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UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de
Mesquita Filho” - INSTITUTO DE ARTES
Programa de Pós-Graduação em Artes
Mestrado
LÍVIA KRASSUSKI BARBOZA
A SANTA, A PROSTITUTA E A AMANTE
INFELIZ: AS IMAGENS SIMBÓLICAS DO
FEMININO DE EDVARD MUNCH, SOB
ABORDAGEM DA PSICOLOGIA ANALÍTICA
DE C. G. JUNG
São Paulo
2009
1
LÍVIA KRASSUSKI BARBOZA
A SANTA, A PROSTITUTA E A AMANTE
INFELIZ: AS IMAGENS SIMBÓLICAS DO
FEMININO DE EDVARD MUNCH, SOB
ABORDAGEM DA PSICOLOGIA ANALÍTICA
DE C. G. JUNG
Dissertação apresentada ao Instituto de
Artes da UNESP, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como
requisito parcial exigido pelo Programa
de Pós-Graduação em Artes (área de
concentração: Artes Visuais; linha de
pesquisa: Abordagens teóricas,
históricas e culturais da arte) para
obtenção do título de Mestre em Artes.
Orientador: Prof. Dr. José Leonardo do
Nascimento
Coorientadora: Profa. Dra. Sonia Maria
Bufarah Tommasi
São Paulo
2009
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do
Instituto de Artes da UNESP
Barboza, Lívia Krassuski, 1971-
B239s
A santa, a prostituta e a amante infeliz : as imagens simbólicas
do feminino de Edvard Munch, sob abordagem da psicologia
analítica de C. G. Jung / Lívia Krassuski Barboza. - São Paulo :
[s.n.], 2009.
104 f. : il. color.
Bibliografia
Orientador: Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento.
Coorientador: Profa. Dra. Sonia Maria Bufarah Tommasi.
Dissertação (Mestrado em Artes) - Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Artes.
1.Arte e psicologia. 2.Munch, Edward, 1863-1944 – crítica e
interpretação. 3.Jung, C.G., (Carl Gustav), 1875-1961.
I.Nascimento, José Leonardo do. II. Tommasi, Sonia Maria
Bufarah. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III.
Título.
CDD - 701.15
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LÍVIA KRASSUSKI BARBOZA
A SANTA, A PROSTITUTA E A AMANTE
INFELIZ: AS IMAGENS SIMBÓLICAS DO
FEMININO DE EDVARD MUNCH, SOB
ABORDAGEM DA PSICOLOGIA ANALÍTICA
DE C. G. JUNG
Dissertação apresentada ao Instituto de
Artes da UNESP, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como
requisito parcial exigido pelo Programa
de Pós-Graduação em Artes (área de
concentração: Artes Visuais; linha de
pesquisa: Abordagens teóricas,
históricas e culturais da arte) para
obtenção do título de Mestre em Artes.
Orientador: Prof. Dr. José Leonardo do
Nascimento
Coorientadora: Profa. Dra. Sonia Maria
Bufarah Tommasi
Banca examinadora:
Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento
(presidente)
Prof. Dr. José Jorge de Morais Zacharias
Prof. Dr. Omar Khouri
Dissertação defendida e aprovada em 21 de agosto de 2009.
3
A todos aqueles que corajosamente fazem uso da criatividade para expressar
seus sentimentos e emoções mais profundos, em busca
do equilíbrio psíquico e da sanidade mental.
Para minha mãe, Aline, e meu irmão, Otávio, com todo meu amor.
4
AGRADECIMENTOS
Aos Mestres, particularmente àqueles cuja inestimável contribuição
possibilitou que este trabalho chegasse a termo: Profa. Dra. Claudete Ribeiro,
que foi minha orientadora até a qualificação, por toda a atenção que me
dispensou, pelos livros que gentilmente me cedeu, por ter acreditado neste
projeto e me dado a chance de levá-lo adiante; Profa. Dra. Sonia M. B. Tommasi
e Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento, que posteriormente assumiram, de
forma generosa, a orientação desta pesquisa e cujas colocações, desde a
qualificação, foram essenciais para o amadurecimento desta dissertação; Prof.
Rui Sá Silva Barros, pelo apoio, interesse e pelas proveitosas indicações
bibliográficas; Prof. Denis D. B. Molino, por ter me ajudado a encontrar os diários
de Munch.
À minha família, pelo apoio e incentivo, em especial a meu pai, Almiro,
pela versão em inglês do resumo e a meu irmão, Otávio, pela revisão
ortográfica;
A Rogério Bruhns Libutti, que me fez atinar o significado da natureza
feminina e me trouxe estímulo para finalizar este trabalho;
Aos amigos e todos os que me auxiliaram a encontrar o “caminho do
meio”, fora do qual nenhuma realização é possível, especialmente a Newton
Yamassaki, Augusto Vix, Luiz Carlos Kozlowski, Nagariana Devi, Liliam Jousseph,
Juan Ribaut e Dárcio Cavallini.
5
“Se quisermos compreender o que significa ‘alma’ devemos incluir o mundo.”
Carl Gustav Jung
“O simbolismo transforma o fenômeno em ideia, a ideia em imagem, de tal modo
que a ideia permanece sempre infinitamente ativa e inatingível na imagem e,
mesmo expressa em todas as línguas, permaneceria indizível.”
Johann Wolfgang von Goethe
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RESUMO
Tendo por principal referencial teórico os conceitos de Carl Gustav Jung
(1875-1961) sobre os arquétipos e o inconsciente coletivo, neste trabalho
proponho-me mostrar como o conteúdo simbólico universal se manifesta na
expressão artística individual do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944).
Coloco em foco imagens que retratam a mulher e as relações afetivas
entre o homem e a mulher que o artista produziu na segunda fase de sua
carreira, entre 1889 e 1908. Não obstante referirem-se à visão pessoal do
artista, revelam simultaneamente a “nova mulher” que emergia na sociedade de
seu tempo.
Desta forma, ao contextualizar a produção artística de Munch e analisar
seu conteúdo simbólico, proponho-me mostrar como a obra de arte pode
expressar, muito além dos conflitos particulares de seu autor, o espírito da época
em que foi criada, mediante temas universais.
PALAVRAS-CHAVE: Edvard Munch; Jung e a obra de arte; simbolismo em
Munch.
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ABSTRACT
Having as main theoretic reference the concepts of Carl Gustav Jung
(1875-1961) on the archetypes and the collective unconscious, in this work I
propose to demonstrate how the universal symbolic tenor is manifested in the
individual artistic expression of the Norwegian painter Edvard Munch (1863-
1944).
I put into perspective images that portray the woman and the relations of
affection between man and woman, that the artist produced in the second phase
of his career, between 1889 and 1908. Notwithstanding those refer to the
personal view of the artist, they simultaneously bring forth the “new woman”
that emerged in the society then.
Thus, in contextualizing Munch´s artistic production and analyzing its
symbolic content, I propose to show how the work of art can express, far beyond
the private conflicts and idiosyncrasies of its author, the spirit of the time in
which it was created, through universal themes.
KEY-WORDS: Edvard Munch; Jung and the work of art; Symbolism in
Much.
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LISTA DE IMAGENS
1. Paul Gauguin, A visão do Sermão, a Luta de Jacó com o Anjo, 1888, óleo
sobre tela, 73 x 92 cm. National Galleries of Scotland, Edinburgh, Escócia.
Fonte:, acesso em ago/08.
2. Edvard Munch, Karl Johan ao Anoitecer, 1892, óleo sobre tela, 84,5 x 121
cm. Coleção Rasmus Meyer, Bergen, Noruega. Fonte:
, acesso em ago/08.
3. Edvard Munch, Ansiedade, 1894, óleo sobre tela, 94,0 x 74,0 cm. Munch-
museet, Oslo, Noruega. Fonte (acesso em ago/08):
4. Edvard Munch, Gólgota, 1900, óleo sobre tela, 80 x 120 cm. Munch-museet,
Oslo, Noruega. Fonte (acesso em ago/08):
5. Edvard Munch, A Criança Doente, 1885-86, óleo sobre tela, 119,5 x 118,5
cm. Nasjonalgalleriet, Oslo, Noruega. Fonte (acesso em ago/08):
6. Edvard Munch. Madonna, 1894/95, óleo sobre tela, 91 x 70,5 cm.
Nasjonalgalleriet, Oslo, Noruega. Fonte:
, acesso em mar/09.
7. Edvard Munch. Madonna, 1895, litografia, 60,7 x 44,1 cm. Munch-museet,
Oslo, Noruega. Fonte (acesso em ago/08):
8. Edvard Munch. Três Estágios da Mulher (Esfinge), c. 1894, óleo sobre tela,
164 x 250 cm. Coleção Rasmus Meyer, Bergen, Noruega. Fonte: BØE, Alf.
Edvard Munch. Nova Iorque / Barcelona: Rizzoli / Polígrafa, 1989.
9. Edvard Munch. A Dança da Vida, 1899-1900, óleo sobre tela, 125,5 x 190,5
cm. Nasjonalgalleriet, Oslo, Noruega. Fonte (acesso em ago/08):
10. Edvard Munch. Separação, 1896, óleo sobre tela, 96,5 x 127 cm. Munch-
museet, Oslo, Noruega. Fonte (acesso em ago/08):
11. Edvard Munch. Cabeça de Homem em Cabelos de Mulher, 1896,
litografia, Munch-museet, Oslo, Noruega. Fonte (acesso em ago/08):
http://www.nytimes.com/imagepages/2006/02/16/arts/17munc_slideone.ht
ml
12. Edvard Munch. Paráfrase de Salomé, 1894-98, lápis, nanquim e aquarela,
46 x 32.6 cm. Munch-museet, Oslo, Noruega. Fonte:
, (acesso em ago/08)
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1. INCONSCIENTE COLETIVO, ARQUÉTIPO E SÍMBOLO NA PERSPECTIVA
DE C. G. JUNG 15
1.1. Carl Gustav Jung: pai da psicologia analítica 16
1.2. A concepção junguiana de inconsciente 17
1.3. Arquétipo 21
1.4. Símbolo 24
1.5. Jung e as manifestações culturais e artísticas 30
2. EDVARD MUNCH: VIDA E OBRA 36
2.1. Biografia 37
2.2. Contexto histórico: a civilização industrial e a formação da sociedade
burguesa 40
2.3. As artes no final do século XIX: o nascimento do modernismo 44
2.4. A crise na linguagem artística e o espírito da época 53
2.5. A expressão plástica de Munch 59
3. O SIMBOLISMO DE MUNCH EM SUAS IMAGENS DA MULHER 65
3.1. Considerações sobre a metodologia 66
3.2. Sobre o arquétipo da anima 66
3.3. Madonna, a Grande Mãe 71
3.4. Três Estágios da Mulher e o simbolismo feminino da lua 77
3.5. A Dança da Vida 81
3.6. A força e a sedução dos cabelos 86
3.7. Munch, arauto de um novo tempo 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 99
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 102
10
INTRODUÇÃO
11
A ideia desta pesquisa partiu de meu particular interesse pela arte
produzida nas duas últimas décadas do século XIX e princípios do século XX,
fecunda geratriz de imagens visuais de denso conteúdo simbólico. Neste
trabalho, almejo atingir uma compreensão da singularidade expressiva do pintor
norueguês Edvard Munch e da presença dos símbolos em suas pinturas dentro de
um contexto cultural coletivo. Procuro mostrar como sua obra expressa, muito
além de seus conflitos pessoais, o espírito da época em que viveu em temas
universais, pois mediante os símbolos é possível compreender a forma como o
indivíduo e a sociedade se vinculam à psique inconsciente.
Desta forma, acredito contribuir para o aprofundamento da compreensão
da dinâmica simbólica contida nas obras de arte, aproximando o leitor do
universo interpretativo das imagens simbólicas, o que justifica a realização desta
pesquisa. Para tanto, utilizo-me de uma abordagem qualitativa, alicerçada em
conceitos junguianos e também alimentada por fontes da tradição cultural
simbólica. A teoria junguiana foi selecionada como eixo de sustentação teórica de
minha pesquisa por tratar, em profundidade, da expressão simbólica dos
fenômenos artísticos.
A escolha de significativa parte da obra de Edvard Munch como objeto de
estudo é justificada por sua profunda temática e indiscutível valor histórico.
Munch teve como objetivo estabelecer valores universais mediante imagens das
emoções mais profundas do homem: amor, angústia e morte. Para tanto,
propôs-se, ao longo da última década do século XIX, pintar um conjunto de
quadros que denominou Friso da Vida, em que retrata o curso da vida humana e
a condição do homem moderno. Reconhecido como uma das figuras centrais do
modernismo, possui uma linguagem expressiva personalíssima que influenciou
amplamente contemporâneos e gerações seguintes.
Munch produzia profusamente. Estima-se que tenha realizado cerca de
1.700 telas, um imenso número de estudos e desenhos e uma considerável
coleção de gravuras; só em relação a estas, existem mais de 800 motivos
originais. A vastidão de sua obra obrigou-me a restringir o número de imagens a
12
serem estudadas; optei por elegê-las por proximidade temática, dentro de um
determinado período, mas sem a ambição de abarcar toda sua produção desse
período ou todas as imagens que produziu sobre determinado motivo.
Selecionei algumas das mais significativas imagens que evidenciam a
visão que Munch tinha da mulher e do relacionamento entre o homem e a
mulher. Não me preocupei em abranger todas as obras que se referem ao tema
“amor” que foram expostas no Friso da Vida porque os quadros selecionados
para serem expostos variavam sempre a cada exposição; por outro lado, há
várias outras imagens que são riquíssimas e podem nunca terem sido expostas
nesse conjunto, apesar de terem sido produzidas paralelamente na mesma
época.
Considero a segunda fase de sua carreira particularmente propícia para
este estudo, por diversos motivos. Primeiramente, foi quando Munch pintou
diversas visões da mulher e do homem que depois viriam a ser espécies de
“clichês” em sua obra, imagens de denso conteúdo psicológico e simbólico, sob
evidente influência do movimento simbolista; além de ter sido a fase de
consolidação de sua expressão plástica, também foi um momento em que o
artista viveu tumultuados relacionamentos amorosos; finalmente, trata-se de um
período de intensas transformações sociais das quais Munch foi, acredito, uma
espécie de arauto.
À luz dos conceitos junguianos de arquétipo e de inconsciente coletivo,
proponho-me, portanto, evidenciar o conteúdo simbólico universal presente na
obra deste artista, pois o pensamento simbólico é um conhecimento ancestral
próprio do ser humano, que antecede à linguagem e à razão. Longe de serem
criações fortuitas da psique, os símbolos e mitos nascem da necessidade humana
de elaborar e trazer à luz os segredos mais recônditos da alma. Sendo um meio
de expressão simultaneamente particular e universal, o simbolismo, de qualquer
forma, apresenta-se como um sistema de complexas relações em que sempre
prevalece o caráter polar, a capacidade de ligar o microcosmo ao macrocosmo, o
casual ao acausal, o desordenado ao ordenado. Seguindo essa abordagem,
partilho da mesma ideia com a qual comungam Mircea Eliade e Carl Gustav Jung,
que ao símbolo também cabe a missão de reintegrar o ser humano – partícula
dissociada do todo – a esferas mais amplas: cultura, sociedade, universo.
13
Conhecimento perdido pelo ocidental civilizado, fato que pode ser, em
grande medida, atribuído à herança cartesiana que remonta o século XVII, o
simbolismo voltou a ser valorizado em nossa cultura a partir de meados do
século XIX em reação ao racionalismo, ao positivismo e ao cientismo em voga na
época. A volta do interesse pela religião e pelo ocultismo, somou-se, após a
Primeira Grande Guerra (1914-18), ao crescente apreço das novas teorias
psicológicas, notadamente a psicanálise de Freud, que inspirava as experiências
do surrealismo. Assim sendo, o símbolo, a partir desse momento, veio a ser
reconhecido como uma modalidade de conhecimento autônoma.
Pesquisas acerca do funcionamento mental das culturas ditas “primitivas”
revelaram o papel crucial do processo de simbolização no pensamento arcaico,
concomitantemente à fundamental importância que o símbolo possui na vida de
qualquer sociedade tradicional. A contínua dessacralização do homem moderno
certamente teve impacto sobre sua vida espiritual; não obstante, não foi
suficiente para refrear sua imaginação, que anima, por meio das imagens, um
conteúdo arcaico subjacente à sua consciência. Ainda que conscientemente o
homem insista em viver num plano estritamente racional, seu inconsciente, em
compensação, permanece sobrecarregado de material simbólico, que exerce
grande influência em sua vida, mesmo que ele não o admita.
Concordo com Mircea Eliade (2002) ao afirmar que o símbolo, o mito e a
imagem são inerentes à vida humana e, portanto, não são passíveis de serem
eliminados, mesmo que sejam dissimulados, mutilados ou degradados; devido a
essa permanência, eles têm a capacidade de revelar os conteúdos mais
profundos da realidade, colocando à prova qualquer outro meio de
conhecimento. Se o inconsciente se serve de imagens para transmitir a realidade
profunda das coisas, é justamente porque a realidade se mostra contraditória, o
que torna impossível expressá-la por meio de conceitos. E é o símbolo, prenhe
de todas suas possíveis significações, que é vivo, atual e verdadeiro, e não
somente uma de suas significações ou um de seus incontáveis conjuntos de
referências.
A primeira metade do século XX foi muito prolífica em estudos que
correlacionavam a arte, os mecanismos da percepção, a psique humana e seu
simbolismo.
14
Neste contexto, destaco uma figura singular cujo trabalho aproximou a
psicologia da arte mediante os símbolos, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, que
lançou as bases da psicologia analítica. Mircea Eliade (op. cit.) menciona que o
maior mérito de Jung foi ter ultrapassado a psicanálise freudiana, conseguindo
restaurar o significado espiritual da Imagem a partir da própria psicologia.
A psicologia junguiana apresenta-se como uma das mais importantes
correntes a integrar, no estudo do processo de simbolização, a obra de arte e
seu autor, abordando simultaneamente os aspectos relativos às esferas pessoal e
coletiva.
Sua vasta obra teórica foi respaldada pela atividade de atendimento
clínico aos seus pacientes e pelo conhecimento de diversas culturas tradicionais e
mitologias, da Antiguidade à sua época. No decorrer desse percurso, Jung, que
era um homem muito culto e possuía grande interesse na área humanística,
constatou que os procedimentos de análise e interpretação dos sonhos de seus
pacientes poderiam ser aplicados a processos simbólicos associados a fenômenos
da cultura e da arte, a exemplo da religião, da mitologia e dos contos de fadas.
A psicologia analítica caracteriza esses processos simbólicos como
manifestações da psique inconsciente da humanidade; são como liames que
possibilitam a inserção do indivíduo na coletividade.
A Jung cabe o mérito de ter demonstrado, a partir de seus trabalhos, de
que forma a linguagem do inconsciente traduz-se em símbolos no fazer artístico.
Também evidenciou que a evolução histórico-cultural da humanidade pode ser
representada por suas manifestações culturais e artísticas.
Organizei esta dissertação em três capítulos. No primeiro, apresento os
principais conceitos da teoria junguiana que compõem meu referencial teórico.
No segundo, exponho uma breve biografia de Munch e discorro sobre o contexto
histórico, social e artístico em que viveu; aponto as orientações estéticas da
pintura de sua época e a influência que exerceram sobre seu trabalho e as
características de sua expressão plástica. No terceiro capítulo procedo a uma
análise do conteúdo simbólico das obras selecionadas, procurando conectar a
biografia e as ideias do artista, o momento histórico-cultural em que viveu e o
caráter universal de sua temática.
15
1. INCONSCIENTE COLETIVO, ARQUÉTIPO E
SÍMBOLO NA PERSPECTIVA DE C. G. JUNG
16
1.1. Carl Gustav Jung: pai da psicologia analítica1
C. G. Jung nasceu em Keswill, Suíça, em 26 de julho de 1875 e viveu em
Zurique de 1909 até seu falecimento, em 06 de junho de 1961. Filho de pastor
luterano, voltou-se precocemente para questões de ordem religiosa e
transcendental. Extremamente intuitivo, sempre se interessou pelos fenômenos
psíquicos, fato que o levou a observar estes conteúdos em si próprio e,
posteriormente, em seus pacientes. Foi médico psiquiatra, trocou ideias e
trabalhou com renomados profissionais da psiquiatria, a exemplo de Freud,
Bleuler e Adler. Fora de sua área, teve contato com influentes cientistas, como
Pauli e Einstein. Paralelamente, desenvolveu uma rica formação cultural e em
ciências humanas; estudou filosofia em profundidade, particularmente obras de
Kant, Schopenhauer e Nietzsche, procurando convergir e sintetizar conceitos da
filosofia, das ciências naturais e médicas.
Jung introduziu uma nova forma de praticar a psicologia clínica e uma
visão revolucionária de mundo e do homem. Suas ideias demoraram bem mais a
serem aceitas em sua profissão, a psiquiatria acadêmica, do que em muitas
outras áreas do conhecimento científico; líderes de outras áreas foram os
primeiros a se beneficiar de suas descobertas e conceitos.
Em 1907 Jung teve seu primeiro contato pessoal com Freud e, a partir de
uma mútua admiração, estabeleceu-se estreita colaboração entre ambos até
1912. Nesse ano, Jung lança seu livro Metamorfoses e símbolos da libido2,
contendo profundas divergências em relação à doutrina de seu predecessor. Jung
discordava de Freud no sentido de que os conflitos psíquicos tivessem sempre
origem num trauma de natureza sexual; Freud, por sua vez, contrariamente a
Jung, não aceitava que fenômenos espirituais pudessem ser considerados como
1 Afirma Jung: “Considero ‘analítico’ todo procedimento que se confronta com a
existência do inconsciente”. (Os arquétipos e o inconsciente coletivo, pág. 269).
2 Posteriormente publicado, em 1952, como Símbolos da Transformação, editado no
Brasil pela editora Vozes.
17
fontes válidas de estudo em si mesmas. Enquanto para Freud a libido é somente
sexual, para Jung trata-se de toda energia psíquica, aproximando-se bastante do
conceito de vontade expresso por Schopenhauer. Jung, que possuía uma visão
holística, criticava a rigidez do sistema psicanalítico de Freud que, em sua
opinião (JUNG, 1991), tinha uma visão orientada para o passado e para a busca
de causas, de maneira unilateral, sem apresentar nenhum plano para o futuro.
De fato, eram personalidades muito fortes e de posturas demasiado distintas
para que pudessem conviver por muito tempo juntas. Nas palavras de Nise da
Silveira (2003, pág. 15), “estavam destinados a defrontar-se como fenômenos
culturais opostos”.
A fim de lastrear suas ideias a respeito do inconsciente coletivo, Jung
estudou profundamente diversas mitologias, alquimia medieval e costumes dos
povos primitivos da Ásia, África e dos índios norte-americanos. Em sua
incessante busca pelas mais diversas simbologias, também conheceu e estudou
cultura, filosofia e religiões orientais, conhecimento que enriqueceu com as
viagens que fez aos diversos lugares do mundo. Mas a principal fonte de seus
estudos sempre foi sua própria alma, a observação de suas experiências
interiores e o exercício de interpretação de seus próprios sonhos.
Afirmava que o ser humano é um ser simbólico em sua essência, o que
por si só justifica a importância do entendimento do processo de simbolização do
inconsciente. Sempre que tinha oportunidade, salientava que o homem deveria
ser visto como um todo, pertencente a uma comunidade num determinado
momento e que não poderia ser visto dissociado do seu contexto social, cultural
e universal.
1.2. A concepção junguiana de inconsciente
Apesar de outros teóricos já terem esboçado a ideia de inconsciente
desde a Antiguidade, é atribuído a Sigmund Freud, médico neurologista tcheco
que viveu em Viena e Londres entre 1856 e 1939, a estruturação deste conceito,
bem como sua aceitação no meio acadêmico.
18
A dificuldade em conceituar o inconsciente deriva da impossibilidade de
abordá-lo diretamente. Os estudiosos do assunto tinham de lidar com um
fenômeno que não existia de modo concreto e portanto não era comprovável
cientificamente, podendo apenas ser deduzido de forma indireta, por meio dos
sintomas, sonhos e expressões simbólicas.
A partir de 1890, Charcot e Freud definem o inconsciente como uma
unidade mental de funcionamento autônomo em relação à consciência. Nesta
época, procurava explicação para os lapsos da consciência, como os atos falhos e
o esquecimento. Deve-se à sua teoria psicanalítica a compreensão dos
mecanismos psicológicos envolvidos nessas situações. Juntamente com o
desenvolvimento da teoria da interpretação dos sonhos, conseguiu, perante ao
meio científico, relativa aceitação da existência da instância psíquica do
inconsciente. Ao justificar o conceito de inconsciente em seu ensaio O
inconsciente, de 1915, escreve Freud (1996, pág. 172):
“Nosso direito de supor a existência de algo mental
inconsciente, e de empregar tal suposição visando às finalidades
do trabalho científico, tem sido vastamente contestado. A isso
podemos responder que nossa suposição a respeito do
inconsciente é necessária e legítima, e que dispomos de
numerosas provas de sua existência.
Ela é necessária porque os dados da consciência apresentam
um número muito grande de lacunas; tanto nas pessoas sadias
como nas doentes ocorrem com frequência atos psíquicos que
só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos,
para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer
prova. Estes não só incluem parapraxias e sonhos em pessoas
sadias, mas também tudo aquilo que é descrito como um
sintoma psíquico ou uma obsessão nas doentes; nossa
experiência diária mais pessoal nos tem familiarizado com ideias
que assomam à nossa mente vindas não sabemos de onde, e
com conclusões intelectuais que alcançamos não sabemos
como. Todos esses atos conscientes permanecerão desligados e
ininteligíveis, se insistirmos em sustentar que todo ato mental
que ocorre conosco, necessariamente deve também ser
experimentado por nós através da consciência; por outro lado,
esses atos se enquadrarão numa ligação demonstrável, se
interpolarmos entre eles os atos inconscientes sobre os quais
estamos conjeturando.”
Jung partiu dos mesmos pressupostos que Freud, mas estendeu o
conceito de inconsciente. Em seus atendimentos clínicos, percebeu que pacientes
esquizofrênicos frequentemente apresentavam formas primitivas de pensamento,
muito próximas ao universo mítico e onírico dos povos primitivos. Constatou que
19
estes conteúdos psicológicos delirantes possuíam uma estrutura semelhante,
mesmo ocorrendo em períodos históricos e civilizações distintas. Por sua
aproximação com comportamentos primitivos, denominou estas estruturas de
arquétipos. Em grego, arché significa tanto “primordial”, “originário” quanto
“princípio supremo subjacente”.
O aprofundamento de suas pesquisas e o aprimoramento do método de
interpretação de sonhos e dos processos de simbolização possibilitaram-lhe
consolidar um dos conceitos basilares da psicologia analítica, o de inconsciente
coletivo, ao notificar a ocorrência dessas formas de pensamento arcaicas
também em pacientes normais, especialmente em momentos de crise e de
grandes mudanças de vida, quando se observava intensa transformação
psicológica, como na adolescência, durante a gestação ou após um incidente
traumático. Concluiu que se trata de conteúdos que habitam o inconsciente de
maneira universal, que formam uma camada mais profunda, de natureza
coletiva, ao contrário do que chamou de inconsciente pessoal, constituído
pelas vivências pessoais do indivíduo. Em sua definição (JUNG, Os arquétipos e
o inconsciente coletivo, págs. 53 e 15):
“O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode
distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não
deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto
uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é
constituído essencialmente de conteúdos que já foram
conscientes e no entanto desapareceram da consciência por
terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do
inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto
não foram adquiridos individualmente, mas devem sua
existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente
pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo
do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de
arquétipos.
[...]
Eu optei pelo termo ‘coletivo’ pelo fato de o inconsciente não ser
de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à
psique pessoal ele possui conteúdos e modos de
comportamento, os quais são ‘cum grano salis’ os mesmos em
toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras, são
idênticos em todos os seres humanos, constituindo portanto um
substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal
que existe em cada indivíduo.”
O inconsciente pessoal é uma camada de teor superficial, contígua ao
consciente, cujos conteúdos subjazem no inconsciente por não possuírem
energia psíquica suficiente para emergirem à consciência. Trata-se das
20
percepções subliminares e de aspectos que, ao longo do desenvolvimento da
personalidade, não encontraram compatibilidade com orientações da consciência
e foram por ela reprimidos.
A existência do inconsciente coletivo não depende de experiências
individuais, como é o caso do inconsciente pessoal; porém, seu conteúdo
necessita de experiências reais para se expressar, porque é composto apenas de
predisposições latentes. Abrangendo em si todos os conteúdos da experiência
psíquica humana, dos mais elevados e belos aos mais vis e horrendos, ele é, em
si mesmo, absolutamente “neutro”; o valor e a contextualização de seus
conteúdos somente podem ser definidos após a confrontação com o consciente3.
A descoberta do inconsciente implicou num olhar radicalmente novo para
as ciências, as artes, as religiões, a cultura e para o comportamento sociológico
do ser humano. Para Freud, trata-se somente de um epifenômeno da
consciência, uma “coleção” estática de conteúdos reprimidos pelo ego e,
portanto, de caráter exclusivamente pessoal. Para Jung, contudo, o ser humano
nasce inconsciente, mas traz consigo uma bagagem herdada de seus ancestrais.
Para ele, o inconsciente existe a priori ao consciente e é dinâmico, produz
conteúdos próprios, recombina os previamente existentes e opera numa relação
complementar e compensatória com o consciente. Na concepção junguiana,
portanto, o inconsciente é uma instância psicológica em constante atividade que
abrange conteúdos pessoais e outros produzidos pelo próprio inconsciente. Como
resume Marie-Louise von Franz (1992, pág. 13), “trata-se da matriz criadora
autônoma da vida psíquica normal”.
Em suma, inconsciente é uma moderna denominação técnica para algo
que sempre existiu na alma humana: a experiência que ocorre quando o
indivíduo é assaltado por algo que lhe é estranho e se apodera dele a partir do
interior de si mesmo; quando sua vida é subitamente transformada por ações de
forças desconhecidas que surgem de dentro de si próprio; quando a pessoa
sonha, tem vislumbres ou mesmo inspirações que sabidamente não foram por
ela engendrados, mas que chegaram até sua consciência a partir de uma psique
“exterior”. No passado, essas experiências resultantes de processos
3 “O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele
consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se
conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência.” (JUNG, op.
cit., pág. 54)
21
inconscientes eram atribuídas a um fluido divino (mana), a um deus, a uma
“consciência superior”, a um demônio ou “espírito”. Esses termos sugeriam uma
presença objetiva, estranha e autônoma, à qual o ego consciente se submetia. O
próprio Jung teve numerosas experiências dessa natureza desde muito jovem,
por ele relatadas em sua autobiografia, Memórias, sonhos, reflexões4.
1.3. Arquétipo5
Arquétipo é um conceito cuja compreensão não é de todo possível
exclusivamente pela via do raciocínio.
O arquétipo é uma entidade hipotética irrepresentável em si própria, que
se revela apenas por meio de suas manifestações. De acordo com a definição de
Jung (op. cit., págs. 90 e 91),
“… os arquétipos não se difundem por toda parte mediante a
simples tradição, linguagem e migração, mas ressurgem
espontaneamente em qualquer tempo e lugar, sem a influência
de uma transmissão externa.
Não podemos subestimar o alcance dessa constatação, pois ela
significa nada menos do que a presença, em cada psique, de
disposições vivas inconscientes, nem por isso menos ativas, de
formas ou ideias em sentido platônico que instintivamente pré-
formam e influenciam seu pensar, sentir e agir.”
Jung ainda acrescenta (op. cit., págs. 42 e 87, grifo da autora):
“Tomemos, por exemplo, a palavra ideia. Ela remonta ao
conceito do eidos de PLATÃO, e as ideias eternas são imagens
primordiais […] em lugar supracelestial, guardadas como formas
eternamente transcendentes. [Para Platão], …a ideia é pré-
existente e supraordenada aos fenômenos em geral.
‘Arquétipo’ nada mais é do que uma expressão já
existente na Antiguidade, sinônimo de ‘ideia’ no sentido
platônico.”
4 Editado no Brasil pela Nova Fronteira.
5 Expressão de origem grega. Arque = início, origem, causa e princípio, mas também
líder, soberania e governo. Tipo = batida e o que é produzido por ela, como cunhar
moedas, figura, imagem, retrato, prefiguração, modelo e também forma básica,
estrutura primária. Nessas noções está contida a “gravação”, pela repetição constante,
de experiências típicas. (JACOBI, 1991, págs. 51 e 52).
22
Os arquétipos possuem origem obscura; resultariam de sedimentos
acumulados das experiências comuns a todos os seres humanos, repetidamente,
ao longo de sua existência. Teriam se caracterizado a partir de vivências típicas,
a exemplo das emoções e reações promovidas pelo contato com os fenômenos
da natureza, o convívio com a mãe e o pai, as experiências sexuais e as ligadas
ao nascimento e à morte ou mesmo a superação de grandes obstáculos
geográficos, como a travessia de rios, mares e montanhas, entre outras. De
acordo com Jung (op. cit., pág. 58):
“Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida.
Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na
constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas
de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem
conteúdo, representando a mera possibilidade de um
determinado tipo de percepção e ação.”
Outra hipótese, relatada nas últimas obras de Jung, é a de que seriam
disposições inerentes à estrutura do sistema nervoso que levariam à criação de
imagens sempre análogas ou similares. Assim como os instintos, que são pulsões
para agir sempre de uma mesma forma, existiriam tendências herdadas para
produzir representações semelhantes6.
Independente de sua origem, o arquétipo funciona como um nódulo de
concentração de energia psíquica. Uma imagem arquetípica é formada toda vez
que essa energia, em estado potencial, assume uma forma. Essa forma não pode
ser chamada de arquétipo, porque o arquétipo é apenas uma virtualidade e,
como tal, é inobservável.
É importante frisar que os arquétipos não são invenções arbitrárias, e
nem tampouco se trata de imagens herdadas, mas de possibilidades herdadas
de ideias para representar imagens semelhantes; seriam como “formas
instintivas de imaginar” (SILVEIRA, 2003, pág. 68).
A noção de arquétipo, ao admitir a existência de uma base psíquica
comum a toda a humanidade, explica o aparecimento, em épocas e localidades
muito distantes entre si, de temas idênticos nos rituais e dogmas religiosos, nos
6 A respeito da relação entre arquétipo e instinto, afirma Jung: “O arquétipo é um
elemento vazio e formal em si [...], uma possibilidade dada a priori da forma da sua
representação. O que é herdado não são as ideias, mas as formas, as quais sob
esse aspecto particular correspondem aos instintos igualmente determinados
por sua forma.” (JUNG, op. cit., pág. 91, grifo em negrito da autora).
23
mitos, nos contos de fadas, nas artes, na filosofia e mesmo nas expressões
inconscientes, seja em sonhos de pessoas normais, seja em delírios de doentes
mentais.
Os arquétipos possuem também um aspecto biológico, perceptível nas
formas típicas de vivências e manifestações não apenas humanas, como também
dos animais. Trata-se de determinados padrões, cunhados estruturalmente, de
ser, agir e reagir. São processos arquetípicos, por exemplo, a construção de um
ninho, as danças e rituais do pré-acasalamento, os movimentos migratórios, as
trilhas milenares seguidas pelos animais.
No entanto, quando observado a partir do interior da alma subjetiva, o
arquétipo assume um caráter numinoso7, ou seja, proporciona uma vivência de
significado fundamental, arrebatadora, que causa uma peculiar alteração da
consciência.
Todas as imagens advindas do extrato coletivo do inconsciente
compartilham do arquetípico. Eis por que diversos fenômenos psíquicos, como os
sonhos, possuem numinosidade. Símbolos também possuem qualidades
arquetípicas, o que explica, em certa medida, seu fascínio, uso e recorrência.
Nas grandes mitologias, deuses são metáforas de comportamentos arquetípicos,
enquanto mitos são encenações arquetípicas.
Quanto mais profunda for a camada do inconsciente de onde surge o
arquétipo, mais simples e genérico ele se apresentará, mais possibilidades de
desenvolvimento conterá e tanto maior será sua capacidade de engendrar
significados.
O arquétipo também caracteriza-se por ser bipolar: sempre possui um
aspecto positivo, luminoso, de movimento ascendente e orientado para a
progressão e um outro aspecto negativo, sombrio, orientado para a regressão. O
7 Numinoso (do latim numen, divindade) é um adjetivo que qualifica o que é sagrado ou
divino. Esta expressão foi proposta por Rudolf Otto (1917), um dos criadores da
fenomenologia religiosa. Para Jung, trata-se de uma instância ou efeito dinâmicos que
arrebata e controla o sujeito humano, levando-o a uma experiência independente de sua
vontade. “O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma
presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência.” (JUNG,
Psicologia e Religião, pág. 09).
24
arquétipo em si é neutro; a ativação de seu aspecto positivo ou negativo
depende de fatores pessoais do consciente individual8.
Entre os mais relevantes arquétipos abordados pela psicologia analítica,
destaco os arquétipos de mãe, pai, persona, sombra, si-mesmo (self), animus e
anima. Ampliarei a explanação sobre a anima no terceiro capítulo deste trabalho.
1.4. Símbolo9
O símbolo designa um elemento representativo visível em lugar de algo
invisível ou intangível (o referente). Quando o arquétipo assume uma forma
perceptível pelo consciente, caracteriza-se como uma imagem arquetípica ou
como um símbolo.
Desde a Grécia antiga, a origem do símbolo remete-se à divisão de uma
moeda, em que cada metade continha a metáfora da união. Dada essa
característica, cada uma dessas partes possuía ao mesmo tempo o significado de
metade e unidade, evidenciando, desta forma, o caráter dual do símbolo: o de
carregar consigo a separação e a união, o conflito e sua resolução, expressos em
sua capacidade de separar e unir. Esta história ilustra como algo que foi dividido
pode ser reunido por meio de uma atitude de aproximação ou reconciliação,
demonstrando que, separadas, cada metade da moeda é oposta, mas unidas
formam um todo, uma síntese.
O símbolo é, ao mesmo tempo, racional e intuitivo; um mediador entre
as incompatibilidades do inconsciente e do consciente, entre o oculto e o
revelado. “Ele não é nem abstrato nem concreto, nem racional nem irracional,
nem real nem irreal; é sempre ambos.” (JUNG, apud JACOBI, 1991, pág. 90).
8 “O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica
através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo
com a consciência individual na qual se manifesta.” (JUNG, Os arquétipos e o
inconsciente coletivo, pág. 17).
9 A expressão símbolo (do grego symbolon), apesar de comportar múltiplas definições,
sempre se remete a uma forma que busca designar algo que, por trás do sentido
objetivo e visível, oculta um sentido invisível e mais profundo. (JACOBI, 1991, págs. 74 e
75).
25
Jung explica o que são símbolos verdadeiros quando se refere ao
processo simbólico e aos arquétipos de transformação, diferenciando-os dos
arquétipos que se apresentam como personalidades atuantes em sonhos ou
fantasias (como a sombra, a anima ou o velho sábio, por exemplo) (Os
arquétipos e o inconsciente coletivo, pág. 47, grifo da autora):
“O processo [simbólico] mesmo constitui outra categoria de
arquétipos que poderíamos chamar de arquétipos de
transformação. Estes não são personalidades, mas sim
situações típicas, lugares, meios, caminhos, etc., simbolizando
cada qual um tipo de transformação. Tal como as
personalidades, estes arquétipos também são símbolos
verdadeiros e genuínos que não podemos interpretar
exaustivamente, nem como sinais, nem como alegorias. São
símbolos genuínos na medida em que eles são ambíguos,
cheios de pressentimentos e, em última análise,
inesgotáveis. Os princípios fundamentais, os archai do
inconsciente, são indescritíveis, dada a riqueza de referências,
apesar de serem reconhecíveis. O intelecto discriminador
sempre procura estabelecer o seu significado unívoco e perde o
essencial, pois a única coisa que é possível constatar e que
corresponde à sua natureza é a multiplicidade de sentido, a
riqueza de referências quase ilimitadas que impossibilita toda e
qualquer formulação unívoca. Além disso, esses arquétipos são
por princípio paradoxais a exemplo do espírito que os
alquimistas consideravam como senex et iuvenis simul [ao
mesmo tempo velho e jovem].
Jung (op. cit.) cita como exemplos de arquétipos de transformação, a fim
de demonstrar no que consiste o processo simbólico, as séries de imagens
alquímicas medievais, o sistema dos chacras tântricos, o sistema nervoso místico
da ioga chinesa (sic) e a sequência dos arcanos maiores do tarô. “O processo
simbólico é uma vivência na imagem e da imagem”, diz ele, que se desenvolve
num ritmo de negativo e positivo, de perda e ganho, de escuro e claro. Inicia-se
com uma situação do tipo “beco sem saída” e tem como meta a iluminação ou
consciência superior, a partir da qual a situação inicial é superada num grau mais
elevado. No tocante ao tempo, o processo pode se dar num único sonho ou
breve vivência, ou estender-se por meses ou anos, dependendo do estágio inicial
do indivíduo e da meta a ser atingida. Tudo, porém, é vivenciado
simbolicamente, ou seja, numa forma imagética.
Conforme exposto nas palavras de Jung, faz-se necessário distinguir
símbolo de signo e outras formas sígnicas de expressão da imagem, como
alegoria, emblema, metáfora, analogia, sintoma ou atributo, que não
transcendem o nível de mera significação da imagem.
26
Símbolos não são figuras sintéticas, representativas de coisas
conhecidas, de significado conhecido e convencionado: estas imagens são sinais
ou signos, como os números matemáticos, emblemas, placas de sinalização,
figuras de linguagem. Representações figuradas de objetos ideais ou materiais
também não são símbolos, mas alegorias, a exemplo da Morte representada por
um esqueleto portando uma foice.
Do signo derivam relações de significância diretas, em geral bastante
objetivas. Já o símbolo representa sempre mais do que seu significado óbvio e
imediato, pois é carregado de significados indeterminados e desconhecidos para
a percepção consciente. Para Jung, símbolo é a expressão daquilo que é
significativo mas ainda não possui uma formulação mais perfeita. O símbolo
genuíno é uma estrutura extremamente complexa que reúne opostos numa
síntese que ainda não pode ser conceituada; desta maneira, supera a capacidade
de entendimento disponível no presente. Nas palavras de Jung (JUNG, Tipos
Psicológicos, págs. 444 e 445):
“Toda concepção que explica a expressão simbólica como uma
analogia ou designação abreviada de algo conhecido é
semiótica. Uma concepção que explica a expressão simbólica
como a melhor formulação possível de algo relativamente
desconhecido, não podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou
característica, é simbólica. Uma concepção que explica a
expressão simbólica como paráfrase ou transformação
proposital de algo conhecido é alegórica. [...]
Uma expressão usada para designar coisa conhecida continua
sendo apenas um sinal e nunca será símbolo. É totalmente
impossível, pois, criar um símbolo vivo, isto é, cheio de
significado, a partir de relações conhecidas.”
O símbolo vivo, na concepção junguiana, atua, modifica-se, alcança
dimensões que não são atingíveis pelo intelecto. Tem a capacidade de transmitir
intuições muitíssimo estimulantes, que prenunciam fenômenos ainda
desconhecidos. Mas se o seu conteúdo misterioso é de todo apreendido pelo
pensamento lógico, o símbolo se esvazia e morre. Ao esgotar-se, ele se torna
apenas um signo ou sinal. Como explica Jung, ao referir-se às imagens sagradas
(Os arquétipos e o inconsciente coletivo, pág. 19):
“Além do mais, estas imagens – sejam elas cristãs, budistas ou
o que for – são lindas, misteriosas e plenas de intuição. Na
verdade, quanto mais nos aproximamos delas e com elas nos
habituarmos, mais se desgastarão, de tal modo que só restará a
sua exterioridade banal, em seu paradoxo quase isento de
sentido.”
27
Não obstante, definir algo como símbolo ou não depende
fundamentalmente do ponto de vista do consciente que o observa, ou seja,
depende do indivíduo poder perceber em uma imagem (digamos, um anel), além
de sua aparência concreta, também sua expressão simbólica não-evidente. Por
isso é perfeitamente possível que um mesmo objeto ou fato represente um
símbolo para um indivíduo e não passe de mero signo para outro.
Imagens como a cruz, a estrela ou o leão são frequentemente utilizadas
em bandeiras e logomarcas de empresas e produtos, referindo-se a coisas bem
específicas e delimitadas. Dependendo do contexto, porém, essas mesmas
imagens podem atuar como símbolos. A cruz, por exemplo, para uma pessoa
pode ser apenas o signo externo do cristianismo, enquanto para outra pode
evocar a Paixão de Cristo na sua totalidade. Jung diria que, no primeiro caso,
trata-se de um “símbolo extinto” e, no segundo, de um “símbolo vivo”.
Porém, uma distinção importante deve ser feita entre o conceito
junguiano de símbolo e o que se convencionou chamar de símbolo religioso. Sob
o ponto de vista da psicologia analítica, o símbolo se situa nos mistérios da alma,
da psique; a religião não faz uso de símbolos nessa acepção. As palavras de Jean
Chevalier (2002, págs. XVII e XVIII, grifo da autora) esclarecem melhor este
ponto:
Certas formulações dogmáticas são igualmente chamadas de
símbolos de fé; são declarações oficiais, cultuais, em virtude
das quais os iniciados numa fé, num rito ou numa sociedade
religiosa se reconhecem entre si; [...] Na realidade, nenhum
deles possui o valor próprio do símbolo, sendo apenas
signos de reconhecimento entre crentes e a expressão das
verdades de sua fé. Essas verdades são, indubitavelmente, de
ordem transcendente e as palavras são empregadas, na maior
parte das vezes, num sentido analógico; essas profissões de fé,
porém, não são símbolos de modo algum, a menos que se
esvaziassem os enunciados dogmáticos de toda
significação própria ou que fossem reduzidos a mitos. Mas
se, além de seu significado objetivo, esses Credos forem
considerados como centros de uma adesão e de uma profissão
de fé subjetivamente transformantes, tornar-se-ão símbolos
da unidade dos crentes, indicando o sentido de sua orientação
interior.
Sob a perspectiva da psicologia analítica, o símbolo permite à psique
consciente encontrar a melhor maneira de representar alguma coisa: um desejo,
um pensamento, um afeto, algo que lhe ocorreu. Desta forma, os símbolos
favorecem um pleno contato com a psique inconsciente pessoal e coletiva,
28
atuando os símbolos como matéria-prima do mundo criativo: mitos, religiões,
arte.
Pode-se criar um símbolo, por exemplo, numa fantasia, num sonho ou
num desenho. Nestas condições, existe a projeção10 de emoções e afetos
pessoais. Também pode-se receber uma influência emocional na situação de
percepção de um conteúdo simbólico elaborado e expresso por outro indivíduo,
como ocorre durante a apreciação de uma obra de arte, seja a visualização de
um quadro ou ao ouvir-se uma música.
Os símbolos causam impacto e ressonância emocional sobre as pessoas,
independentemente da atuação do consciente, devido ao seu caráter numinoso.
De fato, a numinosidade é a qualidade que diferencia um símbolo de um signo ou
sinal.
Como vimos, o símbolo é sempre em parte “abstrato”, em parte
“encarnado”. Fugindo a toda e qualquer definição, rompe as fronteiras e reúne
polos opostos numa única visão; à medida que se elucida, dissimula-se; nas
palavras de Georges Gurvitch (apud CHEVALIER, 2002, pág. XIII), os símbolos
“revelam velando e velam revelando”.
Devido a esse caráter dual, o processo simbólico é bastante complexo por
dissimular, em seu contexto, o conteúdo que por meio de uma analogia
pretende-se representar ou substituir. O processo simbólico desenvolve-se
segundo o princípio de que uma dada posição eventualmente se desloca na
direção de seu oposto11. A capacidade da psique de conectar opostos mediante a
formação de símbolos é por Jung denominada função transcendente12. Essa
10 “...a projeção é um processo inconsciente automático, através do qual um conteúdo
inconsciente para o sujeito é transferido para um objeto, fazendo com que este conteúdo
pareça pertencer ao objeto. A projeção cessa no momento em que se torna consciente,
isto é, ao ser constatado que o conteúdo pertence ao sujeito.” (JUNG, op. cit., pág. 72.)
11 O processo de simbolização está vinculado à lei da enantiodromia: “‘Passar para o
outro oposto’, uma ‘lei’ psicológica pela primeira vez esboçada por Heráclito, significando
que mais cedo ou mais tarde tudo se reverte para seu oposto. Jung identificava isso
como ‘o princípio que governa todos os ciclos da vida natural, desde o menor até o
maior’ (CW 6, parág. 708).” (SAMUELS, 2003, ed. eletrônica).
12 Para Jung, a função transcendente não é uma função básica do consciente, como o
sentir ou pensar, mas uma função complexa, composta de várias outras funções.
Transcendente não deve ser entendido neste contexto como uma qualidade metafísica,
mas simplesmente como algo que permite, por seu intermédio, a passagem de uma
atitude para outra. “Se a expressão inconsciente permanecer intacta, formará a matéria-
29
função psíquica facilita a transição de uma atitude ou condição psicológica para
uma outra, como uma ponte entre conteúdos reais e imaginários, ou ainda,
racionais e irracionais, preenchendo o intervalo entre a consciência e o
inconsciente.
Dessa forma, o processo simbólico comprova a existência do mecanismo
de compensação13, isto é, de que uma atitude da consciência é sempre
compensada por um movimento originado no inconsciente. Da atividade do
inconsciente emerge, então, um novo conteúdo que fornece o espaço intermédio
onde os opostos se unem. O símbolo, assim compreendido, funciona como uma
“ponte” de ligação entre dois mundos psicológicos. Para que seja eficaz, porém,
o símbolo necessita ser reconhecido e compreendido pela mente consciente. “O
processo simbólico inicia-se com a pessoa sentindo-se paralisada, ‘suspensa’,
poderosamente obstruída na busca de seus objetivos e termina por uma
elucidação, ‘introvisão’ e de capacidade de avançar em um curso modificado.”
(SAMUELS, 2003, ed. eletrônica).
Em suma, o símbolo é uma imagem que o inconsciente, por meio de uma
linguagem aparentemente irracional e ilógica, utiliza para expressar suas ideias.
Esta atividade exige um esforço ativo da psique, que canaliza energia psíquica na
elaboração e formação do símbolo.
Pelo exposto acerca do conceito de arquétipo, percebemos, então, que as
ideias arquetípicas possuem uma infinita potencialidade de se figurarem como
símbolos. A qualidade de uma palavra, imagem ou símbolo ter múltiplas
significações é chamada de polissemia. Portanto, apesar de as ideias
arquetípicas serem supostamente as mesmas para todos os seres humanos, elas
podem se apresentar sob os mais variados conteúdos; uma ideia pode, inclusive,
apresentar-se de maneiras distintas em diferentes momentos da vida de uma
mesma pessoa. Isto diz respeito à natureza polissêmica dos arquétipos.
prima não para um processo de resolução mas de construção, e ela se tornará o objeto
comum da tese e da antítese. Tornar-se-á um conteúdo novo que dominará toda a
atitude, acabará com a divisão e obrigará a força dos opostos a entrar num canal
comum. [...] A matéria-prima elaborada pela tese e antítese e que une os opostos em
seu processo de formação é o símbolo vivo.” (JUNG, 2008, pág. 449).
13 Compensar é equilibrar, ajustar, suplementar. Neste sentido, Jung considera “a
atividade [compensatória] do inconsciente como equilibração da unilateralidade da
atitude geral, causada pela função da consciência.” (JUNG, 2008, pág. 399).
30
O inconsciente, a fim de atingir a percepção e a consciência em
patamares cada vez mais organizados, articula de maneira sempre inédita e
inesperada a energia virtual dos arquétipos, traduzindo-a em imagens que
engendram muitos significados. Nisto consiste o caráter polissêmico dos
símbolos.
Para além do papel que o símbolo desempenha na psique individual,
cumpre assinalar uma outra atribuição que possui no que tange à criatividade
nos mistérios da alma. Para o artista, o símbolo é mais que um material de
cunho pessoal a ser usufruído em proveito do próprio desenvolvimento psíquico;
trata-se também do motivo de seu processo criativo artístico que faz do artista
um legítimo porta-voz do indizível, porém ativo que reside no interior da alma de
toda a humanidade. Este aspecto, especificamente, será discutido no tópico
seguinte e enfatizado na terceira parte desta dissertação.
1.5. Jung e as manifestações culturais e artísticas
Diversamente de outros acadêmicos, Jung tinha grande preocupação de
que suas ideias fossem reconhecidas pelo grande público, fato que o motivou, ao
final de sua vida, a publicação, com o auxílio de seus colaboradores, de um
livro14 voltado para o leitor leigo, com linguagem bem mais acessível que a
utilizada nos dezoito volumes de suas obras completas, de teor acadêmico,
repletas de termos técnicos.
Segundo Marie-Louise von Franz (1992, pág. 12), coautora e coeditora
da referida obra, ele o fez não apenas para evitar o isolamento e esquecimento,
“mas também, e em especial, por estar convencido de que o destino do mundo
ocidental dependia largamente da compreensão dessas ideias. Porque, a seu ver,
não é apenas o indivíduo isolado quem está sujeito à enfermidade psíquica como
resultado de uma atitude errônea para como o inconsciente; a mesma coisa pode
acontecer a nações inteiras.”
14 JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos, editado postumamente em 1964.
Editado no Brasil pela Nova Fronteira, em 1977.
31
É fato que Jung estava atento não apenas às doenças da alma de modo
específico, como psiquiatra que era; mas também ao mistério da psique humana,
pois esta se faz presente em todas as realizações humanas.
Sua visão humanista levou-o a estudar e escrever também sobre a
cultura, a arte e a observar a evolução histórico-cultural da humanidade por
meio de suas manifestações culturais e artísticas.
No que tange à relação da psicologia analítica com a obra de arte, Jung
legou-nos uma palestra proferida em Zurique, em 1922, transcrita em O
Espírito15 na arte e na ciência, na qual esclarece seu ponto de vista a
respeito. Nela afirma haver uma estreita conexão entre esses dois campos do
conhecimento humano, pelo fato da manifestação artística tratar-se de uma
atividade psicológica. Não obstante, deixa clara a restrição de atuação da
psicologia sobre a arte apenas ao processo psíquico de criação, eximindo-se de
interpretá-la ou criticá-la em seu aspecto formal, pois esta atividade é reservada
às teorias da estética (JUNG, 1991, pág. 32):
“Apenas aquele aspecto da arte que existe no processo de
criação artística pode ser objeto da psicologia, não aquele que
constitui o próprio ser da arte. Nesta segunda parte, ou seja, a
pergunta sobre o que é a arte em si, não pode ser objeto de
considerações psicológicas, mas apenas estético-artísticas.”
O interesse de Jung voltava-se aos processos psicodinâmicos individuais
ou coletivos envolvidos na produção das obras de arte. Deste modo, trabalhou
indiferentemente a compreensão das imagens plásticas de artistas renomados e
de seus pacientes, procurando nelas apenas as conexões simbólicas pessoais e
arquetípicas.
Quanto à possibilidade de interpretar uma obra de arte, deixou clara a
necessidade de uma análise comparada e sequencial da expressão do artista,
para que o sentido simbólico de sua produção não se esvaísse, tornando a obra
um simples aspecto psicopatológico de seu autor. Nesse caso, a participação do
artista para fornecer material associativo é indispensável, para que não seja feita
uma interpretação projetiva e pessoal da obra.
15 Jung conceitua “espírito” como o aspecto dinâmico do inconsciente, capaz de criar
livremente imagens para além de nossa percepção sensorial e de manipulá-las autônoma
e soberanamente.
32
Jung opõe-se ao uso do método redutivo de Freud na compreensão das
obras de arte. Este método diz respeito à aplicação de uma técnica de exame
clínico da psique do paciente que se utiliza de meios para contornar o primeiro
plano consciente a fim de desvelar conteúdos inconscientes. Esta técnica baseia-
se na suposição da existência de conteúdos psíquicos “proibidos”, como os tabus,
de natureza obscena ou mesmo criminosa, reprimidos no inconsciente por serem
inaceitáveis pela consciência.
Na opinião de Jung, esse método pode ser aplicado em certos casos
clínicos com bons resultados, mas é inapropriado para tratar das manifestações
artísticas. Em sua visão, é necessário perguntar pelo sentido da obra, e não
tratá-la como um distúrbio ou doença cujas causas devam ser investigadas na
vida de seu autor. Segundo afirma, a psicologia pessoal do artista, mesmo que
revele certos traços em sua obra, não a explica. E supor que a explicasse seria
considerar o caráter criador da obra de arte um mero sintoma, o que a
desmereceria (JUNG, 1991, pág. 75):
“Ainda que a obra de arte e o homem criador estejam ligados
entre si por uma profunda relação, numa interação recíproca,
não é menos verdade que não se explicam mutuamente.
Certamente é possível tirar de um deduções válidas no que
concerne ao outro, mas tais deduções nunca são concludentes.
No melhor dos casos, exprimem probabilidades e interpretações
felizes, e não passam disso.”
Portanto, as condições anteriores de vida a que o artista esteve sujeito só
serão relevantes se auxiliarem na compreensão do sentido da obra. Esse fato
deriva da acepção de Jung em tratar as manifestações culturais e artísticas
primordialmente como expressão do espírito da época16 em que foram criadas,
salientando a importância de seu caráter universal. Em suas palavras (JUNG,
1991, pág.60, grifo da autora):
“A causalidade pessoal tem tanto ou tão pouco a ver com a obra
de arte quanto o solo tem a ver com a planta que dele brota.
(...) A insistência no pessoal, surgida da pergunta sobre a
causalidade pessoal, é totalmente inadequada em relação à
obra de arte, já que ela não é um ser humano mas algo
suprapessoal. (...) A verdadeira obra de arte tem inclusive um
sentido especial no fato de poder se libertar das estreitezas e
dificuldades insuperáveis de tudo o que seja pessoal, elevando-
se para além do efêmero do apenas pessoal.”
16 Espírito da época ou Zeitgeist (original em alemão), diz respeito ao desenvolvimento
intelectual e cultural de uma cultura, em determinada época.
33
Ou seja, sob a ótica de uma psicologia puramente causal, toda a
expressão de um ser humano é apenas um derivado de suas condições pessoais
e história de vida. Na opinião de Jung, porém, a obra de arte é muito mais que
um simples derivado; é uma reorganização criativa que aproveita livremente as
condições prévias das quais uma psicologia causalista diria ter sido a obra
derivada.
A partir das experiências com a psicologia analítica, Jung pôde observar
que o impulso criativo do inconsciente, além de forte e impetuoso, é também
arbitrário, a ponto de afirmar que “...a convicção de um poeta de estar criando
com liberdade absoluta seria uma ilusão de seu consciente: ele acredita estar
nadando mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível.” (JUNG,
1991, pág.63).
Essa conclusão baseia-se em suas pesquisas sobre o inconsciente, que
indicaram a possibilidade de a consciência não apenas sofrer influência do
inconsciente, mas até mesmo ser por este guiado. A psicologia analítica identifica
o processo criativo com uma “essência viva” independente que habita a psique
humana, conhecida com o nome de complexo autônomo. Este, conforme sua
força e quantum energético, manifesta-se ou como simples distúrbio de
processos arbitrários do consciente, ou como instância superior que pode tomar
o ego a seu serviço.
Desse modo, no caso de um autor produzir uma obra de caráter
suprapessoal, seria de se esperar estranheza nas formas e imagens, além de
expressão por meio de símbolos que carregariam possibilidades de significados
mais amplos e além da capacidade de compreensão na época em que a obra
fosse produzida. A obra em estado nascente, sob a égide do complexo
autônomo, desenvolve-se por meio de forças psíquicas a princípio bem
inconscientes e somente a partir do instante em que alcançam o valor limiar do
consciente é que irrompem na consciência. A consciência capta essas forças,
então, como uma percepção, o que não significa necessariamente uma
assimilação de seus conteúdos. Daí a denominação autônomo, pois o complexo
manifesta-se independente das escolhas do consciente.
O complexo autônomo, como explica Jung (1991), surge da ativação de
uma região da psique que até então estava inconsciente. Esta região, após ser
ativada, é ampliada e enriquecida de outras associações, por afinidade. A
34
situação mais frequente que predispõe a isto se inicia com o abaixamento do
nível mental, condição de diminuição dos interesses e ritmo das atividades
conscientes, uma espécie de apatia, que não raro atinge os artistas. Neste
quadro, características primitivas impõem-se sobre as civilizadas: o instintivo
sobre o ético, o ingênuo-infantil sobre o ponderado, adaptado, ou seja, amplia-se
o contato com o inconsciente. O complexo autônomo desenvolve-se consumindo
energia da porção consciente da personalidade.
O complexo autônomo criativo manifesta-se como uma imagem
elaborada em sentido lato, passível de conter valores simbólicos. Desta forma,
ao entrar-se em contato com uma obra de arte simbólica, não é necessário
recuperar seus aspectos individuais, pois ela oferece uma comunicação com a
história da coletividade que, por si só, abarca a causalidade pessoal. Nas
palavras de Jung (1991, pág. 68):
“[...] considerei aqui o caso de uma obra de arte simbólica cuja
origem não deve ser procurada no inconsciente pessoal do
autor, mas naquela esfera da mitologia inconsciente, cujas
imagens primitivas pertencem ao patrimônio comum da
humanidade. Foi por isso que denominei essa esfera de
inconsciente coletivo, diferenciando-a de um inconsciente
pessoal.”
Conclusivamente, o processo criativo traduz-se numa ativação
inconsciente do arquétipo, em sua elaboração e formalização numa obra de arte.
A imagem formalizada na obra de arte, por meio da linguagem do presente do
artista, confere uma atualização simbólica para o arquétipo. Desta forma, a
expressão artística remete-se a uma imagem primordial do inconsciente coletivo
que pode ser a qualquer momento resgatado por qualquer pessoa. Ou seja,
segundo esta visão, a verdadeira obra de arte tem vida e sentido próprios e,
quanto mais simbólica, maior sua aptidão para representar a trajetória da psique
coletiva humana.
O fato de a obra de arte simbólica expressar as imagens primordiais da
humanidade possui grande relevância social e mesmo histórica, pois torna
acessível a recuperação de conteúdos do inconsciente coletivo, o que confere a
cada um a possibilidade de entrar em contato com as fontes mais profundas da
vida que, de outra maneira, não lhe seria possível. Neste aspecto, Jung
acrescenta que, do mesmo modo que os indivíduos isoladamente, também os
35
povos e as épocas possuem inclinações e tendências espirituais características
(JUNG 1991, pág. 71, grifo da autora):
“É aí que está o significado social da obra de arte; ela trabalha
continuamente na educação do espírito da época, pois traz à
tona aquelas formas das quais a época mais necessita. Partindo
da insatisfação do presente, a ânsia do artista recua até
encontrar no inconsciente aquela imagem primordial adequada
para compensar de modo mais efetivo a carência e
unilateralidade do espírito da época. Essa ânsia se apossa
daquela imagem e, enquanto a extrai da camada mais profunda
do inconsciente, fazendo com que se aproxime do consciente,
ela modifica sua forma até que esta possa ser compreendida
por seus contemporâneos. O gênero da obra de arte nos
permite uma conclusão sobre a característica da época na qual
ela se originou. O que significa para sua época o realismo, o
naturalismo e o romantismo? E o helenismo? São tendências
da arte que trazem à tona aquilo de que a respectiva
atmosfera espiritual mais necessitava.”
O exposto leva-nos a concluir que o papel da arte é também traduzir os
anseios de uma época ou geração; assim como no indivíduo o caráter unilateral
de sua atitude consciente é compensado por ações inconscientes, analogamente
a arte exerce a mesma função de regular a vida espiritual das diferentes épocas
e povos.
A abordagem junguiana, para elucidar os movimentos e os estilos
artísticos, parte de suas relações históricas e os trata como reorganizações
criativas das polaridades de cada época, procurando integrar à compreensão da
obra do artista a leitura das tendências sócio-culturais que a circundavam. Não
obstante, Jung não se prende ao historicismo para explicar a obra de arte,
sempre colocando em destaque a importância de seu aspecto universal e
coletivo, como se constata no trecho a seguir (JUNG, 1991, pág. 93):
“O segredo da criação artística e de sua atuação consiste nessa
possibilidade de reimergir na condição originária da participation
mystique17, pois nesse plano não é o indivíduo, mas o povo que
vibra com as vivências; não se trata mais aí das alegrias e
dores do indivíduo, mas da vida de toda a humanidade. Por
isso, a obra-prima é ao mesmo tempo objetiva e impessoal,
tocando o nosso ser mais profundo.”
17 Por “participação” entende-se a ausência de discernimento entre sujeito e objeto,
frequentemente observada não somente nos neuróticos, bem como nos povos primitivos
que cultivam o animismo, nas crianças pequenas e mesmo em adultos que permanecem
inconscientes. Trata-se aqui da situação psíquica típica a partir da qual se definem as
diferentes técnicas de exercer influência. (JACOBI, 1991). Ainda, segundo Jung, “...a
psicologia da consciência provém de um estado original de inconsciência e de
indiferenciação. A este estado Lévy-Bruhl chama de participation mystique.” (JUNG,
1987, pág. 82.)
36
2. EDVARD MUNCH: VIDA E OBRA
37
2.1. Biografia
Tendo como referência os trabalhos dos biógrafos Bischoff (2006), Bøe
(1989), Holland (2005) e Sonnberger (2006) relato, resumidamente, a biografia
deste artista.
Edvard Munch nasce em 12 de dezembro de 1863 em Løten, Noruega,
numa família de cinco filhos. No ano seguinte sua família se muda para Kristiania
(como Oslo era chamada até 1924). Sua infância é marcada pela depressão do
pai, sua própria saúde frágil e as mortes por tuberculose da mãe, quando ele
contava cinco anos e da irmã Sophie, de quatorze anos, quando ele tinha quinze.
Sua obra viria posteriormente resgatar essas tristes lembranças.
Começa a pintar em 1880, então com 17 anos. Na época era comum, na
Noruega, a educação tradicional em pintura ser substituída por um autoestudo
supervisionado por um artista mais velho. Para Munch, esse artista foi Christian
Krohg (1852-1925), que integrava o grupo dos pintores de Skagen, seguidores
do modelo realista da escola francesa de Barbizon. Pintavam predominantemente
ao ar livre, aproximando-se esteticamente do impressionismo; dessa forma,
Munch teve seu primeiro contato com a pintura num estilo muito vinculado ao
estudo da própria natureza e dos efeitos da luz natural.
Em 1883, Munch exibe pela primeira vez seu trabalho em sua cidade e,
em 1885, expõe um retrato na Exposição Mundial de Antuérpia. Em Paris, no
mesmo ano, estuda no Salon e no Louvre; é influenciado por Manet e passa a
pintar inspirado pelas tendências mais radicais da arte parisiense, a despeito das
críticas que viria a receber por parte da imprensa. Nessa época, estabelece
contato com a boêmia literária e artística de Kristiania, encabeçada pelo escritor
anarquista Hans Jaeger.
Ainda em 1885 inicia três obras da maior importância: O Dia Seguinte,
Puberdade e A Criança Doente. Este último, motivado pela lembrança da doença
e morte da irmã, marca seu primeiro rompimento com o impressionismo em
38
favor de uma intensa expressão pessoal, semente para trabalhos posteriores de
grande carga emocional, fundamentados em suas próprias recordações pessoais.
No ano seguinte, este quadro escandalizaria o público na Exposição de Outono de
Kristiania.
Em abril de 1889, Munch, ainda bem jovem, realiza sua primeira
exposição individual (63 quadros e numerosos desenhos) na Associação de
Estudantes de Kristiania. Visto como ousadia por uns, impressiona pela
intensidade e profundidade de seu trabalho. Christian Krohg, seu orientador,
escreveria uma entusiástica crítica no jornal Dagbladet (SONNBERGER, 1996):
“Ele pinta – ou melhor dizendo – vê as coisas de uma maneira
diferente em relação a outros artistas. Só vê a essência e,
conseqüentemente, só pinta isso. É por esse motivo que os
quadros de Munch via de regra são ‘não-terminados’, como as
pessoas têm tanto prazer em dizer. Ah, sim! Estão terminados.
Terminados por suas mãos. A arte está completa quando o
artista diz tudo o que realmente tem a dizer, e essa é a
vantagem que Munch tem sobre várias gerações de pintores;
ele tem a rara capacidade de nos mostrar como se sentiu e o
que o impulsionou, fazendo com que todo o resto se torne sem
importância.”
Em 1889 seu desempenho como artista é reconhecido e ele recebe uma
bolsa de estudos do governo norueguês que lhe permite residir na França por
longos períodos nos três anos subsequentes, bem como tomar contato com as
mais recentes tendências da arte europeia. Em novembro, enquanto reside em
Paris, seu pai vem a falecer.
Em 1892, Munch é convidado a expor na Associação de Artistas de
Berlim. A recepção da crítica e do público é tão adversa que ocasiona o
fechamento da exposição em uma semana. Mesmo assim, o pintor é bem
recebido pela sociedade artística de Berlim. Aos poucos, aproxima-se do círculo
literário mais radical, centrado na figura de August Strindberg. Embora
predominantemente escandinavo, o grupo também incluía o crítico e historiador
da arte alemão Julius Meier-Graefe, escritor polonês Stanislaw Przybyszewski e o
jovem poeta alemão Richard Dehmel. Os interesses do grupo, bem ao gosto
“decadente” então em voga, estavam ligados ao simbolismo, à filosofia de
Nietzsche e, sobretudo, à psicologia e fantasias sobre morte e erotismo, o que
sugere ter havido mútua influência entre as ideias deste grupo e a temática de
Munch, particularmente suas imagens de amor, morte e angústia. Em 1893,
pinta O Grito.
39
Entre 1895 e 1898, Munch volta a residir em Paris, onde convive com um
círculo de artistas e músicos. Sua carreira como artista gráfico inicia-se em
Berlim em 1894, com água-forte e litografia, e mais tarde prossegue com
xilogravura, já em Paris. É convidado a ilustrar uma das edições de As Flores do
Mal, de Baudelaire, projeto interrompido devido à morte do editor. Faz cartazes
para Peer Gynt, de Ibsen, expõe no Salon des Indépendants e no Salon de l’Art
Nouveau.
Segue-se um período intenso de viagens, exposições e encomendas para
vários projetos em diversos países da Europa, principalmente Noruega, França e
Alemanha e, ocasionalmente, Itália, Suíça, Áustria e Tchecoslováquia. Em 1906
desenha o cenário para Fantasmas e Hedda Gabler de Ibsen para o teatro de
câmara de Max Reinhardt, em Berlim.
Por todo o período em que reside fora de seu país natal, a vida pessoal
de Munch é instável e desregrada; dificuldades financeiras, decepções amorosas,
saúde frágil, alcoolismo. Em 1908, no mesmo ano em que expõe junto com o
grupo Die Brücke, em Dresden, sofre um colapso nervoso que o obriga a
internar-se por oito meses na clínica do Dr. Jacobson, em Copenhagen.
Na primavera de 1909, retorna à Noruega, decidido a levar uma vida
reclusa, sediado em seu país. Continua a trabalhar e realiza muitas exposições,
viajando ocasionalmente. Em 1912, recebe uma sala especial na famosa
exposição Sonderbund, em Colônia, Alemanha, onde é reconhecido como a maior
influência viva no desenvolvimento da arte moderna europeia. No ano seguinte,
em Berlim, Munch e Picasso são os únicos artistas estrangeiros convidados a ter
salas especiais na Exposição de Outono, em reconhecimento à importância de
ambos para a nova geração de artistas alemães. Assim como seu contemporâneo
espanhol, Munch viveu o bastante para presenciar ainda em vida o tardio
reconhecimento de seu valor artístico.
Em 1937, os nazistas rotulam 82 obras de Munch em museus alemães de
“degeneradas”. São retiradas e vendidas.
Em 23 de janeiro de 1944, morre tranquilamente em sua casa em Ekely,
Noruega, aos 80 anos. Deixa em testamento, para a cidade de Oslo, sua
propriedade e todos os seus trabalhos que estavam em seu poder: cerca de
1.000 pinturas, 15.400 gravuras em água-forte, litografia e xilogravura, 4.500
40
aquarelas e desenhos e seis esculturas. O município abre o Munch-Museum em
1963, por ocasião do centenário de seu nascimento.
2.2. Contexto histórico: a civilização industrial e a formação
da sociedade burguesa
Edvard Munch viveu e produziu sua obra numa conturbada época de
profundas transformações sócio-econômicas e culturais. Sustento-me
principalmente nos historiadores Hobsbawm (1998), Mayer (1990) e Clark
(2004) para traçar um panorama do período.
Ao longo do século XIX, desenvolve-se, na Europa, a era industrial. Muito
além da mecanização da produção industrial e da organização do sistema fabril,
significava a implantação da economia moderna, de base capitalista, sustentada
pela ascendente burguesia, que transformaria as relações de produção
promovendo um crescente consumo e tornando as relações sociais
substancialmente mais competitivas.
O capitalismo industrial liberal, em sua primeira fase, havia se iniciado
com a Revolução Industrial inglesa em 1760 e perduraria até meados de 1870. É
característico deste período, além da utilização de máquinas movidas a vapor, a
divisão do trabalho e a total liberdade econômica da burguesia ao produzir e
comercializar as mercadorias produzidas, comprar matérias-primas e fixar os
salários dos operários.
Grandes contrastes daí derivariam, aceleradamente, entre a abastada
burguesia e a exploração cada vez maior do operariado. Esse processo
fomentaria o aparecimento dos sindicatos e grupos políticos em defesa dos
interesses da massa de trabalhadores desfavorecidos, o socialismo marxista e o
anarquismo, a partir de 1840.
Devido à nova ordem sócio-econômica, as estruturas urbanas são
fortemente afetadas pelo súbito aumento populacional, fato que gera
crescimento desordenado e necessidade de drásticas reformas urbanísticas e
41
sanitárias nos principais polos econômicos europeus, além do forte movimento
emigratório em países como Inglaterra e Alemanha.
A partir de 1830, o assombroso desenvolvimento urbano acompanha as
rotas das estradas de ferro, interligando os centros industriais e mobilizando
mão-de-obra rural tanto para as obras públicas como para o próprio trabalho nas
indústrias, o que dá origem a uma população que viria a ocupar a periferia das
grandes cidades. Até o campo é afetado pela industrialização, acelerando os
modos de produção agrícola que irão abastecer os centros urbanos. A
racionalização do trabalho agrícola gera excedente populacional rural que
também se dirige à periferia urbana, estimulando a implantação de indústrias
nos subúrbios.
Os procedimentos práticos obtidos a partir de experimentos científicos
eram diretamente aplicados na produção industrial. A elite burguesa se
apropriava desse conhecimento, usando-o em prol de seus interesses
econômicos, a exemplo do desenvolvimento das indústrias química e siderúrgica
e da energia elétrica.
O industrialismo torna-se o propósito central das potências econômicas
emergentes; motivadas por essa euforia, organizam exposições universais de
ciência, artes, arquitetura e tecnologia, em cidades como Paris, Londres, Viena,
entre outras. As exposições universais simbolizavam a essência da modernidade
do século XIX: o progresso obtido a partir da ciência e da indústria; a liberdade
compreendida como livre mercado; o cosmopolitismo implícito na idéia de que o
conhecimento humano e a produção não teriam limites e, portanto, nem
fronteiras. Verdadeiras “odes à máquina”, para esses eventos eram construídos
imensos edifícios temporários, cujo objetivo era expor o progresso tecnológico e
o desenvolvimento de novos materiais, principalmente o aço e o vidro. O mais
célebre deles é, provavelmente, a Torre Eiffel, que por fim não foi desmontada
ao final da Exposição Universal de 1889, ocorrida em Paris.
Nas ciências, havia a tendência a negar as interpretações metafísicas
impostas há séculos pela igreja. No âmbito da filosofia e sociologia, o positivismo
de Auguste Comte (1798-1857) propõe-se audaciosamente a modificar a
sociedade por meio de um novo paradigma social. Opõe-se às doutrinas
teológicas, criando um sistema de valores humanista voltado para a nova
realidade que o mundo vivia na época do capitalismo industrial, baseado no
42
método experimental e na observação direta da natureza. Comte divide os
fenômenos naturais em sete categorias (matemáticos, astronômicos, físicos,
químicos, biológicos, sociais e psicológicos), regidas, segundo ele, por leis
naturais. Trata-se, portanto, de uma filosofia determinista e racionalista, que
coloca o homem na privilegiada posição de domínio da natureza, cujas “leis”
podem ser descobertas pela observação, organizadas pela ciência e aplicadas
pela tecnologia, em seu próprio benefício. Inclusive os problemas sociais,
segundo sua doutrina, podem ser examinados cientificamente, com o mesmo
tratamento deferido às ciências naturais.
Paralelamente, o naturalista Charles Darwin (1809-1882) publica, em
1858, em conjunto com Alfred Russel Wallace (1823-1913), outro pesquisador
que chegara a conclusões muito semelhantes às suas concomitantemente, sua
controvertida teoria acerca da origem das espécies por meio da seleção natural e
sexual, que desafiava frontalmente a doutrina religiosa da criação. Para se ter
uma ideia de como o industrialismo havia contaminado a sociedade, a cultura e a
ciência de então, Darwin, ao se interrogar sobre a questão da variação de
gêneros que geram espécies diversificadas, encontra uma solução ao traçar uma
analogia dos gêneros com a divisão do trabalho na indústria.
Ideologicamente, forma-se uma visão de mundo mecânica e utilitarista
que leva a sentimentos de frustração, impotência e insegurança, porque tudo o
que era familiar e seguro desaparecia, dando lugar ao efêmero. Na concepção
ideológica desse momento, o novo é sempre melhor que o velho, o produto
industrial sempre melhor que o artesanal, o acúmulo desmedido de bens traz
felicidade, o cientificismo é valorizado em detrimento da intuição, a razão
sobrepõe-se à emoção. Em suma, todos os aspectos da vida, mesmo
cotidianamente, voltam-se a um pragmatismo sem precedentes. A divisão do
trabalho ocasiona a perda do sentido do conhecimento do todo, o sentido
enciclopédico dos séculos XVII e XVIII. O saber científico se fragmenta em áreas
altamente especializadas, dirigido aos interesses da produção industrial. A moral
e antigos costumes modificam-se rapidamente frente a um crescente
individualismo. Enfim, é instaurado, nesse momento histórico, um processo de
reestruturação social que indubitavelmente atinge todos os aspectos da vida
humana: dinâmica social, política, expectativas pessoais, senso estético.
43
As preferências estéticas, apesar de sofrerem influência da
industrialização, voltam-se paradoxalmente para o neoclassicismo, amplamente
difundido em todas as manifestações artísticas, graças ao academicismo. No
âmbito da pintura, surgem grupos voltados ao resgate de estéticas do passado,
como os Nazarenos, na Alemanha (1809) e os Pré-Rafaelitas na Inglaterra
(1848). Tem-se, assim, nas nascentes nações industriais, uma produção artística
notadamente anacrônica e estagnada.
Isto se deve ao fato de, durante todo o século XIX e início do século XX,
a burguesia ter copiado e se apropriado dos modos da nobreza, por nutrir o
desejo de ascender a ela. Evidentemente, assim agiam não apenas para atender
a preocupações de ordem material, mas também por status social e pela
satisfação na esfera psíquica. Como resultado, ao negarem a si próprios na
esperança de serem aceitos pela ordem estabelecida, os burgueses
aristocratizantes enfraqueciam sua consciência de classe, relegando a si mesmos
uma posição social subalterna, o que implicava na veneração do passado
encarnado nos ideais clássicos, como bem ilustra Mayer (1990, págs. 23 e 24):
“Como parte de seu empenho em escalar a pirâmide social e
demonstrar sua lealdade política, os burgueses abraçaram a
alta cultura historicista e patrocinaram as instituições
hegemônicas que eram dominadas pelas antigas elites. O
resultado foi o fortalecimento das linguagens, convenções e
símbolos clássicos e acadêmicos nas artes e nas letras, em vez
do estímulo aos modernistas. Os burgueses se permitiram ser
envolvidos por um sistema cultural e educacional que defendia e
reproduzia o ancien régime. Neste processo, minaram seu
próprio potencial capaz de inspirar a concepção de uma nova
estética e um novo entendimento.”
É digno de nota que a alta cultura clássica contava com imenso apoio
estatal. Os governos patrocinavam atividades artísticas individuais e coletivas;
museus, academias de arte e conservatórios ofereciam formação, acesso à
carreira e premiações oficiais, financiados majoritariamente com recursos
públicos, com o assentimento das igrejas e universidades.
A partir de 1870 inicia-se uma segunda revolução industrial, que
vigoraria até 1945, conhecida como capitalismo industrial monopolista, com o
fim do livre comércio. Os preços das mercadorias passam a ser fixados por
trustes, cartéis e holdings, associações entre empresas independentes que não
competem entre si a fim de determinar preços e dividir mercados. Nesta segunda
fase, emergem como promissoras nações industriais os EUA e o Japão. Os países
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escandinavos, que se encontravam em atraso em comparação à maior parte da
Europa ocidental, arrancam em direção à modernização da economia. A África, a
Ásia e a América Latina são regiões de forte domínio imperialista por países
europeus (Inglaterra, França, Alemanha, Portugal, Espanha, Itália e Bélgica),
que ali se serviam de matéria-prima e alimentos em abundância. Não obstante
seu inegável progresso, o capitalismo sofre uma violenta crise que o obriga a um
reajuste político e econômico nesse período, devido também à independência dos
países latino-americanos, ocorrida na primeira metade do século.
O aspecto central do período que Hobsbawm (1998) define como a “Era
dos Impérios”, compreendida entre 1875 e 1914, é o colapso da sociedade
burguesa em seu apogeu, vitimada pelas contradições inerentes à sua ascensão.
Nessa era, as instituições políticas e culturais do liberalismo burguês são
estendidas – ou estavam a ponto de serem estendidas – ao operariado que vivia
em sociedades burguesas e, inclusive, pela primeira vez na história, às mulheres.
Este fato, porém, força que a burguesia liberal, que era a classe dominante,
fique à margem do poder político. Isto porque as democracias eleitorais, fruto do
progresso liberal, acabam por destruir o liberalismo burguês enquanto força
política na maior parte da Europa e América.
A estrutura moral tradicional burguesa viria a ser arruinada por sua
própria acumulação de riqueza e conforto, gerando uma profunda crise de
identidade e inevitável transformação. Como classe dirigente, a burguesia seria
abatida pela evolução natural de seu sistema econômico; até mesmo as grandes
empresas viriam a substituir o modelo familiar pelas sociedades anônimas em
sua propriedade e administração.
2.3. As artes no final do século XIX: o nascimento do
modernismo
Para descrever o desenvolvimento das artes neste período, apoio-me
essencialmente em Argan (1992), Beckett (2002), Chipp (1999), Guerra (1978),
Lucie-Smith (1991), Mackintosh (1977) e Sweetman (1998).
45
Nas artes desse período, a já conhecida oposição entre artistas e
burgueses torna-se mais evidente. Enquanto uma parcela dos artistas rende-se
ao mercado e produz obras que atendam às aspirações burguesas, emerge,
desde meados do século XIX, um novo olhar para o mundo, uma reação às
cristalizadas convenções do academicismo. Nas obras de Daumier (1808-1879) e
Millet (1814-1875), para exemplificar, vê-se retratada essa civilização inquieta e
contraditória; a poesia de Baudelaire (1821-1867) transmite a angústia do
homem oprimido pela sociedade industrial; as obras de Courbet (1819-1877) ou
Flaubert (1821-1880) escancaram os conflitos sociais advindos da
industrialização e criticam abertamente o sistema capitalista.
Essa reação, que obviamente choca a Academia, é rotulada de
“realismo”. Em meio à crise de valores da sociedade industrial burguesa,
significa, para as gerações de artistas que lhe sucederiam, a decisiva abertura
dos caminhos estéticos para a modernidade. Este é o caso do impressionismo, o
primeiro dos movimentos artísticos contemporâneos. Detenho-me um pouco
mais sobre ele, pois a expressão e abordagem estética de Munch só pode ser
compreendida a partir da ruptura feita por este movimento.
Entre 1860 e 1870, reúne-se, em Paris, um grupo de pintores que
deliberadamente opunham-se à arte acadêmica “oficial”. Motivados pelas
descobertas científicas e pelo desenvolvimento tecnológico de sua época,
buscavam um novo estilo de pintura que traduzisse a vida moderna da sociedade
que retratavam. Negavam os temas idealizados ligados às poéticas do passado e
queriam pintar sem o artificialismo da luz dos ateliês; pintavam ao ar livre para
captar os efeitos fugazes da luz e obter a real impressão de transitoriedade.
Foram, por isso, denominados “impressionistas18”.
Seus principais expoentes são Claude Monet (1840-1926), Edgar Degas
(1834-1917), Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Camille Pissarro (1830-1903)
e Alfred Sisley (1839-1899). Édouard Manet (1832-1883), tido como precursor,
não integrava o grupo. Fortemente influenciados pela fotografia e pela pesquisa
científica, desenvolvem uma técnica pictórica baseada em suas experiências
18 Segundo Beckett: “O termo ‘impressionismo’ surgiu por ocasião da primeira mostra do
grupo, em 1874, de um comentário irônico que o jornalista Louis Leroy fez de uma obra
de Monet intitulada Impressão, sol nascente. Afirmou, na época, que ‘papel de parede
em estado rudimentar’ era mais bem acabado que a obra de Monet, e que aqueles
artistas eram ‘meros impressionistas’.” (BECKETT, 2002, pág. 294).
46
ópticas, com linguagem que se assemelha à espontaneidade das tomadas
fotográficas. Não por acaso, a primeira exposição do grupo dá-se no estúdio do
fotógrafo Félix Nadar (1820-1910), em 1874. Resultam dessa técnica obras de
aparência tosca e inacabada, com estranhas poses e enquadramentos das
figuras, pintadas com rápidas pinceladas de tintas não-misturadas sobre uma
tela previamente preparada com branco, para conferir maior luminosidade às
cores. Podemos ter uma ideia mais precisa desse processo com a descrição de
Arno Mayer (1990, pág. 202):
“Na verdade, os impressionistas foram radicais apenas na
medida em que se levantaram contra as convenções
acadêmicas fossilizadas, abandonando a imitação e a
reprodução estéril do passado, em favor de representações
vigorosas da vida moderna. Foi Manet, seu avant-courier, o
primeiro a declarar que queria pertencer ‘ao seu tempo’ e pintar
‘o que via’. Em outras palavras, inspirados por Courbet, os
impressionistas foram antes e acima de tudo realistas que
romperam com as lendas cristãs, a lisonja social e a estética
acadêmica, a fim de revelar, e não interpretar, o mundo a seu
redor.”
A evolução desse processo de pintura culmina com o pontilhismo
(também conhecido como divisionismo ou neo-impressionismo), em que a ideia
de produzir uma arte embasada cientificamente é levada ao extremo. É iniciado
em 1886 por Georges Seurat (1859-1891), seguido por Paul Signac (1863-1935)
e Maximilien Luce (1858-1941), entre outros. Procuravam fazer ciência através
da pintura, ou, ainda, instituir uma “ciência da pintura”, baseada nas teorias
ópticas de Chevreul, Rood e Sutton, principalmente na Lei dos Contrastes
Simultâneos de Eugène Chevreul (1786-1889). Esta consistia em recompor, na
visão do observador, a unidade do tom através da justaposição de cores
complementares puras, sem misturá-las (cores “ópticas”). O resultado na pintura
eram composições figurativas formadas por inúmeros pontos coloridos.
Devido a seu aspecto técnico–científico, o pontilhismo veio ocupar um
dos papéis centrais no vasto movimento modernista, que visava ao resgate da
pintura de seu caráter puramente artesanal, tido, na época, como inferior
quando comparado ao desenvolvimento tecnológico do nascente processo de
industrialização. Embora um breve movimento na pintura, anteciparia o processo
industrial de matrizes de impressão por retícula que originaria o off-set, método
revolucionário de impressão industrial em cores.
47
Apesar de inovadora, a pintura de Seurat foi rechaçada pelos
impressionistas, criticada abertamente por Monet e Renoir. Teve o apoio de
Pissarro, que aderiu ao estilo por um breve período, abandonando-o em seguida.
A importância de destacar essas correntes artísticas revolucionárias reside
também no fato de Munch, tendo começado a pintar em 1880 e estudado em
Paris a partir de 1885, ter sofrido influência da obra de Manet, dos
impressionistas e neo-impressionistas, como detalharei mais adiante.
A prematura morte de Seurat deixa em aberto um caminho que parecia
ter sido por ele esgotado. Não obstante, os impressionistas haviam deixado um
legado impossível de ser ignorado: a partir deles, os pintores passaram a
entender que a visão depende de como e quando se vê, vinculando a
representação pictórica tanto à percepção quanto ao tempo, destruindo o
conceito anteriormente vigente de verdade objetiva da natureza. Aos pintores
que a eles sucederam restava prosseguir sem ignorar essa fundamental
conquista.
Tendo em comum somente o fato de haverem partido do impressionismo,
surgem grandes pintores singulares: Paul Cézanne (1839-1906), Vincent Van
Gogh (1853-1890), Henri Toulouse-Lautrec (1864-1901), Paul Gauguin (1848-
1903). Alguns historiadores denominam genericamente “pós-impressionistas” o
conjunto de artistas que atuou nas duas últimas décadas do século XIX e na
primeira do século XX, período também de florescimento do simbolismo, com
destaque para o grupo dos nabis: Paul Sérusier (1863-1927), Edouard Vuillard
(1868-1940), Pierre Bonnard (1883-1968), Maurice Denis (1870-1943), entre
outros. Se o impressionismo já se apresentava como um fenômeno altamente
individualizado, isso apenas se acentuaria em seus sucessores.
Os simbolistas formavam um grupo de pintores estilisticamente
heterogêneo, mas com uma temática comum: contrariamente ao cientificismo
puro em voga na época, voltavam-se para o mistério e a espiritualidade,
herdeiros da estética do romantismo. O simbolismo não pretendia ser a antítese
do impressionismo, mas sua superação, ao trazer o universo supra-sensível ao
mundo visível. A multiplicação dos temas místicos na arte desse período pode ser
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atribuída à grande difusão do ocultismo pela Europa, a partir da segunda metade
do século XIX19.
A chave da arte, para os simbolistas, era promover o deslocamento da
vida burguesa ao “ser tocado” por algo de outro mundo. Para tanto, valiam-se de
símbolos, metáforas e alegorias para dar forma ao mundo das ideias mediante a
imaginação, de maneira que apenas o essencial fosse retido, aquilo que arrebata
o espírito. Para muitos autores, a temática e expressão de Munch insere-se
nesse ideário estético, que não foi organizado propriamente como um
movimento na pintura, mas teve alguns grupos que partilhavam ideias afins, a
exemplo do Salon Rose-Croix, encabeçado por Josephin Péladan. Não obstante,
tendo em vista a vasta amplitude geográfica que atingiu e a diversidade de
expressões plásticas que teve, é possível reunir os diferentes artistas em torno
de um cerne comum, eis porque exponho a seguir o que significou essa corrente
estilística.
O simbolismo tem suas raízes na poesia: Stéphane Mallarmé (1842-
1898), Paul Verlaine (1844-1896), Arthur Rimbaud (1854-1891), Jean Moréas
(1856-1910), Gustave Khan (1859-1936), René Ghil (1862–1925), Joris-Karl
Huysmans (1848-1907), Paul Valéry (1871-1945), que já encontravam em
Charles Baudelaire (1821-1867) um precursor. Como movimento literário, teve
um manifesto publicado por Jean Moréas em 1886. Havia um consenso de que a
arte deveria ser sinestésica; pela primeira vez, afirmava-se que a pintura deveria
ser poética e musical, enquanto a poesia e a música deveriam ser pictóricas. É
digna de nota a música de Richard Wagner (1813-1883), que inspira em
Mallarmé a profunda convicção de que a música pode sublimar a linguagem
dramática e vir a ser o motor do processo simbólico. Um dos mais importantes
pintores simbolistas, Gustave Moreau, inspirava-se na música de Wagner para
compor seus quadros como poemas sinfônicos.
19 O historiador Rui Sá Silva Barros (1999) relata em detalhes a ocorrência de uma
grande difusão do esoterismo no mundo ocidental, particularmente na França, Inglaterra
e EUA no período de 1848 a 1914. A título de orientar o leitor, cito alguns dos principais
expoentes desse período: Helena Petrovna Blavastky (teosofia); Rudolf Steiner
(antroposofia); Alan Kardec (espiritismo); Eliphas Lévi, (magia cerimonial, cabalismo
cristão); Stanislau de Guaita, Oswald Wirth, Josephin Péladan, Papus (rosacruzes); Mac
Gregor Mathers, Arthur Edward Waite, Aleister Crowley (Ordem Hermética da Aurora
Dourada).
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Lado a lado com o oculto, místico e transcendental, comparecia a fixação
pela ideia da morte, da doença, do erotismo e da perversidade, fortemente
influenciada pela prosa fantástica de Edgar Allan Poe (1809-1849). Por causa
disso, o movimento é desdenhosamente denominado "decadentismo", apelido
acatado pelos próprios artistas, não apenas em oposição ao lirismo neo-clássico,
como também uma clara alusão à decadência dos valores morais então vigentes.
O simbolismo foi um movimento de intensa expressão internacional,
tendo florescido em praticamente todos os países da Europa ocidental, inclusive
na Escandinávia, além de alguns países da Europa oriental, chegando até aos
Estados Unidos da América. Não obstante seu cosmopolitismo, o movimento
conciliou-se com a afirmação dos vários estilos locais, sendo a representação de
temas mitológicos nacionais particularmente importante na Europa Central,
Alemanha e Escandinávia.
Os principais nomes, na pintura, são Aubrey Beardsley (1872-1898),
Arnold Böcklin (1827-1901), Henri Fantin-Latour (1836-1904), Fernand Khnopff
(1858-1921), Max Klinger (1857-1920), Frantisek Kupka (1871-1957), Gustave
Moreau (1826-1898), Alfons Much