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LUCIANA CARNEIRO HERNANDES
TECIDOS E TESSITURAS: representação do feminino em María Rosa Lojo
ASSIS
2017
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LUCIANA CARNEIRO HERNANDES
TECIDOS E TESSITURAS: representação do feminino em María Rosa Lojo
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para
a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de
Conhecimento: Literatura e Vida Social)
Orientador: PROF. DR. ANTONIO R. ESTEVES
ASSIS
2017
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp
H557t
Hernandes, Luciana Carneiro
Tecidos e tessituras: representação do feminino em María
Rosa Lojo / Luciana Carneiro Hernandes. Assis, 2017.
205 f.
Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – Universidade Estadual Paulista.
Orientador: Dr. Antonio Roberto Esteves
1. Lojo de Beuter, Maria Rosa. 2. Literatura argentina. 3.
Ficção argentina - Escritoras. 4. Argentina - História. I. Título.
CDD 868.99
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LUCIANA CARNEIRO HERNANDES
TECIDOS E TESSITURAS: representação do feminino em María Rosa Lojo.
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para
a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de
Conhecimento: Literatura e Vida Social)
Data de aprovação: 31/01/2017
COMISSÃO EXAMINADORA
PRESIDENTE: PROF. DR. ANTONIO R. ESTEVES – UNESP / Assis
MEMBROS: PROFA. DRA. MARILU MARTENS OLIVEIRA – UTFPR / C. Procópio
PROF. DR. ALTAMIR BOTOSO – UEMS / Campo Grande
PROFA. DRA. CLEIDE ANTÔNIA RAPUCCI – UNESP / Assis
PROFA. DRA. MARIA DE FÁTIMA ALVES DE OLIVEIRA MARCARI – UNESP / Assis
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A meus pais
Morel Nerio Hernandes
Mesmo que eu nunca tenha me sentido uma
exiliada-hija, sempre houve o forte elo com a Tierra
Padre. Você está em nosso DNA, nosso coração e
nossa memória – não morrerá jamais.
Célia Maria
Com miçangas e pontos de cruz, nos ensinou a tecer:
a construir laços e desfazer nós. Ainda que você
mesma não acredite, foi a primeira feminista que
conheci.
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AGRADEÇO
àUniversidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR –, que concedeu-me o
afastamento necessário para a conclusão desse Projeto;
aoPrograma de Pós Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista – Unesp –
campus Assis;
aMaría Rosa Lojo, pela preciosa atenção dispendida nos coffee-breaks e intervalos de
conferências em diversos eventos científicos;
ameu orientador Antônio R. Esteves, terno e eterno, pelo encantamento provocado desde a
graduação e o incentivo constante para prosseguir pelos caminhos hispânicos, em qualquer
margem de ―la mar océana‖ – ou no entrelugar...
às feministas Ana Maria Domingues de Oliveira e Cleide Antônia Rapucci pelas aulas-
encontro dos cursos de Lírica e de Narrativa de Autoria Feminina, respectivamente, os quais,
literal e literariamente descortinaram um tesouro: um universo de autoras e obras, no qual
acredito ter mergulhado com tanta paixão como María Rosa nos Siete platos de arroz con
leche...
aMaria de Fátima Alves de Oliveira Marcari, também feminista, pelas valiosas sugestões
bibliográficas e pela oferta dos fios que permitiram com que eu saísse de vários labirintos
presentes na trama lojeana;
aMarilu Martens Oliveira, amiga de todas as horas, por compartir o amor à Literatura e o
deslumbramento proporcionado pelo ―olhar estrangeiro‖ (expressão emprestada de Adauto
Novaes) – elementos fundamentais para o bordado de minha própria história;
aAltamir Botoso, pela leitura criteriosa desta tese e pelas contribuições precisas durante a
arguição para o doutoramento;
aos professores das disciplinas cursadas como aluna regular, especial ou ouvinte nos
Programas de Pós-graduação em nível de Mestrado e Doutorado que, além de instigarem a
curiosidade, essencial para o desenvolvimento da pesquisa (e da vida), generosamente
partilharam os saberes com os quais continuo tecendo minha trajetória acadêmica,
profissional e pessoal: Ana Maria Carlos, Ana Maria Domingues de Oliveira, Antônio R.
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Esteves, Cleide Antônia Rapucci, Eleusis Mírian Camocardi, Gizêlda Melo do
Nascimento, Heloísa Costa Milton, Lea Mara Vallese, Luiz Roberto Velloso Cairo, Lygia
Vianna Peres, Maira Angélica Pandolfi, Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, María Rosa
Lojo, Suely Fadul Villibor Flory, Tania Celestino de Macedo, Valdevino Soares de
Oliveira e Zizi Trevizan;
aosfuncionários daSeção de Pós-graduação e da Biblioteca “Acácio José Santa Rosa” da
UNESP-Assis, pela gentileza, solicitude e orientação;
aos membros dos grupos de pesquisa CRELIT (UENP-CP) e EDITEC (UTFPR-CP);
àsamigas e companheiras de profissão que assumiram minhas aulas e incentivaram a busca
pelo doutoramento;
aosamigos, família que o coração escolheu;
àminha família, que vibra com os sonhos, oferece aporte para que sejam elaborados e reza
para que eles se concretizem;
aminhas irmãsmeigas, essenciais para o resgate do Princípio Feminino;
aAdriana e Fernanda, minha vida.
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Tejidos
La mañana se construye con el color. Una mota de polvo
macerada en el cuenco de la luz va encendiendo con su antorcha
pequeña los cuartos de la casa.
Pero la mujer en el umbral ha iniciado un tejido en el revés
del día. Teje la voz del padre muerto y la sombra silente de los que no
han nacido; teje su propio nombre como fue pronunciando antes del
Tiempo, teje la tierra donde la mañana dormirá, la rosa de la noche
que arrasa los colores en su eclosión oscura.
(María Rosa Lojo. Esperan la mañana verde. 1998)
El títere
Se mueve para complacer a los otros, como todos los
desamparados. Hará cualquier papel menos el propio. Será la
abuela rezando junto a la ventana un rosario hecho con bolitas de
ojos que vieron al Señor; será el padre que murió con rebeldía,
esperando que cambiasen para él las leyes de la tierra; será la
madre que antes de envejecer se dobló como un traje de fiesta y se
guardó en un cajón, para que no la sacasen a vivir.
Será la mujer que gobierna sus hilos de marioneta y lo retira del
escenario cuando termina la función y le canta canciones de cuna y
lo acuesta, con piedad, junto a sus hijos.
(María Rosa Lojo. Esperan la mañana verde. 1998)
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HERNANDES, Luciana Carneiro. TECIDOS E TESSITURAS: representação do
feminino em María Rosa Lojo. 2017. 205 f. Tese (Doutorado em Letras – Área de Literatura
e Vida Social) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista ―Júlio de
Mesquita Filho‖. Assis, 2017.
RESUMO
Centralizando-se nos relatos de Amores insólitos de nuestra historia (2001, 2011) e nos
romances Finesterre (2005), Árbol de família (2010) e Todos éramos hijos (2014), o presente
trabalho aborda como María Rosa Lojo articula o conceito de texto com a metáfora do tecido
e como esse tecido/texto também está associado à vestimenta, às máscaras e à atuação
performática dos personagens em geral, sempre associada ao ato de escrever e ao ato de
apropriar-se, em especial no caso das mulheres, ou de outros personagens ex-cêntricos
(HUTCHEON, 1991), de seu próprio corpo. A opção pela obra da escritora argentina
contemporânea Maria Rosa como corpus desta tese justifica-se pelo painel que traça, em seus
livros, da história argentina e pela maneira peculiar como constrói a sua teia narrativa, como
elabora o seu bordado. Ao desconstruir mitos fundacionais e questionar a constituição
identitária rio-platense, Lojo propõe ressignificar o próprio conceito de humanidade.
Envolvendo os leitores, proporciona fruição poética e reflexão profunda. Ao resgatar autoras
do século XIX, conta uma nova história da história e possibilita demonstrar como a mulher
vai construindo uma forma própria de se colocar na literatura. Portanto, a questão que norteia
o presente trabalho é em que medida a autora tece a história da Argentina para recriar-se
argentina? Como ela constrói sensorial e sinestesicamente a trama–teia–texto de sua própria
argentinidade? Também ela teria sido beneficiária do poder curativo do bordar e do narrar
(BENJAMIN, 1994, 1997; GAGNEBIN, 1985), expurgando o sentimento da ―exilada-filha‖
tantas vezes mencionado em entrevistas e artigos (também textos, também teias) e o da
loucura, tema anunciado do próximo livro? Como principal suporte teórico da investigação
foram utilizados textos de Showalter (1998), Rapucci (2011), Cunha (2004), Schmidt (1995,
2009, 2012) e Bonnici (2007), no que tange a estudos de gênero e autoria feminina; de
Esteves (2010, 2011, 2013), Perkowska (2006), Trouche (2006) e Rivas (2004) sobre
narrativas de extração histórica; Crespo Buiturón (2008, 2009), Molina (2010), Luesakul
(2014) e Marques (2016), a respeito da estética e da autoria lojeana, além de textos críticos da
própria escritora.
PALAVRAS-CHAVE: María Rosa Lojo. Nação e identidade. Literatura de autoria
feminina. Narrativas de extração histórica latino-americanas. Ficção argentina - Escritoras.
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HERNANDES, Luciana Carneiro. FABRIC AND TESSITURES: the representation of the
feminine in María Rosa Lojo. 2017. 205 l. Thesis (Doctorate in Literature - Area of
Literature and Social Life) -São Paulo State University (Unesp), School of Sciences,
Humanities and Languages. Assis, 2017.
ABSTRACT
Focusing on the reports of Amores insólitos de nuestra história (2001, 2011) and the novels
Finesterre (2005), Árbol de familia (2010) and Todos éramos hijos (2014), this paper
addresses how María Rosa Lojo articulates the concept of text with the metaphor of the fabric
and how this fabric/text is also associated with the dress, the masks and the performance of
the characters in general always associated with the act of writing and the act of
appropriation, especially in the case of women, or other excentric characters (HUTCHEON,
1991), of his/her own body. The option for the work of the contemporary Argentine writer
Maria Rosa as a corpus of this thesis is justified by the panel that traces, in her books, the
history of Argentina and the peculiar way in which she constructs her narrative web, how she
elaborates her chain-stitch.By deconstructing foundational myths and questioning the rio-
platense identity constitution, Lojo proposes to re-signify the very concept of humanity.
Involving readers, provides poetic enjoyment and deep reflection. By rescuing authors from
the nineteenth century, she tells a new history of history and makes it possible to demonstrate
how women are building their own way of putting themselves in the literature. Therefore the
question that guides this work is to what extent the author weaves the history of Argentina to
recreate herself an Argentinian? How does she construct sensory and sinesthetically the web-
text-plot of her own argentinity? Had she also been benefited from the curative power of
embroidery and narration (BENJAMIN, 1994, 1997; GAGNEBIN, 1985), expunging the
feeling of the "exile-child" so often mentioned in interviews and articles (also texts, also
webs) and of madness, the theme of the next book announced? As the main theoretical
support of the research, texts from Showalter (1998), Rapucci (2011), Cunha (2004), Schmidt
(1995, 2009, 2012) and Bonnici (2007) were used in gender studies and female authorship;
Esteves (2010, 2011, 2013), Perkowska (2006), Trouche (2006) and Rivas (2004) on
historical extraction narratives; Crespo Buiturón (2008, 2009), Molina (2010), Luesakul
(2014) and Marques (2016), regarding aesthetics and Lojeana authorship, as well as critical
texts by the writer herself.
KEYWORDS: María Rosa Lojo. Nation and identity.Female Authorship Literature.Latin
American historical extraction narratives. Argentine fiction – Women writers.
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HERNANDES, Luciana Carneiro. TEJIDOS Y TESITURAS: representación del
femenino en María Rosa Lojo. 2017. 205 h. Tesis (Doctorado en Letras - Área de Literatura
y Vida Social) - Facultad de Ciencias y Letras, Universidad Estatal Paulista "Júlio de
Mesquita Filho". Assis, 2017.
RESUMEN
Centralizándose en los relatos de Amores insólitos de nuestra historia (2001, 2011) y en los
romances Finesterre (2005), Árbol de familia (2010) y Todos éramos hijos (2014), el presente
estudio aborda cómo María Rosa Lojo articula el concepto de texto con la metáfora de tejido
y como ese tejido/texto también se asocia con la vestimenta, con las máscaras y la actuación
performativa de los personajes en general, siempre vinculada al acto de escribir y al acto de
apropiarse, en especial en el caso de las mujeres, o de otros personajes ex céntricos
(HUTCHEON, 1991), de su propio cuerpo. La opción por la obra de la escritora argentina
contemporánea María Rosa como corpus de esta tesis se justifica por el panel que describe, en
sus libros, de la historia argentina y por la manera peculiar como construye su tela narrativa,
como elabora su bordado. Al deconstruir mitos fundacionales y cuestionar la constitución de
identidad rioplatense, Lojo propone replantear el propio concepto de humanidad. Envolviendo
a los lectores, proporciona disfrute poético y reflexión profunda. Al rescatar autoras del siglo
XIX, cuenta una nueva historia de la historia y permite demostrar como la mujer va
construyendo una forma propia de colocarse en la literatura. Por lo tanto, la pregunta que guía
el presente trabajo es: ¿en qué medida la autora teje la historia de Argentina para recrearse
argentina? ¿Cómo ella construye sensorial y sinestésicamente la trama–tela–texto de su propia
argentinidad? ¿También ella habría sido beneficiaria del poder curativo de bordar y narrar
(BENJAMIN, 1994, 1997; GAGNEBIN, 1985), expurgando el sentimiento de ―exilada-hija‖
tantas veces mencionado en entrevistas y artículos (también textos, también telas) y el de la
locura, tema anunciado del próximo libro? Como principal soporte teórico de la investigación
fueron utilizados textos de Showalter (1998), Rapucci (2011), Cunha (2004), Schmidt (1995,
2009, 2012) y Bonnici (2007), con respecto a los estudios de género y autoría femenina; de
Esteves (2010, 2011, 2013), Perkowska (2006), Trouche (2006) y Rivas (2004) sobre
narrativas de extracción histórica; Crespo Buiturón (2008, 2009), Molina (2010), Luesakul
(2014) y Marques (2016), con respecto a la estética y a la autoría lojeana, además de textos
críticos de la propia escritora.
PALABRAS CLAVE: María Rosa Lojo. Nación e identidad. Literatura escrita por mujeres.
Narrativas de extracción histórica latinoamericanas. Ficción argentina – Escritoras.
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SUMÁRIO
PALAVRAS INICIAIS ................................................................................................... 13
1. DUAS PRECIOSAS DAMAS EM DIÁLOGO: LITERATURA E HISTÓRIA
......................................................................................................................
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1.1. LITERATURA E HISTÓRIA .............................................................................. 31
1.2. LITERATURA DE AUTORIA FEMININA ........................................................ 53
1.3. ROMANCE HISTÓRICO HISPANO-AMERICANO DE AUTORIA
FEMININA........................................................................................................................
88
2. (RE)CONTAR A HISTÓRIA:TECENDO A PALAVRA, O CORPO, O SER
..................................................................................................................................
105
2.1 O TECIDO E A NARRATIVA ................................................................................. 106
2.2 O VESTIDO, A MÁSCARA E A PERFORMANCE ............................................... 134
2.3 O TECIDO, A VESTIMENTA E A MULHER DONA DE SEU PRÓPRIO
CORPO/TEXTO. ..............................................................................................................
158
PALAVRAS FINAIS ...................................................................................................... 182
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 185
13
PALAVRAS INICIAIS
María Rosa Lojonasceu em 1954 em Buenos Aires, filha de espanhóis. Seu pai era
um galego republicano que decidiu exilar-se na Argentina depois da Guerra Civil Espanhola e
ali conheceu sua mãe, castelhana e monarquista, que havia cruzado o Atlântico por motivos
semelhantes. As implicações dessa herança, que a levam a vivenciar com grande constância o
entrelugar (SANTIAGO, 2000) estão bastantes presentes nos textos ficcionais e não ficcionais
da escritora. Doutora em Letras pela Universidade de Buenos Aires e pesquisadora principal
do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – CONICET, María Rosa
Lojo se dedica ao estudo da Literatura Argentina e orienta os temas: gênero, construção de
imaginários nacionais, vínculos entre história e ficção, teorias do símbolo e estereótipos
etnoculturais. Na Universidade del Salvador é responsável por um Seminário-Oficina
permanente para o Programa de Doutorado.
Como pesquisadora e crítica literária publicou cinco obras de ensaio: La
„barbarie‟ en la narrativa argentina (siglo XIX) (1994); Sábato: en busca del original
perdido (1997); El símbolo: poéticas, teorías, metatextos (1997); Cuentistas argentinos de fin
de siglo. Tomos I y II – Estudio preliminar. (1997); Los „gallegos‟ en el imaginario
argentino: Literatura, sainete, prensa. (2008) Atuando como coautora, editora e diretora de
pesquisa publicou Identidad y narración en carne viva: cuerpo, gênero y espacio en la novela
argentina 1980-2010 (2010) e Diario de viaje a Oriente (1850-51) y otras crónicas del viaje
oriental de Lucio V. Mansilla(2012); além deduas edições críticas: Lucía Miranda(1860) de
Eduarda Mansilla (2007) e Sobre héroes y tumbas, de Ernesto Sábato (Colección Archivos)
(2008).Assina também mais de cento e cinquenta publicações de pesquisas, entre artigos em
revistas especializadas, capítulos de livros e anais de congressos. Colabora em suplementos
literários y revistas de cultura de vários jornais argentinos: revistaADNCultura, do jornal La
Nación; revista Ñ, do jornalClarín; RADAR Libros, do jornal Página12.
De acordo com sua página eletrônica (http://www.mariarosalojo.com.ar/),foi
conferencista e professora visitante em universidades argentinas e estrangeiras: Universidade
Nacional Autónoma de México, Universidade Complutense de Madrid, Universidade de
Salamanca, Universidade de Valladolid, Universidade de Santiago de Compostela,
Universidade de Murcia, Universidade de Toulouse Le Mirail, Universidade Stendhal de
Grenoble, Universidade de Roma III, Universidade de Siena (Arezzo), Universidade de
https://es.wikipedia.org/wiki/Lucio_V._Mansilla
http://www.mariarosalojo.com.ar/
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Milán, Universidade Federal do Paraná e Universidade Estadual Paulista, em Assis-SP, entre
outras.
Como escritora, María Rosa Lojo publicou quatro livros de microficções / poema
em prosa: Visiones(1984), Forma oculta del mundo (1991),Esperan la mañana
verde(1998)eBosque de Ojos (2011).Este último é o resultado da junção dos três anteriores
com Historias del Cielo, inédito. Também publicou quatro volumes de contos:
Marginales(1986), Historias ocultas en la Recoleta(2000), Amores insólitos de nuestra
Historia (2001),Cuerpos resplandecientes. Santos poulares argentinos.(2007); e oito
romances: Canción perdida en Buenos Aires al Oeste (1987), La pasión de los
nómades(1994),La princesa federal (1998),Una mujer de fin de siglo(1999),Las libres del
Sur(2004), Finisterre (2005), Arbol de Familia(2010) e Todos éramos hijos (2014).Escrito em
galego, com ilustrações de Leonor Beuter, sua filha, Lojo publicou em Vigo, na Galiza, O
libro das Seniguais e do Único Senigual em 2010. Em março de 2012, o periódico Cultura
Los Andes apresenta a primeira versão em castelhano – Las Siniguales y el único Sinigual –do
que seria, segundo as autoras, ―una propuesta de vanguardia para un público sin
limitaciones‖ e não um livro para crianças.
Bosque de Ojos, publicado em 2011, reúne quatro livros de textos breves escritos
por María Rosa Lojo ao longo de vinte e sete anos: Visiones(1984); Forma oculta del mundo
(1991); Esperan la mañana verde(1998)e Historias del Cielo (inédito).As mudanças no ritmo,
na linguagem metafórica, no imaginário todo ―foram inevitáveis‖. As obsessões centrais, no
entanto, permanecem: a busca do outro lado do real, de ―outros mundos‖ que pulsam ocultos
dentro desse, percorrem os quatro livros. Sob o título Poemas em prosa houve tentativas
anteriores de reunião dos textos, mas a ―dose‖ de poema ou de prosa das obras incomodava os
―fanáticos por classificações‖ e o aparecimento da categoria microficção diluiu as incertezas.
Sobre o volume, Lojo (2016) escreve:
Se trata, ante todo, de una producción desplegada a lo largo de veintisiete años.
La entonación, la atmósfera, el lenguaje metafórico, el ritmo, el imaginario todo, han
sufrido cambios inevitables. He preferido, en general, no hacer modificaciones
sustantivas de los libros anteriores, respetando el momento vital y estético en que
fueron escritos y publicados. […]
Me doy cuenta, por otro lado, de que las obsesiones centrales permanecen. No
se escribe sobre lo que se quiere sino sobre lo que se puede. La búsqueda del otro
lado de lo real, de los ―otros mundos‖ que laten, ocultos, dentro de éste, recorre sin
duda los cuatro libros hasta Historias del Cielo, donde emergen las paradojas que
plantea imaginar un ―más allá‖ (reverso inevitable, al menos para mì, de cualquier
―más acá‖). El tìtulo de este volumen no es casual, tampoco, porque el eje de la
búsqueda pasa por la mirada. Ojos miopes que se instalan en el ángulo dislocado, la
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dimensión suplementaria, la perspectiva insólita desde la cual se ―desautomatiza la
percepción‖ (Shklovski) y el lado oscuro se hace visible por relámpagos o
destellos.‖
Marginales,de 1986, traz contos escritos entre 1974 e 1980, sobre personagens
bastante díspares: uma Safo menina que conta uma história simples, mas terrível; o triste
Baudelaire; Pedro, o guardião do Paraíso, que vigia também a si; um soldado desertor que, no
século XVI, acredita ter encontrado o El Dorado e, com ele, a riqueza e a felicidade; Garcilaso
de La Vega, e outros anônimos e conhecidos, recriados no volume com mistério, magia e
originalidade.
A investigação histórica de Roberto L. Elissalde foi a base para que María Rosa
Lojo buscasse, em documentos e na tradição oral das casas e das famílias, material para
recriar, nos 15 contos de Historias ocultas en la Recoleta, publicado em2000, uma galeria de
personagens complexos, corroborando o que escreveu Sarmiento, em 1885, depois de passear
entre as alamedas do famoso cemitério: “Cada existencia es un drama, y no habría novela tan
tierna ni tragedia tan pavorosa, como la que encierran bajo sus tapas de mármol esos
sepulcros‖(LOJO, 2016). Entre as histórias contadas, a de Dona Maria Magdalena, viúva de
Álzaga, que, quase setenta anos antes de Bernarda Alba, se enclausurou para sempre em sua
casa da rua Bolívar, com suas seis filhas adolescentes; a do sequestro do cadáver de Dona
Inés Indart de Dorrego; a da jovem Rufina Cambacéres, enterrada viva no dia de seu
aniversário; a de Abel Ayerza, assassinado pela Mafia devido a um malentendido; o suicídio
de Agustina Andrade e a história de seu marido, explorador e cientista Ramón Lista, que se
uniu a uma índia tehuelche; o périplo de Juan Manuel de Rosas do cemitério de Southampton
até a Recoleta...
Em 2001 foram publicados 14 contos de Amores insólitos de nuestra historia.
Patrimônio compartilhado por todos os seres humanos, o amor, ainda que insólito, gerou dois
contos mais, acrescentados à edição de 2011. As diferenças exacerbadas de distância e de
classe, raça, cultura, idade e poder, para o bem e para o mal dos amantes recriados por Lojo
nesse volume fazem com que esses amores possam ser considerados insólitos. Apresentando
personagens históricos da época do descobrimento da América ao declínio do peronismo,
María Rosa questiona a historiografia oficial e declara seu amor – nada insólito – pela terra
em que nasceu. Assim, Ulrich Schmidl, de volta à Alemanha, não consegue se esquecer de
uma bailarina da tribo dos xarayes do Mato-Grosso; Lord Howden, representante da nação
mais poderosa do mundo, luta pelo amor de Manuela Rosas, filha do governante de um país
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periférico, pobre e em guerra com o seu; Domingo F. Sarmiento, homem de livros e de
política, é enfeitiçado pela bela e frívola Ida Wickersham; a cativa dos ranquel, Dorotea
Bazán, teria preferido não voltar a seu ―civilizado‖ mundo de origem; o tucumano Gabriel
Iturri se converte, através de sua relação com o conde de Montesquieu, em personagem de
Marcel Proust...
Como nos livros de contos anteriores, focalizando a morte e o amor, em Cuerpos
resplandecientes. Santos populares argentinos, de 2007,que aborda questões de fé, a opção de
María Rosa é literária. As vidas dos santos são narradas a partir de perspectivas variadas, não
necessariamente a dos que creem; algumas vezes sob a aura mágico-poética; outras marcando
os aspectos extremamente humanos do santificado.Os antropólogos e cientistas sociais
concordam que enquanto o projeto neoliberal, com sua sequela de marginalização, exclusão e
desemprego, avançava de forma devastadora, cresciam e se fortaleciam os cultos populares,
como ato de autoafirmação, válido por si mesmo. Práticasreligiosas estas que remetiam à história
das guerras civis (da qual emergiram o gauchito Gil, Santos Guayama, a Defunta Correa), ao
substrato cultural indígena e crioulo, à rebeldia e às reivindicações dos ―bandidos rurais‖,
interligadas à aura de beleza, sedução e carisma das expressões artísticas (o tango, a ―bailanta‖)
que reúnem multidões e provocam vastos fenômenos de identificação.
Sua entrada no universo do romance se faz com Canción perdida en Buenos Aires
al Oeste, publicado em 1987, que apresenta o conflito entre duas gerações: emigrados e
exilados europeus (especialmente espanhóis) depois das grandes guerras e os filhos argentinos
que sofrem pela pátria. Espaço fronteiriço, trama de sonhos e tempos, de vozes que
convergem em um contraponto dramático entre realidade e desejo, perda e recuperação,
estranhamento e pertença a uma identidade e terra novas.
La pasión de los nómades, publicado em 1994, é uma versão irreverente da
história que passou e da que estava sendo construída no final do século XX, na qual próceres
caem de seus pedestais e fadas vestem-se com jeans. Figura inesquecível do século XIX
argentino, Lúcio Victorio Mansilla (escritor,militar, político, gourmet e dandy, entre outras
ocupações) volta nos anos noventa do século XX e refaz, com Merlin e Morgana, os passos de
sua grande aventura, a ―excursão aos ìndios ranquel‖. Nesse romance, Marìa Rosa Lojourde
na cidade posmoderna e nas encruzilhadas pampeanas, una rara convergência de personagens
históricos e literários, patéticos fantasmas e humanos de carne e osso, bem como criaturas
feéricas do velho sonho celta.
17
La princesa federal, publicado em 1998, apresenta Manuela Rosas, filha e
assistente pessoal de Juan Manuel de Rosas. La Niña é aqui recriada a partir de vozes e
imagens contrapostas, que chegam de um passado perdido: Manuela, que maneja os homens
eos cavalos com segura e discreta eficácia; um Rosas cáustico e um Quiroga mundano; dona
Encarnación Escurra, seus ciúmes e funerais; o fuzilamento de Camila O‘Gorman; a cândida
figura de Eugenia Castro; a corte de Palermo e os jogos de diplomacia e erotismo. Em 1893,
um jovem médico de família federal, chega à Europa com dois objetivos: conhecer em Viena
um ainda ignorado Freud e visitar, em Londres, uma mulher cujo mistério o cativou desde as
páginas secretas do diário de Pedro de Angelis. Ao recriar a personagem histórica, María
Rosa Lojo questiona, com lirismo e ironia: Quem era e o que queria Manuela Rosas? Foi
vítima ou cúmplice de seu pai? O que significa o poder para as mulheres?
Una mujer de fin de siglo, de 1999, apresenta a escritora Eduarda Mansilla de
García (Buenos Aires, 1834-1892). Sobrinha preferida de Juan Manuel de Rosas, filha de
Agustina e irmã de Lúcio Victorio, esposa de Manuel Rafael García, Eduarda quer existir por
méritos próprios. Deseja transcender tanto parentescos prodigiosos como padrões
estabelecidos para o ―segundo sexo‖. Ícone da beleza e da maternidade, decide ser uma artista
e não um mero adorno ocasional nos salões. Para tanto, aceita colocar um oceano entre a
vocação e a família (marido e seis filhos) que permanecerá na Europa por vários anos
enquanto ela volta à Argentina para divulgar sua obra. María Rosa Lojo narra, em três etapas,
uma aventura vital e os desejos de quem não se dispõe a aceitar resignadamente os mandatos
sociais de seu tempo, que julga ser antinatural para a condição feminina aceder aos frutos
proibidos da criação.
Em Las libres del Sur, de2004, María Rosa Lojo apresenta Victoria Ocampo,
fundadora da importante revista Sur e figura única no âmbito literário argentino do século
XX. Em 1924, quando ainda era difícil prever a mulher que seria, Victoria Ocampo contrata
Carmen Brey, jovem universitária galega, discípula da filósofa María de Maeztu, recém
chegada de Madri. Ela deve acompanhar Rabindranath Tagore, Premio Nobel de literatura
(primeiro visitante ilustre de Victoria), e o faz – mas esconde as verdadeiras razões de sua
viagem à Argentina: conjurar o fantasma do pai e procurar o irmão, que a precedeu nessas
terras e do qual não tem notícias. Tagore a deslumbra e, depois dele, terá contato, em Buenos
Aires e na Europa, com José Ortega y Gasset, Keyserling, Drieu La Rochelle, Waldo Frank,
Walter Gropius. Lojo recria, a partir da formação de Victoria Ocampo, um momento cultural
determinante (a década de vinte) e a façanha de um grupo de mulheres independentes (entre
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elas, María Rosa Oliver) que não só devem propiciar-se um destino, mas batalhar diariamente
para que aquilo que conquistaram não lhes seja tomado por sua condição feminina.
Finisterre, publicado em 2005, é um romance epistolar. Em 1874, na Inglaterra, a
joven Elizabeth Armstrong, recebe a primeira carta de Finisterre, na Galiza. Rosalind, sua
correspondente, promete romper o obstinado silêncio mantido pelo senhor Armstrong sobre o
nascimento de sua filha no Rio da Prata. Suas cartas remontam quarenta anos atrás, até o
caminho de Buenos Aires a Córdoba, que uniu as vidas de Rosalind, de Oliver Armstrong, da
atriz espanhola dona Ana de Cáceres e de Manuel Baigorria, militar unitário exiliado entre os
índios ranquel que os toma prisioneiros. Ali Rosalind perde seu marido e também o filho que
esperava. No entanto, inicia seu próprio ―caminho de Finisterre‖, metáfora do limite do
extremo, onde enfrentamos o desconhecido e aterrador dentro de nós mesmos. O mesmo
caminho que Elizabeth, sua fascinada leitora, começa a refazer em busca de sua origem.
Rosalind conheceu a dor e o desengano, mas também a sabedoria e uma rara e duradoura
amizade com o xamã da comunidade, tornando-se ajudante e discípula dele. Enquanto isso, no
presente da narração, Elizabeth trava uma amizade adolescente com Oscar Wilde, rejeita
propostas matrimoniais e se interessa por Frederick Barrymore, empregado de seu pai também
nascido no Rio da Prata, que a levará ao salão de dona Manuela Rosas. Histórias e
personagens de ambos os tempos e culturas confluirão no final do romance, que subverte os
clichês habituais do ―relato de cativas‖ e do romance de aventuras para se transformar em
uma profunda indagação existencial sobre a liberdade humana, a identidade dos povos e dos
indivíduos, a violência étnica e a violência de gênero, o lugar desgarrado e rico dos que
pertencem pelo menos a dois mundos, a beleza e a crueldade da vida incompreensível.
Em Árbol de Familia, de 2010, os dois ramos principais da família – grande
protagonista da obra –, paterno (galego, Terra Pai) e materno (castelhano, Lengua Madre)
ressoam, a partir de diferentes contextos sociais e posições políticas, o relato fragmentado da
diáspora espanhola, a narrativa da emigração desde o final do século XIX e o exílio que se
segue à tragédia da Guerra Civil. Nessa árvore de histórias entrelaçadas, cada folha tem valor
próprio, mas também é parte do conjunto que compõe a folhagem: árvore e álbum de
fotografias que abrem janelas a outros mundos, a partir dos quais são recriadas, entre outras,
as vidas incríveis de Maruja, a enfeitiçada; Rafaeliño, o bígamo; Fito, o piromaníaco; Antón,
o vermelho e a bela dona Ana.
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Todos éramos hijos, de 2014, abre uma perspectiva pouco explorada na ficção
argentina porque apresenta os convulsionados anos setenta (com ditadura, violência, teologia
da libertação, peronismo) sob a ótica da juventude e seu compromisso militante, além de
mergulhar no ‗eterno conflito entre pais e filhos‘. A personagem narradora, Frik (apelido de
Rosa, na época de estudante), observa as mudanças que ocorrem a seu redor e questiona sobre
vencedores e vencidos, valores e honra. María Rosa Lojo, nesse livro, recria, a partir das
memórias dos estudantes secundaristas, um período bastante dolorido da história latino-
americana (que infelizmente ecoa até o presente) e constrói um relato, íntimo e social, com
lirismo e beleza.
O libro das Seniguais e do Único Senigual, publicado na Galiza, em 2010, em
galego, conta, liricamente, a história de diminutos seres – as seniguais – que, sem serem
bruxas nem fadas, são descobertas por uma menina de Finisterre que as batiza e cuja presença
constitui um importante nexo de união entre o que ocorre aquém e além do oceano. A
biografia do único senigual, inclassificável como elas, também pode ser lida simbolicamente
– o livro todo é uma incursão original no âmbito das mitologias prováveis. A apresentação,
em forma de álbum ilustrado, exibe cuidadosas montagens fotográficas elaboradas por Leonor
Beuter, filha de María Rosa Lojo.
Lojo recebeu várias honrarias, entre as quais se destacam o Prêmio do Instituto
Literário e Cultural Hispânico da Califórnia (1999); Prêmio Kónex (década 1994-2003);
Prêmio Nacional ―Esteban Echeverrìa‖ (2004), por toda a obra narrativa; a Medalha da
Hispanidade (2009) e a Medalha do Bicentenário outorgada pela Cidade de Buenos Aires
(2010). A mais distante foi recebida em dezembro de 2015, na Tailândia, ―a tan solo un poco
más de 17 mil kilómetros de Castelar‖ – trata-se do prêmio Phraya Anuman Rajadhon, dado
ao romance Finisterre, pela Melhor Tradução Literária de 2015, realizada por Pasuree
Luesakul.
Em 2004, a RevistaÑ, do jornal argentinoClarín, escreveu que María Rosa Lojo
―ha sabido combinar una intensa actividad académica, tanto en la Argentina como en el
exterior, con una destacada obra narrativa que la ubica entre las más reconocidas escritoras
de nuestro país” (LOJO, 2016). Mas, em 2001, oSuplemento Literário do jornal La Naciónjá
analisava:
Para la nueva narrativa histórica - de la que María Rosa Lojo es una cultora
descollante - los mundos del pasado histórico no son autónomos, sino que están
implicados en la tensión con que se los mira desde el presente [...] sus relatos se
20
erigen en símbolos, se articulan en una poética, en la conmovedora iconografía del
país que pudo haber sido, o que aún con aliento se debate para no desaparecer.
(LOJO, 2016)
A bibliografia produzida a respeito da obra literária lojeana é bastante difícil de
ser quantificada. Uma visita ao site da escritora, pode constatar uma serie de obras. Lista
várias monografias de licenciatura, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Entre as
teses vale a pena mencionar Andar por los bordes. Entre la historia y la ficción: el exilio sin
protagonistas de María Rosa Lojo, da argentina Marcela Crespo Buiturón (2008); La visión
de “los otros”: mujer, historia y poder en la narrativa de María Rosa Lojo, da
tailandesaPasuree Luesakul (2012); e Post-Dictatorship Historical Fiction in Argentina: A
Dialogue Between Past and Present, defendida por Rebecca Jean Ulland em 2006, em
Minnesota, EUA, que aborda no terceiro capítulo La pasión de los nómades; e a dissertação
de Aude-Marie Dahmen, defendida na Universidad de Toulouse-Le-Mirail, França, Las
circunstancias de la reescritura a través del estudio de dos obras:Una excursión a los indios
ranqueles (1870), de Lucio Victorio Mansilla, La pasión de los nómades (1994) de María
Rosa Lojo.
Entre os ensaios sobre a autora (LOJO, 2016), constam: Teoría e práctica del
proceso creativo. Con entrevistas a Ernesto Sábato, Ana María Facundo, Olga Orozco,
María Rosa Lojo, Raúl Zurita y José Watanabe, de Sílvia Sauter (2006); María Rosa Lojo: la
reunión de lejanías, editado por Juana Arancibia, Malva Filer e Rosa Tezanos-Pinto (2007) e
composto por vinte estudos críticos sobre a criação literaria lojeana;e La princesa federal: los
múltiples rostros de Manuela Rosas, de Ana Maria Fasah (2008). Os novos libros de Crespo
Buiturón: Buenos Aires: la orilla frente al abismo. Sujeto, ciudad y palabra en el exilio
argentino, de 2009, e Avatares de una identidad a la deriva. Apostillas al horizonte
ontológico en la literatura argentina del siglo XX. Dos generaciones, un encuentro posible:
Sabato-Orozco y Lojo-Martini,de 2013 (disponíveis em )
bem como La memoria de la llanura: los marginales de María Rosa Lojo usurpan el
protagonismo de la historia, também de 2013, encontram-se apenas na página
.
É interessante verificar, na crítica sobre a escritora, a menção a diversos trabalhos
brasileiros, principalmente os produzidos por Antonio R, Esteves e os publicados nas Atas do
VII Congresso Brasileiro de Hispanistas, de 2013. No Brasil há projetos universitários que,
desde 2010, estão gerando trabalhos acadêmicos e científicos, fomentando singular discussão
sobre a obra lojeana. O projeto coordenado por Antonio Roberto Esteves, da Universidade
https://mariarosalojo.wordpress.com/
21
Estadual Paulista, conforme descrito na Plataforma Lattes, pretendia, ―no âmbito dos estudos
literários e culturais, considerando as narrativas de ficção histórica, fazer uma leitura da obra
ficcional de Marìa Rosa Lojo‖. Para o desenvolvimento das duas frentes de trabalho (1 – a
construção da memória literária argentina através da ficção histórica da escritora que traz
intelectuais e escritores como protagonistas; 2 – a leitura da obra da escritora argentina
considerando questões de gênero (genre e gender) e o esgarçamento das fronteiras entre esses
gêneros), oficialmente, constam dois doutoramentos, um mestrado profissional e dois
graduandos. No entanto, a leitura – e divulgação – da obra lojeana na terra brasilis se dá em
grande medida a partir dos cursos na pós-graduação por ele ministrados, além da coordenação
de mesas de comunicações, da publicação de artigos e da supervisão dos diversos trabalhos
apresentados por orientandos em conferências e congressos.
Lirismo e história, a pesquisa e a nota ao pé da página – Ximú e Utz inspiraram a
apresentação de ―Fronteiras e trânsitos. Cartografìas do céu, da terra e do corpo em um relato
de Marìa Rosa Lojo‖ (―Tatuajes en el cielo y en la tierra‖, de Amores insólitos de nuestra
historia)‖, por Antonio R. Esteves no II Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Hispanistas, o VI Brasileiro, realizado em Campo Grande, em 2010. O primeiro trabalho, com
o mais sensorial conto do livro, abriu o corredor que não mais se fechará. Em 2012, na cidade
de Salvador-BA, durante o VII Congresso Brasileiro de Hispanistas, nas três mesas temáticas
de comunicações, denominadas Abordajes críticos a la obra de la escritora argentina María
Rosa Lojo I, II e III, foram apresentados onze trabalhos científicos. O VIII Congresso
Brasileiro de Hispanistas, ocorrido em 2014, no Rio de Janeiro, contou com menor número de
trabalhos sobre a obra lojeana, mas as comunicações individuais, em mesas que aglutinavam
temas literários (não autorais) acabaram por divulgá-la entre especialistas de outras áreas. De
qualquer modo, ainda que não seja esse o objetivo dessa tese, é possível afirmar que o volume
de pôsteres e artigos sobre a poesia e a narrativa de Lojo tem crescido significantemente em
colóquios e encontros regionais em diversos Estados brasileiros.
O I Seminário Gêneros Híbridos da Modernidade e I Simpósio Memória e
Representação Literária que teve lugar na Faculdade de Ciências e Letras de Assis,
(Universidade Estadual Paulista), em outubro de 2014, contou com a presença da autora na
conferência de abertura ―Literatura, memoria, imigração: a palabra dos escritores‖,
coordenada por Antonio R. Esteves, na qual Marìa Rosa abordou as ―Figuras de la
migración: de la inmigración al exilio, del nomadismo al cautiverio‖ e Oscar Fussato
Nakasato apresentou ―Nihonjin e a condição híbrida do nipo-brasileiro‖. Nas Seções de
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Comunicações do evento foram apresentados quatro trabalhos sobre a estética lojeana: ―Entre
a História e a Literatura:a reconstrução de Facundo Quiroga nos contos de María Rosa
Lojo‖,de Muryel da Silva Papeschi (que no mesmo ano defendeu sua dissertação de mestrado
Juan Facundo Quiroga: um homem, vários personagens), ―Matar a Borges: a ficcionalização
de Borges e da crìtica literaria‖, de Isis Milreu (parte da tese de doutorado De autor a
personagem: Jorge Luis Borges na mira de romancistas latino-americanos também defendida
em 2014), ―Sobreposições discursivas:a cativa na narrativa de Marìa Rosa Lojo‖, de Gracielle
Marques (que em 2016 defendeu a tese de doutorado A voz das mulheres no romance
histórico latino-americano: leituras comparadas de Desmundo, de Ana Miranda e Finisterre,
de Marìa Rosa Lojo) e ―Representações do feminino em ―El alférez y la provisora‖e―Tatuajes
en el cielo y en la tierra, de Marìa Rosa Lojo‖‖, de Luciana Carneiro Hernandes (estudo que
integra a presente tese de doutoramento), todos orientados pelo Dr. Antonio R. Esteves na
UNESP-Assis.
Importante mencionar que, além desses trabalhos, em 2015 foram apresentadas
duas monografias abordando a obra de María Rosa: na Universidade Estadual de Londrina,
Alessandro da Silva defendeu a dissertação de mestrado Memórias, exílios e viagens em La
pasión de los nómades (1994), de María Rosa Lojo, orientado pela Dra. Vanderléia da Silva
Oliveira, e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maria Josele Bucco Coelho
defendeu a tese de doutorado Mobilidades culturais na contística rio-platense de autoria
feminina: tracejando as poéticas da distância em Josefina Plá e María Rosa Lojo, orientada
pela Dra. Zilá Bernd. Vários outros trabalhos, não explicitados nesse subitem, foram
desenvolvidos no Brasil durante o período de elaboração da presente tese: capítulos de livros,
alguns dos quais listados pela autora na página
publicações em periódicos,
trabalhos de iniciação científica e apresentações em eventos científicos.
Gabriel Colonna, que entrevistou a escritora para o Castelar Digital, sugere que,
sem ser best sellers, as obras de Lojo ―son consideradas long sellers, es decir que a pesar del
paso de los años no pierden vigencia y siguen reeditándose. A ese logro se le suma también la
reproducción en otros países, otros continentes, otros idiomas.‖ Marìa Rosa parece
concordar, quando relata ao Castelar Digital que o romance Pasión de los nómades“no
fue un gran éxito de ventas, pero tiene tres ediciones y se sigue vendiendo. Ganó el Primer
Premio Municipal de Buenos Aires y provocó mucha curiosidad, que se volcó en artículos e
https://mariarosalojo.wordpress.com/capitulos-de-libros/
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incluso algunas tesis, la última de ellas defendida em Brasil en este mismo año”
(FERNÁNDEZ VIVAS, 2015).
É recorrente em artigos, entrevistas, colóquios e congressos, a declaração de
María Rosa sobre o fascínio nela provocado, desde a infância, pela leitura. Em Árbol de
família, (LOJO, 2010a) a personagem Rosa, considerada alter ego da autora, explicita: ―lo
más precioso que me dio [mi tío Adolfo]‖ foi a chave da biblioteca dele, ainda que este não
fosse ―un regalo, sino un préstamo, una espécie de leasing a largo plazo‖ (LOJO, 2010a,
p.197) e que, em viagens anteriores ele houvesse presenteado a garota, que agora tinha oito
anos com ―la muñeca más grande que tuve nunca‖ (LOJO, 2010a, p.196).
Allí estaban todos los piratas, los brujos, y los reyes, las aventuras, las traiciones y
lealtades, los países desconocidos ocultos en el mapa de lo obvio, los mundos
olvidados que están dentro de éste. Phineas Phogg y El Tigre de Mompracem, Long
John Silver y el último de los mohicanos, D´Artagnan y Ayesha, Milady y la reina
de los Caribes. Tarzán y Jane. Entré en esas historias como quien entra en un planeta
de hongos aluginógenos. El cerebro no se me secó del poco dormir y del mucho leer,
antes bien tomó temperatura y humedad de jungla, donde animales fabulosos y
guerreiros nómades merodeaban a la sombra de los baobabs. Nunca salí del todo de
ese planeta, aunque tuve que devolver los libros muchos años más tarde [...].(LOJO,
2010a, p.197-198)
Confesiones de una lectora: Cómo leer me hizo escribir é o título da conferência
apresentada em Curitiba, no VII Encuentro de Profesores de Español del Estado de Paraná,
em 2013. Nela, María Rosa expressa que seu ingresso ao mundo da imaginação, o qual se vale
de palavras, se deu ―por ambos lados: la tradición oral y la escrita‖. E, nas duas, seria
iniciada por uma voz feminina: a da avó materna, castelhana, Dona Julia, que ―cantaba y
contaba‖ (LOJO, 2013a, p.7). Tão fecundo foi esse encontro, que nela já se foi impregnando
o ―caráter mediúnico do autor‖
La oralidad y la poesía popular se colocaron, de este modo, en el comienzo de mi
imaginación narrativa, y no la abandonarían nunca, consolidando en mí una idea
mediumnica del escritor. No un pequeño dios, a la manera de Huidobro, sino un
canal abierto a la escucha del pasado y la anticipación del futuro, por donde corre,
torrencialmente, la memoria colectiva de sujetos múltiples, el inmenso coro de los
antepasados. (LOJO, 2013a, p.8)
As letras, além dos cantos e contos, foram outro legado da avó. Descrevendo seu
encantamento com a descoberta do mundo da leitura, María Rosa diz “Nunca olvidé mi
primer cuento. Quizá porque en él, de manera lúdica y con las herramientas de un lenguaje
eficazmente destinado a los niños, se prefiguraba todo un destino: el mío.”(LOJO, 2013a, p.
8-9) O conto era Nubecita, el chanchito distraído, que posteriormente descobriu ser de Héctor
Germán Oesterheld Puyol (autor argentino bastante famoso pela HQ de ficção científica El
Eternauta e por ter desaparecido depois de ser sequestrado pelas Forças Armadas em 1977).
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O enredo conta a vida de um porquinho que passava os dias contemplando as nuvens no céu
e, às vezes, até se esquecia de brincar com os amigos por estar tão absorto. Essa distração
impedia-o de completar os trabalhos que começava, irritando bastante as pessoas a seu redor.
Já adulta, María Rosa refletiria que o feitiço desse relato alojado em sua memória consistiria
no fato de Nubecita pertencer a ―[...] la especie primaria a la que pertenezco: la especie de
los lectores, que engloba al subconjunto de los escritores y lo precede.‖ Provavelmente
analfabeto, o personagem de Oesterheld folhearia nuvens ―con el mismo espíritu del lector
puro, que no es utilitario‖. E segue ‗confessando‘ que embora as demandas da vida rotineira
―nos encajonen en su ratonera, nos obliguen a escribir tesis, obras de investigación, y hasta
conferencias como ésta, lo cierto es que el lector nato, en su estado primigenio, solo se
propone leer” justificando essa atividade exclusivamente ―por el intenso placer que la
dimensión hipnótica de la lectura proposciona‖. Conclui, enfim:“Comemos libros, bebemos
libros, ensoñamos libros, con el disfrute insaciable de los adictos, que solo se detiene frente a
la perspectiva de poder continuar con la misma dieta al día siguiente.‖(LOJO, 2013a, p.9-10)
A memória afetiva desse adentramento surdo ao mundo das palavras escritas
encontra eco no apoderamento de duas outras pequenas bibliotecas, ainda na infância: a
universal, emprestada pelo tio, e a nacional, doada pelo pai. Levantando hipóteses sobre os
motivos pelos quais o tio teria levado consigo, ao cruzar o oceano, livros que não deveriam
ser raros nem caros, podendo ser facilmente readquiridos em Buenos Aires, María Rosa infere
que aquelas páginas continham algo que ia além de seus conteúdos: ―Era el tesoro de la
identidad, el pasaporte de la memoria, que nos permite seguir siendo quienes creemos ser,
certificándonos y confirmándonos […] en todas las migraciones, en todos los trânsitos‖
(LOJO, 2013a, p.10)
No capítulo Herencias, de Árbol de Família, Lojo acrescentaria algo ainda mais
profundo a essa definição, conferindo aos livros o locus onde pode se dar a cura da alma pela
palavra, proposta por Platão, Carl Jung, Walter Benjamin – efetivada por Sheherazade,
Penélope, Ñandu-atí, María Rosa...
Han quedado libros.
[...]
Escucho con mis ojos a esos muertos, que no sólo me hablan de sí mismos, sino,
sobre todo, de la lectora que recorrió las mismas páginas. Quizá (seguramente) no
compartimos idénticos hallazgos, no los leímos de similar manera. Pero los libros
son la única casa de citas donde acaso podremos encontrarnos. Donde la una,
todavía viva, va buscando infatigable por pasillos y salas internas y habitaciones
cerradas, las huellas de la otra, para continuar el diálogo brutalmente quebrado. O tal
vez es ella la que me sigue, cuarto tras cuarto, sin atreverse a detenerme, y a tocarme
25
el hombro, para rogarme que no la olvide, pero que sí perdone. (LOJO, 2010a, 154-
155)
As pontes entre os ‗gêneros populares‘ (e as possìveis ―secuelas de distracción,
delirio y extravio‖) e a ‗alta literatura‘ (parte da educação formal ―el método de movilidad
social por excelência‖) trariam resultados bastante fecundos para a autora (LOJO, 2013a,
p.13). Melhor dizendo, talvez Lojo, instruindo-se simultaneamente nessas duas múltiplas
fontes, tenha, como leitora, começado a desenvolver as estratégias necessárias para percorrer
os corredores, as trilhas, o não lugar – como a Ñandutí, que tece lindamente seu bordado sem
deixar-se prender por ele.
Um ―bonsai de biblioteca argentina, que después creció y se expandió hasta
convertirse en bosque e invadir toda la casa‖ (LOJO, 2002). É assim que María Rosa se
refere aos primeiros volumes de ―la literatura fundamental y fundadora del país de mi
nacimiento”, uma pequena estante de madeira, contendo a coleção Jackson de Clássicos
Argentinos, recebida como presente de seu pai, quando completou catorze anos. ―Estante
mínimo, con varios libros en miniatura‖ (LOJO, 2013a, p.15) – cada ponto é mínimo, e entre
eles ainda há o vazio; cada noite é curta, e entre elas ainda há o dia: com tão parcos recursos,
Penélope declara ao mundo sua fidelidade a Ulisses bordando uma infindável manta e
Sheherazade salva todas as mulheres do reino, a si mesma e ao sultão contando histórias por
mil e uma noites. Os extratos de Facundo e de Recuerdos de Provincia, de Domingo F.
Sarmiento; Causeries, de Lucio Victorio Mansilla; Bases, de Juan Bautista Alberdi; Fausto,
de Estanislao del Campo; Martín Fierro, de José Hernández, apresentaram a María Rosa o
microcosmos que aguçaria a imaginação adolescente e todo o universo que recriaria
posteriormente como pesquisadora e autora. O caráter de ―tesouro da identidade, passaporte
da memória‖, imbricado nos livros que o tio Adolfo não conseguiu deixar na Espanha, nesse
caso, estende-se também à estante, que se sustenta precariamente, pois “[...] le faltan dos
clavijas. Las letras negras sobre el lomo rojo de los libritos están casi borradas, en algunos
ha desaparecido la portadilla; otros tienen los bordes deshilachados y abiertos.‖ Descuido?
A autobiografia é mìnima, mas a assertiva é bastante clara: ―Todos ellos llevan las marcas de
ese uso amoroso tan intenso que puede causar, por la fuerza del desgaste, los mismos efectos
que el odio‖ (LOJO, 2016).
El más destrozado, ya sin tapa, es de lasCauseriesmansillianas: en este
microcosmos, abigarrados y cambiantes como los colores y las formas de un
caleidoscopio, giran y dialogan los personajes de una familia virtual que en muchos
aspectos me parece tan real como la mía propia, que ha poblado mis novelas, y mis
ya largas reflexiones sobre la Argentina, y sobre la Argentina y España. El mismo
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Lucio Victorio Mansilla (héroe de La pasión de los nómades, paródica epopeya
gallego-argentina), su hermana Eduarda (a quien dediqué Una mujer de fin de siglo),
su tío Juan Manuel de Rozas, y su prima Manuelita, hija de don Juan Manuel (que
recorren las páginas deLa princesa federal). (LOJO, 2016)
Ainda que a narrativa lojeana seja quase sempre apresentada em tom familiar,
talvez retomando a doçura por ela encontrada em Nubecita, el chanchito distraído,
porquinho enamorado pelas nuvens, de sua primeira leitura infantil, María Rosa vive no
entrelugar – e no intertertexto. Quando, adulta, afirma que a dicotomia familiar a levou à
―loucura literária‖, já havia lido ―o Quixote inteiro‖ e as Mil e uma noites aos doze anos. A
justificativa de que “[...] esto no quiere decir que entendiera todo lo que decían, pero
tampoco es necessário. Esas experiencias tempranas sirven para abrirte la cabeza, te
presentan un camino abierto que quizás no podrás recorrer completo, pero te dejan la
semilla”.(FERNÁNDEZ VIVAS, 2015), não esconde, antes explicita, o laço que irá
enredar o receptor: se a leitora acompanhará de bom grado o Cavaleiro da Mancha na luta
contra os moinhos de vento ou Aladim em seu tapete mágico, a autora saberá tecer a trama
de cada narrativa com a delicada astúcia de Sheherazade e a alegre picardia cervantina.
Assim como as deusas tecelãs, María Rosa Lojo literalmente tece o destino de
suas personagens, sina esta muitas vezes associada às vestes a elas atribuídas em cada
momento da narrativa. Senhora da escritura, deusa calderoniana no Grande Teatro do Mundo,
Lojo distribui a cada uma ―apariencias/ que de dudas se pasen a evidencias.‖ (CALDERÓN
DE LA BARCA, 2016, p.3). María Rosa Lojo, filha de mãe monarquista, urbana, castelhana e
pai comunista, rural, galego, ―producto de un amor insólito‖ (LICITRA, 2001) parece ser a
síntese da vitória feminista: cientista, divulga seus trabalhos por meio de publicações
especializadas e de conferências em vários países; professora, disponibiliza informações e
orienta alunas e alunos nos caminhos da pesquisa; narradora, questiona a historiografia
literária, resgatando autoras de outros tempos, e oferece um contraponto à ‗história oficial‘,
escrevendo sob a perspectiva dos periféricos. Consegue ainda conciliar a delicadeza dos olhos
claros e do cabelo ruivo com os três filhos e o esposo que ―Construía, pintaba, cortaba y
ensamblaba toda clase de materiales para formar seres antes inexistentes‖ (LOJO, 2014,
p.220) e ―Modificaba el mundo, en los planos que proyectaba y en la textura concreta de los
elementos terrestres‖ (LOJO, 2014, p.220), como o retrata ficcionalmente no último romance
publicado: Todos éramos hijos.
Ao buscar tecidos e tessituras, tramas e texturas – marcas do feminino na veste e
na cicatriz, na máscara e no texto de Lojo, principalmente nos relatos de Amores insólitos de
27
nuestra historia (2001, 2011) e nos romances Finesterre (2005), Árbol de família (2010) e
Todos éramos hijos (2014), é possível verificar o detalhado trabalho de composição da
fiandeira-autora. Como o ―bonsai de letras argentinas‖ recebido pela adolescente Marìa Rosa
em um aniversário, cada conto revela-se um extrato, reverberando registros que ecoam de
outros, vindos do corredor da memória, como o que leva a personagem Rosa, de Árbol de
Família, à casa de tio Benito, onde “se ha vuelto amarilla la ropa blanca y las mantas tosen
asmáticas, ahogadas de naftalina” (LOJO, 2010a, p.137), no qual não há lugar para “poner
allí una buena cama para dormir cuando te canses” porque “No hay descanso” (LOJO,
2010a, p.138).
O passeio pela obra lojeana – romances e poemas em prosa (ou microficções, para
não agredir aos ―fanáticos por classificações‖) – devo confessar que mais por prazer estético e
fruição poética que por dever de ofício –, permitiu-me perceber que os fios com os quais
María Rosa urde sua narrativa nos contos são também utilizados em outras formas de
reinventar a história. Os trajes – ou a falta deles –, mais que caracterizações, por vezes
recebem o status de personagem: ―Una ligera fragancia de miosótis y el vuelvo de una falda
marfil anuncian a la condesa de Clermont-Tonnerre. Intenta incorporarse para besarle la
mano, pero ella lo detiene. Acaso, teme Gabriel, por repugnancia‖ (LOJO, 2011a, p. 307).
Muitas vezes, todo o perìodo é composto por ‗feminilidades‘ – todas construídas
metonimicamente: ―El bastón del conde marca una divisória de aguas en el salón donde se
codean terciopelos y casimires, perlas, piedras y plumas‖ (LOJO, 2011a, p.308). A fina
ironia da autora, que em muitos aspectos dificulta a tradução dos contos por ela escritos, é
foco de outros estudos, inclusive nesta Universidade. Incorporando o léxico referente ao
tecido e ao tecelão, para descrever a morte voluntaria de Dona Ana, Lojo narra que esta havia
aberto a porta proibida e devolvido a ―su Hacedor, como se devuelve un traje mal cosido a un
sastre inexperto, la vida que nadie parece entregar con gusto‖ (LOJO, 2010a, p.280). À
associação do Deus cristão (―Hacedor‖) a um alfaiate inexperiente, no fragmento, se seguirão
outras, nem sempre positivas, pois no bordado lojeano todas as premissas identitárias, não
apenas as relacionadas à construção de sua argentinidade, são questionadas.
Face ao exposto, objetiva-se, neste trabalho, a partir de Esteves (2010, 2011,
2013), Cunha (2004), Rivas (2004) e da própria Lojo, demonstrar como a mulher vai
construindo uma forma própria de se colocar na literatura histórica. E partindo-se do
pressuposto de que é memorialística a obra de lojeana, pretende-se ainda evidenciar as marcas
da memória em seu texto e de que forma ela estabelece o diálogo entre literatura e história,
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entre passado e presente, entre o homem e a mulher. Assim, este trabalho, tem como questões
norteadoras: em que medida a autora recria a história da Argentina para recriar-se argentina?
Como ela realiza a busca para construir sua própria argentinidade, posto que em inúmeras
entrevistas coloca o sentimento do "exilado-filho"? Também ela teria sido beneficiária do
poder curativo do narrar (BENJAMIN, 1994; GAGNEBIN, 1985)?
Justifica-se a escolha pela obra de María Rosa Lojo, como corpus desta tese, por
seu destaque na literatura contemporânea não só argentina, mas também pelo painel que traça,
em seus livros, do povo argentino e seu passado histórico. A presente pesquisa,
metodologicamente de caráter bibliográfico e exploratório, cultiva principalmente os
seguintes temas: literatura de autoria feminina hispanoamericana; narrativa de extração
histórica e intrahistória literária e o apoderamento da palavra pela mulher (que a corporifica e
cura), que serão expostos em duas partes, uma teórica e outra analítica.
Estruturada em duas partes, a primeira delas inicia-se com uma resenha reflexiva
sobre as relações entre literatura e história e o surgimento, ao longo do tempo, de gêneros
híbridos que misturam os discursos ficcionais e históricos para chegar, já na
contemporaneidade, naquele que pode ser chamado de narrativa de extração histórica, de
acordo com a denominação de Trouche (2006), das quais o romance histórico e as narrativas
históricas têm merecido certo destaque. Dentro desses gêneros híbridos, em que se misturam
memória, ficção e história, é tecida a maior parte da obra de Maria Rosa Lojo. Em seguida, é
traçado um relato panorâmico da história da conquista do espaço da mulher na sociedade, com
especial destaque para o século XX, quando finalmente a mulher, após conquistar seu próprio
lugar, consegue ser dona de sua voz – e quando a dupla conquista se dá, a luta pela
manutenção desse direito/poder se acirra. Exemplo disso é a obra de Maria Rosa Lojo que, de
forma metaficcional, conforme se trata de demonstrar no presente trabalho, não apenas
evidencia com sua palavra tal espaço conquistado pela mulher, como conta em suas narrativas
a história dessa e de outras lutas ao longo de vários séculos, especialmente na América
hispânica. Num terceiro momento, busca-se verificar como, na literatura latino-americana, ao
ir se apropriando de seu espaço, a mulher vai construindo uma forma própria de se colocar na
literatura de extração histórica, ou seja, a mulher narradora conta a história da mulher na
história e na história da literatura latino-americana, espaço em que está inserida a narrativa de
María Rosa Lojo.
29
A segunda parte, que é o núcleo do trabalho, tem como eixo de conexão,
principalmente, quatro obras de Lojo: Amores insólitos de nuestra historia (2001, 2011), livro
de contos, e Finesterre (2005), Árbol de família (2010) e Todos éramos hijos (2014),
romances, em que busca-se demonstrar como a escritora, nessas narrativas, urde o conceito de
texto à metáfora do tecido e de que maneira o tecido/texto, associa-se à vestimenta, às
máscaras e à performance dos personagens históricos e ficcionais, sempre relacionada ao ato
da escritura e ao ato de apropriação do próprio corpo, especialmente no caso das mulheres e
de outros personagens ex-cêntricos (HUTCHEON, 1991). O cotejo entre fragmentos de obras
lojeanas, principalmente dos considerados romances ―autobiográficos‖ – Canción perdida en
Buenos Aires al Oeste (1987), Arbol de Familia(2010) e Todos éramos hijos (2014) – indicia
o poder curativo do trabalho com a tecelagem narrativa e encerra a segunda parte dessa
monografia.
Os textos de Showalter (1998), Rapucci (2011), Cunha (2004), Schmidt (1995,
2009, 2012) e Bonnici (2007), sobre estudos de gênero e autoria feminina; de Esteves (2010,
2011, 2013), Perkowska (2006), Trouche (2006) e Rivas (2004) relativos a narrativas de
extração histórica; Crespo Buiturón (2008, 2009), Molina (2010), Luesakul (2012) e Marques
(2016), no que tange à estética e da autoria lojeana, além de textos críticos da própria
escritora, foram utilizados como principal suporte teórico da investigação.
30
1. DUAS PRECIOSAS DAMAS EM DIÁLOGO: LITERATURA E HISTÓRIA
Estructura de las casas
Dentro de un dedal había un salón de costura donde la abuela
bordaba rosas cuando era una niña obligada a quedarse del revés
de la luz para no que no la distrajesen los ruidos del mundo.
Dentro de una foto del padre había un joven que regresaba a las
montañas cruzando campos ardidos por la guerra, y había cuerpos
acabados de fusilar pudriéndose en el fondo de las pupilas.
Detrás de un guante viejo había un hermano desaparecido, en un
pastillero vacío acechaba la locura; sobre los platos cascados comía
una familia sentada en torno de una mesa de roble; dentro de un
cofre la madre guardaba cartas de pretendientes, y con las cartas
esperanza y pobreza y plumas que avanzaban despacio sobre el
papel rugoso de las vidas pasadas.
En tu historia había historias imposibles de limpiar y cuartos
cerrados que no se abrirían nunca porque las estructuras de las casas
son cajas chinas interminables y concéntricas y de la misma manera
misteriosas.
(María Rosa Lojo. Esperan la mañana verde. 1998)
31
1.1 LITERATURA E HISTÓRIA
María Rosa Lojo, no Posfácio de Amores insólitos de nuestra historia (2001),
afirma que o livro de contos com narrativas de extração histórica (TROUCHE, 2006) nasceu
de uma nota de rodapé, encontrada durante uma pesquisa acadêmica.
Di con esa mencionada ―nota de origen‖ en el Juan Facundo Quiroga de David
Peña, un precursor del revisionismo que intentó devolver al Tigre de los Llanos
parte de la humanidad y la racionalidad que le había quitado la genial mitificación
sarmientina del Facundo (LOJO, 2011a, p.363).
E acaba explicitando outra diferença de perspectivas e relatos no campo da história. Ainda
que possa ser lido como ficção, não era essa, provavelmente, a proposta do ex-presidente da
Argentina, Domingo Faustino Sarmiento, ao publicar Facundo ou Civilização e Barbárie, em
1845. David Peña foi o primeiro a dedicar uma obra inteiramente ao caudilho riojano depois
do texto sarmientino – com Juan Facundo Quiroga, de 1906, e objetivou, além de reparar a
imagem de Facundo como herói, despojando-a dos estigmas negativos de crueldade,
irracionalidade e barbárie, reivindicar Facundo como representante lúcido da causa da
Federação e da legitimidade dessa causa, por defender os justos direitos das províncias
(LOJO, 2010, p. 5). Portanto, fatos e versões polêmicas, sem adentrar nas sendas ficcionais.
―Ojos de caballo zarco‖ foi o conto lojeano originado da nota de rodapé. Essa história remeteu
a outros casos lidos ou ouvidos, e assim, também―Facundo y el Moro‖e―El Maestro y la
Reina de las Amazonas‖, que trazem o Tigre de los Llanos como protagonista/antagonista ou
pano de fundo vivenciando ―o que poderia ter acontecido‖, foram publicados em 2001 na
primeira edição de Amores insólitos de nuestra história e republicados em 2011 (LOJO,
2011a, p. 363).
As Causeries del Jueves, que tanto impactaram a jovem leitora María Rosa Lojo,
foram publicadas por Lucio Victorio Mansilla entre 16 de agosto de 1888 e 28 de agosto de
1890, no jornal Sud-America, e posteriormente compiladas em nove volumes. A brevidade e
o caráter autobiográfico, ensaístico e fragmentário característicos desse estilo, que quer dizer
―conversa‖ em francês e se difundiu entre os escritores da geração de 1880 na Argentina, nem
seriam mencionados aqui se o grande tema dos textos não fossem o autor de Una excursión a
los índios ranqueles (1870) e seu tio – Juan Manuel de Rosas. Marca indelével na origem da
escritora, citada em todas as entrevistas, está a leitura do singelo Siete platos de arroz con
leche, no qual Mansilla relata a longa espera pela reunião com o chefe de Estado/chefe de
família, ao regressar de sua primeira viagem à Europa. Assim começa:
32
Desde que empecé a filosofar, o a preocuparme un poco del porqué y del cómo de
las cosas, empezó a llamarme la atención que historia, es decir, que la palabra
subrayada, tuviera no sólo muchas definiciones hechas por los sabios, sino también
opuestos significados.
Cicerón, decía: que era el testigo de los tiempos, el mensajero de la antigüedad;
Fontenelle, fábulas convenidas, y Bacon, relato de hechos dados por ciertos. Hay,
como se ve, para todos los gustos, inclinaciones y criterios, tratándose de lo que se
llama historia en sentido elevado; y de ahí viene, sin duda, que historia implique
también su poquillo de mentira, como cuando exclamamos: eso no es más que una
historia; o: no señor, está usted equivocado, ahora le voy a contar la historia de ese
negocio, de la glorifición del personaje A o B. Puede ser que sea cierto que la
historia de un hombre no es muchas veces más que la de las injusticias de algunos,
aunque hay ejemplos modernísimos en la historia, y bien podría probarse con una
apoteosis, que la historia de alguien es la de sus contradicciones e incoherencias, la
de sus ingratitudes e injusticias contra todos, por más que en su vida haya ciertos
rayos de luz que iluminen el cuadro de alguna buena manía trascendental.
(MANSILLA, 2006)
(In)definições para história como ficção e não ficção e para história como fato e versão já nos
dois primeiros parágrafos – ainda que ele mesmo fosse o narrador e o personagem histórico.
Com juventude ancestral, as duas preciosas damas, Literatura e História, não
dialogam em uma mesa de chá. São experientes enxadristas ou – cartas na mesa – com
―intuición. Segunda vista. [...]‖ e ―sus astucias de tahur‖ como Lady Cavendish, no conto ―Té
de Araucaria‖ (LOJO, 2011a, p.250-251), hábeis jogadoras de pôquer, que pretendem
apresentar/validar a verdade, ainda que travestida em blefe.
Postura bastante apaziguadora é a do pesquisador Mario Miguel González, que
assevera: ―o romance histórico é o gênero mais próximo de fazer da literatura narrativa a
história-não-oficial dos povos, particularmente dos vencidos a quem a história habitualmente
negou voz‖ (GONZÁLEZ, 2000). Do mesmo modo, Flávio Loureiro Chaves (1999, p.9)
afirma que a fronteira entre história e literatura ―não separa; antes, determina o ponto de
convergência no qual podemos observar a unidade da obra literária‖, lição, segundo ele,
ensinada no Brasil primeiramente por Antônio Cândido (1965, p.4):
[...] só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação
dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos
fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é
virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo
interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa não como
causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel
na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.
Também conciliadora é Luz Marina Rivas (2004, p.61), que concebe o romance histórico
como ―un concepto dinámico, cuyas realizaciones formales dependen de decisiones de
escritura relacionadas con los cánones estéticos de una época dada y que surgen en
momentos históricos de crisis que producen la pulsión de la búsqueda de la identidad‖. Para a
pesquisadora venezuelana, não é possível haver um único cânone formal para um gênero com
33
vitalidade tão extraordinária ao longo do tempo, especialmente na América Latina. Assim,
quando a ―conciencia histórica se hace presente en un texto que reescribe la historia de
personajes anónimos y de sus vidas privadas torcidas por la historia colectiva, [...] nos
encontramos en la presencia de un sub-tipo de novela histórica: la novela intrahistórica”
(RIVAS, 2004, p.61), termo cunhado pelo ensaísta (e um dos maiores representantes da
Geração de 98 espanhola) Miguel de Unamuno e ressemantizado por Biruté Ciplijaus Kairé,
Glória da Cunha, María del Carmen Bobes Naves e pela própria Luz Marina Rivas, para
caracterizar os romances que recriam o passado a partir de uma perspectiva alheia ao poder e
aos grandes acontecimentos políticos e militares (RIVAS, 2004, p.61).
Ao analisar as condições do nascimento do romance histórico como gênero, no
começo do século XIX, Perkowska (2008, p.30) cita o crítico literário argentino Noé Jitrik
(1995, p.17), que identifica duas pulsões ou tendências favoráveis ao processo: a) o
questionamento que um indivíduo se faz sobre sua relação com a sociedade (e que se torna
mais urgente quando a diminuição da repressão é acompanhada por incertezas políticas e
econômicas); e b) a busca da própria definição de identidade (característica de períodos de
mudanças). Obviamente, a explosão de crises econômicas produz incertezas e angústia social,
no entanto, continua a ensaìsta, para Jitrik ―crisis‖ é um conceito produtivo porque estimula o
imaginário social, conduzindo-o a uma saída (PERKOWSKA, 2008, p.31). O dinamismo com
que o romance histórico contemporâneo ressurge do estado residual da década de 1980
permite inferir que se trata da resposta a uma crise, a mudanças complexas e profundas: a
forma nova (ou renovada) do gênero sinaliza que o imaginário social canalizou suas buscas
tornando-se, nas palavras de Marìa Cristina Pons (1996, p.22), ―testigo de la crecente
distancia entre las promesas del capitalismo y la realidade del presente histórico en las que
se enclavan‖. A ensaísta explicita que, refutando Menton (1993, p.48), para quem o quinto
centenário do descobrimento da América foi o catalisador do auge do romance histórico
(sendo um subgênero essencialmente escapista), Pons (1996, p.51) afirma que é o caráter
analítico do romance histórico o motivo para a volta ao passado – mais que escapar de um
presente desagradável, o que se deseja é confrontá-lo criticamente. O estudioso brasileiro
Antonio R. Esteves (2007, 2010) discute os limites entre Literatura e História em vários
artigos/capítulos de livros e elabora uma interessante síntese do percurso trilhado pelas
narrativas de extração histórica na obra O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-
2000), na qual está embasado, primordialmente, esse subcapìtulo. Para o pesquisador, ―é
quase consenso generalizado que a história e a literatura têm algo em comum: ambas são
34
constituídas por material discursivo, permeado pela organização subjetiva da realidade feita
por cada falante, o que produz infinita proliferação de discursos‖ (ESTEVES, 2010, p.17). Tal
proximidade, no entanto, gera uma ―grande dúvida epistemológica: será possìvel conhecer ou
representar a história de maneira exata? Ou tudo não passa de uma questão de ponto de
vista?‖ (ESTEVES, 2010, p.17). No intuito de responder à questão, analisa duas hipóteses
excludentes: a) ―a história, como a ficção, com seu discurso narrativamente organizado pelo
ponto de vista do historiador também é uma invenção‖; ou b) ―pode-se chegar à verdade
histórica por meio da literatura, discurso tradicionalmente tido como fruto da criatividade de
um escritor historicamente localizado em um determinado tempo e espaço a partir do qual
enuncia‖ (ESTEVES, 2010, p.18). Retomando o conceito de representação totalizadora,
firmado por Maarten Steenmeijer (1991, p.25), Esteves (2010, p.18) afirma que ―não se trata
de substituir a história pela ficção, mas possibilitar uma aproximação poética de todos os
pontos de vista, contraditórios mas convergentes‖ e, em seguida, associa-se à ensaísta
brasileira Heloìsa Costa Mìlton (1992) ao avaliar que ―a literatura pode ser considerada uma
leitora privilegiada dos signos da história‖ (ESTEVES, 2008, p.18).
Entre 335 a.C. e 323 a.C., Aristóteles, em sua Poética, definiu como ‗imitação‘ a
essência da poesia, mimesis capaz de propiciar conhecimento e prazer ao ser humano –
estabelecendo, assim, que ao historiador, circunscrito à verdade, cabe tratar ―daquilo que
realmente aconteceu‖, e ao literato, no campo da verossimilhança, ―daquilo que poderia ter
acontecido‖ (ESTEVES, 2010, p.18). No entanto, ―foi apenas no século XIX que a separação
entre ambos os discursos parece ter ocorrido de fato. E mesmo assim, tal divorcio nem sempre
foi muito claro ou de longa duração‖, assevera Esteves (2010, p.18). São inúmeros os
exemplos de textos que podem ser considerados, ao mesmo tempo, obras literárias e
documentos históricos. ―Boa parte da história grega chegou até nós por meio dos versos de
Homero, que canta em suas epopeias a história dos povos gregos. O mesmo ocorre com a
história dos romanos, divulgada, entre outros, pela Eneida, de Virgìlio‖, explicita (ESTEVES,
2010, p.18). Para Esteves, o mesmo ocorreu na Idade Média, com ―o Cantar de mío Cid,
poema fundador da literatura espanhola, ou aChanson de Roland, épico da cultura francesa‖,
sendo, desde a Idade Antiga, ―muito difìcil deslindar fronteiras‖. Interação semelhante
ocorreu com os textos fundacionais americanos, pois os ―textos relativos à conquista da
América, escritos pelos primeiros europeus que aqui colocaram os pés [...] são estudados
como literatura e ao mesmo tempo como história‖ (ESTEVES, 2010, p. 18-19).
35
Ainda que a memória seja um ―elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivìduos e das sociedades de hoje‖ (LE GOFF, 2013, p.435), com o tempo, fica bastante
difícil separar o real e o fictício, pois ―a memória falha. O ser humano passa a misturar o que
realmente aconteceu com o que pensa ter acontecido, ou com aquilo que desejaria que tivesse
ocorrido ou, sobretudo, com o que convém que se pense que aconteceu‖ (ESTEVES, 2010, p.
19). Mario Vargas Llosa (1996), romancista e político, reflete muito sobre as relações entre
história e literatura. Assim, no capìtulo ―La verdad de las mentiras‖, que integra a obra
homônima, ele discute ―a verdade que pode ser dita por meio de mentiras, ou seja, da ficção.
Todos sabemos que os romances mentem, mas é por meio dessa mentira que eles expressam
uma curiosa verdade que só pode expressar-se assim dissimulada, encoberta, disfarçada
daquilo que não é.‖ Citando textualmente Vargas Llosa (1996, p.12), Esteves (2010, p.20)
conclui: ―As mentiras dos romances, então, nunca são gratuitas: preenchem as insuficiências
da vida‖. E, ao preencher as lacunas da vida, estabelece-se o paradoxo:
[...] recheada de mentiras – e talvez por isso mesmo –, a literatura conta histórias
que a história escrita pelos historiadores não sabe, não quer ou não pode contar. Os
exageros da literatura servem para expressar verdades profundas e inquietantes que
só dessa forma poderiam vir à luz. Só a literatura – e poderíamos concluir assim as
reflexões de Vargas Llosa no referido ensaio – dispõe das técnicas e poderes para
destilar esse delicado elixir da vida: a verdade que se esconde nos corações
humanos(ESTEVES, 2010, p. 20).
Um ano antes da publicação do livro de Vargas Llosa, o argentino Abel Posse,
que coleciona vários prêmios da literatura hispano-americana, afirmou, em uma entrevista
publicada na Revista Iberoamericana que seu ―trabalho literário tinha necessariamente que se
valer da historiografia para poder negá-la quando fosse preciso, modificá-la ou reinterpretá-
la‖ (GARCÍA PINTO, 1989, trad. nossa). Ao tratar de temas polêmicos no que tange à
colonização da Hispano América, Posse, desmitificando a história com o intuito de descobrir
uma visão mais justa, elabora ―uma espécie de meta-história para tentar compreender nossa
época e nossas raìzes‖ (ESTEVES, 2010, p.21). E, ―explicitamente tenta fazer uma revisão
histórica oficial da América, que na maior parte das vezes foi escrita pelos vencedores, pelos
dominadores‖ (ESTEVES, 2010, p.21). Segundo Posse, cabe à literatura, enfim, a tarefa
fundadora que a transforma em uma grande usina de criação de realidades novas. Por meio de
seu fazer legitima-se o espaço humano americano que antes se interpretava sob o ponto de
vista puramente europeu (POSSE, 1992) – a Literatura, então, além de estritamente estética,
cumpre uma função desmistificadora, pois deve desvelar o encobrimento consciente e
inconsciente da realidade histórica americana, dando voz aos invisibilizados.
36
Ampliando o panorama latino-americano das reflexões sobre as interfaces da
ficção literária e da realidade histórica, Esteves (2010, p.22) apresenta as contribuições do
mexicano Carlos Fuentes (1992, p.293), ensaísta e romancista histórico, que por muitas
décadas escreveu sobre a interação entre literatura e questões sócio-político-ecônomico-
culturais da Latino América. Para o autor de Terra Nostra, de 1975, e de Cristóbal Nonato, de
1987, por demonstrar-se capaz de criticar a si mesma, a literatura teria conquistado o direito
de criticar o mundo. Igualando a realidade expressa pela imaginação verbal à expressa pela
narrativa histórica, Fuentes (1992, p.293), considera que a literatura, constantemente
renovada, seria a proclamadora de um mundo novo, pois face às turbulências do século XX, a
história teria se convertido em probabilidade. ―A literatura, no entanto, pode ser o
contratempo e a segunda leitura da história‖, afirma Esteves (2010, p.22) que, citando o
ensaìsta mexicano, continua: ―violação narrativa da certeza realista e seus códigos [...] o
romance ibero-americano é a criação de outra história, que se manifesta na escritura
individual, mas que também propõe a memória e o projeto de nossa comunidade em crise‖
(ESTEVES, 2010, p.22). Em seis de outubro de 1997, Carlos Fuentes participou do programa
televisivo brasileiro Roda Viva, da TV Cultura, sendo entrevistado por oito jornalistas e
literatos (Matinas Suzuki, Antônio Carlos Pereira, Eric Nepomuceno, Igor Fuser, John Dwyer,
Bella Josef, Rinaldo Gama e Nélson Ascher). Quando instado a falar sobre um novo ciclo de
narrativas, o escritor mexicano afirmou que a partir dos ingredientes mito, memória e
esquecimento ―se imagina o passado e ainda se dá ao passado a oportunidade que ele não
teve. Dar uma segunda oportunidade ao tempo é uma tarefa fundamental do romancista‖
(BRITO, 1997) e prosseguiu:
Geralmente, a literatura ocidental assimilou seu passado e tem que imaginar o
futuro, como Júlio Verne, mas nós somos Júlios Vernes do passado histórico. Temos
que recuperar todo esse passado não escrito, esse passado escamoteado pela censura,
pela Inquisição, pelo esquecimento e por muitos fatores.E daí o poder de muitos
romances, como Cem anos de solidão [de Gabriel García Márquez, publicado em
1967] [...] que é um enorme esforço de memória, de recuperação do passado, de dar
imaginação ao não-dito do passado. Isso é fundamental para entender a novelística
atual do continente (BRITO, 1997).
Outro escritor hispano-americano contemporâneo citado por Esteves (2010, p.22-
25) é o argentino Tomás Eloy Martínez, oriundo das prensas jornalísticas. La novela de Perón
(1985) e Santa Evita (1995) estão ―situados nessa zona sombria localizada entre a literatura e
a história que ele, no entanto, faz questão de classificar como literatura‖ (ESTEVES, 2010,
p.22), e trouxeram fama ao argentino, que acreditava que o escritor pudesse reescrever a
história. Posteriormente tendendo ao nihilismo, Martìnez, afirma em ―Ficção e história:
apostas contra o futuro‖, que ―escrever já não é opor-se aos absolutos, porque nesse mundo já
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não há absolutos. O que sobreviveu a tantas crises – políticas, econômicas e de representação,
principalmente – foi o vazio‖. Atualmente, ―desentranhar as mentiras da memória criando
uma contramemória‖ seria contraproducente, pois não é mais necessário ―estar a todo instante
denunciando que a história oficial foi manipulada pelo poder dominante, que cassou a palavra
dos dominados, e que é necessário reescrevê-la, reconquistando essa palavra‖. Além da
contraposição à versão oficial, o que preencheria o vazio contemporâneo seria ―uma série de
diferentes versões de um determinado fato histórico, que mudam constantemente de acordo
com o enfoque adotado‖. Com fronteiras cada vez mais permeáveis, ―a equação
romance/história deixou de ser um paradoxo nos últimos tempos‖ (MARTÍNEZ, 1996),
restando poucas dúvidas ―de que ambas, história e ficção, são escritas não mais para
modificar o passado, mas sim para corrigir o futuro, para situar esse porvir no lugar dos
desejos‖ (MARTÍNEZ, 1996). Em entrevista mais recente a Ariel Palacios (2010), Tomás
Eloy Martìnez poeticamente afirma que o ―gelo dos dados históricos se derrete com o sol da
narração‖ e que a ―história, em geral é um pêndulo fatal, oscilando entre o branco e o preto,
que não deixa lugar para os tons cinzas. Mas os cinzas existem, escondidos pelos ciúmes da
história‖ (PALACIOS, 2010). As ficções sobre a história, assevera Martìnez, ―recuperam os
sonhos de uma comunidade, e [...] permitem que esses sonhos regressem à comunidade,
transformados em cultura e tradição‖ – desse modo, ―temos que ver a história como cultura,
não só como realidade. É o que a própria História faz com a Literatura‖ (PALACIOS, 2010).
O autor de Santa Evita chama à atenção o que considera mais importante nas
ficções escritas sobre a história: saber que ―as tradições e os mitos são um tecido, cujos fios
mudam incessantemente a forma e o sentido do desenho‖. Nesse sentido, a reconstrução do
passado histórico recupera o imaginário permitindo que a comunidade, depois de apoderar-se
desses valores, lhes dê ―vida de outra forma‖ (ESTEVES, 2010, p.24). Ao reconstruírem
versões, opondo-se ao poder, as ficções sobre história sinalizam para adiante, anunciando
―sempre novos caminhos que garantam a pluralidade das culturas organizadas em um mundo
multipolar‖. Sendo a literatura ―leitora privilegiada dos signos da história, [...] é cerne de
renovação‖ (ESTEVES, 2010, p.24) – por vezes infinita, elucida Martínez:
Há livros que nunca terminam de ser lidos, nem de ser escritos, porque a história é
como um rio, está num movimento incessante. As mãos que movem esse tear da
história não são só do autor, são muitas, são de cada um dos leitores e vêm de
infinitas margens, que fica difícil de dizer de que é esta ou aquela página. É assim
como o passado reescreve nas novelas, as histórias do porvir (PALACIOS, 2010).
Retomando Martìnez (1996), Esteves (2010, p. 24) esclarece que ―escrever e
refletir sobre a escritura [...] sempre foi uma tensão extrema na América Latina, onde até a
38
história e a política nasceram como ficção‖. Associando os relatos ficcionais a atos de
provocação que ―tratam de impor ao leitor uma representação de realidade que lhe é alheia‖, o
jornalista/literato argentino esclarece que a escritura é ―ao mesmo tempo, uma profecia e uma
interpretação do passado‖ (2010, p. 24). Nesse embate, há que se perceber, nas palavras de
Esteves (2010, p.24), que o ―discurso histórico, no entanto, não é uma aporia: é uma
afirmação. Onde há uma incerteza, ele instala (ou finge instalar) uma verdade. Onde há uma
conjectura, acumula dados‖; mas a única verdade possìvel nos tempos atuais, continua o
ensaìsta brasileiro, ―é um relato da verdade, relativa e parcial, que há na consciência e nas
buscas do narrador‖ (ESTEVES, 2010, p.24).
Analisando o jogo de xadrez (ou de pôquer) das damas História e Literatura,
Heloísa Costa Milton e Antonio R. Esteves (2007, p.12) inferem que
Embora a visão positivista do século XIX tivesse atribuído à história um caráter
científico e reduzido sua dimensão épica, mítica e dramática, muitos historiadores
do século XX postulam que a explicação e a interpretação, atividades inerentes a
esse campo do saber, predominam sobre o mero relato dos fatos. A pretensa
objetividade do fazer histórico deixa evidente critérios subjetivos, como a seleção de
documentos e fontes utilizados, o ponto de vista adotado pelo historiador, os
métodos escolhidos, os objetivos propostos e até mesmo a própria estrutura
narrativa, que pouco difere daquela utilizada pelos romancistas.
Polêmicas ainda persistem. A seguir, ainda tendo por base os textos de Antonio R.
Esteves, serão apresentadas algumas considerações dos principais estudiosos do tema.
Retomando Hayden White em Meta história: a imaginação histórica do século XX (1990) ou
em Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, até o início do século XIX
(1994), Esteves (2010, p.26) lembra que ―a historiografia era considerada uma arte narrativa,
reconhecendo-se, em geral, sua natureza literária‖. A associação da verdade com o fato
histórico, ocorrida a partir do século XIX, entretanto, delegou ―à ficção o papel de fantasia ou
invenção, o que, se não negava a própria história, pelo menos dificultava o seu entendimento‖
(2010, p. 26). Para Paul Ricoeur, principalmente em OTempo e a Narrativa, 1994, o
intercruzamento entre o real e o ficcional se dá a partir da temporalidade, pois ―tudo o que se
conta acontece no tempo, e o que aconteceu no tempo é possìvel de ser contado‖ (ESTEVES,
2010, p.26). Inscrevendo-se, portanto, na ―categoria temporal na medida em que se articula na
forma discursiva do enredo [...] tanto a narrativa histórica quanto a narrativa ficcional seriam
formas simbólicas‖ (ESTEVES, 2010, p.26).
A própria concepção de história transformou-se no decorrer dos tempos. Seja a
partir do New criticism norte-americano ou da francesa Escola dos Annales, foi exigido da
história maior integração com outras ciências humanas, especialmente a Sociologia e a
Geografia, e até mesmo com a as Artes, explicita Esteves (2010, p.26), que continua, agora
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citando o historiador Peter Burke (1992, p.10), para quem tal processo ―se contrapõe à história
positivista tradicional rankiana vigente no século XIX‖. O relativismo cultural e o princìpio
de que tudo tem história forneceram os subsídios para a nova proposta e, de acordo com
Burke (1992, p.11), ―a base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou
culturalmente construìda‖. Essa concepção, entretanto, não foi consensual. Insurgindo-se
contra a excessiva amplitude do conceito ―história‖, vários estudiosos de formação marxista,
historiadores tradicionais, se contrapuseram à ascensão da história social, considerada pelo
inglês Eric Hobsbawm (1998, p.203) ―esse recipiente amorfo para tudo, desde mudanças no
físico humano até o simbólico e o ritual, e sobretudo para as vidas de todas as pessoas, de
mendigos e imperadores‖. Posição intermediária ocuparia o arqueólogo e historiador francês
Paul Veyne (1998, p.12) que, embora tenha afirmado em Como se escreve a história, de 1971,
que ―os historiadores narram os fatos reais que tem o homem como ator: a história é um
romance real‖, assegura que ―a história está assentada na narrativa‖. Isso reitera o que foi
postulado por Aristóteles, explicitando a dicotomia entre o ficcional e o histórico. (ESTEVES,
2010, p.27).
De acordo com Esteves (2010, p.28), Marcia Valéria Zamboni Gobbi (2004,
p.39), apresenta sinteticamente o percurso das relações entre literatura e história desde
Aristóteles, pois ―[...] para Platão, o poeta não é capaz de atingir a verdade, sequer conhecer a
realidade‖. A pesquisadora informa que os reflexos da visão aristotélica puderam ser
percebidos até o século XIX e que os desdobramentos das relações entre a história e a
literatura embasaram o pensamento de vários filósofos que postularam a cientificidade da
história. O alemão Hegel (1770-1831), coincidindo o desaparecimento da época heroica com
o início da historiografia, distinguiu o modo de criação do ficcionista e do historiador, sendo
que este ―deve narrar o que existe, e tal como existe, positivamente, sem as deformações
arbitrárias da criação poética‖ afirma Esteves (2010, p.29).
Assim se delimitava o ambiente cultural que embalou o nascimento do romance
histórico, teorizado posteriormente pelo filósofo marxista húngaro György Lukács (1885-
1971) e por seu contemporâneo e também filósofo marxista, o russo Mikhail Bakhtin (1895-
1975). Lukács entendia ―o romance moderno como uma espécie de epopeia da burguesia‖ e
Bakhtín, com forte embasamento formalista e talvez o maior teórico do romance no século
XX, preferia defini-lo como ―oposição à épica, narrativa do passado absoluto, mìtico, fechado
e imutável‖ (GOBBI, 2004, p.51). Para Bakhtin, o gênero romance reinterpreta
ideologicamente o passado e tem na instabilidade, e não no acabamento semântico, ―na luta
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com outros gêneros e consigo mesmo seus traços básicos‖. O plurilinguismo e a
multiplicidade de vozes inerentes a esse gênero tornam-no permeável e permitem a interação
com outras linguagens, geralmente estilizadas e paródicas, sendo, ao mesmo tempo, ―marca
[...] de inferioridade, de rebaixamento com relação ao gênero épico‖ e ponto fulcral para ―no
campo da representação, a atualização do objeto‖, contribuir para a dessacralização do
mesmo, ensina Esteves (2010, p.29-30). A partir de Roland Barthes (1915-1980), os
estruturalistas ―antecipam e permitem as reflexões dos pós-modernistas, que passam a encarar
a história como discurso, ou construção discursiva e cultural‖ (Esteves, 2010, p.29-30). Ao
relacionar história e literatura, Marcia Gobbi (2004, p.56) salienta ser fundamental a
―abordagem do fato histórico enquanto produto de um processo de significação‖, concepção
divulgada pela ensaísta canadense Linda Hutcheon e por outros estudiosos de tais relações na
produção ficcional contemporânea (ESTEVES, 2010, p.30).
Citando Mikhail Bakhtin (1990, p. 110), para quem o romance é um gênero
híbrido porque nele duas vozes caminham juntas e lutam no território do discurso, Esteves
(2010, p.30) assegura que ―muito mais que o romance tout court, o que chamamos de
romance histórico é um gênero narrativo híbrido, surgido de um processo de combinação
entre história e ficção‖. Para o crìtico espanhol Garcìa Gual (2002, p.11), trata-se de um
gênero bastardo e ambíguo, repercute Esteves (2010, p.30), que adverte: ―embora desperte
mais interesse no homem contemporâneo que quaisquer outras formas mais objetivas de
linguagem, não se deve esquecer de que o substantivo nessa expressão é o romance‖, a ficção
(mesmo que profundamente embasada em acontecimentos ou personagens históricos).
Esse gênero hìbrido, gerado como a ‗epopeia da burguesia‘, foi delineado por Sir
Walter Scott (1771-1832), durante o Romantismo. A maior percepção histórica das pessoas
dessa época (e, consequentemente, o desejo pela leitura dessa variante narrativa) foi
decorrente da Revolução Francesa e das campanhas napoleônicas, entre outros eventos que
marcaram o início do século XIX, explicita Esteves (2010, p.31). Em O romance histórico
(1936-1937), Lukács aponta Waverley, de 1814, como marco inaugural do romance histórico,
popularizado posteriormente com a publicação, em 1819, de Ivanhoé. Dois princípios
norteiam o esquema do romance histórico criado por Scott (que se impôs como modelo),
ensina Lukács (1977): a) a ação deve ocorrer em ―um passado anterior ao presente do escritor,
tendo como pano de fundo um ambiente rigorosamente reconstruído, onde figuras históricas
ajudam a fixar a época‖ e b) na trama, com personagens e eventos fictìcios, deve ser
introduzido ―um episódio amoroso geralmente problemático, cujo desenlace pode variar,
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ainda que, na maioria das vezes, termine na esfera do trágico‖. Salienta, ainda, que a ilusão de
realismo e a possibilidade de fuga de uma realidade insatisfatória vivida pelos leitores
deveriam estar bastante equilibradas no romance histórico romântico, que apresentaria
realidade e fantasia amalgamadas no espaço discursivo (ESTEVES, 2010, p.32).
Para o crítico espanhol Amado Alonso (1984, p.26), embora o romance histórico
não tenha mudado substancialmente ao longo do século XIX, visto que os escritores realistas
praticamente seguiram o modelo romântico, algumas transformações devem ser destacadas.
Esteves informa que a principal mudança ocorre ainda na primeira metade do século XIX,
quando Alfred de Vigny (1797-1863), assentando o conceito de história em ações individuais
(e não no movimento coletivo), publica Cinq-Mars (1826), na qual os personagens históricos
exercem o protagonismo, em desacordo com o modelo scottiano. Algumas obras de Victor
Hugo (1802-1885), ao exaltarem heróis reais com o intuito de replicar no presente caótico as
lições morais do passado, exibem o mesmo tipo de ruptura, ainda que a concepção histórica
deste seja mais progressista que a de Vigny, ―já que o autor de O corcunda de Notre Dame
(1831), ao mesmo tempo em que eleva certos heróis, também oferece às massas um papel que
não se encontra na produção de outros autores‖ (ESTEVES, 2010, p.32).
Outras transformações significativas têm lugar no Realismo: Gustave Flaubert
(1821-1880), ao localizar a ação de Salammbô, de 1862, na Cartago antiga e ali retratar
reivindicações classistas relacionadas ao capitalismo do século XIX, quebra o paradigma
scottiano (de situar a ação na Idade Média, no próprio país do escritor) e possibilita a
contemplação de locais e tempos sem estreita relação com as vivências do autor – sendo esta a
grande contribuição do literato francês ao romance histórico (ESTEVES, 2010, p.33).
Também estabelece novos caminhos o russo Leão Tolstói (1828-1910), ao narrar com fluidez
e vitalidade o imbricamento entre Literatura e História – Guerra e Paz publicado entre 1864 e
1869, é o modelo da ―moderna epopeia da vida popular‖, de acordo com Lukács (1977,
p.100), que considera os grandes momentos históricos de crise como favoráveis ao
questionamento sobre o próprio sentido da história. Assim, Tolstói teria escolhido
brilhantemente a sua conjuntura histórica: a invasão da Rússia pelos soldados de Napoleão
Bonaparte, geradora de uma crise que se imiscuiu nos âmbitos doméstico, familiar e amoroso
de personagens fictícias comuns, não afeitas a atos heroicos, e de personagens históricas,
retratadas em posição secundária. A descrição da trajetória do povo no romance russo é mais
complexa que nas obras do escocês Walter Scott ou nas do escritor italiano Alessandro
Manzoni (1785-1873), que enfatiza inequivocamente a ―esfera coletiva como verdadeiro
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fundamento do processo histórico, procedimento que compõe um realismo eminentemente
visceral‖ (ESTEVES, 2010, p.33).
Esteves (2010, p.34) reputa à essência híbrida do romance a crise vivenciada pelo
romance histórico desde a origem, sendo as concepções do romance constantemente
renovadas devido ao imbricamento com a sociedade e às ―mudanças epistemológicas que se
verificam na concepção de história‖. Assim, no inìcio do século XX, alterações na concepção
do discurso histórico e do próprio modo de historicizar, bem como a revolução das
vanguardas artísticas, acabaram delineando uma forma diferente de composição ficcional,
apresentando o ―autor como uma espécie de criador de mundos, dentro dos quais ele
estabelece as normas que