1 LUCIANA CARNEIRO HERNANDES TECIDOS E TESSITURAS: representação do feminino em María Rosa Lojo ASSIS 2017 2 LUCIANA CARNEIRO HERNANDES TECIDOS E TESSITURAS: representação do feminino em María Rosa Lojo Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Orientador: PROF. DR. ANTONIO R. ESTEVES ASSIS 2017 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp H557t Hernandes, Luciana Carneiro Tecidos e tessituras: representação do feminino em María Rosa Lojo / Luciana Carneiro Hernandes. Assis, 2017. 205 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Antonio Roberto Esteves 1. Lojo de Beuter, Maria Rosa. 2. Literatura argentina. 3. Ficção argentina - Escritoras. 4. Argentina - História. I. Título. CDD 868.99 4 LUCIANA CARNEIRO HERNANDES TECIDOS E TESSITURAS: representação do feminino em María Rosa Lojo. Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social) Data de aprovação: 31/01/2017 COMISSÃO EXAMINADORA PRESIDENTE: PROF. DR. ANTONIO R. ESTEVES – UNESP / Assis MEMBROS: PROFA. DRA. MARILU MARTENS OLIVEIRA – UTFPR / C. Procópio PROF. DR. ALTAMIR BOTOSO – UEMS / Campo Grande PROFA. DRA. CLEIDE ANTÔNIA RAPUCCI – UNESP / Assis PROFA. DRA. MARIA DE FÁTIMA ALVES DE OLIVEIRA MARCARI – UNESP / Assis 5 A meus pais Morel Nerio Hernandes Mesmo que eu nunca tenha me sentido uma exiliada-hija, sempre houve o forte elo com a Tierra Padre. Você está em nosso DNA, nosso coração e nossa memória – não morrerá jamais. Célia Maria Com miçangas e pontos de cruz, nos ensinou a tecer: a construir laços e desfazer nós. Ainda que você mesma não acredite, foi a primeira feminista que conheci. 6 AGRADEÇO àUniversidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR –, que concedeu-me o afastamento necessário para a conclusão desse Projeto; aoPrograma de Pós Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista – Unesp – campus Assis; aMaría Rosa Lojo, pela preciosa atenção dispendida nos coffee-breaks e intervalos de conferências em diversos eventos científicos; ameu orientador Antônio R. Esteves, terno e eterno, pelo encantamento provocado desde a graduação e o incentivo constante para prosseguir pelos caminhos hispânicos, em qualquer margem de ―la mar océana‖ – ou no entrelugar... às feministas Ana Maria Domingues de Oliveira e Cleide Antônia Rapucci pelas aulas- encontro dos cursos de Lírica e de Narrativa de Autoria Feminina, respectivamente, os quais, literal e literariamente descortinaram um tesouro: um universo de autoras e obras, no qual acredito ter mergulhado com tanta paixão como María Rosa nos Siete platos de arroz con leche... aMaria de Fátima Alves de Oliveira Marcari, também feminista, pelas valiosas sugestões bibliográficas e pela oferta dos fios que permitiram com que eu saísse de vários labirintos presentes na trama lojeana; aMarilu Martens Oliveira, amiga de todas as horas, por compartir o amor à Literatura e o deslumbramento proporcionado pelo ―olhar estrangeiro‖ (expressão emprestada de Adauto Novaes) – elementos fundamentais para o bordado de minha própria história; aAltamir Botoso, pela leitura criteriosa desta tese e pelas contribuições precisas durante a arguição para o doutoramento; aos professores das disciplinas cursadas como aluna regular, especial ou ouvinte nos Programas de Pós-graduação em nível de Mestrado e Doutorado que, além de instigarem a curiosidade, essencial para o desenvolvimento da pesquisa (e da vida), generosamente partilharam os saberes com os quais continuo tecendo minha trajetória acadêmica, profissional e pessoal: Ana Maria Carlos, Ana Maria Domingues de Oliveira, Antônio R. 7 Esteves, Cleide Antônia Rapucci, Eleusis Mírian Camocardi, Gizêlda Melo do Nascimento, Heloísa Costa Milton, Lea Mara Vallese, Luiz Roberto Velloso Cairo, Lygia Vianna Peres, Maira Angélica Pandolfi, Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, María Rosa Lojo, Suely Fadul Villibor Flory, Tania Celestino de Macedo, Valdevino Soares de Oliveira e Zizi Trevizan; aosfuncionários daSeção de Pós-graduação e da Biblioteca “Acácio José Santa Rosa” da UNESP-Assis, pela gentileza, solicitude e orientação; aos membros dos grupos de pesquisa CRELIT (UENP-CP) e EDITEC (UTFPR-CP); àsamigas e companheiras de profissão que assumiram minhas aulas e incentivaram a busca pelo doutoramento; aosamigos, família que o coração escolheu; àminha família, que vibra com os sonhos, oferece aporte para que sejam elaborados e reza para que eles se concretizem; aminhas irmãsmeigas, essenciais para o resgate do Princípio Feminino; aAdriana e Fernanda, minha vida. 8 Tejidos La mañana se construye con el color. Una mota de polvo macerada en el cuenco de la luz va encendiendo con su antorcha pequeña los cuartos de la casa. Pero la mujer en el umbral ha iniciado un tejido en el revés del día. Teje la voz del padre muerto y la sombra silente de los que no han nacido; teje su propio nombre como fue pronunciando antes del Tiempo, teje la tierra donde la mañana dormirá, la rosa de la noche que arrasa los colores en su eclosión oscura. (María Rosa Lojo. Esperan la mañana verde. 1998) El títere Se mueve para complacer a los otros, como todos los desamparados. Hará cualquier papel menos el propio. Será la abuela rezando junto a la ventana un rosario hecho con bolitas de ojos que vieron al Señor; será el padre que murió con rebeldía, esperando que cambiasen para él las leyes de la tierra; será la madre que antes de envejecer se dobló como un traje de fiesta y se guardó en un cajón, para que no la sacasen a vivir. Será la mujer que gobierna sus hilos de marioneta y lo retira del escenario cuando termina la función y le canta canciones de cuna y lo acuesta, con piedad, junto a sus hijos. (María Rosa Lojo. Esperan la mañana verde. 1998) 9 HERNANDES, Luciana Carneiro. TECIDOS E TESSITURAS: representação do feminino em María Rosa Lojo. 2017. 205 f. Tese (Doutorado em Letras – Área de Literatura e Vida Social) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖. Assis, 2017. RESUMO Centralizando-se nos relatos de Amores insólitos de nuestra historia (2001, 2011) e nos romances Finesterre (2005), Árbol de família (2010) e Todos éramos hijos (2014), o presente trabalho aborda como María Rosa Lojo articula o conceito de texto com a metáfora do tecido e como esse tecido/texto também está associado à vestimenta, às máscaras e à atuação performática dos personagens em geral, sempre associada ao ato de escrever e ao ato de apropriar-se, em especial no caso das mulheres, ou de outros personagens ex-cêntricos (HUTCHEON, 1991), de seu próprio corpo. A opção pela obra da escritora argentina contemporânea Maria Rosa como corpus desta tese justifica-se pelo painel que traça, em seus livros, da história argentina e pela maneira peculiar como constrói a sua teia narrativa, como elabora o seu bordado. Ao desconstruir mitos fundacionais e questionar a constituição identitária rio-platense, Lojo propõe ressignificar o próprio conceito de humanidade. Envolvendo os leitores, proporciona fruição poética e reflexão profunda. Ao resgatar autoras do século XIX, conta uma nova história da história e possibilita demonstrar como a mulher vai construindo uma forma própria de se colocar na literatura. Portanto, a questão que norteia o presente trabalho é em que medida a autora tece a história da Argentina para recriar-se argentina? Como ela constrói sensorial e sinestesicamente a trama–teia–texto de sua própria argentinidade? Também ela teria sido beneficiária do poder curativo do bordar e do narrar (BENJAMIN, 1994, 1997; GAGNEBIN, 1985), expurgando o sentimento da ―exilada-filha‖ tantas vezes mencionado em entrevistas e artigos (também textos, também teias) e o da loucura, tema anunciado do próximo livro? Como principal suporte teórico da investigação foram utilizados textos de Showalter (1998), Rapucci (2011), Cunha (2004), Schmidt (1995, 2009, 2012) e Bonnici (2007), no que tange a estudos de gênero e autoria feminina; de Esteves (2010, 2011, 2013), Perkowska (2006), Trouche (2006) e Rivas (2004) sobre narrativas de extração histórica; Crespo Buiturón (2008, 2009), Molina (2010), Luesakul (2014) e Marques (2016), a respeito da estética e da autoria lojeana, além de textos críticos da própria escritora. PALAVRAS-CHAVE: María Rosa Lojo. Nação e identidade. Literatura de autoria feminina. Narrativas de extração histórica latino-americanas. Ficção argentina - Escritoras. 10 HERNANDES, Luciana Carneiro. FABRIC AND TESSITURES: the representation of the feminine in María Rosa Lojo. 2017. 205 l. Thesis (Doctorate in Literature - Area of Literature and Social Life) -São Paulo State University (Unesp), School of Sciences, Humanities and Languages. Assis, 2017. ABSTRACT Focusing on the reports of Amores insólitos de nuestra história (2001, 2011) and the novels Finesterre (2005), Árbol de familia (2010) and Todos éramos hijos (2014), this paper addresses how María Rosa Lojo articulates the concept of text with the metaphor of the fabric and how this fabric/text is also associated with the dress, the masks and the performance of the characters in general always associated with the act of writing and the act of appropriation, especially in the case of women, or other excentric characters (HUTCHEON, 1991), of his/her own body. The option for the work of the contemporary Argentine writer Maria Rosa as a corpus of this thesis is justified by the panel that traces, in her books, the history of Argentina and the peculiar way in which she constructs her narrative web, how she elaborates her chain-stitch.By deconstructing foundational myths and questioning the rio- platense identity constitution, Lojo proposes to re-signify the very concept of humanity. Involving readers, provides poetic enjoyment and deep reflection. By rescuing authors from the nineteenth century, she tells a new history of history and makes it possible to demonstrate how women are building their own way of putting themselves in the literature. Therefore the question that guides this work is to what extent the author weaves the history of Argentina to recreate herself an Argentinian? How does she construct sensory and sinesthetically the web- text-plot of her own argentinity? Had she also been benefited from the curative power of embroidery and narration (BENJAMIN, 1994, 1997; GAGNEBIN, 1985), expunging the feeling of the "exile-child" so often mentioned in interviews and articles (also texts, also webs) and of madness, the theme of the next book announced? As the main theoretical support of the research, texts from Showalter (1998), Rapucci (2011), Cunha (2004), Schmidt (1995, 2009, 2012) and Bonnici (2007) were used in gender studies and female authorship; Esteves (2010, 2011, 2013), Perkowska (2006), Trouche (2006) and Rivas (2004) on historical extraction narratives; Crespo Buiturón (2008, 2009), Molina (2010), Luesakul (2014) and Marques (2016), regarding aesthetics and Lojeana authorship, as well as critical texts by the writer herself. KEYWORDS: María Rosa Lojo. Nation and identity.Female Authorship Literature.Latin American historical extraction narratives. Argentine fiction – Women writers. 11 HERNANDES, Luciana Carneiro. TEJIDOS Y TESITURAS: representación del femenino en María Rosa Lojo. 2017. 205 h. Tesis (Doctorado en Letras - Área de Literatura y Vida Social) - Facultad de Ciencias y Letras, Universidad Estatal Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Assis, 2017. RESUMEN Centralizándose en los relatos de Amores insólitos de nuestra historia (2001, 2011) y en los romances Finesterre (2005), Árbol de familia (2010) y Todos éramos hijos (2014), el presente estudio aborda cómo María Rosa Lojo articula el concepto de texto con la metáfora de tejido y como ese tejido/texto también se asocia con la vestimenta, con las máscaras y la actuación performativa de los personajes en general, siempre vinculada al acto de escribir y al acto de apropiarse, en especial en el caso de las mujeres, o de otros personajes ex céntricos (HUTCHEON, 1991), de su propio cuerpo. La opción por la obra de la escritora argentina contemporánea María Rosa como corpus de esta tesis se justifica por el panel que describe, en sus libros, de la historia argentina y por la manera peculiar como construye su tela narrativa, como elabora su bordado. Al deconstruir mitos fundacionales y cuestionar la constitución de identidad rioplatense, Lojo propone replantear el propio concepto de humanidad. Envolviendo a los lectores, proporciona disfrute poético y reflexión profunda. Al rescatar autoras del siglo XIX, cuenta una nueva historia de la historia y permite demostrar como la mujer va construyendo una forma propia de colocarse en la literatura. Por lo tanto, la pregunta que guía el presente trabajo es: ¿en qué medida la autora teje la historia de Argentina para recrearse argentina? ¿Cómo ella construye sensorial y sinestésicamente la trama–tela–texto de su propia argentinidad? ¿También ella habría sido beneficiaria del poder curativo de bordar y narrar (BENJAMIN, 1994, 1997; GAGNEBIN, 1985), expurgando el sentimiento de ―exilada-hija‖ tantas veces mencionado en entrevistas y artículos (también textos, también telas) y el de la locura, tema anunciado del próximo libro? Como principal soporte teórico de la investigación fueron utilizados textos de Showalter (1998), Rapucci (2011), Cunha (2004), Schmidt (1995, 2009, 2012) y Bonnici (2007), con respecto a los estudios de género y autoría femenina; de Esteves (2010, 2011, 2013), Perkowska (2006), Trouche (2006) y Rivas (2004) sobre narrativas de extracción histórica; Crespo Buiturón (2008, 2009), Molina (2010), Luesakul (2014) y Marques (2016), con respecto a la estética y a la autoría lojeana, además de textos críticos de la propia escritora. PALABRAS CLAVE: María Rosa Lojo. Nación e identidad. Literatura escrita por mujeres. Narrativas de extracción histórica latinoamericanas. Ficción argentina – Escritoras. 12 SUMÁRIO PALAVRAS INICIAIS ................................................................................................... 13 1. DUAS PRECIOSAS DAMAS EM DIÁLOGO: LITERATURA E HISTÓRIA ...................................................................................................................... 30 1.1. LITERATURA E HISTÓRIA .............................................................................. 31 1.2. LITERATURA DE AUTORIA FEMININA ........................................................ 53 1.3. ROMANCE HISTÓRICO HISPANO-AMERICANO DE AUTORIA FEMININA........................................................................................................................ 88 2. (RE)CONTAR A HISTÓRIA:TECENDO A PALAVRA, O CORPO, O SER .................................................................................................................................. 105 2.1 O TECIDO E A NARRATIVA ................................................................................. 106 2.2 O VESTIDO, A MÁSCARA E A PERFORMANCE ............................................... 134 2.3 O TECIDO, A VESTIMENTA E A MULHER DONA DE SEU PRÓPRIO CORPO/TEXTO. .............................................................................................................. 158 PALAVRAS FINAIS ...................................................................................................... 182 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 185 13 PALAVRAS INICIAIS María Rosa Lojonasceu em 1954 em Buenos Aires, filha de espanhóis. Seu pai era um galego republicano que decidiu exilar-se na Argentina depois da Guerra Civil Espanhola e ali conheceu sua mãe, castelhana e monarquista, que havia cruzado o Atlântico por motivos semelhantes. As implicações dessa herança, que a levam a vivenciar com grande constância o entrelugar (SANTIAGO, 2000) estão bastantes presentes nos textos ficcionais e não ficcionais da escritora. Doutora em Letras pela Universidade de Buenos Aires e pesquisadora principal do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – CONICET, María Rosa Lojo se dedica ao estudo da Literatura Argentina e orienta os temas: gênero, construção de imaginários nacionais, vínculos entre história e ficção, teorias do símbolo e estereótipos etnoculturais. Na Universidade del Salvador é responsável por um Seminário-Oficina permanente para o Programa de Doutorado. Como pesquisadora e crítica literária publicou cinco obras de ensaio: La „barbarie‟ en la narrativa argentina (siglo XIX) (1994); Sábato: en busca del original perdido (1997); El símbolo: poéticas, teorías, metatextos (1997); Cuentistas argentinos de fin de siglo. Tomos I y II – Estudio preliminar. (1997); Los „gallegos‟ en el imaginario argentino: Literatura, sainete, prensa. (2008) Atuando como coautora, editora e diretora de pesquisa publicou Identidad y narración en carne viva: cuerpo, gênero y espacio en la novela argentina 1980-2010 (2010) e Diario de viaje a Oriente (1850-51) y otras crónicas del viaje oriental de Lucio V. Mansilla(2012); além deduas edições críticas: Lucía Miranda(1860) de Eduarda Mansilla (2007) e Sobre héroes y tumbas, de Ernesto Sábato (Colección Archivos) (2008).Assina também mais de cento e cinquenta publicações de pesquisas, entre artigos em revistas especializadas, capítulos de livros e anais de congressos. Colabora em suplementos literários y revistas de cultura de vários jornais argentinos: revistaADNCultura, do jornal La Nación; revista Ñ, do jornalClarín; RADAR Libros, do jornal Página12. De acordo com sua página eletrônica (http://www.mariarosalojo.com.ar/),foi conferencista e professora visitante em universidades argentinas e estrangeiras: Universidade Nacional Autónoma de México, Universidade Complutense de Madrid, Universidade de Salamanca, Universidade de Valladolid, Universidade de Santiago de Compostela, Universidade de Murcia, Universidade de Toulouse Le Mirail, Universidade Stendhal de Grenoble, Universidade de Roma III, Universidade de Siena (Arezzo), Universidade de https://es.wikipedia.org/wiki/Lucio_V._Mansilla http://www.mariarosalojo.com.ar/ 14 Milán, Universidade Federal do Paraná e Universidade Estadual Paulista, em Assis-SP, entre outras. Como escritora, María Rosa Lojo publicou quatro livros de microficções / poema em prosa: Visiones(1984), Forma oculta del mundo (1991),Esperan la mañana verde(1998)eBosque de Ojos (2011).Este último é o resultado da junção dos três anteriores com Historias del Cielo, inédito. Também publicou quatro volumes de contos: Marginales(1986), Historias ocultas en la Recoleta(2000), Amores insólitos de nuestra Historia (2001),Cuerpos resplandecientes. Santos poulares argentinos.(2007); e oito romances: Canción perdida en Buenos Aires al Oeste (1987), La pasión de los nómades(1994),La princesa federal (1998),Una mujer de fin de siglo(1999),Las libres del Sur(2004), Finisterre (2005), Arbol de Familia(2010) e Todos éramos hijos (2014).Escrito em galego, com ilustrações de Leonor Beuter, sua filha, Lojo publicou em Vigo, na Galiza, O libro das Seniguais e do Único Senigual em 2010. Em março de 2012, o periódico Cultura Los Andes apresenta a primeira versão em castelhano – Las Siniguales y el único Sinigual –do que seria, segundo as autoras, ―una propuesta de vanguardia para un público sin limitaciones‖ e não um livro para crianças. Bosque de Ojos, publicado em 2011, reúne quatro livros de textos breves escritos por María Rosa Lojo ao longo de vinte e sete anos: Visiones(1984); Forma oculta del mundo (1991); Esperan la mañana verde(1998)e Historias del Cielo (inédito).As mudanças no ritmo, na linguagem metafórica, no imaginário todo ―foram inevitáveis‖. As obsessões centrais, no entanto, permanecem: a busca do outro lado do real, de ―outros mundos‖ que pulsam ocultos dentro desse, percorrem os quatro livros. Sob o título Poemas em prosa houve tentativas anteriores de reunião dos textos, mas a ―dose‖ de poema ou de prosa das obras incomodava os ―fanáticos por classificações‖ e o aparecimento da categoria microficção diluiu as incertezas. Sobre o volume, Lojo (2016) escreve: Se trata, ante todo, de una producción desplegada a lo largo de veintisiete años. La entonación, la atmósfera, el lenguaje metafórico, el ritmo, el imaginario todo, han sufrido cambios inevitables. He preferido, en general, no hacer modificaciones sustantivas de los libros anteriores, respetando el momento vital y estético en que fueron escritos y publicados. […] Me doy cuenta, por otro lado, de que las obsesiones centrales permanecen. No se escribe sobre lo que se quiere sino sobre lo que se puede. La búsqueda del otro lado de lo real, de los ―otros mundos‖ que laten, ocultos, dentro de éste, recorre sin duda los cuatro libros hasta Historias del Cielo, donde emergen las paradojas que plantea imaginar un ―más allá‖ (reverso inevitable, al menos para mì, de cualquier ―más acá‖). El tìtulo de este volumen no es casual, tampoco, porque el eje de la búsqueda pasa por la mirada. Ojos miopes que se instalan en el ángulo dislocado, la 15 dimensión suplementaria, la perspectiva insólita desde la cual se ―desautomatiza la percepción‖ (Shklovski) y el lado oscuro se hace visible por relámpagos o destellos.‖ Marginales,de 1986, traz contos escritos entre 1974 e 1980, sobre personagens bastante díspares: uma Safo menina que conta uma história simples, mas terrível; o triste Baudelaire; Pedro, o guardião do Paraíso, que vigia também a si; um soldado desertor que, no século XVI, acredita ter encontrado o El Dorado e, com ele, a riqueza e a felicidade; Garcilaso de La Vega, e outros anônimos e conhecidos, recriados no volume com mistério, magia e originalidade. A investigação histórica de Roberto L. Elissalde foi a base para que María Rosa Lojo buscasse, em documentos e na tradição oral das casas e das famílias, material para recriar, nos 15 contos de Historias ocultas en la Recoleta, publicado em2000, uma galeria de personagens complexos, corroborando o que escreveu Sarmiento, em 1885, depois de passear entre as alamedas do famoso cemitério: “Cada existencia es un drama, y no habría novela tan tierna ni tragedia tan pavorosa, como la que encierran bajo sus tapas de mármol esos sepulcros‖(LOJO, 2016). Entre as histórias contadas, a de Dona Maria Magdalena, viúva de Álzaga, que, quase setenta anos antes de Bernarda Alba, se enclausurou para sempre em sua casa da rua Bolívar, com suas seis filhas adolescentes; a do sequestro do cadáver de Dona Inés Indart de Dorrego; a da jovem Rufina Cambacéres, enterrada viva no dia de seu aniversário; a de Abel Ayerza, assassinado pela Mafia devido a um malentendido; o suicídio de Agustina Andrade e a história de seu marido, explorador e cientista Ramón Lista, que se uniu a uma índia tehuelche; o périplo de Juan Manuel de Rosas do cemitério de Southampton até a Recoleta... Em 2001 foram publicados 14 contos de Amores insólitos de nuestra historia. Patrimônio compartilhado por todos os seres humanos, o amor, ainda que insólito, gerou dois contos mais, acrescentados à edição de 2011. As diferenças exacerbadas de distância e de classe, raça, cultura, idade e poder, para o bem e para o mal dos amantes recriados por Lojo nesse volume fazem com que esses amores possam ser considerados insólitos. Apresentando personagens históricos da época do descobrimento da América ao declínio do peronismo, María Rosa questiona a historiografia oficial e declara seu amor – nada insólito – pela terra em que nasceu. Assim, Ulrich Schmidl, de volta à Alemanha, não consegue se esquecer de uma bailarina da tribo dos xarayes do Mato-Grosso; Lord Howden, representante da nação mais poderosa do mundo, luta pelo amor de Manuela Rosas, filha do governante de um país 16 periférico, pobre e em guerra com o seu; Domingo F. Sarmiento, homem de livros e de política, é enfeitiçado pela bela e frívola Ida Wickersham; a cativa dos ranquel, Dorotea Bazán, teria preferido não voltar a seu ―civilizado‖ mundo de origem; o tucumano Gabriel Iturri se converte, através de sua relação com o conde de Montesquieu, em personagem de Marcel Proust... Como nos livros de contos anteriores, focalizando a morte e o amor, em Cuerpos resplandecientes. Santos populares argentinos, de 2007,que aborda questões de fé, a opção de María Rosa é literária. As vidas dos santos são narradas a partir de perspectivas variadas, não necessariamente a dos que creem; algumas vezes sob a aura mágico-poética; outras marcando os aspectos extremamente humanos do santificado.Os antropólogos e cientistas sociais concordam que enquanto o projeto neoliberal, com sua sequela de marginalização, exclusão e desemprego, avançava de forma devastadora, cresciam e se fortaleciam os cultos populares, como ato de autoafirmação, válido por si mesmo. Práticasreligiosas estas que remetiam à história das guerras civis (da qual emergiram o gauchito Gil, Santos Guayama, a Defunta Correa), ao substrato cultural indígena e crioulo, à rebeldia e às reivindicações dos ―bandidos rurais‖, interligadas à aura de beleza, sedução e carisma das expressões artísticas (o tango, a ―bailanta‖) que reúnem multidões e provocam vastos fenômenos de identificação. Sua entrada no universo do romance se faz com Canción perdida en Buenos Aires al Oeste, publicado em 1987, que apresenta o conflito entre duas gerações: emigrados e exilados europeus (especialmente espanhóis) depois das grandes guerras e os filhos argentinos que sofrem pela pátria. Espaço fronteiriço, trama de sonhos e tempos, de vozes que convergem em um contraponto dramático entre realidade e desejo, perda e recuperação, estranhamento e pertença a uma identidade e terra novas. La pasión de los nómades, publicado em 1994, é uma versão irreverente da história que passou e da que estava sendo construída no final do século XX, na qual próceres caem de seus pedestais e fadas vestem-se com jeans. Figura inesquecível do século XIX argentino, Lúcio Victorio Mansilla (escritor,militar, político, gourmet e dandy, entre outras ocupações) volta nos anos noventa do século XX e refaz, com Merlin e Morgana, os passos de sua grande aventura, a ―excursão aos ìndios ranquel‖. Nesse romance, Marìa Rosa Lojourde na cidade posmoderna e nas encruzilhadas pampeanas, una rara convergência de personagens históricos e literários, patéticos fantasmas e humanos de carne e osso, bem como criaturas feéricas do velho sonho celta. 17 La princesa federal, publicado em 1998, apresenta Manuela Rosas, filha e assistente pessoal de Juan Manuel de Rosas. La Niña é aqui recriada a partir de vozes e imagens contrapostas, que chegam de um passado perdido: Manuela, que maneja os homens eos cavalos com segura e discreta eficácia; um Rosas cáustico e um Quiroga mundano; dona Encarnación Escurra, seus ciúmes e funerais; o fuzilamento de Camila O‘Gorman; a cândida figura de Eugenia Castro; a corte de Palermo e os jogos de diplomacia e erotismo. Em 1893, um jovem médico de família federal, chega à Europa com dois objetivos: conhecer em Viena um ainda ignorado Freud e visitar, em Londres, uma mulher cujo mistério o cativou desde as páginas secretas do diário de Pedro de Angelis. Ao recriar a personagem histórica, María Rosa Lojo questiona, com lirismo e ironia: Quem era e o que queria Manuela Rosas? Foi vítima ou cúmplice de seu pai? O que significa o poder para as mulheres? Una mujer de fin de siglo, de 1999, apresenta a escritora Eduarda Mansilla de García (Buenos Aires, 1834-1892). Sobrinha preferida de Juan Manuel de Rosas, filha de Agustina e irmã de Lúcio Victorio, esposa de Manuel Rafael García, Eduarda quer existir por méritos próprios. Deseja transcender tanto parentescos prodigiosos como padrões estabelecidos para o ―segundo sexo‖. Ícone da beleza e da maternidade, decide ser uma artista e não um mero adorno ocasional nos salões. Para tanto, aceita colocar um oceano entre a vocação e a família (marido e seis filhos) que permanecerá na Europa por vários anos enquanto ela volta à Argentina para divulgar sua obra. María Rosa Lojo narra, em três etapas, uma aventura vital e os desejos de quem não se dispõe a aceitar resignadamente os mandatos sociais de seu tempo, que julga ser antinatural para a condição feminina aceder aos frutos proibidos da criação. Em Las libres del Sur, de2004, María Rosa Lojo apresenta Victoria Ocampo, fundadora da importante revista Sur e figura única no âmbito literário argentino do século XX. Em 1924, quando ainda era difícil prever a mulher que seria, Victoria Ocampo contrata Carmen Brey, jovem universitária galega, discípula da filósofa María de Maeztu, recém chegada de Madri. Ela deve acompanhar Rabindranath Tagore, Premio Nobel de literatura (primeiro visitante ilustre de Victoria), e o faz – mas esconde as verdadeiras razões de sua viagem à Argentina: conjurar o fantasma do pai e procurar o irmão, que a precedeu nessas terras e do qual não tem notícias. Tagore a deslumbra e, depois dele, terá contato, em Buenos Aires e na Europa, com José Ortega y Gasset, Keyserling, Drieu La Rochelle, Waldo Frank, Walter Gropius. Lojo recria, a partir da formação de Victoria Ocampo, um momento cultural determinante (a década de vinte) e a façanha de um grupo de mulheres independentes (entre 18 elas, María Rosa Oliver) que não só devem propiciar-se um destino, mas batalhar diariamente para que aquilo que conquistaram não lhes seja tomado por sua condição feminina. Finisterre, publicado em 2005, é um romance epistolar. Em 1874, na Inglaterra, a joven Elizabeth Armstrong, recebe a primeira carta de Finisterre, na Galiza. Rosalind, sua correspondente, promete romper o obstinado silêncio mantido pelo senhor Armstrong sobre o nascimento de sua filha no Rio da Prata. Suas cartas remontam quarenta anos atrás, até o caminho de Buenos Aires a Córdoba, que uniu as vidas de Rosalind, de Oliver Armstrong, da atriz espanhola dona Ana de Cáceres e de Manuel Baigorria, militar unitário exiliado entre os índios ranquel que os toma prisioneiros. Ali Rosalind perde seu marido e também o filho que esperava. No entanto, inicia seu próprio ―caminho de Finisterre‖, metáfora do limite do extremo, onde enfrentamos o desconhecido e aterrador dentro de nós mesmos. O mesmo caminho que Elizabeth, sua fascinada leitora, começa a refazer em busca de sua origem. Rosalind conheceu a dor e o desengano, mas também a sabedoria e uma rara e duradoura amizade com o xamã da comunidade, tornando-se ajudante e discípula dele. Enquanto isso, no presente da narração, Elizabeth trava uma amizade adolescente com Oscar Wilde, rejeita propostas matrimoniais e se interessa por Frederick Barrymore, empregado de seu pai também nascido no Rio da Prata, que a levará ao salão de dona Manuela Rosas. Histórias e personagens de ambos os tempos e culturas confluirão no final do romance, que subverte os clichês habituais do ―relato de cativas‖ e do romance de aventuras para se transformar em uma profunda indagação existencial sobre a liberdade humana, a identidade dos povos e dos indivíduos, a violência étnica e a violência de gênero, o lugar desgarrado e rico dos que pertencem pelo menos a dois mundos, a beleza e a crueldade da vida incompreensível. Em Árbol de Familia, de 2010, os dois ramos principais da família – grande protagonista da obra –, paterno (galego, Terra Pai) e materno (castelhano, Lengua Madre) ressoam, a partir de diferentes contextos sociais e posições políticas, o relato fragmentado da diáspora espanhola, a narrativa da emigração desde o final do século XIX e o exílio que se segue à tragédia da Guerra Civil. Nessa árvore de histórias entrelaçadas, cada folha tem valor próprio, mas também é parte do conjunto que compõe a folhagem: árvore e álbum de fotografias que abrem janelas a outros mundos, a partir dos quais são recriadas, entre outras, as vidas incríveis de Maruja, a enfeitiçada; Rafaeliño, o bígamo; Fito, o piromaníaco; Antón, o vermelho e a bela dona Ana. 19 Todos éramos hijos, de 2014, abre uma perspectiva pouco explorada na ficção argentina porque apresenta os convulsionados anos setenta (com ditadura, violência, teologia da libertação, peronismo) sob a ótica da juventude e seu compromisso militante, além de mergulhar no ‗eterno conflito entre pais e filhos‘. A personagem narradora, Frik (apelido de Rosa, na época de estudante), observa as mudanças que ocorrem a seu redor e questiona sobre vencedores e vencidos, valores e honra. María Rosa Lojo, nesse livro, recria, a partir das memórias dos estudantes secundaristas, um período bastante dolorido da história latino- americana (que infelizmente ecoa até o presente) e constrói um relato, íntimo e social, com lirismo e beleza. O libro das Seniguais e do Único Senigual, publicado na Galiza, em 2010, em galego, conta, liricamente, a história de diminutos seres – as seniguais – que, sem serem bruxas nem fadas, são descobertas por uma menina de Finisterre que as batiza e cuja presença constitui um importante nexo de união entre o que ocorre aquém e além do oceano. A biografia do único senigual, inclassificável como elas, também pode ser lida simbolicamente – o livro todo é uma incursão original no âmbito das mitologias prováveis. A apresentação, em forma de álbum ilustrado, exibe cuidadosas montagens fotográficas elaboradas por Leonor Beuter, filha de María Rosa Lojo. Lojo recebeu várias honrarias, entre as quais se destacam o Prêmio do Instituto Literário e Cultural Hispânico da Califórnia (1999); Prêmio Kónex (década 1994-2003); Prêmio Nacional ―Esteban Echeverrìa‖ (2004), por toda a obra narrativa; a Medalha da Hispanidade (2009) e a Medalha do Bicentenário outorgada pela Cidade de Buenos Aires (2010). A mais distante foi recebida em dezembro de 2015, na Tailândia, ―a tan solo un poco más de 17 mil kilómetros de Castelar‖ – trata-se do prêmio Phraya Anuman Rajadhon, dado ao romance Finisterre, pela Melhor Tradução Literária de 2015, realizada por Pasuree Luesakul. Em 2004, a RevistaÑ, do jornal argentinoClarín, escreveu que María Rosa Lojo ―ha sabido combinar una intensa actividad académica, tanto en la Argentina como en el exterior, con una destacada obra narrativa que la ubica entre las más reconocidas escritoras de nuestro país” (LOJO, 2016). Mas, em 2001, oSuplemento Literário do jornal La Naciónjá analisava: Para la nueva narrativa histórica - de la que María Rosa Lojo es una cultora descollante - los mundos del pasado histórico no son autónomos, sino que están implicados en la tensión con que se los mira desde el presente [...] sus relatos se 20 erigen en símbolos, se articulan en una poética, en la conmovedora iconografía del país que pudo haber sido, o que aún con aliento se debate para no desaparecer. (LOJO, 2016) A bibliografia produzida a respeito da obra literária lojeana é bastante difícil de ser quantificada. Uma visita ao site da escritora, pode constatar uma serie de obras. Lista várias monografias de licenciatura, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Entre as teses vale a pena mencionar Andar por los bordes. Entre la historia y la ficción: el exilio sin protagonistas de María Rosa Lojo, da argentina Marcela Crespo Buiturón (2008); La visión de “los otros”: mujer, historia y poder en la narrativa de María Rosa Lojo, da tailandesaPasuree Luesakul (2012); e Post-Dictatorship Historical Fiction in Argentina: A Dialogue Between Past and Present, defendida por Rebecca Jean Ulland em 2006, em Minnesota, EUA, que aborda no terceiro capítulo La pasión de los nómades; e a dissertação de Aude-Marie Dahmen, defendida na Universidad de Toulouse-Le-Mirail, França, Las circunstancias de la reescritura a través del estudio de dos obras:Una excursión a los indios ranqueles (1870), de Lucio Victorio Mansilla, La pasión de los nómades (1994) de María Rosa Lojo. Entre os ensaios sobre a autora (LOJO, 2016), constam: Teoría e práctica del proceso creativo. Con entrevistas a Ernesto Sábato, Ana María Facundo, Olga Orozco, María Rosa Lojo, Raúl Zurita y José Watanabe, de Sílvia Sauter (2006); María Rosa Lojo: la reunión de lejanías, editado por Juana Arancibia, Malva Filer e Rosa Tezanos-Pinto (2007) e composto por vinte estudos críticos sobre a criação literaria lojeana;e La princesa federal: los múltiples rostros de Manuela Rosas, de Ana Maria Fasah (2008). Os novos libros de Crespo Buiturón: Buenos Aires: la orilla frente al abismo. Sujeto, ciudad y palabra en el exilio argentino, de 2009, e Avatares de una identidad a la deriva. Apostillas al horizonte ontológico en la literatura argentina del siglo XX. Dos generaciones, un encuentro posible: Sabato-Orozco y Lojo-Martini,de 2013 (disponíveis em ) bem como La memoria de la llanura: los marginales de María Rosa Lojo usurpan el protagonismo de la historia, também de 2013, encontram-se apenas na página . É interessante verificar, na crítica sobre a escritora, a menção a diversos trabalhos brasileiros, principalmente os produzidos por Antonio R, Esteves e os publicados nas Atas do VII Congresso Brasileiro de Hispanistas, de 2013. No Brasil há projetos universitários que, desde 2010, estão gerando trabalhos acadêmicos e científicos, fomentando singular discussão sobre a obra lojeana. O projeto coordenado por Antonio Roberto Esteves, da Universidade https://mariarosalojo.wordpress.com/ 21 Estadual Paulista, conforme descrito na Plataforma Lattes, pretendia, ―no âmbito dos estudos literários e culturais, considerando as narrativas de ficção histórica, fazer uma leitura da obra ficcional de Marìa Rosa Lojo‖. Para o desenvolvimento das duas frentes de trabalho (1 – a construção da memória literária argentina através da ficção histórica da escritora que traz intelectuais e escritores como protagonistas; 2 – a leitura da obra da escritora argentina considerando questões de gênero (genre e gender) e o esgarçamento das fronteiras entre esses gêneros), oficialmente, constam dois doutoramentos, um mestrado profissional e dois graduandos. No entanto, a leitura – e divulgação – da obra lojeana na terra brasilis se dá em grande medida a partir dos cursos na pós-graduação por ele ministrados, além da coordenação de mesas de comunicações, da publicação de artigos e da supervisão dos diversos trabalhos apresentados por orientandos em conferências e congressos. Lirismo e história, a pesquisa e a nota ao pé da página – Ximú e Utz inspiraram a apresentação de ―Fronteiras e trânsitos. Cartografìas do céu, da terra e do corpo em um relato de Marìa Rosa Lojo‖ (―Tatuajes en el cielo y en la tierra‖, de Amores insólitos de nuestra historia)‖, por Antonio R. Esteves no II Congresso Internacional da Associação Brasileira de Hispanistas, o VI Brasileiro, realizado em Campo Grande, em 2010. O primeiro trabalho, com o mais sensorial conto do livro, abriu o corredor que não mais se fechará. Em 2012, na cidade de Salvador-BA, durante o VII Congresso Brasileiro de Hispanistas, nas três mesas temáticas de comunicações, denominadas Abordajes críticos a la obra de la escritora argentina María Rosa Lojo I, II e III, foram apresentados onze trabalhos científicos. O VIII Congresso Brasileiro de Hispanistas, ocorrido em 2014, no Rio de Janeiro, contou com menor número de trabalhos sobre a obra lojeana, mas as comunicações individuais, em mesas que aglutinavam temas literários (não autorais) acabaram por divulgá-la entre especialistas de outras áreas. De qualquer modo, ainda que não seja esse o objetivo dessa tese, é possível afirmar que o volume de pôsteres e artigos sobre a poesia e a narrativa de Lojo tem crescido significantemente em colóquios e encontros regionais em diversos Estados brasileiros. O I Seminário Gêneros Híbridos da Modernidade e I Simpósio Memória e Representação Literária que teve lugar na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, (Universidade Estadual Paulista), em outubro de 2014, contou com a presença da autora na conferência de abertura ―Literatura, memoria, imigração: a palabra dos escritores‖, coordenada por Antonio R. Esteves, na qual Marìa Rosa abordou as ―Figuras de la migración: de la inmigración al exilio, del nomadismo al cautiverio‖ e Oscar Fussato Nakasato apresentou ―Nihonjin e a condição híbrida do nipo-brasileiro‖. Nas Seções de 22 Comunicações do evento foram apresentados quatro trabalhos sobre a estética lojeana: ―Entre a História e a Literatura:a reconstrução de Facundo Quiroga nos contos de María Rosa Lojo‖,de Muryel da Silva Papeschi (que no mesmo ano defendeu sua dissertação de mestrado Juan Facundo Quiroga: um homem, vários personagens), ―Matar a Borges: a ficcionalização de Borges e da crìtica literaria‖, de Isis Milreu (parte da tese de doutorado De autor a personagem: Jorge Luis Borges na mira de romancistas latino-americanos também defendida em 2014), ―Sobreposições discursivas:a cativa na narrativa de Marìa Rosa Lojo‖, de Gracielle Marques (que em 2016 defendeu a tese de doutorado A voz das mulheres no romance histórico latino-americano: leituras comparadas de Desmundo, de Ana Miranda e Finisterre, de Marìa Rosa Lojo) e ―Representações do feminino em ―El alférez y la provisora‖e―Tatuajes en el cielo y en la tierra, de Marìa Rosa Lojo‖‖, de Luciana Carneiro Hernandes (estudo que integra a presente tese de doutoramento), todos orientados pelo Dr. Antonio R. Esteves na UNESP-Assis. Importante mencionar que, além desses trabalhos, em 2015 foram apresentadas duas monografias abordando a obra de María Rosa: na Universidade Estadual de Londrina, Alessandro da Silva defendeu a dissertação de mestrado Memórias, exílios e viagens em La pasión de los nómades (1994), de María Rosa Lojo, orientado pela Dra. Vanderléia da Silva Oliveira, e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maria Josele Bucco Coelho defendeu a tese de doutorado Mobilidades culturais na contística rio-platense de autoria feminina: tracejando as poéticas da distância em Josefina Plá e María Rosa Lojo, orientada pela Dra. Zilá Bernd. Vários outros trabalhos, não explicitados nesse subitem, foram desenvolvidos no Brasil durante o período de elaboração da presente tese: capítulos de livros, alguns dos quais listados pela autora na página publicações em periódicos, trabalhos de iniciação científica e apresentações em eventos científicos. Gabriel Colonna, que entrevistou a escritora para o Castelar Digital, sugere que, sem ser best sellers, as obras de Lojo ―son consideradas long sellers, es decir que a pesar del paso de los años no pierden vigencia y siguen reeditándose. A ese logro se le suma también la reproducción en otros países, otros continentes, otros idiomas.‖ Marìa Rosa parece concordar, quando relata ao Castelar Digital que o romance Pasión de los nómades“no fue un gran éxito de ventas, pero tiene tres ediciones y se sigue vendiendo. Ganó el Primer Premio Municipal de Buenos Aires y provocó mucha curiosidad, que se volcó en artículos e https://mariarosalojo.wordpress.com/capitulos-de-libros/ 23 incluso algunas tesis, la última de ellas defendida em Brasil en este mismo año” (FERNÁNDEZ VIVAS, 2015). É recorrente em artigos, entrevistas, colóquios e congressos, a declaração de María Rosa sobre o fascínio nela provocado, desde a infância, pela leitura. Em Árbol de família, (LOJO, 2010a) a personagem Rosa, considerada alter ego da autora, explicita: ―lo más precioso que me dio [mi tío Adolfo]‖ foi a chave da biblioteca dele, ainda que este não fosse ―un regalo, sino un préstamo, una espécie de leasing a largo plazo‖ (LOJO, 2010a, p.197) e que, em viagens anteriores ele houvesse presenteado a garota, que agora tinha oito anos com ―la muñeca más grande que tuve nunca‖ (LOJO, 2010a, p.196). Allí estaban todos los piratas, los brujos, y los reyes, las aventuras, las traiciones y lealtades, los países desconocidos ocultos en el mapa de lo obvio, los mundos olvidados que están dentro de éste. Phineas Phogg y El Tigre de Mompracem, Long John Silver y el último de los mohicanos, D´Artagnan y Ayesha, Milady y la reina de los Caribes. Tarzán y Jane. Entré en esas historias como quien entra en un planeta de hongos aluginógenos. El cerebro no se me secó del poco dormir y del mucho leer, antes bien tomó temperatura y humedad de jungla, donde animales fabulosos y guerreiros nómades merodeaban a la sombra de los baobabs. Nunca salí del todo de ese planeta, aunque tuve que devolver los libros muchos años más tarde [...].(LOJO, 2010a, p.197-198) Confesiones de una lectora: Cómo leer me hizo escribir é o título da conferência apresentada em Curitiba, no VII Encuentro de Profesores de Español del Estado de Paraná, em 2013. Nela, María Rosa expressa que seu ingresso ao mundo da imaginação, o qual se vale de palavras, se deu ―por ambos lados: la tradición oral y la escrita‖. E, nas duas, seria iniciada por uma voz feminina: a da avó materna, castelhana, Dona Julia, que ―cantaba y contaba‖ (LOJO, 2013a, p.7). Tão fecundo foi esse encontro, que nela já se foi impregnando o ―caráter mediúnico do autor‖ La oralidad y la poesía popular se colocaron, de este modo, en el comienzo de mi imaginación narrativa, y no la abandonarían nunca, consolidando en mí una idea mediumnica del escritor. No un pequeño dios, a la manera de Huidobro, sino un canal abierto a la escucha del pasado y la anticipación del futuro, por donde corre, torrencialmente, la memoria colectiva de sujetos múltiples, el inmenso coro de los antepasados. (LOJO, 2013a, p.8) As letras, além dos cantos e contos, foram outro legado da avó. Descrevendo seu encantamento com a descoberta do mundo da leitura, María Rosa diz “Nunca olvidé mi primer cuento. Quizá porque en él, de manera lúdica y con las herramientas de un lenguaje eficazmente destinado a los niños, se prefiguraba todo un destino: el mío.”(LOJO, 2013a, p. 8-9) O conto era Nubecita, el chanchito distraído, que posteriormente descobriu ser de Héctor Germán Oesterheld Puyol (autor argentino bastante famoso pela HQ de ficção científica El Eternauta e por ter desaparecido depois de ser sequestrado pelas Forças Armadas em 1977). 24 O enredo conta a vida de um porquinho que passava os dias contemplando as nuvens no céu e, às vezes, até se esquecia de brincar com os amigos por estar tão absorto. Essa distração impedia-o de completar os trabalhos que começava, irritando bastante as pessoas a seu redor. Já adulta, María Rosa refletiria que o feitiço desse relato alojado em sua memória consistiria no fato de Nubecita pertencer a ―[...] la especie primaria a la que pertenezco: la especie de los lectores, que engloba al subconjunto de los escritores y lo precede.‖ Provavelmente analfabeto, o personagem de Oesterheld folhearia nuvens ―con el mismo espíritu del lector puro, que no es utilitario‖. E segue ‗confessando‘ que embora as demandas da vida rotineira ―nos encajonen en su ratonera, nos obliguen a escribir tesis, obras de investigación, y hasta conferencias como ésta, lo cierto es que el lector nato, en su estado primigenio, solo se propone leer” justificando essa atividade exclusivamente ―por el intenso placer que la dimensión hipnótica de la lectura proposciona‖. Conclui, enfim:“Comemos libros, bebemos libros, ensoñamos libros, con el disfrute insaciable de los adictos, que solo se detiene frente a la perspectiva de poder continuar con la misma dieta al día siguiente.‖(LOJO, 2013a, p.9-10) A memória afetiva desse adentramento surdo ao mundo das palavras escritas encontra eco no apoderamento de duas outras pequenas bibliotecas, ainda na infância: a universal, emprestada pelo tio, e a nacional, doada pelo pai. Levantando hipóteses sobre os motivos pelos quais o tio teria levado consigo, ao cruzar o oceano, livros que não deveriam ser raros nem caros, podendo ser facilmente readquiridos em Buenos Aires, María Rosa infere que aquelas páginas continham algo que ia além de seus conteúdos: ―Era el tesoro de la identidad, el pasaporte de la memoria, que nos permite seguir siendo quienes creemos ser, certificándonos y confirmándonos […] en todas las migraciones, en todos los trânsitos‖ (LOJO, 2013a, p.10) No capítulo Herencias, de Árbol de Família, Lojo acrescentaria algo ainda mais profundo a essa definição, conferindo aos livros o locus onde pode se dar a cura da alma pela palavra, proposta por Platão, Carl Jung, Walter Benjamin – efetivada por Sheherazade, Penélope, Ñandu-atí, María Rosa... Han quedado libros. [...] Escucho con mis ojos a esos muertos, que no sólo me hablan de sí mismos, sino, sobre todo, de la lectora que recorrió las mismas páginas. Quizá (seguramente) no compartimos idénticos hallazgos, no los leímos de similar manera. Pero los libros son la única casa de citas donde acaso podremos encontrarnos. Donde la una, todavía viva, va buscando infatigable por pasillos y salas internas y habitaciones cerradas, las huellas de la otra, para continuar el diálogo brutalmente quebrado. O tal vez es ella la que me sigue, cuarto tras cuarto, sin atreverse a detenerme, y a tocarme 25 el hombro, para rogarme que no la olvide, pero que sí perdone. (LOJO, 2010a, 154- 155) As pontes entre os ‗gêneros populares‘ (e as possìveis ―secuelas de distracción, delirio y extravio‖) e a ‗alta literatura‘ (parte da educação formal ―el método de movilidad social por excelência‖) trariam resultados bastante fecundos para a autora (LOJO, 2013a, p.13). Melhor dizendo, talvez Lojo, instruindo-se simultaneamente nessas duas múltiplas fontes, tenha, como leitora, começado a desenvolver as estratégias necessárias para percorrer os corredores, as trilhas, o não lugar – como a Ñandutí, que tece lindamente seu bordado sem deixar-se prender por ele. Um ―bonsai de biblioteca argentina, que después creció y se expandió hasta convertirse en bosque e invadir toda la casa‖ (LOJO, 2002). É assim que María Rosa se refere aos primeiros volumes de ―la literatura fundamental y fundadora del país de mi nacimiento”, uma pequena estante de madeira, contendo a coleção Jackson de Clássicos Argentinos, recebida como presente de seu pai, quando completou catorze anos. ―Estante mínimo, con varios libros en miniatura‖ (LOJO, 2013a, p.15) – cada ponto é mínimo, e entre eles ainda há o vazio; cada noite é curta, e entre elas ainda há o dia: com tão parcos recursos, Penélope declara ao mundo sua fidelidade a Ulisses bordando uma infindável manta e Sheherazade salva todas as mulheres do reino, a si mesma e ao sultão contando histórias por mil e uma noites. Os extratos de Facundo e de Recuerdos de Provincia, de Domingo F. Sarmiento; Causeries, de Lucio Victorio Mansilla; Bases, de Juan Bautista Alberdi; Fausto, de Estanislao del Campo; Martín Fierro, de José Hernández, apresentaram a María Rosa o microcosmos que aguçaria a imaginação adolescente e todo o universo que recriaria posteriormente como pesquisadora e autora. O caráter de ―tesouro da identidade, passaporte da memória‖, imbricado nos livros que o tio Adolfo não conseguiu deixar na Espanha, nesse caso, estende-se também à estante, que se sustenta precariamente, pois “[...] le faltan dos clavijas. Las letras negras sobre el lomo rojo de los libritos están casi borradas, en algunos ha desaparecido la portadilla; otros tienen los bordes deshilachados y abiertos.‖ Descuido? A autobiografia é mìnima, mas a assertiva é bastante clara: ―Todos ellos llevan las marcas de ese uso amoroso tan intenso que puede causar, por la fuerza del desgaste, los mismos efectos que el odio‖ (LOJO, 2016). El más destrozado, ya sin tapa, es de lasCauseriesmansillianas: en este microcosmos, abigarrados y cambiantes como los colores y las formas de un caleidoscopio, giran y dialogan los personajes de una familia virtual que en muchos aspectos me parece tan real como la mía propia, que ha poblado mis novelas, y mis ya largas reflexiones sobre la Argentina, y sobre la Argentina y España. El mismo 26 Lucio Victorio Mansilla (héroe de La pasión de los nómades, paródica epopeya gallego-argentina), su hermana Eduarda (a quien dediqué Una mujer de fin de siglo), su tío Juan Manuel de Rozas, y su prima Manuelita, hija de don Juan Manuel (que recorren las páginas deLa princesa federal). (LOJO, 2016) Ainda que a narrativa lojeana seja quase sempre apresentada em tom familiar, talvez retomando a doçura por ela encontrada em Nubecita, el chanchito distraído, porquinho enamorado pelas nuvens, de sua primeira leitura infantil, María Rosa vive no entrelugar – e no intertertexto. Quando, adulta, afirma que a dicotomia familiar a levou à ―loucura literária‖, já havia lido ―o Quixote inteiro‖ e as Mil e uma noites aos doze anos. A justificativa de que “[...] esto no quiere decir que entendiera todo lo que decían, pero tampoco es necessário. Esas experiencias tempranas sirven para abrirte la cabeza, te presentan un camino abierto que quizás no podrás recorrer completo, pero te dejan la semilla”.(FERNÁNDEZ VIVAS, 2015), não esconde, antes explicita, o laço que irá enredar o receptor: se a leitora acompanhará de bom grado o Cavaleiro da Mancha na luta contra os moinhos de vento ou Aladim em seu tapete mágico, a autora saberá tecer a trama de cada narrativa com a delicada astúcia de Sheherazade e a alegre picardia cervantina. Assim como as deusas tecelãs, María Rosa Lojo literalmente tece o destino de suas personagens, sina esta muitas vezes associada às vestes a elas atribuídas em cada momento da narrativa. Senhora da escritura, deusa calderoniana no Grande Teatro do Mundo, Lojo distribui a cada uma ―apariencias/ que de dudas se pasen a evidencias.‖ (CALDERÓN DE LA BARCA, 2016, p.3). María Rosa Lojo, filha de mãe monarquista, urbana, castelhana e pai comunista, rural, galego, ―producto de un amor insólito‖ (LICITRA, 2001) parece ser a síntese da vitória feminista: cientista, divulga seus trabalhos por meio de publicações especializadas e de conferências em vários países; professora, disponibiliza informações e orienta alunas e alunos nos caminhos da pesquisa; narradora, questiona a historiografia literária, resgatando autoras de outros tempos, e oferece um contraponto à ‗história oficial‘, escrevendo sob a perspectiva dos periféricos. Consegue ainda conciliar a delicadeza dos olhos claros e do cabelo ruivo com os três filhos e o esposo que ―Construía, pintaba, cortaba y ensamblaba toda clase de materiales para formar seres antes inexistentes‖ (LOJO, 2014, p.220) e ―Modificaba el mundo, en los planos que proyectaba y en la textura concreta de los elementos terrestres‖ (LOJO, 2014, p.220), como o retrata ficcionalmente no último romance publicado: Todos éramos hijos. Ao buscar tecidos e tessituras, tramas e texturas – marcas do feminino na veste e na cicatriz, na máscara e no texto de Lojo, principalmente nos relatos de Amores insólitos de 27 nuestra historia (2001, 2011) e nos romances Finesterre (2005), Árbol de família (2010) e Todos éramos hijos (2014), é possível verificar o detalhado trabalho de composição da fiandeira-autora. Como o ―bonsai de letras argentinas‖ recebido pela adolescente Marìa Rosa em um aniversário, cada conto revela-se um extrato, reverberando registros que ecoam de outros, vindos do corredor da memória, como o que leva a personagem Rosa, de Árbol de Família, à casa de tio Benito, onde “se ha vuelto amarilla la ropa blanca y las mantas tosen asmáticas, ahogadas de naftalina” (LOJO, 2010a, p.137), no qual não há lugar para “poner allí una buena cama para dormir cuando te canses” porque “No hay descanso” (LOJO, 2010a, p.138). O passeio pela obra lojeana – romances e poemas em prosa (ou microficções, para não agredir aos ―fanáticos por classificações‖) – devo confessar que mais por prazer estético e fruição poética que por dever de ofício –, permitiu-me perceber que os fios com os quais María Rosa urde sua narrativa nos contos são também utilizados em outras formas de reinventar a história. Os trajes – ou a falta deles –, mais que caracterizações, por vezes recebem o status de personagem: ―Una ligera fragancia de miosótis y el vuelvo de una falda marfil anuncian a la condesa de Clermont-Tonnerre. Intenta incorporarse para besarle la mano, pero ella lo detiene. Acaso, teme Gabriel, por repugnancia‖ (LOJO, 2011a, p. 307). Muitas vezes, todo o perìodo é composto por ‗feminilidades‘ – todas construídas metonimicamente: ―El bastón del conde marca una divisória de aguas en el salón donde se codean terciopelos y casimires, perlas, piedras y plumas‖ (LOJO, 2011a, p.308). A fina ironia da autora, que em muitos aspectos dificulta a tradução dos contos por ela escritos, é foco de outros estudos, inclusive nesta Universidade. Incorporando o léxico referente ao tecido e ao tecelão, para descrever a morte voluntaria de Dona Ana, Lojo narra que esta havia aberto a porta proibida e devolvido a ―su Hacedor, como se devuelve un traje mal cosido a un sastre inexperto, la vida que nadie parece entregar con gusto‖ (LOJO, 2010a, p.280). À associação do Deus cristão (―Hacedor‖) a um alfaiate inexperiente, no fragmento, se seguirão outras, nem sempre positivas, pois no bordado lojeano todas as premissas identitárias, não apenas as relacionadas à construção de sua argentinidade, são questionadas. Face ao exposto, objetiva-se, neste trabalho, a partir de Esteves (2010, 2011, 2013), Cunha (2004), Rivas (2004) e da própria Lojo, demonstrar como a mulher vai construindo uma forma própria de se colocar na literatura histórica. E partindo-se do pressuposto de que é memorialística a obra de lojeana, pretende-se ainda evidenciar as marcas da memória em seu texto e de que forma ela estabelece o diálogo entre literatura e história, 28 entre passado e presente, entre o homem e a mulher. Assim, este trabalho, tem como questões norteadoras: em que medida a autora recria a história da Argentina para recriar-se argentina? Como ela realiza a busca para construir sua própria argentinidade, posto que em inúmeras entrevistas coloca o sentimento do "exilado-filho"? Também ela teria sido beneficiária do poder curativo do narrar (BENJAMIN, 1994; GAGNEBIN, 1985)? Justifica-se a escolha pela obra de María Rosa Lojo, como corpus desta tese, por seu destaque na literatura contemporânea não só argentina, mas também pelo painel que traça, em seus livros, do povo argentino e seu passado histórico. A presente pesquisa, metodologicamente de caráter bibliográfico e exploratório, cultiva principalmente os seguintes temas: literatura de autoria feminina hispanoamericana; narrativa de extração histórica e intrahistória literária e o apoderamento da palavra pela mulher (que a corporifica e cura), que serão expostos em duas partes, uma teórica e outra analítica. Estruturada em duas partes, a primeira delas inicia-se com uma resenha reflexiva sobre as relações entre literatura e história e o surgimento, ao longo do tempo, de gêneros híbridos que misturam os discursos ficcionais e históricos para chegar, já na contemporaneidade, naquele que pode ser chamado de narrativa de extração histórica, de acordo com a denominação de Trouche (2006), das quais o romance histórico e as narrativas históricas têm merecido certo destaque. Dentro desses gêneros híbridos, em que se misturam memória, ficção e história, é tecida a maior parte da obra de Maria Rosa Lojo. Em seguida, é traçado um relato panorâmico da história da conquista do espaço da mulher na sociedade, com especial destaque para o século XX, quando finalmente a mulher, após conquistar seu próprio lugar, consegue ser dona de sua voz – e quando a dupla conquista se dá, a luta pela manutenção desse direito/poder se acirra. Exemplo disso é a obra de Maria Rosa Lojo que, de forma metaficcional, conforme se trata de demonstrar no presente trabalho, não apenas evidencia com sua palavra tal espaço conquistado pela mulher, como conta em suas narrativas a história dessa e de outras lutas ao longo de vários séculos, especialmente na América hispânica. Num terceiro momento, busca-se verificar como, na literatura latino-americana, ao ir se apropriando de seu espaço, a mulher vai construindo uma forma própria de se colocar na literatura de extração histórica, ou seja, a mulher narradora conta a história da mulher na história e na história da literatura latino-americana, espaço em que está inserida a narrativa de María Rosa Lojo. 29 A segunda parte, que é o núcleo do trabalho, tem como eixo de conexão, principalmente, quatro obras de Lojo: Amores insólitos de nuestra historia (2001, 2011), livro de contos, e Finesterre (2005), Árbol de família (2010) e Todos éramos hijos (2014), romances, em que busca-se demonstrar como a escritora, nessas narrativas, urde o conceito de texto à metáfora do tecido e de que maneira o tecido/texto, associa-se à vestimenta, às máscaras e à performance dos personagens históricos e ficcionais, sempre relacionada ao ato da escritura e ao ato de apropriação do próprio corpo, especialmente no caso das mulheres e de outros personagens ex-cêntricos (HUTCHEON, 1991). O cotejo entre fragmentos de obras lojeanas, principalmente dos considerados romances ―autobiográficos‖ – Canción perdida en Buenos Aires al Oeste (1987), Arbol de Familia(2010) e Todos éramos hijos (2014) – indicia o poder curativo do trabalho com a tecelagem narrativa e encerra a segunda parte dessa monografia. Os textos de Showalter (1998), Rapucci (2011), Cunha (2004), Schmidt (1995, 2009, 2012) e Bonnici (2007), sobre estudos de gênero e autoria feminina; de Esteves (2010, 2011, 2013), Perkowska (2006), Trouche (2006) e Rivas (2004) relativos a narrativas de extração histórica; Crespo Buiturón (2008, 2009), Molina (2010), Luesakul (2012) e Marques (2016), no que tange à estética e da autoria lojeana, além de textos críticos da própria escritora, foram utilizados como principal suporte teórico da investigação. 30 1. DUAS PRECIOSAS DAMAS EM DIÁLOGO: LITERATURA E HISTÓRIA Estructura de las casas Dentro de un dedal había un salón de costura donde la abuela bordaba rosas cuando era una niña obligada a quedarse del revés de la luz para no que no la distrajesen los ruidos del mundo. Dentro de una foto del padre había un joven que regresaba a las montañas cruzando campos ardidos por la guerra, y había cuerpos acabados de fusilar pudriéndose en el fondo de las pupilas. Detrás de un guante viejo había un hermano desaparecido, en un pastillero vacío acechaba la locura; sobre los platos cascados comía una familia sentada en torno de una mesa de roble; dentro de un cofre la madre guardaba cartas de pretendientes, y con las cartas esperanza y pobreza y plumas que avanzaban despacio sobre el papel rugoso de las vidas pasadas. En tu historia había historias imposibles de limpiar y cuartos cerrados que no se abrirían nunca porque las estructuras de las casas son cajas chinas interminables y concéntricas y de la misma manera misteriosas. (María Rosa Lojo. Esperan la mañana verde. 1998) 31 1.1 LITERATURA E HISTÓRIA María Rosa Lojo, no Posfácio de Amores insólitos de nuestra historia (2001), afirma que o livro de contos com narrativas de extração histórica (TROUCHE, 2006) nasceu de uma nota de rodapé, encontrada durante uma pesquisa acadêmica. Di con esa mencionada ―nota de origen‖ en el Juan Facundo Quiroga de David Peña, un precursor del revisionismo que intentó devolver al Tigre de los Llanos parte de la humanidad y la racionalidad que le había quitado la genial mitificación sarmientina del Facundo (LOJO, 2011a, p.363). E acaba explicitando outra diferença de perspectivas e relatos no campo da história. Ainda que possa ser lido como ficção, não era essa, provavelmente, a proposta do ex-presidente da Argentina, Domingo Faustino Sarmiento, ao publicar Facundo ou Civilização e Barbárie, em 1845. David Peña foi o primeiro a dedicar uma obra inteiramente ao caudilho riojano depois do texto sarmientino – com Juan Facundo Quiroga, de 1906, e objetivou, além de reparar a imagem de Facundo como herói, despojando-a dos estigmas negativos de crueldade, irracionalidade e barbárie, reivindicar Facundo como representante lúcido da causa da Federação e da legitimidade dessa causa, por defender os justos direitos das províncias (LOJO, 2010, p. 5). Portanto, fatos e versões polêmicas, sem adentrar nas sendas ficcionais. ―Ojos de caballo zarco‖ foi o conto lojeano originado da nota de rodapé. Essa história remeteu a outros casos lidos ou ouvidos, e assim, também―Facundo y el Moro‖e―El Maestro y la Reina de las Amazonas‖, que trazem o Tigre de los Llanos como protagonista/antagonista ou pano de fundo vivenciando ―o que poderia ter acontecido‖, foram publicados em 2001 na primeira edição de Amores insólitos de nuestra história e republicados em 2011 (LOJO, 2011a, p. 363). As Causeries del Jueves, que tanto impactaram a jovem leitora María Rosa Lojo, foram publicadas por Lucio Victorio Mansilla entre 16 de agosto de 1888 e 28 de agosto de 1890, no jornal Sud-America, e posteriormente compiladas em nove volumes. A brevidade e o caráter autobiográfico, ensaístico e fragmentário característicos desse estilo, que quer dizer ―conversa‖ em francês e se difundiu entre os escritores da geração de 1880 na Argentina, nem seriam mencionados aqui se o grande tema dos textos não fossem o autor de Una excursión a los índios ranqueles (1870) e seu tio – Juan Manuel de Rosas. Marca indelével na origem da escritora, citada em todas as entrevistas, está a leitura do singelo Siete platos de arroz con leche, no qual Mansilla relata a longa espera pela reunião com o chefe de Estado/chefe de família, ao regressar de sua primeira viagem à Europa. Assim começa: 32 Desde que empecé a filosofar, o a preocuparme un poco del porqué y del cómo de las cosas, empezó a llamarme la atención que historia, es decir, que la palabra subrayada, tuviera no sólo muchas definiciones hechas por los sabios, sino también opuestos significados. Cicerón, decía: que era el testigo de los tiempos, el mensajero de la antigüedad; Fontenelle, fábulas convenidas, y Bacon, relato de hechos dados por ciertos. Hay, como se ve, para todos los gustos, inclinaciones y criterios, tratándose de lo que se llama historia en sentido elevado; y de ahí viene, sin duda, que historia implique también su poquillo de mentira, como cuando exclamamos: eso no es más que una historia; o: no señor, está usted equivocado, ahora le voy a contar la historia de ese negocio, de la glorifición del personaje A o B. Puede ser que sea cierto que la historia de un hombre no es muchas veces más que la de las injusticias de algunos, aunque hay ejemplos modernísimos en la historia, y bien podría probarse con una apoteosis, que la historia de alguien es la de sus contradicciones e incoherencias, la de sus ingratitudes e injusticias contra todos, por más que en su vida haya ciertos rayos de luz que iluminen el cuadro de alguna buena manía trascendental. (MANSILLA, 2006) (In)definições para história como ficção e não ficção e para história como fato e versão já nos dois primeiros parágrafos – ainda que ele mesmo fosse o narrador e o personagem histórico. Com juventude ancestral, as duas preciosas damas, Literatura e História, não dialogam em uma mesa de chá. São experientes enxadristas ou – cartas na mesa – com ―intuición. Segunda vista. [...]‖ e ―sus astucias de tahur‖ como Lady Cavendish, no conto ―Té de Araucaria‖ (LOJO, 2011a, p.250-251), hábeis jogadoras de pôquer, que pretendem apresentar/validar a verdade, ainda que travestida em blefe. Postura bastante apaziguadora é a do pesquisador Mario Miguel González, que assevera: ―o romance histórico é o gênero mais próximo de fazer da literatura narrativa a história-não-oficial dos povos, particularmente dos vencidos a quem a história habitualmente negou voz‖ (GONZÁLEZ, 2000). Do mesmo modo, Flávio Loureiro Chaves (1999, p.9) afirma que a fronteira entre história e literatura ―não separa; antes, determina o ponto de convergência no qual podemos observar a unidade da obra literária‖, lição, segundo ele, ensinada no Brasil primeiramente por Antônio Cândido (1965, p.4): [...] só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. Também conciliadora é Luz Marina Rivas (2004, p.61), que concebe o romance histórico como ―un concepto dinámico, cuyas realizaciones formales dependen de decisiones de escritura relacionadas con los cánones estéticos de una época dada y que surgen en momentos históricos de crisis que producen la pulsión de la búsqueda de la identidad‖. Para a pesquisadora venezuelana, não é possível haver um único cânone formal para um gênero com 33 vitalidade tão extraordinária ao longo do tempo, especialmente na América Latina. Assim, quando a ―conciencia histórica se hace presente en un texto que reescribe la historia de personajes anónimos y de sus vidas privadas torcidas por la historia colectiva, [...] nos encontramos en la presencia de un sub-tipo de novela histórica: la novela intrahistórica” (RIVAS, 2004, p.61), termo cunhado pelo ensaísta (e um dos maiores representantes da Geração de 98 espanhola) Miguel de Unamuno e ressemantizado por Biruté Ciplijaus Kairé, Glória da Cunha, María del Carmen Bobes Naves e pela própria Luz Marina Rivas, para caracterizar os romances que recriam o passado a partir de uma perspectiva alheia ao poder e aos grandes acontecimentos políticos e militares (RIVAS, 2004, p.61). Ao analisar as condições do nascimento do romance histórico como gênero, no começo do século XIX, Perkowska (2008, p.30) cita o crítico literário argentino Noé Jitrik (1995, p.17), que identifica duas pulsões ou tendências favoráveis ao processo: a) o questionamento que um indivíduo se faz sobre sua relação com a sociedade (e que se torna mais urgente quando a diminuição da repressão é acompanhada por incertezas políticas e econômicas); e b) a busca da própria definição de identidade (característica de períodos de mudanças). Obviamente, a explosão de crises econômicas produz incertezas e angústia social, no entanto, continua a ensaìsta, para Jitrik ―crisis‖ é um conceito produtivo porque estimula o imaginário social, conduzindo-o a uma saída (PERKOWSKA, 2008, p.31). O dinamismo com que o romance histórico contemporâneo ressurge do estado residual da década de 1980 permite inferir que se trata da resposta a uma crise, a mudanças complexas e profundas: a forma nova (ou renovada) do gênero sinaliza que o imaginário social canalizou suas buscas tornando-se, nas palavras de Marìa Cristina Pons (1996, p.22), ―testigo de la crecente distancia entre las promesas del capitalismo y la realidade del presente histórico en las que se enclavan‖. A ensaísta explicita que, refutando Menton (1993, p.48), para quem o quinto centenário do descobrimento da América foi o catalisador do auge do romance histórico (sendo um subgênero essencialmente escapista), Pons (1996, p.51) afirma que é o caráter analítico do romance histórico o motivo para a volta ao passado – mais que escapar de um presente desagradável, o que se deseja é confrontá-lo criticamente. O estudioso brasileiro Antonio R. Esteves (2007, 2010) discute os limites entre Literatura e História em vários artigos/capítulos de livros e elabora uma interessante síntese do percurso trilhado pelas narrativas de extração histórica na obra O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975- 2000), na qual está embasado, primordialmente, esse subcapìtulo. Para o pesquisador, ―é quase consenso generalizado que a história e a literatura têm algo em comum: ambas são 34 constituídas por material discursivo, permeado pela organização subjetiva da realidade feita por cada falante, o que produz infinita proliferação de discursos‖ (ESTEVES, 2010, p.17). Tal proximidade, no entanto, gera uma ―grande dúvida epistemológica: será possìvel conhecer ou representar a história de maneira exata? Ou tudo não passa de uma questão de ponto de vista?‖ (ESTEVES, 2010, p.17). No intuito de responder à questão, analisa duas hipóteses excludentes: a) ―a história, como a ficção, com seu discurso narrativamente organizado pelo ponto de vista do historiador também é uma invenção‖; ou b) ―pode-se chegar à verdade histórica por meio da literatura, discurso tradicionalmente tido como fruto da criatividade de um escritor historicamente localizado em um determinado tempo e espaço a partir do qual enuncia‖ (ESTEVES, 2010, p.18). Retomando o conceito de representação totalizadora, firmado por Maarten Steenmeijer (1991, p.25), Esteves (2010, p.18) afirma que ―não se trata de substituir a história pela ficção, mas possibilitar uma aproximação poética de todos os pontos de vista, contraditórios mas convergentes‖ e, em seguida, associa-se à ensaísta brasileira Heloìsa Costa Mìlton (1992) ao avaliar que ―a literatura pode ser considerada uma leitora privilegiada dos signos da história‖ (ESTEVES, 2008, p.18). Entre 335 a.C. e 323 a.C., Aristóteles, em sua Poética, definiu como ‗imitação‘ a essência da poesia, mimesis capaz de propiciar conhecimento e prazer ao ser humano – estabelecendo, assim, que ao historiador, circunscrito à verdade, cabe tratar ―daquilo que realmente aconteceu‖, e ao literato, no campo da verossimilhança, ―daquilo que poderia ter acontecido‖ (ESTEVES, 2010, p.18). No entanto, ―foi apenas no século XIX que a separação entre ambos os discursos parece ter ocorrido de fato. E mesmo assim, tal divorcio nem sempre foi muito claro ou de longa duração‖, assevera Esteves (2010, p.18). São inúmeros os exemplos de textos que podem ser considerados, ao mesmo tempo, obras literárias e documentos históricos. ―Boa parte da história grega chegou até nós por meio dos versos de Homero, que canta em suas epopeias a história dos povos gregos. O mesmo ocorre com a história dos romanos, divulgada, entre outros, pela Eneida, de Virgìlio‖, explicita (ESTEVES, 2010, p.18). Para Esteves, o mesmo ocorreu na Idade Média, com ―o Cantar de mío Cid, poema fundador da literatura espanhola, ou aChanson de Roland, épico da cultura francesa‖, sendo, desde a Idade Antiga, ―muito difìcil deslindar fronteiras‖. Interação semelhante ocorreu com os textos fundacionais americanos, pois os ―textos relativos à conquista da América, escritos pelos primeiros europeus que aqui colocaram os pés [...] são estudados como literatura e ao mesmo tempo como história‖ (ESTEVES, 2010, p. 18-19). 35 Ainda que a memória seja um ―elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivìduos e das sociedades de hoje‖ (LE GOFF, 2013, p.435), com o tempo, fica bastante difícil separar o real e o fictício, pois ―a memória falha. O ser humano passa a misturar o que realmente aconteceu com o que pensa ter acontecido, ou com aquilo que desejaria que tivesse ocorrido ou, sobretudo, com o que convém que se pense que aconteceu‖ (ESTEVES, 2010, p. 19). Mario Vargas Llosa (1996), romancista e político, reflete muito sobre as relações entre história e literatura. Assim, no capìtulo ―La verdad de las mentiras‖, que integra a obra homônima, ele discute ―a verdade que pode ser dita por meio de mentiras, ou seja, da ficção. Todos sabemos que os romances mentem, mas é por meio dessa mentira que eles expressam uma curiosa verdade que só pode expressar-se assim dissimulada, encoberta, disfarçada daquilo que não é.‖ Citando textualmente Vargas Llosa (1996, p.12), Esteves (2010, p.20) conclui: ―As mentiras dos romances, então, nunca são gratuitas: preenchem as insuficiências da vida‖. E, ao preencher as lacunas da vida, estabelece-se o paradoxo: [...] recheada de mentiras – e talvez por isso mesmo –, a literatura conta histórias que a história escrita pelos historiadores não sabe, não quer ou não pode contar. Os exageros da literatura servem para expressar verdades profundas e inquietantes que só dessa forma poderiam vir à luz. Só a literatura – e poderíamos concluir assim as reflexões de Vargas Llosa no referido ensaio – dispõe das técnicas e poderes para destilar esse delicado elixir da vida: a verdade que se esconde nos corações humanos(ESTEVES, 2010, p. 20). Um ano antes da publicação do livro de Vargas Llosa, o argentino Abel Posse, que coleciona vários prêmios da literatura hispano-americana, afirmou, em uma entrevista publicada na Revista Iberoamericana que seu ―trabalho literário tinha necessariamente que se valer da historiografia para poder negá-la quando fosse preciso, modificá-la ou reinterpretá- la‖ (GARCÍA PINTO, 1989, trad. nossa). Ao tratar de temas polêmicos no que tange à colonização da Hispano América, Posse, desmitificando a história com o intuito de descobrir uma visão mais justa, elabora ―uma espécie de meta-história para tentar compreender nossa época e nossas raìzes‖ (ESTEVES, 2010, p.21). E, ―explicitamente tenta fazer uma revisão histórica oficial da América, que na maior parte das vezes foi escrita pelos vencedores, pelos dominadores‖ (ESTEVES, 2010, p.21). Segundo Posse, cabe à literatura, enfim, a tarefa fundadora que a transforma em uma grande usina de criação de realidades novas. Por meio de seu fazer legitima-se o espaço humano americano que antes se interpretava sob o ponto de vista puramente europeu (POSSE, 1992) – a Literatura, então, além de estritamente estética, cumpre uma função desmistificadora, pois deve desvelar o encobrimento consciente e inconsciente da realidade histórica americana, dando voz aos invisibilizados. 36 Ampliando o panorama latino-americano das reflexões sobre as interfaces da ficção literária e da realidade histórica, Esteves (2010, p.22) apresenta as contribuições do mexicano Carlos Fuentes (1992, p.293), ensaísta e romancista histórico, que por muitas décadas escreveu sobre a interação entre literatura e questões sócio-político-ecônomico- culturais da Latino América. Para o autor de Terra Nostra, de 1975, e de Cristóbal Nonato, de 1987, por demonstrar-se capaz de criticar a si mesma, a literatura teria conquistado o direito de criticar o mundo. Igualando a realidade expressa pela imaginação verbal à expressa pela narrativa histórica, Fuentes (1992, p.293), considera que a literatura, constantemente renovada, seria a proclamadora de um mundo novo, pois face às turbulências do século XX, a história teria se convertido em probabilidade. ―A literatura, no entanto, pode ser o contratempo e a segunda leitura da história‖, afirma Esteves (2010, p.22) que, citando o ensaìsta mexicano, continua: ―violação narrativa da certeza realista e seus códigos [...] o romance ibero-americano é a criação de outra história, que se manifesta na escritura individual, mas que também propõe a memória e o projeto de nossa comunidade em crise‖ (ESTEVES, 2010, p.22). Em seis de outubro de 1997, Carlos Fuentes participou do programa televisivo brasileiro Roda Viva, da TV Cultura, sendo entrevistado por oito jornalistas e literatos (Matinas Suzuki, Antônio Carlos Pereira, Eric Nepomuceno, Igor Fuser, John Dwyer, Bella Josef, Rinaldo Gama e Nélson Ascher). Quando instado a falar sobre um novo ciclo de narrativas, o escritor mexicano afirmou que a partir dos ingredientes mito, memória e esquecimento ―se imagina o passado e ainda se dá ao passado a oportunidade que ele não teve. Dar uma segunda oportunidade ao tempo é uma tarefa fundamental do romancista‖ (BRITO, 1997) e prosseguiu: Geralmente, a literatura ocidental assimilou seu passado e tem que imaginar o futuro, como Júlio Verne, mas nós somos Júlios Vernes do passado histórico. Temos que recuperar todo esse passado não escrito, esse passado escamoteado pela censura, pela Inquisição, pelo esquecimento e por muitos fatores.E daí o poder de muitos romances, como Cem anos de solidão [de Gabriel García Márquez, publicado em 1967] [...] que é um enorme esforço de memória, de recuperação do passado, de dar imaginação ao não-dito do passado. Isso é fundamental para entender a novelística atual do continente (BRITO, 1997). Outro escritor hispano-americano contemporâneo citado por Esteves (2010, p.22- 25) é o argentino Tomás Eloy Martínez, oriundo das prensas jornalísticas. La novela de Perón (1985) e Santa Evita (1995) estão ―situados nessa zona sombria localizada entre a literatura e a história que ele, no entanto, faz questão de classificar como literatura‖ (ESTEVES, 2010, p.22), e trouxeram fama ao argentino, que acreditava que o escritor pudesse reescrever a história. Posteriormente tendendo ao nihilismo, Martìnez, afirma em ―Ficção e história: apostas contra o futuro‖, que ―escrever já não é opor-se aos absolutos, porque nesse mundo já javascript:; 37 não há absolutos. O que sobreviveu a tantas crises – políticas, econômicas e de representação, principalmente – foi o vazio‖. Atualmente, ―desentranhar as mentiras da memória criando uma contramemória‖ seria contraproducente, pois não é mais necessário ―estar a todo instante denunciando que a história oficial foi manipulada pelo poder dominante, que cassou a palavra dos dominados, e que é necessário reescrevê-la, reconquistando essa palavra‖. Além da contraposição à versão oficial, o que preencheria o vazio contemporâneo seria ―uma série de diferentes versões de um determinado fato histórico, que mudam constantemente de acordo com o enfoque adotado‖. Com fronteiras cada vez mais permeáveis, ―a equação romance/história deixou de ser um paradoxo nos últimos tempos‖ (MARTÍNEZ, 1996), restando poucas dúvidas ―de que ambas, história e ficção, são escritas não mais para modificar o passado, mas sim para corrigir o futuro, para situar esse porvir no lugar dos desejos‖ (MARTÍNEZ, 1996). Em entrevista mais recente a Ariel Palacios (2010), Tomás Eloy Martìnez poeticamente afirma que o ―gelo dos dados históricos se derrete com o sol da narração‖ e que a ―história, em geral é um pêndulo fatal, oscilando entre o branco e o preto, que não deixa lugar para os tons cinzas. Mas os cinzas existem, escondidos pelos ciúmes da história‖ (PALACIOS, 2010). As ficções sobre a história, assevera Martìnez, ―recuperam os sonhos de uma comunidade, e [...] permitem que esses sonhos regressem à comunidade, transformados em cultura e tradição‖ – desse modo, ―temos que ver a história como cultura, não só como realidade. É o que a própria História faz com a Literatura‖ (PALACIOS, 2010). O autor de Santa Evita chama à atenção o que considera mais importante nas ficções escritas sobre a história: saber que ―as tradições e os mitos são um tecido, cujos fios mudam incessantemente a forma e o sentido do desenho‖. Nesse sentido, a reconstrução do passado histórico recupera o imaginário permitindo que a comunidade, depois de apoderar-se desses valores, lhes dê ―vida de outra forma‖ (ESTEVES, 2010, p.24). Ao reconstruírem versões, opondo-se ao poder, as ficções sobre história sinalizam para adiante, anunciando ―sempre novos caminhos que garantam a pluralidade das culturas organizadas em um mundo multipolar‖. Sendo a literatura ―leitora privilegiada dos signos da história, [...] é cerne de renovação‖ (ESTEVES, 2010, p.24) – por vezes infinita, elucida Martínez: Há livros que nunca terminam de ser lidos, nem de ser escritos, porque a história é como um rio, está num movimento incessante. As mãos que movem esse tear da história não são só do autor, são muitas, são de cada um dos leitores e vêm de infinitas margens, que fica difícil de dizer de que é esta ou aquela página. É assim como o passado reescreve nas novelas, as histórias do porvir (PALACIOS, 2010). Retomando Martìnez (1996), Esteves (2010, p. 24) esclarece que ―escrever e refletir sobre a escritura [...] sempre foi uma tensão extrema na América Latina, onde até a 38 história e a política nasceram como ficção‖. Associando os relatos ficcionais a atos de provocação que ―tratam de impor ao leitor uma representação de realidade que lhe é alheia‖, o jornalista/literato argentino esclarece que a escritura é ―ao mesmo tempo, uma profecia e uma interpretação do passado‖ (2010, p. 24). Nesse embate, há que se perceber, nas palavras de Esteves (2010, p.24), que o ―discurso histórico, no entanto, não é uma aporia: é uma afirmação. Onde há uma incerteza, ele instala (ou finge instalar) uma verdade. Onde há uma conjectura, acumula dados‖; mas a única verdade possìvel nos tempos atuais, continua o ensaìsta brasileiro, ―é um relato da verdade, relativa e parcial, que há na consciência e nas buscas do narrador‖ (ESTEVES, 2010, p.24). Analisando o jogo de xadrez (ou de pôquer) das damas História e Literatura, Heloísa Costa Milton e Antonio R. Esteves (2007, p.12) inferem que Embora a visão positivista do século XIX tivesse atribuído à história um caráter científico e reduzido sua dimensão épica, mítica e dramática, muitos historiadores do século XX postulam que a explicação e a interpretação, atividades inerentes a esse campo do saber, predominam sobre o mero relato dos fatos. A pretensa objetividade do fazer histórico deixa evidente critérios subjetivos, como a seleção de documentos e fontes utilizados, o ponto de vista adotado pelo historiador, os métodos escolhidos, os objetivos propostos e até mesmo a própria estrutura narrativa, que pouco difere daquela utilizada pelos romancistas. Polêmicas ainda persistem. A seguir, ainda tendo por base os textos de Antonio R. Esteves, serão apresentadas algumas considerações dos principais estudiosos do tema. Retomando Hayden White em Meta história: a imaginação histórica do século XX (1990) ou em Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, até o início do século XIX (1994), Esteves (2010, p.26) lembra que ―a historiografia era considerada uma arte narrativa, reconhecendo-se, em geral, sua natureza literária‖. A associação da verdade com o fato histórico, ocorrida a partir do século XIX, entretanto, delegou ―à ficção o papel de fantasia ou invenção, o que, se não negava a própria história, pelo menos dificultava o seu entendimento‖ (2010, p. 26). Para Paul Ricoeur, principalmente em OTempo e a Narrativa, 1994, o intercruzamento entre o real e o ficcional se dá a partir da temporalidade, pois ―tudo o que se conta acontece no tempo, e o que aconteceu no tempo é possìvel de ser contado‖ (ESTEVES, 2010, p.26). Inscrevendo-se, portanto, na ―categoria temporal na medida em que se articula na forma discursiva do enredo [...] tanto a narrativa histórica quanto a narrativa ficcional seriam formas simbólicas‖ (ESTEVES, 2010, p.26). A própria concepção de história transformou-se no decorrer dos tempos. Seja a partir do New criticism norte-americano ou da francesa Escola dos Annales, foi exigido da história maior integração com outras ciências humanas, especialmente a Sociologia e a Geografia, e até mesmo com a as Artes, explicita Esteves (2010, p.26), que continua, agora 39 citando o historiador Peter Burke (1992, p.10), para quem tal processo ―se contrapõe à história positivista tradicional rankiana vigente no século XIX‖. O relativismo cultural e o princìpio de que tudo tem história forneceram os subsídios para a nova proposta e, de acordo com Burke (1992, p.11), ―a base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou culturalmente construìda‖. Essa concepção, entretanto, não foi consensual. Insurgindo-se contra a excessiva amplitude do conceito ―história‖, vários estudiosos de formação marxista, historiadores tradicionais, se contrapuseram à ascensão da história social, considerada pelo inglês Eric Hobsbawm (1998, p.203) ―esse recipiente amorfo para tudo, desde mudanças no físico humano até o simbólico e o ritual, e sobretudo para as vidas de todas as pessoas, de mendigos e imperadores‖. Posição intermediária ocuparia o arqueólogo e historiador francês Paul Veyne (1998, p.12) que, embora tenha afirmado em Como se escreve a história, de 1971, que ―os historiadores narram os fatos reais que tem o homem como ator: a história é um romance real‖, assegura que ―a história está assentada na narrativa‖. Isso reitera o que foi postulado por Aristóteles, explicitando a dicotomia entre o ficcional e o histórico. (ESTEVES, 2010, p.27). De acordo com Esteves (2010, p.28), Marcia Valéria Zamboni Gobbi (2004, p.39), apresenta sinteticamente o percurso das relações entre literatura e história desde Aristóteles, pois ―[...] para Platão, o poeta não é capaz de atingir a verdade, sequer conhecer a realidade‖. A pesquisadora informa que os reflexos da visão aristotélica puderam ser percebidos até o século XIX e que os desdobramentos das relações entre a história e a literatura embasaram o pensamento de vários filósofos que postularam a cientificidade da história. O alemão Hegel (1770-1831), coincidindo o desaparecimento da época heroica com o início da historiografia, distinguiu o modo de criação do ficcionista e do historiador, sendo que este ―deve narrar o que existe, e tal como existe, positivamente, sem as deformações arbitrárias da criação poética‖ afirma Esteves (2010, p.29). Assim se delimitava o ambiente cultural que embalou o nascimento do romance histórico, teorizado posteriormente pelo filósofo marxista húngaro György Lukács (1885- 1971) e por seu contemporâneo e também filósofo marxista, o russo Mikhail Bakhtin (1895- 1975). Lukács entendia ―o romance moderno como uma espécie de epopeia da burguesia‖ e Bakhtín, com forte embasamento formalista e talvez o maior teórico do romance no século XX, preferia defini-lo como ―oposição à épica, narrativa do passado absoluto, mìtico, fechado e imutável‖ (GOBBI, 2004, p.51). Para Bakhtin, o gênero romance reinterpreta ideologicamente o passado e tem na instabilidade, e não no acabamento semântico, ―na luta 40 com outros gêneros e consigo mesmo seus traços básicos‖. O plurilinguismo e a multiplicidade de vozes inerentes a esse gênero tornam-no permeável e permitem a interação com outras linguagens, geralmente estilizadas e paródicas, sendo, ao mesmo tempo, ―marca [...] de inferioridade, de rebaixamento com relação ao gênero épico‖ e ponto fulcral para ―no campo da representação, a atualização do objeto‖, contribuir para a dessacralização do mesmo, ensina Esteves (2010, p.29-30). A partir de Roland Barthes (1915-1980), os estruturalistas ―antecipam e permitem as reflexões dos pós-modernistas, que passam a encarar a história como discurso, ou construção discursiva e cultural‖ (Esteves, 2010, p.29-30). Ao relacionar história e literatura, Marcia Gobbi (2004, p.56) salienta ser fundamental a ―abordagem do fato histórico enquanto produto de um processo de significação‖, concepção divulgada pela ensaísta canadense Linda Hutcheon e por outros estudiosos de tais relações na produção ficcional contemporânea (ESTEVES, 2010, p.30). Citando Mikhail Bakhtin (1990, p. 110), para quem o romance é um gênero híbrido porque nele duas vozes caminham juntas e lutam no território do discurso, Esteves (2010, p.30) assegura que ―muito mais que o romance tout court, o que chamamos de romance histórico é um gênero narrativo híbrido, surgido de um processo de combinação entre história e ficção‖. Para o crìtico espanhol Garcìa Gual (2002, p.11), trata-se de um gênero bastardo e ambíguo, repercute Esteves (2010, p.30), que adverte: ―embora desperte mais interesse no homem contemporâneo que quaisquer outras formas mais objetivas de linguagem, não se deve esquecer de que o substantivo nessa expressão é o romance‖, a ficção (mesmo que profundamente embasada em acontecimentos ou personagens históricos). Esse gênero hìbrido, gerado como a ‗epopeia da burguesia‘, foi delineado por Sir Walter Scott (1771-1832), durante o Romantismo. A maior percepção histórica das pessoas dessa época (e, consequentemente, o desejo pela leitura dessa variante narrativa) foi decorrente da Revolução Francesa e das campanhas napoleônicas, entre outros eventos que marcaram o início do século XIX, explicita Esteves (2010, p.31). Em O romance histórico (1936-1937), Lukács aponta Waverley, de 1814, como marco inaugural do romance histórico, popularizado posteriormente com a publicação, em 1819, de Ivanhoé. Dois princípios norteiam o esquema do romance histórico criado por Scott (que se impôs como modelo), ensina Lukács (1977): a) a ação deve ocorrer em ―um passado anterior ao presente do escritor, tendo como pano de fundo um ambiente rigorosamente reconstruído, onde figuras históricas ajudam a fixar a época‖ e b) na trama, com personagens e eventos fictìcios, deve ser introduzido ―um episódio amoroso geralmente problemático, cujo desenlace pode variar, 41 ainda que, na maioria das vezes, termine na esfera do trágico‖. Salienta, ainda, que a ilusão de realismo e a possibilidade de fuga de uma realidade insatisfatória vivida pelos leitores deveriam estar bastante equilibradas no romance histórico romântico, que apresentaria realidade e fantasia amalgamadas no espaço discursivo (ESTEVES, 2010, p.32). Para o crítico espanhol Amado Alonso (1984, p.26), embora o romance histórico não tenha mudado substancialmente ao longo do século XIX, visto que os escritores realistas praticamente seguiram o modelo romântico, algumas transformações devem ser destacadas. Esteves informa que a principal mudança ocorre ainda na primeira metade do século XIX, quando Alfred de Vigny (1797-1863), assentando o conceito de história em ações individuais (e não no movimento coletivo), publica Cinq-Mars (1826), na qual os personagens históricos exercem o protagonismo, em desacordo com o modelo scottiano. Algumas obras de Victor Hugo (1802-1885), ao exaltarem heróis reais com o intuito de replicar no presente caótico as lições morais do passado, exibem o mesmo tipo de ruptura, ainda que a concepção histórica deste seja mais progressista que a de Vigny, ―já que o autor de O corcunda de Notre Dame (1831), ao mesmo tempo em que eleva certos heróis, também oferece às massas um papel que não se encontra na produção de outros autores‖ (ESTEVES, 2010, p.32). Outras transformações significativas têm lugar no Realismo: Gustave Flaubert (1821-1880), ao localizar a ação de Salammbô, de 1862, na Cartago antiga e ali retratar reivindicações classistas relacionadas ao capitalismo do século XIX, quebra o paradigma scottiano (de situar a ação na Idade Média, no próprio país do escritor) e possibilita a contemplação de locais e tempos sem estreita relação com as vivências do autor – sendo esta a grande contribuição do literato francês ao romance histórico (ESTEVES, 2010, p.33). Também estabelece novos caminhos o russo Leão Tolstói (1828-1910), ao narrar com fluidez e vitalidade o imbricamento entre Literatura e História – Guerra e Paz publicado entre 1864 e 1869, é o modelo da ―moderna epopeia da vida popular‖, de acordo com Lukács (1977, p.100), que considera os grandes momentos históricos de crise como favoráveis ao questionamento sobre o próprio sentido da história. Assim, Tolstói teria escolhido brilhantemente a sua conjuntura histórica: a invasão da Rússia pelos soldados de Napoleão Bonaparte, geradora de uma crise que se imiscuiu nos âmbitos doméstico, familiar e amoroso de personagens fictícias comuns, não afeitas a atos heroicos, e de personagens históricas, retratadas em posição secundária. A descrição da trajetória do povo no romance russo é mais complexa que nas obras do escocês Walter Scott ou nas do escritor italiano Alessandro Manzoni (1785-1873), que enfatiza inequivocamente a ―esfera coletiva como verdadeiro 42 fundamento do processo histórico, procedimento que compõe um realismo eminentemente visceral‖ (ESTEVES, 2010, p.33). Esteves (2010, p.34) reputa à essência híbrida do romance a crise vivenciada pelo romance histórico desde a origem, sendo as concepções do romance constantemente renovadas devido ao imbricamento com a sociedade e às ―mudanças epistemológicas que se verificam na concepção de história‖. Assim, no inìcio do século XX, alterações na concepção do discurso histórico e do próprio modo de historicizar, bem como a revolução das vanguardas artísticas, acabaram delineando uma forma diferente de composição ficcional, apresentando o ―autor como uma espécie de criador de mundos, dentro dos quais ele estabelece as normas que