisão do prêt-à-porter que foi efetuada seguindo o perfil do seu público-alvo. Sua fragmentação em três níveis é feita a partir da década de 1960, são eles: Prêt-à-porter clássico, vendido nas grandes lojas, pois no período ainda não havia uma diferenciação de produtos em relação aos vendidos nas lojas de departa- mentos; Prêt-à-porter de estilo, que aparece entre 1963 e 1964, vinculado a ousadia ju- 44 venil e ofertado em lojas de novos conceitos, chamadas butiques; e, Prêt-à-porter de lu- xo, destinado à clientela da alta-costura, que apesar de possuir grande poder aquisitivo e manter-se fiel à qualidade e ao design do produto, vai em busca de alternativas mais viá- veis, financeiramente, para uso no dia a dia. O prêt-à-porter de luxo foi um dos grandes impulsionadores da entrada da moda no mercado dos conglomerados de cunho internacional, que comercializam marcas de luxo. Os dois maiores conglomerados da indústria da moda são os franceses PPR (antigamente Pinault-Printemps-Redoute) e LVMH (Moët Hennessy-Louis Vuitton). (GODART, 2010). Existem aqueles profissionais que apesar de primarem por um estilo individual, coe- rente e de fácil uso, possuem seus produtos inseridos no campo do luxo. François Baudot (2002) chama este tipo de criação de “alta moda”. Expressão essa que ele utilizou para designar a moda italiana que após a segunda grande guerra, em especial, na década de 1960, é impulsionada tanto pela alta qualidade do material, do feitio, do design, quanto pela referência à exclusividade. Assim, o autor propõe o termo “alta moda” para se referir a criações de luxo, também exclusivas, mas que não fazem parte da alta-costura francesa. Trata-se de marcas e criadores que executam roupas sob medida e modelos exclu- sivos, mas que não são registrados na Câmara Sindical Parisiense e, portanto não se enquadram nas leis que determinam a alta-costura. Vivienne Westwood, [...], Yohji Yamamoto, Walter Rodrigues, Ocimar Versolato e todos aqueles que produ- zem prêt-à-porter e, no entanto executam modelos sob encomenda, sob medida e exclusivos, podem ser considerados bons exemplos de “alta moda”. (AVELAR, 2009, p. 57). A expansão da alta moda propicia a libertação dos ditames impostos pela alta- costura francesa, no que tange as imbricadas implicações legais a serem preenchidas pe- los ateliês estrangeiros que estavam vinculados a Câmara Sindical da Costura Parisiense. 2.2. O processo de design na configuração de uma coleção de moda Quando abordamos a questão do Zeitgeist — espírito do tempo —, ao qual o designer deve estar vinculado para a sua concepção projetual, observamos que a percepção senso- rial é a força motriz que enriquece a pesquisa. Antecipar tendências é para o designer um 45 sinal de sentidos treinados que anteveem comportamentos e estilos marcadores de épo- ca. Caldas (2004, p. 93) salienta que um observatório de sinais deve possuir uma constru- ção que prescinde da “objetividade a 100%”. Onde a interpretação deve ser pautada não só através de “conhecimento, dados, instrumentos e metodologia científica, mas imagi- nação, sensibilidade, procedimentos que se aproxima muito mais do fazer artístico” (I- bid). Concepção que mantém sintonia com o pensamento de Nietzsche (2007, p. 13) que diz ser capaz de “considerar a ciência sob a ótica do artista e a arte sob a ótica da vida...” Para a prospecção de tendências, assim como todo o cerne deste trabalho, é ideal ir de encontro a ideais pré-estabelecidos, que canalizam a criação a resultados previsíveis. Ao contrário, é satisfatório abrir uma gama de opções possíveis, a partir da interpretação dos sinais recolhidos no presente. É a partir desses sinais que o designer monitora sua investigação criativa. A pesqui- sa dará respaldos quanto à inspiração e a contemporaneidade do conceito, elevando o profissional a manter-se com destaque no mercado atual, e com motivação para desbra- var novos caminhos criativos. Essa busca incessante é necessária, pois a cada temporada, os designers precisam oferecer, em suas coleções de moda, novidades ao público-alvo, além da mídia que é ávida pelo inusitado. Assim, uma coleção de moda é um conjunto de roupas, acessórios ou produtos concebidos e fabricado para ven- da aos lojistas ou diretamente aos clientes. Esse conjunto de peças pode ser inspi- rado por uma tendência, tema ou referência de design, refletindo influências cul- turais, sociais, etc. e normalmente desenvolvido para uma temporada ou ocasião especial. Uma coleção é uma série de peças ou looks que são apresentados de di- ferentes formas — da passarela à internet. Coleções geralmente são construídas a partir de uma combinação de silhuetas, cores e tecidos, com a ênfase variando em função do estilo característico do criador. (RENFREW; RENFREW, 2010, p. 10, grifo nosso). Para o desenvolvimento dessa coleção, o designer precisa conhecer seu público- alvo, ou seja, o ponto de partida para o briefing da coleção é a faixa de mercado a qual irá ser destinada a criação. Com isso, o designer inicia a investigação que norteará o caminho para a sua ação projetual. 46 Como complemento à informação descrita, vamos descrever uma citação de Glória Coelho (2014, p. 21), elucidando, seu papel de designer, quando solicitada a criar uma coleção comercial: “vejo o ranking, o que estão querendo de mim, e faço o que pedem. Mas invisto sempre no laboratório para criar o meu futuro — É o que tenho de mais caro na empresa”. A designer sintetiza que a pesquisa, o laboratório é feito com a finalidade de se manter atualizado no que tange ao conhecimento sobre moda e área afins, porém o que prevalece é a voz do cliente. Em outra citação, quando abordada sobre o fast- fashion, Coelho (idem) salienta: “adoro fazer. Faço o que eles querem, o que o mercado pede, mas com meu design”. As coleções que se caracterizam pela quantidade de roupas produzidas e em tama- nhos padronizados englobam o prêt-à-porter que “é jovem e sujeito a mudanças e ten- dências”. (RENFREW; RENFREW, 2010, p. 84). Entretanto, as roupas “femininas originais, sofisticadas é únicas, necessitando de provas até sua finalização e exigindo mão-de-obra extremamente qualificada” (SABINO, 2007, p. 37), caracterizam a coleção de alta-costura. Para desenvolver uma coleção de alta-costura os designers atuam de maneira bem similar ao prêt-à-porter. A cada temporada, a alta-costura oferece a potenciais clientes a oportunidade de ver em primeira mão, opções para as roupas da próxima estação. Então, o designer e/ou a Maison agenda horários com seus seguidores para as apresentações privadas. “Os clientes compram próximo à estação, assistindo a um desfile em janeiro pa- ra a próxima primavera (no hemisfério norte), ao contrário do prêt-à-porter que mostra a coleção para a temporada seguinte” (RENFREW; RENFREW, 2010, p. 84). Com is