UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – Campus de Franca MARA LÚCIA RIBEIRO DE SOUSA KOPP J.R.R. TOLKIEN E A CRIAÇÃO DE UMA FANTASIA POLÍTICA Franca 2025 MARA LÚCIA RIBEIRO DE SOUSA KOPP J.R.R. TOLKIEN E A CRIAÇÃO DE UMA FANTASIA POLÍTICA Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), ao programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), Campus de Franca, para obtenção do título de Mestre(a) em História. Orientador(a): Profª. Drª. Virginia Célia Camilotti Franca 2025 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). K83j Kopp, Mara Lúcia Ribeiro de Sousa J.R.R. Tolkien e a criação de uma fantasia política / Mara Lúcia Ribeiro de Sousa Kopp. -- Franca, 2025 128 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Virginia Célia Camilotti 1. história cultural. 2. literatura inglesa. 3. literatura fantástica. 4. cartas. I. Título. MARA LÚCIA RIBEIRO DE SOUSA KOPP J.R.R. TOLKIEN E A CRIAÇÃO DE UMA FANTASIA POLÍTICA Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), à Universidade Estadual Paulista (UNESP), ao programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), Campus de Franca, para obtenção do título de Mestre(a) em História. Data da defesa: ____/____/______ Banca Examinadora: Membros Titulares: ______________________________________ Profª. Drª. Virginia Célia Camilotti Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) UNESP - Franca ______________________________________ Profª. Drª. Karina Anhenzini de Araújo UNESP – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP-Franca ______________________________________ Profª. Drª. Josianne Francia Cerasoli Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UNICAMP Suplentes: ______________________________________ Profa. Dra. Beatriz Rodrigues – UNIR ______________________________________ Profa. Dra. Daiane Vaiz MACHADO - PPGH-UNESP-Franca À memória do meu pai, Sebastião, que sempre me apoiou... AGRADECIMENTOS A conclusão desta dissertação marca não apenas o fim de uma etapa acadêmica, mas também a celebração de uma caminhada que só foi possível graças ao apoio e à presença de pessoas especiais em minha vida. À minha querida mãe, Lana, minha eterna inspiração de força de vontade e coragem, agradeço profundamente pelo amor incondicional, pelas palavras de encorajamento nos momentos difíceis e por sempre acreditar em mim, mesmo quando duvidei de minhas próprias capacidades. Foram anos difíceis, mas ela sempre esteve ao meu lado. Ao meu pai, Sebastião, que hoje me guia em espírito, minha gratidão eterna. Um homem trabalhador, que sempre procurou o melhor para sua “filhota”. Seu humor e o exemplo de integridade que deixou continuam sendo um exemplo para mim. Sei que, de onde estiver, está orgulhoso de cada passo desta conquista. Ao meu marido, Willian, meu porto seguro e maior incentivador, meu mais sincero agradecimento. Ele foi o responsável por me fazer retornar à área acadêmica, nunca duvidando da minha capacidade e me provocando constantemente para alcançar meu melhor. Obrigada por estar ao meu lado em cada momento, oferecendo apoio, paciência e amor. À minha grande amiga e confidente Polly deixo um agradecimento especial. Amizade de mais de dez anos, que nasceu no ônibus fretado da Unesp de Franca, com uma simples discussão sobre animes e mangás, e que segue firme, apesar da distância e das mudanças de rotinas que a vida adulta nos traz. Sua amizade sincera e seus conselhos foram um alicerce importante durante todo esse processo. Aos meus amigos André e Brunielen, que conheci na minha jornada na Unicamp. Sempre preocupados com a minha rotina intensa e animados com os rumos da minha dissertação. Foram essenciais para ouvir minhas ideias ao longo desse ano. À professora doutora Virginia Camilotti, que recebeu o desafio de me orientar, sempre presente, atenta as minhas ideias e empolgada com os rumos da escrita. Agradeço imensamente por toda a força que a professora me deu nessa caminhada. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. A todos vocês, que, de maneiras tão únicas e preciosas, contribuíram para que este sonho se tornasse realidade, meu mais profundo agradecimento. Esta conquista também é de vocês. “Se mais de nós dessem mais valor a comida, bebida e música do que a tesouros, o mundo seria mais alegre!” (O Hobbit, 2009, p. 281). RESUMO Este trabalho analisa a obra de J.R.R. Tolkien, com foco em O Senhor dos Anéis, especialmente em As Duas Torres, sob uma perspectiva histórica e literária. Examina- se como experiências pessoais, crenças religiosas, posições políticas e o contexto histórico impactaram a produção de sua literatura fantástica. A pesquisa demonstra que Tolkien, ao rejeitar a modernidade e valorizar elementos do mundo pré-industrial, utilizou sua escrita para criticar a destruição da natureza, a perda da moralidade cristã e os impactos das guerras, criando uma narrativa que transcendia o escapismo, assumindo um caráter de crítica política. A análise concentra-se no período entre as guerras mundiais e o pós-guerra, destacando o impacto da Primeira Guerra Mundial e das mudanças culturais no século XX sobre a visão de mundo de Tolkien. Fontes primárias, como as cartas de Tolkien, revelam suas opiniões sobre modernização e tecnologia, enquanto as biografias exploram sua fé católica, conservadorismo e o impacto da experiência da guerra em sua literatura. Tolkien criou um universo literário que reflete sua aversão ao industrialismo e celebra a beleza e simplicidade da vida rural, posicionando-se contra o liberalismo e a ideia de progresso como solução universal. A dissertação divide-se em três capítulos. O primeiro explora as múltiplas facetas de Tolkien como acadêmico e literato, analisando a polarização entre a recepção crítica e popular de sua obra. O segundo examina sua correspondência, evidenciando como sua escrita reflete inquietações com a modernidade e seu desejo de criar mundos que oferecessem uma visão idealizada da realidade. Já o terceiro capítulo foca na análise de As Duas Torres, demonstrando como Tolkien usou a fantasia para criticar a realidade contemporânea, articulando dilemas como destruição, resistência e preservação de valores. Conclui-se que a literatura de Tolkien foi mais que escapista, funcionando como meio de crítica política, uma reação ao mundo em transformação. Sua obra exemplifica a complexidade de sua visão de mundo, abordando temas profundos sobre poder, corrupção e a luta entre o bem e o mal, destacando o legado duradouro de Tolkien na literatura. Palavras-chave: história cultural; literatura; Tolkien; O Senhor dos Anéis. ABSTRACT This study analyzes the works of J.R.R. Tolkien, focusing on The Lord of the Rings, particularly The Two Towers, from a historical and literary perspective. It examines how personal experiences, religious beliefs, political positions, and the historical context influenced the creation of his fantasy literature. The research demonstrates that Tolkien, by rejecting modernity and valuing elements of the pre-industrial world, used his writing to criticize the destruction of nature, the loss of Christian morality, and the impacts of war, creating a narrative that transcended escapism and assumed a politically critical character. The analysis centers on the period between the world wars and the post-war era, highlighting the influence of the First World War and cultural changes in the 20th century on his worldview. Primary sources, such as Tolkien's letters, reveal his views on modernization and technology, while biographies explore his Catholic faith, conservatism, and the war's impact on his literature. Tolkien crafted a literary universe that reflects his aversion to industrialism and celebrates the beauty and simplicity of rural life, positioning himself against liberalism and the idea of progress as a universal solution. The dissertation is divided into three chapters. The first explores Tolkien's multiple roles as an academic and a writer, analyzing the polarization between critical and popular reception of his work. The second examines his correspondence, highlighting how his writing reflects his concerns with modernity and his desire to create worlds that offered an idealized vision of reality. The third chapter focuses on the analysis of The Two Towers, demonstrating how Tolkien used fantasy to critique contemporary reality, addressing dilemmas such as destruction, resistance, and the preservation of values. The study concludes that Tolkien's literature was more than escapist; it served as a means of political critique and a reaction to a transforming world. His work exemplifies the complexity of his worldview, addressing profound themes of power, corruption, and the struggle between good and evil, underscoring Tolkien's enduring legacy in literature. Keywords: cultural history; literature; Tolkien; The Lord of the Rings. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................... 15 2 FIGURAS DE J.R.R. TOLKIEN ............................................................ 26 2.1 A recepção inicial ao livro O senhor dos Aneis ..................................... 29 2.2 O Senho dos Aneis: a fama e a contracultura ....................................... 39 2.3 O papel das biografias na construção de uma representação de Tolkien48 3 TOLKIEN: UM INTELECTUAL ANGUSTIADO COM O PRESENTE ..................... ............................................................................................................. 61 3.1 Um intelectual contra seu tempo: o peso da religião ............................ 65 3.2 Um intelectual contra seu tempo: a desaprovação da modernidade .... 71 3.3 Tolkien interferindo no mundo real ....................................................... 81 3.4 Tolkien: de Oxford para o mundo .......................................................... 94 4 LITERATURA COMO SALVAÇÃO ...................................................... 98 4.1 A destruição da natureza ..................................................................... 100 4.2 Os horrores da guerra do anel ............................................................. 108 4.3 A resistência à transformação: Rohan e os hobbits ............................. 112 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 120 REFERÊNCIAS ................................................................................... 124 15 1 INTRODUÇÃO A figura de John Ronald Reuel Tolkien é conhecida amplamente por suas obras de fantasia, como O Hobbit (1937) e O Senhor dos Anéis (1954-55). Tolkien nasceu no final do século XIX, em 1892, na cidade de Bloemfontein, parte da colônia inglesa da África do Sul, onde o pai trabalhava no Banco da África. Teve uma infância de privilégios, morando em uma cidade em crescimento, rica pela mineração de ouro e diamante. No entanto, Tolkien perde a figura paterna com três anos de idade e a família muda-se para a região rural próxima a Birmingham, local que o literato permaneceu até sua entrada em Oxford como estudante de línguas clássicas, em 1910 no Exeter College; em 1913 troca o curso para Língua e Literatura Inglesa e forma-se em 1915 com honras de Primeira-Classe, nível mais alto na formação acadêmica inglesa. Entre 1920 e 1925, foi professor associado de Língua Inglesa na Universidade de Leeds; retornando a Oxford como professor de anglo-saxão em 1925, no Pembroke College. Finalmente, em 1945 torna-se professor de literatura e língua inglesa do Merton College, permanecendo na posição até sua aposentadoria em 19591. Durante sua vida acadêmica, Tolkien se destacou por uma carreira dedicada à filologia e aos estudos medievais, produzindo artigos acadêmicos sobre o inglês antigo e o anglo-saxão2. No campo da literatura Tolkien lançou, em vida, as obras O Hobbit, em 1937, O Fazendeiro Gil de Ham, uma fantasia medieval publicada em 1949, a trilogia de O Senhor dos Anéis entre 1954 e 19553, Árvore e Folha, publicada em 1964 e que traz a conferência Sobre Contos de Fadas realizada em 1939 na Universidade de St. Andrews, Escócia e o conto Folha por Niggle escrita originalmente em 1938; finalmente foi publicado O Ferreiro do Bosque Maior, um conto de fadas fantástico passado em um pequeno vilarejo inglês, em 1967. As obras póstumas, no entanto, são variadas e editadas pelo filho Christopher Tolkien, sendo as principais O 1 CARPENTER, Humphrey. J.R.R.Tolkien: uma biografia. 1. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2018, p.151. 2 Uma das grandes publicações de Tolkien para os estudos linguísticos e literários foi a tradução para o inglês moderno de Sir Gawain & The Green Knight, romance de cavalaria do século XIV, lançado em 1925. O trabalho foi realizado em conjunto com o professor E.V. Gordon. 3 A Sociedade do Anel, primeiro volume, foi lançado em agosto de 1954. As Duas Torres em novembro de 1954 e O Retorno do Rei em outubro de 1955. 16 Silmarillion4, laçada em 1977, Contos Inacabados5, de 1980, os doze volumes de A História da Terra Média, publicados entre 1983 e 1996, Os Filhos de Húrin, em 2007, a tradução de Beowulf6, lançada em 2014 e A Queda de Gondolin7, em 2018. O presente trabalho visa explorar a obra e a figura de Tolkien sob a perspectiva histórica e literária, considerando sua trajetória pessoal, crenças religiosas, posições políticas capazes de impactar sua criação literária de perfil fantástico. O estudo busca desvendar como Tolkien, intelectual e literato, utilizou suas obras, especialmente a trilogia O Senhor dos Anéis e particularmente As Duas Torres, para expressar suas preocupações com a modernidade, a destruição da natureza, a perda da moralidade cristã e o impacto das guerras, posicionando-se politicamente através de uma escrita literária única, fantástica e que destoava da literatura realista praticada na época. A história intelectual que aqui se efetua localizou a obra de Tolkien como resultante de suas ansiedades e dilemas em relação ao século XX, revelando quanto uma fantasia literária pode não apenas servir como escapismo, mas também como crítica social. Tolkien se via como alguém fora de seu tempo, um homem que resgatava a Idade Média e o mundo pré-Revolução Industrial, já que, sob o seu ponto de vista, a modernização significava a destruição de tudo o que existia de positivo na humanidade. Já em 1928, antes mesmo da publicação de O Hobbit, Tolkien escreve uma série de poemas conhecidos como “Tales and Songs of Bimble Bay”, passados na cidade litorânea fictícia de Baía Bimble. O poema “Progresso na Cidade de Bimble” é parte dessa coleção e mostra as consequências da industrialização e do turismo desenfreado na região. O poema foi incluído em uma edição comemorativa de O Hobbit, traduzida no Brasil por Reinaldo José Lopes, em edição para Harper Collins. A Baía de Bimble tem um ladeiro: ele é cheio de casas difusas, altas, baixas; lojas de açougueiro, lojas com repolhos e com blusas, 4 O Silmarillion era o grande sonho de Tolkien, mas que apenas conseguiu ser lançado após sua morte. Trata de uma coleção de histórias passadas nas três grandes eras da Terra-Média, além de explicar a origem do mundo fantástico de Tolkien e de suas raças, como os elfos, humanos e anões. Também possui explicações linguísticas e históricas sobre este universo. 5 Os Contos Inacabados são um conjunto de histórias passadas nas três eras da Terra-média. 6 A tradução do inglês antigo para o moderno do Beowulf foi realizada entre 1920 e 1926. 7 Foi o último livro editado por Christopher Tolkien. Conta com variadas versões do conto escrito em 1917, quando Tolkien se recuperava em um hospital de uma febre de trincheiras contraída enquanto lutava na Batalha do Somme. 17 jaquetas, guarda-chuvas, tecidos; um correio (recente e esquálido); biblioteca com mais vendidos em capas amarelas; um sólido velho hotel, cheio de janelas brancas e o forte odor de motores, ausentes do pátio os cavalos; e nas bancas, enfileirados, vendem-se arenques. [...] antes do novo dia com sua cota, antes dos ruidônibus matinais do velho hotel parando à porta com seus fumos, roncos, pios e ais, a SóDeussabe trazendo mais gente, a Ninguémliga, de Bimble, Cidade, onde o ladeiro, outrora decente, é, com tantas casas, calamidade, Conheça a Inglaterra!8 A angústia com a transformação de seu mundo ganhou maior profundidade com a publicação de O Senhor dos Anéis, e já no prefácio de A Sociedade do Anel Tolkien escreve sobre os motivos que o levaram a escrever o capítulo “O Expurgo do Condado”, um dos últimos capítulos da trilogia de O Senhor dos Anéis, defendendo a visão que as mudanças em curso na Inglaterra moderna impactaram sensivelmente sua escrita ficcional: Ou, para falar de um assunto menos triste: algumas pessoas supuseram que “O expurgo do Condado” reflete a situação da Inglaterra na época em que eu terminava minha história. [...] Ele tem de fato alguma base na experiência, embora pequena (a situação econômica era totalmente diferente), e muito anterior. O lugar em que vivi na infância estava lamentavelmente destruído antes que eu completasse dez anos, numa época em que automóveis eram objetos raros (eu nunca tinha visto um) e os homens ainda estavam construindo ferrovias suburbanas.9 O estudo da figura intelectual de Tolkien concentra-se na primeira metade do século XX, destacando principalmente o período entre as duas guerras mundiais e o pós-guerra imediato até a década de 1960. Focaliza a vida de Tolkien durante esses 8 “Conheça a Inglaterra!” era um slogan turístico da época e encerra o poema com ironia. TOLKIEN, J.R.R.; ANDERSON, Douglas. O Hobbit anotado. 1.ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021, p.231. 9 TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: primeira parte: a sociedade do anel. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, [1954], p.XIV. 18 anos, suas experiências na Primeira Guerra Mundial, o impacto da Segunda Guerra Mundial e as mudanças sociais e culturais que ocorreram durante esse tempo, que definiram sua produção literária. Como fontes foram trabalhadas a correspondência de Tolkien, publicada em 198110, seu trabalho literário e vários artigos de crítica literária sobre suas obras indicativas da recepção que alcançaram e as biografias11 produzidas a respeito do literato. As cartas de Tolkien são particularmente valiosas, pois descrevem suas opiniões, crenças e reações pessoais às críticas negativas e ao sucesso de suas obras. Também permitem uma análise detalhada das motivações e preocupações de Tolkien, revelando como ele percebia e reagia às transformações provocadas pela modernização. Ao estudar a produção literária de Tolkien, ao historiador é permitido vislumbrar como as obras de ficção promovem a crítica às condições históricas em que foram produzidas, ajudando a entender as preocupações e aspirações de Tolkien com sua historicidade. Já os artigos de crítica literária e as biografias permitiram entender como o literato foi interpretado, responsáveis por figurá-lo como um homem comum ou como um mito adorado por multidões de jovens. Os resultados da investigação são apresentados em três capítulos. No capítulo 1, “Figuras de J.R.R. Tolkien”, busca-se explorar as múltiplas facetas de Tolkien, desde seu papel como escritor de literatura inovadora até sua posição como acadêmico em Oxford, e como essas experiências delinearam sua recepção crítica e popular ao longo das décadas. Ao lançar O Hobbit em 1937, Tolkien não apenas se inseriu no imaginário popular, mas também desafiou as normas estabelecidas no ambiente acadêmico de Oxford. A obra, inicialmente concebida como um livro infantil para entreter seus filhos, rapidamente capturou a imaginação do público britânico. No entanto, foi apenas nas décadas subsequentes, com a publicação de O Senhor dos Anéis, que Tolkien solidificou seu lugar como um ícone cultural de uma geração de jovens. A recepção de suas obras, contudo, foi marcada por uma polarização nítida entre crítica literária e público, refletindo as tensões entre o valor literário percebido e o apelo popular. Críticos como o poeta W.H. Auden elogiaram a capacidade de Tolkien 10 The Letters of J.R.R. Tolkien foi organizada por Humphrey Carpenter, lançada originalmente em 1981, com o auxílio de Christopher Tolkien. A versão utilizada no trabalho é a edição brasileira de 2023, lançada pela editora Harper Collins. 11 As biografias analisadas são a biografia oficial escrita por Humphrey Carpenter e publicada em 1977, a biografia não autorizada escrita por Michael White, de 2002, e biografia escrita por John Garth sobre a experiência de Tolkien na Primeira Guerra Mundial, de 2003. 19 de criar um mundo detalhado e verossímil e, que, apesar de fantástico, ressoava as preocupações contemporâneas: “Nenhuma ficção que li nos últimos cinco anos me trouxe mais alegria do que ‘A Sociedade do Anel’.”12. Enquanto o crítico literário Edmund Wilson foi severo em sua avaliação, considerando a obra de Tolkien como infantil e sem a profundidade literária esperada de um acadêmico de Oxford, refletindo um desprezo pela fantasia como gênero, que ele considerava escapista e irrelevante para o debate literário sério: Uma impotência da imaginação parece, para mim, minar toda a história. As guerras nunca são dinâmicas; as provações não transmitem nenhum senso de tensão; as damas não provocariam nem uma batida de coração; os horrores não machucariam uma mosca.13 No entanto, a discordância entre críticos não impediu que O Senhor dos Anéis atraísse uma base de fãs dedicada, especialmente entre os jovens da contracultura dos anos 1960. A obra de Tolkien encontrou ressonância entre essa geração, que via nos hobbits e sua luta pela preservação de um mundo simples e pacífico, uma metáfora poderosa contra a industrialização desenfreada e a opressão política. O movimento hippie, em particular, adotou a Terra-média como um símbolo de resistência e esperança, transformando Tolkien em um ícone cultural inesperado. Essa recepção popular ajudou a consolidar a posição de Tolkien não apenas como autor de best-sellers, mas também como uma figura central na cultura pop. Com isso em mente, a pesquisa buscou, no capítulo 1, revelar o peso que as biografias de Tolkien tiveram para desmistificar o mito criado ou, então, para revelar aspectos pouco conhecidos de sua vida. Humphrey Carpenter, em sua biografia oficial de 1977, apresentou Tolkien como um homem comum, destacando o conservadorismo, ou até mesmo uma postura reacionária, e a fé católica de Tolkien como aspectos fundamentais que moldaram a vida do literato. Por outro lado, biógrafos como Michael White e John Garth ofereceram perspectivas distintas, enfatizando a genialidade 12 “No fiction I have read in the last five years has given me more joy than ‘The Fellowship of the Ring.’” AUDEN, W.H. The Hero is a Hobbit. Archive The New York Times, 1954. Disponível em: https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/01/02/11/specials/tolkien-fellowship.html?_r=1> Acesso em 10/11/2024. 13 “An impotence of imagination seems to me to sap the whole story. The wars are never dynamic; the ordeals give no sense of strain; the fair ladies would not stir a heartbeat; the horrors would not hurt a fly.” WILSON, Edmund. Oo, THOSE AWFUL ORCS! The Nation, 14/4/1956. Disponível em: < https://jrrvf.com/sda/critiques/The_Nation.html>. Acesso em 10/11/2024. 20 literária de Tolkien e explorando o impacto da Primeira Guerra Mundial em sua visão de mundo. A obra de Tolkien, portanto, suscinta opiniões divergentes entre aqueles que a leram. Enquanto alguns críticos viam sua fantasia como uma forma de escapismo infantil, outros reconheceram nela uma crítica incisiva à modernidade e às condições humanas. Tolkien, o acadêmico de Oxford, desafiou as convenções literárias de sua época, criando uma narrativa que, embora anacrônica, ressoava profundamente nos leitores de todas as idades. Este capítulo busca, assim, iluminar as perspectivas adotadas pelos críticos literários, fãs e biógrafos de Tolkien, dimensões relevantes para compreender o peso do literato e intelectual na historicidade em que se inseria. No entanto, qual é a visão que Tolkien buscou criar de si próprio? O capítulo 2, “Tolkien: um intelectual angustiado com o presente”, procura responder a este questionamento, analisando a correspondência de Tolkien e perscrutando como o literato considerava o mundo ao seu entorno; um intelectual em desacordo com a modernização e as transformações sociais que marcaram o século XX. Tolkien nasceu em 1892, no final da Era Vitoriana, e foi criado em uma Inglaterra em rápida transformação. Ele foi educado na tradição católica, um fator que desempenhou um papel crucial em sua formação ética e moral. Esta fé, herdada de sua mãe, Mabel, que se converteu ao catolicismo e sofreu ostracismo de sua família batista, foi uma das forças motrizes de sua vida. Como resultado, Tolkien desenvolveu uma visão de mundo que valorizava a tradição, a constância e os valores familiares, frequentemente em contraste com as mudanças, perturbadoras para Tolkien, de seu tempo. Ao longo de sua vida, Tolkien expressou um profundo desconforto com a modernidade e seus efeitos, vendo a industrialização e a urbanização como forças destrutivas que ameaçavam o modo de vida rural que ele prezava. Em suas cartas, especialmente aquelas destinadas a seus filhos, como Christopher, ele frequentemente lamentava a transformação de paisagens naturais em ambientes urbanos e a perda de uma vida simples e conectada à terra. Essa aversão à modernidade e à tecnologia é refletida em suas obras literárias, espaço no qual as forças do mal frequentemente utilizam máquinas e métodos industriais para alcançar seus objetivos. A Terra-média, em contraste, é um mundo onde a beleza da natureza e a simplicidade da vida são celebradas e preservadas. Tolkien também era crítico em relação ao liberalismo e suas promessas de progresso social e científico, vendo com ceticismo as ideias de que a racionalidade e 21 o progresso poderiam resolver todos os problemas da humanidade. Em vez disso, o literato acreditava que a moralidade e a fé eram essenciais para guiar a sociedade e que o abandono desses valores poderia levar à decadência da humanidade, possuindo visões de mundo alinhadas ao conservadorismo político, mesmo que desprezasse escolhas partidárias. Sua crítica ao liberalismo e à modernização são evidentes em suas missivas, textos que Tolkien expressa preocupações sobre a direção que a sociedade tomava e a perda de valores fundamentais. Tolkien não se evadiu de seu tempo; estando ciente das questões políticas e sociais contemporâneas, não hesitando em expressar suas opiniões. Isso fica evidente em uma carta enviada ao filho, Christopher Tolkien, que lutava na Segunda Guerra Mundial. Tolkien, descendente de alemães e estudioso da língua e cultura germânicas, manifestava preocupação com o crescimento do ódio na Inglaterra em relação ao povo alemão. Na carta, confessou seus temores diante do extremismo político que surgia em momentos agudos de crise: Sabíamos que Hitler era um cafajestezinho vulgar e ignorante, além de quaisquer outros defeitos (ou das origens dele); mas parece haver muitos cafajestezinhos que não falam alemão e que, dada a mesma oportunidade, apresentariam a maioria das outras características hitlerianas. Houve um artigo no jornal local defendendo seriamente o extermínio sistemático de toda a nação alemã como o único curso apropriado após a vitória militar: porque, com sua licença, eles são cascavéis e não sabem a diferença entre o bem e o mal! (o que dizer do autor?) Os alemães têm tanto direito de declarar os poloneses e judeus vermes subumanos e extermináveis quanto nós temos de selecionar os alemães: em outras palavras, nenhum direito, o que quer que tenham feito.14 Suas missivas revelam um homem incomodado com o mundo, o que o leva a criar uma alternativa por meio de sua escrita: a ideia de subcriação, que ele desenvolveu, expressa seu desejo de criar mundos que capturassem a beleza e a complexidade de seu presente, mas que também oferecessem uma visão de um mundo ideal. Para Tolkien, a literatura fantástica era uma forma de arte que permitia aos leitores escaparem dos dilemas do mundo real. O capítulo, portanto, busca explorar como Tolkien se posicionou em relação ao seu tempo, utilizando da escrita de cartas para amigos, familiares e editores, como um refúgio e uma forma de 14 Carta 81, datada de 23 de setembro de 1944, para o filho Christopher Tolkien. TOLKIEN, J.R.R. As cartas de J.R.R. Tolkien. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2023, p.146. 22 resistência à realidade que o cercava. Suas cartas revelam um homem lutando para reconciliar suas crenças pessoais com o mundo em rápida transformação. O que dizer a respeito de sua criação literária? Podemos ver a obra literária de Tolkien como uma tentativa de construir uma opção melhor ao mundo contemporâneo? Em O Senhor dos Anéis, o autor constrói um mundo que, embora fictício, é imbuído de uma complexidade que expressa sua visão de mundo e suas preocupações contemporâneas. A Terra-média serve como um espelho da realidade, permitindo que os leitores explorem questões profundas sobre o poder, a corrupção e a luta entre o bem e o mal, em uma fantasia que, ao mesmo tempo, oferece um escape da dureza da vida no presente. Tolkien via a literatura fantástica como evasão, mas exploraremos no capítulo que a sua obra era muito mais que escapista, porque propunha um retorno a um passado idealizado, criticando o presente em que vivia. Era, desta forma, literatura política, mesmo que Tolkien desassociasse sua obra de qualquer política. Partindo da ideia de que a obra de Tolkien era uma obra política, busca-se, no capítulo 3, “Literatura como salvação”, analisar o livro As Duas Torres, segunda parte da trilogia de O Senhor dos Anéis, para compreender como a literatura captura e expande os dilemas e visões de mundo que Tolkien articulou em suas cartas. É o espaço para relacionar o conteúdo desenvolvido no capítulo 2, ou seja, o que ele dizia nas cartas sobre sua criação, com o realizou em sua prosa ficcional. Há coerência nos discursos ficcional e não ficcional? Parte-se da necessidade de justificar que a literatura de J.R.R. Tolkien foi um meio para o literato explorar seus dilemas com o século XX: a perda dos valores que o autor julgava importantes, a destruição da natureza e os traumas de um homem que viveu duas grandes guerras. O terceiro capítulo da dissertação investiga como Tolkien emprega As Duas Torres para construir um universo de fantasia, mas também criticar e oferecer alternativas à realidade contemporânea. A literatura, para Tolkien, se torna um veículo de salvação, uma forma de preservar e expressar valores em um mundo que percebia como desmoronando; o que nos revela o interesse de Tolkien em se ver como um intelectual com um papel na sociedade, preocupado em defender suas ideias e valores e capaz de desenvolver uma literatura única. Tolkien utiliza a narrativa fantástica para comentar sobre a destruição da natureza, um tema que lhe era caro e que refletia sua angústia em relação à crescente industrialização. Essa preocupação é simbolicamente representada pelos ents, seres 23 arbóreos que habitam a floresta de Fangorn e que se erguem contra a devastação promovida por Saruman em Isengard. O Vale do Mago em Isengard torna-se espaço para a indústria bélica de Saruman, o mago, e Tolkien não mede esforços para descrever como a modernização era capaz de destruir a beleza natural: A luz chegou pálida e cinzenta e eles não viram o nascer do sol. O ar acima estava impregnado de cerração e um fétido vapor os envolvia. Foram devagar, cavalgando agora pela estrada [...]. Tinham passado pela Nan Curunír, o Vale do Mago. [...] Outrora fora belo e verde, e através dele o Isen corria, já forte e profundo antes de encontrar as planícies.15 A resistência dos ents pode ser vista como uma manifestação do desejo de Tolkien de ver a natureza triunfar sobre as forças destrutivas da modernidade, uma questão que já terá sido abordada em cartas selecionadas no capítulo anterior. Ao delinear a luta entre a indústria e a natureza, Tolkien não apenas critica o presente, mas propõe uma visão em que a preservação do meio ambiente é central para a sobrevivência da humanidade. Já a dramatização da guerra, outro elemento central em As Duas Torres, reflete as experiências pessoais de Tolkien nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial e como a guerra o transformou. Assim como a Batalha do Somme deixou marcas indeléveis em sua percepção do conflito e da condição humana, a guerra do Anel em sua narrativa é uma representação das forças destrutivas que ameaçam a paz e a ordem. A resistência dos homens de Rohan contra o poder opressor de Isengard exprime não apenas uma luta pela sobrevivência, mas também uma batalha pela preservação da identidade e dos valores que aqueles homens viam como essenciais. Tolkien utiliza o conflito para explorar a coragem, a lealdade e a resiliência, virtudes que ele acreditava serem fundamentais para enfrentar as adversidades da vida moderna. O capítulo também busca abordar como Tolkien retrata a resistência à mudança através dos rohirrim e dos hobbits. Ambas as sociedades representam um apego ao passado, em contraste com as forças de mudança representadas por Saruman e Sauron. Os habitantes de Rohan, com sua cultura inspirada nos anglo- saxões, refletem a preocupação de Tolkien em preservar as tradições culturais em face de uma modernização avassaladora. Da mesma forma, os hobbits, com seu 15 TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: segunda parte: As Duas Torres. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, [1954], p.156. 24 mundo fechado e hierarquizado, representam uma visão conservadora que valoriza a estabilidade e a simplicidade. A literatura de Tolkien, ao criar o universo único da Terra-média, oferece ao leitor uma forma de escapismo, mas também uma crítica à realidade contemporânea. Em suas cartas, o autor expressou repetidamente a intenção de que sua obra servisse como um refúgio contra as durezas do mundo moderno, mas suas narrativas vão além da evasão; elas oferecem uma reflexão sobre os desafios e as possibilidades de transformação do mundo real. A Terra-média se torna um espaço no qual Tolkien pode imaginar e construir uma sociedade baseada em valores que ele acreditava estarem em risco. Finalmente, o capítulo examina como a recepção da obra por jovens da contracultura na década de 1960 transformou a narrativa de O Senhor dos Anéis em um hino de resistência contra a opressão e a industrialização. Embora o autor defendesse valores cristãos tão distantes da realidade da juventude do período, os temas principais de sua obra permitiram que diferentes gerações encontrassem na Terra-média um espelho de suas próprias lutas e aspirações. Os hobbits, com sua busca por uma vida simples e pacífica, tornaram-se símbolos de resistência contra as forças que oprimiam os jovens da contracultura. O movimento hippie, em particular, adotou a Terra-média e seus costumes tão distintos da modernização que viviam. Para o jovem da contracultura, a vida dos hobbits era algo a se sonhar: Os hobbits são um povo discreto mas muito antigo [...]. Amam a paz e a tranquilidade e uma boa terra lavrada: uma região campestre bem organizada e bem cultivada era seu refúgio favorito. Hoje, como no passado, não conseguem entender ou gostar de máquinas mais complicadas que um fole de forja, um moinho de água ou um tear manual, embora sejam habilidosos com ferramentas.16 A duradoura popularidade de Tolkien entre o público em geral é um testemunho de sua maestria em construir um universo envolvente, povoado por personagens memoráveis e com características que os aproximam de seus leitores. Ele não apenas criou histórias de aventura e magia, mas também explorou temas profundos e significativos que ressoam em leitores de todas as idades. Ao fazer isso, Tolkien não 16 TOLKIEN, Op. Cit., 2000a, p.1. 25 apenas solidificou seu legado como um dos grandes escritores do século XX, mas também foi responsável por popularizar o gênero da literatura fantástica. Concluindo, o impacto de Tolkien na literatura e na cultura é inegável, já que sua obra inspirou inúmeros escritores de fantasia e ficção científica17, oferecendo novas maneiras de compreender o mundo. A exploração de sua vida e obra revela não apenas um autor de talento extraordinário, mas também um intelectual que usou a literatura como forma de dar espaço as suas inúmeras angústias. Tolkien utiliza a literatura não apenas como um espaço de fuga, mas como um meio de salvação em um mundo em transformação. As Duas Torres é uma obra que, ao explorar questões de destruição, resistência e preservação, continua a ressoar profundamente em leitores de diferentes gerações. 17 Tolkien é considerado uma inspiração para variados autores ao longo das décadas, como Isaac Asimov, autor da trilogia de ficção científica Fundação (1951), George R.R. Martin autor de As Crônicas de Gelo e Fogo (1996- ); Neil Gaiman com o livro Deuses Americanos (2001) e o quadrinho Sandman (1989), Stephen King com sua obra magistral de oito volumes A Torre Negra (1982-2012), entre outros. 26 2 AS FIGURAS DE J. R. R. TOLKIEN John Ronald Reuel Tolkien destaca-se no mundo literário por suas obras O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Homem de letras, acadêmico fascinado pela Idade Média, produziu obras de filologia e estudo sobre os dialetos ingleses medievais, mas foram seus escritos de fantasia que o fizeram alcançar notoriedade ainda em vida com as publicações de O Hobbit em 1937 e da primeira parte da saga O Senhor dos Anéis em 1954. Apenas os três volumes de O Senhor dos Anéis venderam mais de 150 milhões de cópias e foram traduzidos para mais de quarenta línguas. Ídolo da cultura pop contemporânea, Tolkien, professor de Oxford, saiu do anonimato com o lançamento de O Hobbit, em setembro de 1937, véspera da Segunda Guerra Mundial. Escrito como livro infantil, visava entreter seus filhos com uma fantasia passada no mundo da Terra-média, habitado por dragões, anões e hobbits, seres fantásticos criados pela mente do autor. O Hobbit vendeu inúmeras cópias, em especial na Inglaterra, mas alcançou sucesso internacional apenas na década de 1960, com o surgimento do culto ao mundo fantástico da Terra-média iniciado pelos jovens universitários norte-americanos (estima-se que O Hobbit tenha vendido mais de 100 milhões de cópias ao longo das décadas)18. Foi recebido como uma obra infantil de excelência, no entanto, não causou o mesmo barulho que O Senhor dos Anéis. C.S. Lewis, amigo de Tolkien e intelectual renomado da época, escreveu uma resenha crítica sobre O Hobbit no jornal The Times Literature Supplement, expressando seu contentamento ao ler uma obra que, sim, era voltada ao público infantil, mas que somente adultos poderiam perceber a habilidade excecional de Tolkien para escrever algo maduro e, ainda assim, agradável e belo. Lewis ainda encerrava a resenha com o seguinte comentário: “A previsão é perigosa: mas O Hobbit pode muito bem revelar-se um clássico”19. A reação de Oxford com o lançamento da obra foi documentada apenas pelo próprio Tolkien, que estava apreensivo com a reação de seus colegas professores ao lançamento da obra infantil de fantasia. De acordo com o biógrafo de Tolkien, a 18 JRR Tolkien letter reveals poor sales of The Hobbit. Disponível em: Acesso em 08/08/2024. 19 “Prediction is dangerous: but The Hobbit may well prove a classic.” LEWIS, C.S. A world for children: J. R. R. Tolkien. The Times Literary Supplement (2/10/1937). Disponível em: . Acesso em 10/08/2024 https://www.theparisreview.org/blog/2013/11/19/c-s-lewis-reviews-the-hobbit-1937/ 27 academia já conhecia seu interesse por “[...] tesouros de dragões e homenzinhos engraçados com nomes como Tom Bombadil – um passatempo inofensivo, pensavam, se bem que um pouco infantil”20. O Hobbit foi visto, pela Universidade de Oxford como um livro infantil desassociado do universo acadêmico, adicionado a “longa lista de intermináveis procrastinações.”21 do professor. A fala de Tolkien sobre Oxford revela sua relação complexa com a universidade. No universo acadêmico prestigiado de Oxford e Cambridge, o universitário que sai da instituição após a formação e retorna como professor é visto de maneira distinta do chamado fellow, alguém que estudou, se tornou pesquisador e professor sem sair do ambiente de Oxbridge. Tolkien, por ter sido professor de Inglês na Universidade de Leeds de 1920 a 1924, era chamado de fellow ex officio, um título visto com ressentimento por esse grupo. Tolkien, por ter vindo de fora, deveria apresentar maior produtividade para ser visto com respeito como um fellow, o que era difícil para o literato, que preferia o ambiente da sala de aula e do ensino que aquele da produção acadêmica. Essa característica trouxe má reputação a Tolkien, que era conhecido por não finalizar seus textos acadêmicos: o material escrito e publicado em sua área de estudo é pouco volumoso, como o estudo linguístico do Ancrene Wisse (manual monástico do século XIII), a tradução de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, estudos sobre o dialeto inglês do século XIV e uma tradução comentada do poema anglo-saxão Beowulf. Com o lançamento de seus textos literários, ficou nítido para Oxford em que local a cabeça de Tolkien estava: o mundo da fantasia. Ainda sobre a reação dos colegas intelectuais de Oxford, Tolkien indica, em uma carta para seu editor, Stanley Unwin, datada de 15 de outubro de 1937, que seus colegas o olham com surpresa e um pouco de pena: Na minha própria faculdade, acredito, há lugar para uns seis exemplares, mesmo que seja apenas para que se encontre material para me provocar. A aparição no Times convenceu um ou dois de meus colegas mais ponderados de que podem admitir ter conhecimento de minha ‘fantasia’ (isto é, leviandade) sem perda de dignidade acadêmica. O professor de Grego Bizantino comprou um 20 CARPENTER, Humphrey. J.R.R.Tolkien: uma biografia. 1. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2018, p.236. 21 Na carta para seu editor, datada de maio de 1937, antes do lançamento de O Hobbit, Tolkien comenta a reação inicial de Oxford. TOLKIEN, J.R.R. As cartas de J.R.R. Tolkien. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2023, p.33. 28 exemplar, ‘porque exemplares da primeira edição de Alice são agora muito valiosos’.22 Apesar das provocações do corpo docente de Oxford, Tolkien sobreviveu ao teste do tempo e o professor de Grego Bizantino ficaria surpreso em saber que uma primeira edição de O Hobbit foi leiloada por mais de 31 mil libras em 2024.23 Ainda em 1937, Tolkien iniciou a escrita do que seria uma continuação da obra infantil, mas ao perceber que o texto assumia um tom mais sombrio e adulto, abandonou a ideia. Nos doze anos subsequentes, o professor de Oxford se dedicaria ao que seria conhecido como O Senhor dos Anéis, seu projeto mais ambicioso, parte da mitologia do Silmarillion iniciada ainda na Primeira Guerra Mundial. É importante observar que O Silmarillion, um conjunto de lendas complexas criado por Tolkien, foi iniciado com A Queda de Gondolin, desenvolvido em uma cama de hospital, após retornar da Batalha do Somme e enquanto se recuperava de uma febre de trincheiras24. Havia uma necessidade urgente de escapar das brutalidades da guerra, criando um mundo fictício capaz de dar sentido a toda a experiência devastadora do conflito que Tolkien presenciou. Muito do material escrito pelo literato, contos e histórias inacabadas, foi lido para a família e para o amigo C.S. Lewis, o grande incentivador para que Tolkien seguisse com a escrita: “Por muito tempo ele foi meu único público. Apenas através dele tive noção de que meu ‘material’ poderia ser mais do que um passatempo particular”25. Com sua aposentadoria de Oxford, Tolkien acreditou ser possível publicar o conjunto de contos do universo fantástico, em especial após o sucesso comercial de O Senhor dos Anéis. No entanto, foi apenas em 1977 que os mitos criados por Tolkien foram publicados postumamente por seu filho, Christopher, que editou o material do pai sob o nome de O Silmarillion. 22 Carta 17, datada de 15/10/1937, para o editor Stanley Unwin. TOLKIEN, op. cit., 2023, p.42 23 The Hobbit first edition fetches more than £31k. Disponível em: Acesso: 24 GARTH, John. Tolkien e a Grande Guerra: o limiar da Terra-média. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021, p.240. 25 Carta 276, datada de 12/09/1965, para o presidente da Tolkien Society of America. TOLKIEN, op. cit., 2023, p. 515. 29 2.1 A recepção inicial ao livro O Senhor dos Anéis A publicação de O Senhor dos Anéis, entretanto, só ocorreu em 1954, após insistência de seu amigo C.S. Lewis. Inicialmente, Tolkien desejava lançar a obra em um único volume extenso, com mais de mil páginas, mas a editora Allen & Unwin, receosa quanto ao apelo comercial, optou por dividi-la em três volumes. Assim, entre agosto de 1954 e outubro de 1955, foram publicados os livros que compõem a trilogia: A Sociedade do Anel, As Duas Torres e O Retorno do Rei. A recepção das obras foi extremamente polarizada, atraindo amor e ódio dos críticos literários ingleses e norte-americanos. C.S. Lewis, sem surpresa, foi o primeiro a escrever uma resenha sobre A Sociedade do Anel, defendendo o realismo do universo de fantasia da Terra-média, criado por Tolkien: “Nada assim foi feito antes. A conquista totalmente nova do Professor Tolkien é que ele carrega, sozinho, um senso comparável de realidade”26. Um mundo fantástico, mas que ainda assim parece realidade, com seres fantásticos que possuem história, mitos, uma geografia detalhada e língua própria. Tolkien cria um escape sim, mas o escape das “ilusões da nossa vida comum”27. É relevante apontar que Lewis, ferrenho crítico da literatura modernista feita na época, usa sua resenha para indicar que A Sociedade do Anel é um romance heroico, eloquente e sem medo de ser romântico, em um mundo antirromântico: “Para nós, que vivemos nesse período singular, o retorno – e o puro alívio que traz – é sem dúvida o mais importante”28. Ainda sobre o escape da realidade e a literatura fantástica tão diferente do realismo procurado na literatura da época, observa-se a preocupação de um grupo de literatos, Lewis entre eles, que busca se afastar do mundo real, praticando uma espécie de literatura imaginativa única, que poderia ter elementos do mundo medieval ou retomar características do romantismo, mas ainda era diferente de tudo produzido 26 “Nothing quite like it was ever done before…. The utterly new achievement of Professor Tolkien is that he carries a comparable sense of reality unaided.” LEWIS, C.S. The Gods Return to Earth. Time and Tide, 14/08/1954. Disponível em: Acesso em 10/08/2024. 27 “As for escapism, what we chiefly escape is the illusions of our ordinary life.” LEWIS, C.S. The Gods Return to Earth. Time and Tide, 14/08/1954. Disponível em: Acesso em 10/08/2024. 28 “To us, who live in that odd period, the return and the sheer relief of it is doubtless the important thing.” LEWIS, C.S. The Gods Return to Earth. Time and Tide, 14/08/1954. Disponível em: Acesso em 10/08/2024. https://www.theonering.com/the-gods-return-to-earth-c-s-lewis-review-of-the-fellowship-of-the-ring/ https://www.theonering.com/the-gods-return-to-earth-c-s-lewis-review-of-the-fellowship-of-the-ring/ https://www.theonering.com/the-gods-return-to-earth-c-s-lewis-review-of-the-fellowship-of-the-ring/ https://www.theonering.com/the-gods-return-to-earth-c-s-lewis-review-of-the-fellowship-of-the-ring/ https://www.theonering.com/the-gods-return-to-earth-c-s-lewis-review-of-the-fellowship-of-the-ring/ 30 até o momento. Essa contraposição entre realidade e imaginação pode ser vista no comentário feito pelo jornal Oxford Times: os rigorosamente práticos não terão tempo para ele. Aqueles que têm a imaginação para ser despertada vão os encontrar completamente seduzidos a seguir adiante, tornando-se parte da movimentada expedição e lamentando-se por saber apenas mais dois livros por vir29. A revista Truth, periódico inglês de renome na época, lançou duas resenhas sobre a obra, a primeira, por A. E. Cherryman, que elogiou o seu caráter histórico: “É um trabalho espantoso. Ele acrescentou algo, não apenas ao mundo da literatura, mas à história também”30. E Bernard Levin, renomado jornalista inglês, que afirmou ser O Senhor dos Anéis “uma das mais extraordinárias obras de nossa literatura, ou de qualquer tempo. É confortante, nestes dias conturbados, ter a certeza mais uma vez que os bondosos devem herdar a terra”31. O comentário de Cherryman é relevante por trazer sua opinião a respeito do caráter histórico de O Senhor dos Anéis. Ora, para o jornalista era visível que a trama podia ser vista como fantasia, mas a construção de mundo feita por Tolkien era tão rica que poderia ser lida como um texto com elementos históricos32. O escritor e jornalista galês Howard Spring também defendeu o universo fantástico e imaginativo de Tolkien: “Esta é uma obra e arte […] Possui invenção, fantasia, imaginação [...] É uma parábola profunda da luta sem fim do homem contra o mal”33. No entanto, a resenha de maior relevância do período não veio da Inglaterra e sim de Nova York, com o poeta W.H. Auden, que em outubro de 1954, escreve para o The New York Times uma resenha de A Sociedade do Anel, intitulada “O Herói é um Hobbit”, não poupando elogios à obra imaginativa, que para ele é capaz de agradar um vasto público dos doze aos setenta anos de idade. A Sociedade do Anel, para Auden, é parte do gênero da saga do herói, assim como a saga medieval do Graal: 29 s/a, 13/08/1954. Apud WHITE, Michael. J.R.R. Tolkien: o senhor da fantasia. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2016, p.184. 30 CHERRYMAN, A.E. Truth, 6/8/1954 apud WHITE, op. cit., 2016, p.184 31 LEVIN, Bernard. Truth, 16/10/1954 apud WHITE, op. cit., 2016, p.184. 32 Vale observar que a resenha foi feita para o primeiro título da trilogia, A Sociedade do Anel, sendo que o caráter histórico da trilogia fica mais nítido em seu terceiro volume, que conta com um extenso apêndice que narra acontecimentos históricos da Terra-média, contando também com árvores genealógicas e explicações linguísticas sobre as línguas inventadas por Tolkien. 33 SPRING, Howard. Country Life, 26/08/1954 apud WHITE, op. cit., 2016, p.184. 31 Tolkien tem a sorte de possuir um incrível dom para nomear e um olhar maravilhosamente exato para descrever; quando terminamos o livro, conhecemos as histórias dos Hobbits, Elfos, Anões e a paisagem que habitam, tão bem quanto conhecemos a nossa própria infância.”34 Auden sabe que a obra tem um caráter fantástico e que foge do realismo esperado da ficção escrita na época; por isso tece um comentário sobre a necessidade do leitor se desprender sim da realidade ao ler A Sociedade do Anel, mas que, ainda assim, existe uma aproximação daquele mundo irreal com o nosso mundo: Por último, se quisermos levar a sério uma história deste tipo, devemos sentir que, por mais superficialmente diferente que o mundo em que vivemos possa ser em termos de personagens e acontecimentos, ela ainda assim ergue o espelho da única natureza que conhecemos, a nossa; nisso, também, o Sr. Tolkien teve um sucesso magnífico, e o que aconteceu no ano do Condado de 1418, na Terceira Era da Terra Média, não é apenas fascinante em 1954 d.C., mas também um aviso e uma inspiração.35 Auden, aliás, foi figura importante na consolidação de O Senhor dos Anéis como obra fundamental da literatura inglesa, defendo o caráter mágico e fantástico da obra, um material original que se utilizava de mitos nórdicos e germânicos, mas que, ainda assim, trazia em seu bojo algo de novo, capaz de aproximá-lo de seus leitores. A recepção positiva prezava a fantasia incrível e o escape como forma de fuga da realidade cruel do século XX, um século marcado pelos horrores de guerras mundiais. Para os defensores da fantasia de Tolkien, era naquele espaço que o homem poderia encontrar refúgio e isso só era capaz por conta da incrível capacidade do literato de imaginar. Ou seja, a defesa vinha exatamente do caráter imaginativo da obra, que destoava do realismo pregado pelos modernos. Em momento posterior deste capítulo, a pesquisa depreenderá a visão de quem leu a obra, a recepção da 34 “Mr. Tolkien is fortunate in possessing an amazing gift for naming and a wonderfully exact eye for description; by the time one has finished his book one knows the histories of Hobbits, Elves, Dwarves and the landscape they inhabit as well as one knows one's own childhood.”. AUDEN, W.H. The Hero is a Hobbit. Archive The New York Times, 1954. Disponível em: https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/01/02/11/specials/tolkien-fellowship.html?_r=1> Acesso em 10/8/2024. 35 “Lastly, if one is to take a tale of this kind seriously, one must feel that, however superficially unlike the world we live in its characters and events may be, it nevertheless holds up the mirror to the only nature we know, our own; in this, too, Mr. Tolkien has succeeded superbly, and what happened in the year of the Shire 1418 in the Third Age of Middle Earth is not only fascinating in A. D. 1954 but also a warning and an inspiration.” AUDEN, W.H. The Hero is a Hobbit. Archive The New York Times, 1954. Disponível em: https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/01/02/11/specials/tolkien- fellowship.html?_r=1> Acesso em 10/8/2024. 32 obra pelos jovens leitores de Tolkien, que captam também a fantasia imaginativa, mas percebem uma crítica social ao mundo contemporâneo, em especial à industrialização desenfreada e a violência da guerra. Por outro lado, a recepção crítica também destacou aspectos negativos da obra, como seu tom pomposo, o estilo rebuscado da escrita — destoante das tendências literárias da época — e o excesso de personagens masculinos, que limita a diversidade de perspectivas na narrativa. Edwin Muir, do Observer, não deixa de indicar que o livro era bem escrito, mas que faltava em Tolkien uma visão menos dual de suas personagens: “o seu bondoso povo era consideravelmente bom, e as suas figuras malignas, imutavelmente más: e não havia espaço em seu universo para um Diabo mal e trágico ao mesmo tempo”36. A crítica mais negativa veio de Peter Green, jornalista do Daily Telegraphy que descreveu a obra como amorfa e infantilizada, com ares de um Boy’s Own Paper (um estilo de revista literária comum antes da Segunda Guerra Mundial, com textos literários simples, tendo como público-alvo crianças e adolescentes)37. O texto teve uma reação imediata de Tolkien que escreveu para seu editor: “Não o conheço, nem ouvi falar dele, mas ele é tão rude a ponto de fazer com que se suspeite de malícia”38. E a reação de Oxford? Não são conhecidas as reações dos colegas de Tolkien, mas, o literato escreve, em 1956, para Anne Barrett, de sua casa editorial nos Estados Unidos, a Houghton Mifflin Co., que a reação de seus colegas de Oxford foi de desapontamento por ver um filólogo de prestígio se voltar para a literatura “popular”: A maioria dos meus colegas filólogos está chocada (cert. pelas minhas costas, algumas vezes na minha cara) pela queda de um filólogo na ‘Literatura trivial’; e, de qualquer forma, o grito é: ‘agora sabemos de que maneira você esteve desperdiçando seu tempo por 20 anos.’39 O que revela como Tolkien entrava em dissintonia com o que era esperado como acadêmico e intelectual40, sendo reconhecido, cada vez mais, em seu papel de literato. 36 MUIR, Edwin. Observer, 22/8/1954 apud WHITE, op. cit., 2016, p.184. 37 GREEN, Peter. Daily Telegrphy, 27/8/1954, apud WHITE, op. cit., 2016, p.184. 38 TOLKIEN, op. cit. 2023, p.287. 39 TOLKIEN, op. cit., 2023, p.354. 40 Sobre a coincidência das posições e acadêmico e intelectual na Inglaterra da primeira metade do século XX, Thomas Heyck, historiador norte-americano de política e de intelectuais, analisa as possíveis representações de intelectual na Inglaterra. Segundo Heyck, o termo intelectual nunca foi usado de modo abrangente pelos ingleses do final do século XIX, que preferiam a expressão homem 33 Talvez os críticos literários da época não imaginassem que o texto tivesse uma vida longa, talvez estivessem esperando a conclusão da trilogia; o fato é que houve poucas críticas relevantes ao lançamento de As Duas Torres, em novembro de 1954. Apenas em outubro de 1955, com a publicação do último exemplar da trilogia, O Retorno do Rei, é que as resenhas, positivas e negativas, voltaram a povoar a mídia. E lá estava Lewis, mais uma vez, defendendo a obra do amigo numa resenha na Time&Tide, de outubro de 1955. No texto, o autor critica aqueles que enxergam apenas o dualismo entre bem e mal, mostrando que existem personagens como Boromir e Sméagol, assombrados pelo Anel e que lutam para permanecer bons, mesmo que sucumbam à maldade e à corrupção do Anel. Ambos são, aos olhos de Lewis, representantes de personagens mais complexos, que não poderiam ser encaixados em papéis de bondade ou maldade. Lewis debate que o mais relevante das obras de Tolkien é sua capacidade de transformar um mundo fantástico em algo familiar e próximo do real: O livro é demasiado original e demasiado opulento para qualquer julgamento final numa primeira leitura. Mas sabemos imediatamente que sua leitura fez algo em nós. Não somos exatamente os mesmos homens. E embora devamos racionalizar nossas releituras, não tenho dúvidas de que o livro em breve ocupará o seu lugar entre os indispensáveis.41 de letras ou homem letrado. Heyck realiza, então, uma análise de seis sentidos distintos que o termo se apresentou durante o final do século XIX e durante o século XX, sendo que quatro desses conceitos servem para descrever Tolkien: a representação do intelectual com os significados de acadêmico, tradicional, funcional e normativa. O intelectual representado como um acadêmico foi uma caracterização comum na Inglaterra do início do século XX, principalmente pelo avanço da profissionalização das universidades. Para Heyck, o acadêmico era visto como parte de um pequeno grupo letrado das tradicionais universidades inglesas, porque se importava mais com teorias do que com a prática. Já o significado tradicional do termo traz um caráter elitista para a palavra, pois o vê como aquele que é altamente educado e separado do povo comum, que é retratado como vulgar. De acordo com o historiador, o termo traz um caráter tão elitista e arrogante que caiu em desuso durante o século XX. O significado funcional dado a palavra na língua inglesa pensa em uma espécie de líder cultural, um homem letrado, abrangendo todo aquele que produz literatura. Basicamente, de acordo com Heyck, todos os escritores do século XIX e XX se viram nessa função. Por último e de maior relevância para este estudo, o significado normativo do termo, que vê esse grupo representado por homens separados da sociedade e da política, que vivem alheios à ação, pois, para eles, o mundo a qual pertencem é superior. O intelectual é, antes de tudo, um pensador independente da sociedade. Tolkien se enquadra no conceito, em especial por sua preocupação constante em não opinar sobre política ou sua crítica a todos aqueles que viam sua obra como alegoria da guerra e do totalitarismo, como será analisado posteriormente no capítulo. Para mais: HEYCK, T. William. Myths and Meanings of Intellectuals in Twentieth-Century British National Identity. Journal of British Studies, vol. 37, no. 2, 1998, pp. 192–221. JSTOR, Acesso em 10 março 2022. 41 “The book is too original and too opulent for any final judgment on a first reading. But we know at once that it has done things to us. We are not quite the same men. And though we must ration ourselves in our rereadings, I have little doubt that the book will soon take its place among the indispensables.” LEWIS, C.S. The Dethronement of Power, Time and Tide, 22/10/1955. Disponível em: Acesso em 12/08/2024. 42 ‘I rarely remember a book about which I have had such violent arguments. Nobody seems to have a moderate opinion: either, like myself, people find it a masterpiece of its genre or they cannot abide it, and among the hostile there are some, I must confess, for whose literary judgment I have great respect.” AUDEN, W.H. At the End of the Quest, Victory, The New York Times, 22/1/1956. Disponível em < https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/01/02/11/specials/tolkien- return.html?_r=2&oref=slogin> Acesso em 10/8/2024. 43 “I can only suppose that some people object to Heroic Quests and Imaginary Worlds on principle; such, they feel, cannot be anything but light "escapist" reading. That a man like Mr. Tolkien, the English philologist who teaches at Oxford, should lavish such incredible pains upon a genre which is, for them, trifling by definition, is, therefore, very shocking.” AUDEN, op. cit., 1956. Disponível em < https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/01/02/11/specials/tolkien- return.html?_r=2&oref=slogin> Acesso em 10/8/2024. https://earthandoak.wordpress.com/2018/01/06/cs-lewis-response-to-critics-of-the-lord-of-the-rings-the-dethronement-of-power/#:~:text=The%20book%20is%20too%20original,its%20place%20among%20the%20indispensables https://earthandoak.wordpress.com/2018/01/06/cs-lewis-response-to-critics-of-the-lord-of-the-rings-the-dethronement-of-power/#:~:text=The%20book%20is%20too%20original,its%20place%20among%20the%20indispensables https://earthandoak.wordpress.com/2018/01/06/cs-lewis-response-to-critics-of-the-lord-of-the-rings-the-dethronement-of-power/#:~:text=The%20book%20is%20too%20original,its%20place%20among%20the%20indispensables 35 Por último, é relevante discutir um trecho da resenha de Auden que compara a demanda do herói medieval em O Senhor dos Anéis com o mesmo tema em romances de cavalaria, usando como base Mimesis de Erich Auerbach. O estudioso observa que os protagonistas da literatura cavaleiresca são constantemente chamados para aventuras, mas essas aventuras não são uma escolha individual, mas sim algo que faz parte da própria natureza dos personagens, que são seres idealizados. Para Auerbach, o cavaleiro não pode viver sem os feitos de armas e amor e essa é a essência do mundo da literatura cavaleiresca. Os feitos do cavaleiro medieval, no entanto, não possuem objetivo político e, sim, são feitos pelo amor, seja o amor cortês ou o amor pelo reino. Além disso, Auerbach revela que o universo do romance cortês - o ethos feudal - é o de uma única classe social, absoluta e que não comporta outros grupos sociais em seu espaço, ou seja, apenas os membros da sociedade cavaleiresca são dignos de participarem das aventuras e suas provações. Por outro lado, essa característica da prosa medieval não aparece em Tolkien, que apresenta uma configuração bem diferente, já que reúne personagens de várias naturezas e grupos sociais: desde a presença divina dos Valar, passando pelos elfos nobres como Galadriel e Legolas, os homens destemidos como Aragorn e Faramir, até o espírito impulsivo do anão Gimli e a praticidade dos hobbits. Embora haja uma hierarquia entre esses personagens, a presença dos hobbits, seres simples e sem grandes planos ambiciosos, traz um toque anacrônico à narrativa. Ou seja, para Auden, Tolkien supera o ethos feudal, criando algo único. Mesmo reconhecendo na prosa de O Senhor dos Anéis elementos da literatura cavaleiresca, Auden defende que Tolkien busca inspiração na realidade para criar algo original na ficção. Pode-se deduzir, pela leitura de Auden, que o realismo presente no romance de Tolkien, além de uma atenção aos detalhes responsável por enriquecer a trama, está ligado à presença dos hobbits, heróis simplórios, parecidos com pessoas comuns da realidade, pouco interessados em participar de conflitos ou mudanças radicais da sociedade, preferindo apenas viver uma vida estável44. Os pequeninos, como são 44 Até mesmo Tolkien confirma que os hobbits foram inspirados nele mesmo, ou seja, no que ele diz ser o inglês médio: Sobre a semelhança entre si próprio e sua criação, o autor afirma. na correspondência 213 (datada de outubro de 1958). para outro leitor: “Sou de fato um Hobbit (em tudo, exceto no tamanho). Gosto de jardins, de árvores e de terras aráveis não mecanizadas; fumo um cachimbo e gosto de uma boa comida simples [...]; possuo um senso de humor muito simples” (carta 213, datada de outubro de 1958). TOLKIEN, op. cit., 2023, p.421. Em outro momento, Tolkien comenta que Sam Gamgee, hobbit, herói improvável da saga do anel, foi inspirado nos soldados que conheceu na guerra, pessoas simples e valorosas: “De fato, como o senhor disse, o meu ‘Sam Gamgi’ é um reflexo do 36 conhecidos, são muitas vezes esquecidos pelos outros povos, mas assumem o protagonismo tanto nos grandes feitos que encerram a Terceira Era quanto na transmissão dessas histórias, o que afeta a forma como os leitores recebem a narrativa. Auden sugere que Tolkien foi o escritor mais bem-sucedido em usar elementos tradicionais da demanda heroica medieval, ao mesmo tempo que satisfaz nosso senso de realidade histórica e social, já que ele conseguiu criar um mundo imaginário extremamente detalhado, que pode rivalizar com o nosso mundo real, com leis compreensíveis, o que faz com que os leitores o considerem verossímil: Para começar, nenhum escritor anterior, que eu saiba, criou um mundo imaginário e uma história fantástica com tantos detalhes. Quando o leitor terminar a trilogia, incluindo os apêndices deste último volume, ele saberá tanto sobre a Terra Média de Tolkien, a sua paisagem, a sua fauna e flora, os seus povos, as suas línguas, a sua história, os seus hábitos culturais, como, fora de seu campo especial, ele conhece o mundo real.45 A resenha de Auden, por mais bem embasada que possa ter parecido aos olhos de seus contemporâneos, não foi unanimidade. O Retorno do Rei e o fim da trilogia de O Senhor dos Anéis trouxe também visões negativas. Edwin Muir, do Observer, intitulou sua resenha de novembro de 1955 de “Um Mundo de Meninos”, criticando a infantilidade e a falta de personagens femininas na obra: O mais surpreendente é que todos os personagens são meninos que se passam por heróis adultos. Os hobbits ou pequeninos são rapazes comuns; os heróis completamente humanos acabaram de concluir o ensino médio; mas, dificilmente, algum deles sabe algo sobre mulheres, exceto pelos boatos. Até mesmo os elfos, os anões e os ents são meninos, irrecuperavelmente, e nunca atingirão a puberdade.46 soldado inglês, dos soldados rasos e ordenanças que conheci na guerra de 1914, e que reconheci como muito superiores a mim mesmo.”. TOLKIEN, op. cit.,2023, p.368. 45 “To begin with, no previous writer has, to my knowledge, created an imaginary world and a feigned history in such detail. By the time the reader has finished the trilogy, including the appendices to this last volume, he knows as much about Tolkien's Middle Earth, its landscape, its fauna and flora, its peoples, their languages, their history, their cultural habits, as, outside his special field, he knows about the actual world.” AUDEN, op. cit., 1956. Disponível em < https://archive.nytimes.com/www.nytimes.com/books/01/02/11/specials/tolkien- return.html?_r=2&oref=slogin> Acesso em 10/8/2024. 46 MUIR, Edwin. Observer, 22/8/1954, apud WHITE, op. cit., 2016, p.186. 37 E o mesmo teor crítico esteve presente em artigo de J.W. Lambert, publicado no Sunday Times: “Nenhum espírito religioso de qualquer espécie e, para todos os efeitos, nenhuma mulher.”47 Diminuir a obra, enxergando-a como fantasia infantilizada, era uma prática esperada por aqueles que defendiam textos literários de escrita mais poética e personagens com complexos dilemas interiores, lutando não contra o Mal, mas contra a sua própria condição humana. Assim, a fantasia era vista como literatura de menor valor, por fugir da realidade e da tradição literária esperada. No entanto, o maior reprovador da obra de Tolkien foi o respeitado crítico literário norte-americano Edmund Wilson, que escreveu em abril de 1956, para a revista The Nation, a resenha com o título “Oo, Those awful Orcs!”, algo como “Ohh, Esses Orcs horríveis!”. O início da resenha já debate a qualidade da obra de Tolkien ao indicar que o professor de Oxford era interessado em países de conto de fadas a ponto de transformar uma historinha de crianças, O Hobbit, em algo grandioso, O Senhor dos Anéis. Wilson relata seu choque ao descobrir que a obra de Tolkien foi bem recebida por críticos adultos, já que a obra é nitidamente infantil: Este crítico leu em voz alta todo o livro para sua filha de sete anos, que passou por O Hobbit inúmeras vezes [...]. É curioso pensar por que o autor achou que estava escrevendo para adultos. Embora haja alguns detalhes que podem ser considerados um pouco inadequados para um livro infantil, na maior parte do tempo, O Senhor dos Anéis é compreensível para uma criança de sete anos. Isso só não se aplica quando o autor se torna excessivamente detalhista e acaba entediando o leitor adulto. É essencialmente um livro infantil - um livro infantil que de alguma forma saiu do controle, pois, em vez de direcioná-lo para o mercado “juvenil”, o autor se entregou ao desenvolvimento da fantasia pela fantasia.48 Wilson reage, também, à admiração nutrida por Auden à obra de Tolkien. Para o crítico literário, Auden, um mestre da poesia inglesa, pode ter comentado que a poesia de Tolkien é de má qualidade, mas se esquece do fato de que a “[...] a prosa 47 LAMBERT, J.W. Sunday Times apud CARPENTER, op. cit., 2018, p.300. 48 “The reviewer has just read the whole thing aloud to his seven-year-old daughter, who has been through The Hobbit countless times […]. One is puzzled to know why the author should have supposed he was writing for adults. There are, to be sure, some details that are a little unpleasant for a children's book, but except when he is being pedantic and also boring the adult reader, there is little in The Lord of the Rings over the head of a seven-year-old child. It is essentially a children's book - a children's book which has somehow got out of hand, since, instead of directing it at the « juvenile » market, the author has indulged himself in developing the fantasy for its own sake.” WILSON, Edmund. Oo, THOSE AWFUL ORCS! The Nation, 14/4/1956. Disponível em: < https://jrrvf.com/sda/critiques/The_Nation.html> . Acesso em 11/08/2024. 38 de Tolkien é igualmente ruim. Prosa e verso estão no mesmo nível de amadorismo acadêmico”49. O que é curioso notar é que Auden não teceu críticas negativas a respeito da qualidade poética de Tolkien, escrevendo, até mesmo, uma ode ao amigo intitulada “A Short Ode to a Philologist”, de 1962, e em seus trechos canta: For those who have learned to hope: a lot of us are grateful for What J. R. R. Tolkien has done As bard to Anglo-Saxon50. Para Wilson, O Senhor dos Anéis é um melodrama inglês com personagens estereotipados como Frodo, um bom homem inglês e Sam, um servo que fala como um membro da classe baixa e nunca abandona seu mestre. Sam era um simples Sancho Panza, um alívio cômico com pouco crescimento ao longo do livro. Os heróis passam por poucas tentações e problemas, o que revela que “o Doutor Tolkien tem pouco talento para narrativa e não possui instinto para a forma literária.”51 Sua resenha finaliza com um desabafo sobre quem poderia gostar deste tipo de literatura: um grupo específico de pessoas “especialmente, talvez britânicos, com um apetite vitalício por lixo juvenil”52. Wilson parece interessado em destituir Tolkien de sua condição de artista, diferente de Auden, por exemplo, que critica especialmente a forma como a narrativa se apresenta ao leitor. É importante ressaltar que o crítico literário foi um dos primeiros a defender o movimento modernista, tecendo elogios a obras como o Ulisses de James Joyce, compreendendo que esses textos modernistas desafiavam as convenções narrativas adotadas em movimentos literários anteriores, trazendo uma nova experiência literária subjetiva capaz de capturar as complexidades da mente humana. Wilson foi um crítico de textos realistas e impessoais como os apresentados pelo naturalismo, analisando, inclusive, o embate existente entre esse movimento e o simbolismo53. É perceptível, então, que entraria em choque com o texto de Tolkien, 49 “[…] that Tolkien's prose is just as bad. Prose and verse are on the same level of professorial amateurishness.” WILSON, op. cit., 1956. Disponível em: < https://jrrvf.com/sda/critiques/The_Nation.html> . Acesso em 11/08/2024. 50 “Para aqueles que aprenderam a ter esperança: muitos de nós somos gratos a/o que J.R.R. Tolkien tem feito/como um bardo do anglo-saxão.” Disponível em: Acesso em 05/09/2024. 51 “Dr. Tolkien has little skill at narrative and no instinct for literary form.” WILSON, op. cit., 1956. Disponível em: < https://jrrvf.com/sda/critiques/The_Nation.html> . Acesso em 11/08/2024. 52 “The answer is, I believe, that certain people - especially, perhaps, in Britain - have a lifelong appetite for juvenile trash”. WILSON, op. cit., 1956. Disponível em: < https://jrrvf.com/sda/critiques/The_Nation.html> . Acesso em 11/08/2024. 53 WILSON, Edmund. O castelo de Axel. São Paulo: Companhia das Letras, 2 ed., 2004, p.48. https://tolkiengateway.net/wiki/A_Short_Ode_to_a_Philologist 39 que não tinha a sutileza de uma produção modernista e nem se preocupava em explorar os dilemas da condição humana, mas voltava-se a questões envolvidas com a luta entre o Bem e o Mal, a corrupção humana e o medo da morte. Já em 1961, antes da popularização da obra nos Estados Unidos, o crítico Philip Toynbee, no jornal Observer, comentou que era loucura ver um poeta consagrado como W. H. Auden comparar a obra de Tolkien à Guerra e Paz, de Tolstoi, já que os livros eram infantis e mal escritos, admitindo que, finalmente, as vendas dos exemplares estavam diminuindo e que logo a obra seria esquecida.54 2.2 O Senhor dos Anéis: a fama e a contracultura Apesar das críticas negativas e do desprezo pela fantasia no ambiente intelectual de Oxford — onde a dedicação de um fellow a mundos fantásticos era vista com desaprovação —, a saga alcançou enorme sucesso comercial na década de 1960, especialmente ao conquistar as universidades norte-americanas. Originalmente o material literário de Tolkien foi editado nos Estados Unidos em uma edição capa dura e dispendiosa pela Houghton Mifflin, a editora que detinha os direitos da obra. Mas, em junho de 1965, a Ace Books, uma editora pequena, lança a trilogia no ambiente universitário, em uma capa brochura de qualidade e com preços mais atrativos para os jovens. De acordo com o biógrafo de Tolkien, a Ace auxiliou na popularização de O Senhor dos Anéis, “[...] pois havia ajudado a tirar seu livro da condição de capa dura ‘respeitável’, onde definhara por alguns anos, e colocá-lo no topo dos best-sellers populares. E a essa altura começara um ‘culto de campus’”55. Contudo, a edição da Ace não era oficial e, apesar de ajudar na popularização da trilogia, Tolkien não recebia os valores pelos direitos autorais com a publicação “pirata” de sua obra. O que o incomodou imensamente: entre maio e outubro de 1965, Tolkien travou uma guerra discreta contra a Ace Books. Sua estratégia foi escrever correspondências para os fãs norte-americanos desabafando sobre o desrespeito da Ace Books em publicar uma edição que não era autorizada e que ele, o escritor, não 54 “E para mim, isso teve um resultado reconfortante, pois a maioria de seus apoiadores mais entusiasmados logo começou a se desfazer de suas ações em relação ao Professor Tolkien, e hoje esses livros foram esquecidos de maneira misericordiosa.” (tradução nossa). In. TOYNBEE, Philip apud SHIPPEY, Tom. The road to Middle-Earth. New York: Houghton Mifflin Company, 2003, p. 2. 55 CARPENTER, 2018, p.313. 40 recebia os royalties por essa publicação. Na carta 271, para o editor Rayner Unwin, diz: estou fazendo questão de incluir uma nota em cada resposta ou agradecimento de cartas de ‘fãs dos EUA no sentido de que a edição em brochura da Ace Books é pirata e [...] sem remuneração para nós. Acha que se fosse feito em uma escala maior isso poderia ser útil?”56 Já em outubro do mesmo ano, em uma correspondência para o filho Michael, o literato comenta que sua campanha surtiu efeitos e a edição pirata recebia cada vez mais propaganda negativa nos Estados Unidos.57. E de fato, a Ace aceita a derrota e paga um valor de 4% de direitos autorais para Tolkien sobre todos os exemplares vendidos, além de não reimprimir mais a trilogia sem o consentimento do autor. E por que O Senhor dos Anéis teve uma recepção tão abrangente entre os jovens e tão distinta em relação à crítica especializada? Por que este jovem encontrou prazer em uma leitura admitida como rebuscada, infantil e de má qualidade pelos críticos literários? É importante ressaltar que a obra tolkieniana encontrou terreno fértil na contracultura hippie, que se sensibilizou com a luta em favor da natureza e a declaração de guerra contra a industrialização narrada. Os hippies abraçaram a crítica aos horrores da guerra e da tirania presentes nos três livros que compõem O Senhor dos Anéis. Ver os hobbits - pequenos sobreviventes desinteressados pelas ambições do mundo e pelos conflitos - lutando pela salvação da Terra-média ressoou profundamente com os ideais do jovem rebelde dos anos 1960. Essa conexão não apenas despertou fascínio pelo mundo fantástico criado por Tolkien, mas também transformou todo o universo da saga em uma verdadeira mania cultural. De acordo com a revista Time, que documentou em 1966 essa febre entre jovens, surgiram sociedades de debate sobre a obra, sendo a mais importante a American Tolkien Society (ainda atuante), estudantes andavam pelas universidades, como Princeton e Yale, com bottons escritos “Frodo vive” e O Senhor dos Anéis competia com o popular futebol nos campi universitários58. Tolkien apresentou uma forma de escapismo para o complicado mundo contemporâneo e, de acordo com a reportagem: “Era a junção 56 Carta 271, datada de maio de 1965. TOLKIEN, op. cit., 2023, p.507 57 TOLKIEN, op. cit., 2023, p.518. 58 Time. Education. The Hobbit Habit. July 15, 1966, Vol. 88, No. 3; Disponível em: < https://time.com/vault/issue/1966-07-15/page/70/>. https://time.com/vault/issue/1966-07-15/page/70/ 41 ideal entre uma geração e o tipo preciso de escapismo que ela exigia”59. Em O Senhor dos Anéis, o leitor poderia descobrir um novo mundo, aquele em que Tolkien gostaria de viver, poderia se aproximar do sonho do artista: um mundo irreal, no entanto, tão real para quem lê que passa a ser celebrado. Os críticos viam O Senhor dos Anéis como obra infantil e simplória, mas os jovens devoraram os três livros, transformando Tolkien em uma espécie de líder de culto, o que assustou o próprio autor, professor aposentado de Oxford: Receio que ser uma figura de culto durante a própria vida não seja de modo algum agradável. Contudo, não acho que isso tenda a envaidecer a pessoa; no meu caso, de qualquer forma, faz com que eu me sinta extremamente pequeno e inadequado.60 Mas o velho professor se tornou uma figura de culto: sua obra foi abraçada pelo movimento hippie, que via nos livros um hino contra a Guerra do Vietnã. Era inevitável que um texto com criaturas que preferem viver, comer e fumar a serem grandes heróis fosse atrair tantos fãs. Os hobbits, com seu modo de vida simples, representavam o desejo dos hippies, uma vida longe do caos da modernidade, da indústria que tudo destrói e da violência da guerra. Havia outros temas que atraíram os jovens da época, como a emancipação feminina representada por Éowyn, que foi para uma batalha escondida dos homens e venceu o Senhor dos Nâzgul, criatura horrenda e que nunca havia sido derrotada, em um combate corpo a corpo. Sua conhecida resposta à pergunta de Aragorn “O que teme, senhora?” foi bem recebida pelas jovens da década de 1960 e 1970, que viam na guerreira um exemplo de não submissão feminina a um papel esperado pela sociedade: “Uma gaiola – disse ela – ficar atrás de grades, até que o hábito e a velhice as aceitem e todas as oportunidades de realizar grandes feitos estejam além de qualquer lembrança ou desejo”61. A obra de Tolkien também se tornou tema do rock alternativo da época: Pink Floyd, em 1967, escreveu a música The Gnome sobre pequenos homens que gostavam de comer, dormir e beber bons vinhos. Em 1968, os Beatles, em uma 59 “It was a perfect match between a generation and the precise breed of escapism it demanded.” (tradução nossa). The Hobbit Is Turning 80. Here’s What Reviewers Said About It in 1937. Disponível em: < https://time.com/4941811/hobbit-anniversary-1937-reviews/> 60 Carta 336, para o amigo Sir Patrick Browse, datada de maio de 1971, já no final de sua vida. TOLKIEN, op. cit., 2023, p.596. 61 TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: terceira parte: O Retorno do Rei. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, [1955], p.45. 42 viagem para a Índia em busca de criatividade, tiveram acesso à trilogia e ficaram excitados com a possibilidade de criar um musical em cima do material de Tolkien: Paul McCartney seria Frodo, Ringo Starr seria Sam, John Lennon seria responsável por interpretar Gollum e George Harrison, Gandalf. O diretor escolhido seria Stanley Kubrick, que declinou do pedido indicando que o livro, apesar de excelente, era impossível de ser adaptado. Tolkien, na época, tinha interesse em vender os direitos dos livros para a United Artists, mas desistiu ao descobrir que uma adaptação de sua obra teria os Beatles envolvidos62. Apenas em 1969, Tolkien aceitou vender os direitos da trilogia para a United Artist por 100 mil libras, mas os Beatles já haviam descartado o sonho inicial e o roteiro acabou sendo arquivado63. Em 1970 foi a vez de Led Zeppelin e as músicas “Misty Mountains Hop” e “The Battle of Evermore”, e Black Sabbath com “The Wizard”, canções que citavam diretamente a obra ou usavam a trilogia como inspiração para a criação de novas fantasias. O sucesso nos Estados Unidos fez com que a BBC realizasse um documentário especial em 1968, intitulado Tolkien em Oxford, acompanhando o literato pelas ruas da universidade. Interessados em mostrar como a obra atraiu a juventude da época, a BBC entrevistou estudantes de Oxford, que justificaram que a beleza da trilogia estava na possibilidade de escapar para um mundo fantástico, mas que ainda assim a Terra-média possuía traços da realidade, o que aproximava seus heróis aos estudantes. Os hobbits, por exemplo, tornaram-se os personagens favoritos da juventude, já que os pequeninos não possuíam planos ambiciosos de conquista, desejando apenas viver sem serem perturbados. A característica já havia sido debatida por Auden, que, como dito anteriormente, indicou como os hobbits, heróis contemporâneos burgueses, seres tão próximos de uma pessoa comum, eram capazes de aproximar o leitor da obra. Tolkien, de um acadêmico especializado em língua inglesa, muitas vezes criticado pelos colegas de profissão, passou, então, a ocupar a mente de uma geração de jovens da contra-cultura. Contudo, não foi apenas entre a juventude hippie que Tolkien alcançou reconhecimento e, logo, estudos acadêmicos surgiram nas universidades dos Estados Unidos, convertendo-o em objeto de estudo. As obras de 62 PATERSON, Colin. Peter Jackson on how Tolkien stopped a Beatles LOTR film, 25/11/2021. Disponível em: < https://www.bbc.com/news/entertainment-arts-59387182> Acesso em 14/08/2024. 63 Focus: Tolkien sold film rights to Lord of the Rings to avoid taxman. The Times, 15/12/2002. Disponível em: Acesso em 14/08/2024. http://www.timesonline.co.uk/tol/news/uk/article802113.ece 43 Tolkien começaram a adquirir respeitabilidade nos círculos acadêmicos norte- americanos, e tornaram-se objeto de teses. Ainda em vida, Tolkien recebeu reconhecimento do mundo acadêmico, não de Oxford, mas dos Estados Unidos, com o lançamento, em 1968, do livro Tolkien and the Critics, organizado pelos professores de literatura Neil Isaacs e Rose Zimbardo e contando com historiadores e críticos literários que defendiam a obra tolkieniana. A ideia do livro era contrapor a imagem negativa que as obras de Tolkien obtiveram, em especial por aqueles que a consideravam de baixa qualidade literária. É importante ressaltar que o livro surgiu após a repercussão da crítica de Edmund Wilson entre os acadêmicos norte- americanos e a fama de O Senhor dos Anéis, desenvolvendo uma crítica séria e aprofundada sobre a obra de Tolkien. Para Isaacs, mesmo entre aqueles que atestaram a qualidade literária de O Senhor dos Anéis, existia o receio em admitir sua perenidade na história da literatura, argumentando que a falta de um gênero claro para a obra dificultaria sua permanência no cânone64. Era como se, quem admitisse a qualidade do texto, soubesse que Tolkien, sendo um estudioso da Língua Inglesa, tinha o dom da palavra, mas carecia de inspiração literária para criar algo que sobrevivesse ao tempo. Entre os críticos ferrenhos da obra existia o argumento que seria inferior e escapista, ou apenas alusiva das questões do presente, fazendo com que seus leitores não refletissem sobre os dilemas do mundo real65. Isaacs relaciona Tolkien a James Joyce e T.S. Eliot, todos responsáveis por criarem textos que fugiam da realidade, com uma estética e escrita que também destoavam do que era produzido na época. É curioso observar, por exemplo, que o próprio Edmund Wilson, ferrenho crítico de Tolkien, defendeu a obra de Joyce quando muitos a viam como inferior, inclusive literatos de renome na época, como Virginia Woolf66. Ainda sobre o peso da crítica negativa de Wilson no cenário intelectual da época, a professora de Literatura Inglesa da Universidade de Yale, Patricia Meyer Spacks, rebate a visão de que não existem confrontos reais e dilemas pouco aprofundados em O Senhor dos Anéis, sendo nítido, para a acadêmica, a dualidade entre Bem e Mal no texto literário. O Mal é uma ameaça real e uma constante que se opõe às forças do Bem: orcs, a corrupção e ambição dos homens, o próprio Sauron 64ISAACS, Neil; ZIMBARDO, Rose (org.). Tolkien and the Critics. Indiana: University of Notre Dama Press, 1968, p.8. 65 ISAACS, ZIMBARDO, op. cit., 1968, p.8 66 WILSON, op. cit., 2004, p.10. 44 contra a iluminação dos elfos, a bondade dos hobbits, a resiliência dos humanos, a natureza pura dos ents. Até mesmo a comida que alimenta o Mal serve como contraponto ao Bem; de um lado carne crua e podre, do outro mel, vegetais e pão67. O mundo de Tolkien é fantástico, mas seus problemas são humanos e retirados esses dilemas do plano do real, resulta mais fácil sua leitura por crianças e adultos. Para Spacks, é aí que reside a força de O Senhor dos Anéis: a criação de um mundo fantástico tão detalhado e autêntico transforma-se em uma alternativa para nosso mundo cruel e individualista68. A escritora Marion Zimmer Bradley, em seu artigo “Men, Halflings and Heo Workship”, critica, em especial o desconhecimento do livro por Wilson, pois, ao afirmar em tom jocoso, que Sam, um dos protagonistas, serve de mero alívio cômico, como um Sancho Panza, Wilson não percebe o crescimento emocional dos personagens principais: Sam passou por tantas provações ao levar seu patrão e, ao longo da narrativa, amigo, Frodo, para a Montanha da Destruição, com o objetivo de destruir o Um Anel, que até mesmo o rei Aragorn indica o quanto aquele caminho obscuro o havia transformado69. Já Frodo, saiu tão maduro de sua Missão que não consegue mais permanecer entre os hobbits, assolado pelos traumas que presenciou e marcado pela experiência, que o transformou em um personagem mais sério e reflexivo. Enquanto Wilson e Philip Toynbee criticavam a linguagem enfadonha, simplória e a má qualidade na escrita de Tolkien, Spacks faz coro a Auden, refletindo sobre como a linguagem evoca contos de cavalaria e contos de fadas, com um vocabulário simples, que serve de instrumento para a narrativa70. O historiador Edmund Fuller também desenvolve, na obra organizada por Zimbard e Isaacs, um estudo sobre como O Senhor dos Anéis é, antes de tudo, um conto de fadas original, sua narrativa passada em um mundo separado da realidade e do tempo71, uma encantada Terra- média que, mesmo com os dilemas, a maldade de Sauron e a guerra do Anel, ainda 67 SPACKS, Patricia M. Power and meaning in the Lord of the Rings. In. ISAACS; ZIMBARDO (org.), op. cit., 1968, p.57. 68 SPACKS, Patricia M. Power and meaning in the Lord of the Rings. In. ISAACS; ZIMBARDO (org.)., op. cit., 1968, p.65. 69 BRADLEY, Marion Zimmer. Men, halflings and hero workship. In. ISAACS; ZIMBARDO, op. cit., 1968, p.81. 70 SPACKS, Patricia M. Power and meaning in the Lord of the Rings. In. ISAACS; ZIMBARDO, op. cit., 1968, p.66. 71 FULLER, Edmund. The Lord of the Hobbits: J.R.R. Tolkien. In. ISAACS; ZIMBARDO, op. cit., 1968, p.20. 45 consegue apresentar um final feliz para sua história, um sopro de esperança aos leitores do mundo real. E pensar que uma história original como essa pudesse cair no ostracismo, como escrito por Toynbee, em 1961, era, para Fuller, desmerecer a beleza e qualidade dessa obra fantástica72. Quem também reverenciava a originalidade da obra era Douglass Parker, professor de Línguas Clássicas de Yale e da Universidade da California e um dos primeiros a escrever um artigo acadêmico de O Senhor dos Anéis, ainda em 1957, intitulado de “Hwaet We Holbytla”. Refuta “o ataque cruel”73 de Wilson, indicando que a obra foi uma das mais originais e variadas dentro do gênero da fantasia, inclusive por conseguir um feito incomum de fazer uma ponte entre o mundo fantástico e a realidade do leitor74. O interesse de Wilson em negar a importância da obra e chamá- la de lixo vem, de acordo com Parker, do interesse em diminuir a fantasia, tratando-a como escapista e infantil: A razão para o sarcasmo não é difícil de descobrir: alguns dos primeiros críticos estavam extremamente entusiasmados, e o Sr. Wilson está obcecado, como sempre, em ser o Adulto da sala. [...] Ele critica a prosa, que é perfeitamente adequada para a maioria das exigências de Tolkien e necessária para o tom […]. Pois O Senhor dos Anéis não é lixo, nem é juvenil, e Tolkien, apesar de todas as suas renúncias e das críticas de Wilson, não está apenas se entregando a um capricho de estudioso, ou jogando um jogo erudito, ou escrevendo para um círculo tolo de escapistas. Ele realizou, em escala absoluta, algo significativo e importante, e isso deveria ser reconhecido seriamente75. Parker, no entanto, apesar de defender que, como fantasia, O Senhor dos Anéis é “incomparável e indiscutível”76, não deixa de apontar falhas na obra magistral 72 FULLER, Edmund. The Lord of the Hobbits: J.R.R. Tolkien. In. ISAACS; ZIMBARDO, op. cit, 1968, p.28. 73 PARKER, Douglass. “Hwaet We Holbytla...” The Hudson Review, vol. 9, no. 4, 1957, p.601. JSTOR, . Accessed 29 Aug. 2024. 74 PARKER, Douglass. “Hwaet We Holbytla...” The Hudson Review, vol. 9, no. 4, 1957, p.602. JSTOR, . Accessed 29 Aug. 2024. 75 “The reason for the sarcasm is not far to seek: some of the early reviewers were vapidly enthusiastic, and Mr. Wilson is obsessed, as he has been before, with being the Adult in the room. […] He censures the prose, which is perfectly adequate for most of Tolkien's demands and necessary to the tone […].For The Lord of the Rings is not trash, nor is it juvenile, and Tolkien, for all his disclaimers and Wilson's yawps, is not merely indulging a scholar's whim, or playing a learned game, or writing for a silly coterie of escapists. He has accomplished, on an absolute scale, something significant and meaningful, and it should be soberly recognized as such”. PARKER, Douglass. “Hwaet We Holbytla...” The Hudson Review, vol. 9, no. 4, 1957, p.608. JSTOR,