RENAN RIVABEN PEREIRA SEMANA ILUSTRADA, O MOLEQUE E O DR. SEMANA: imprensa, cidade e humor no Rio de Janeiro do 2º Reinado. ASSIS 2015 RENAN RIVABEN PEREIRA SEMANA ILUSTRADA, O MOLEQUE E O DR. SEMANA: imprensa, cidade e humor no Rio de Janeiro do 2º Reinado. Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em História (História e Sociedade) Orientadora Prof.ª Dr.ª Tania Regina de Luca. ASSIS 2015 AGRADECIMENTOS Primeiramente, gostaria de agradecer os órgãos que deram sustentabilidade institucional à pesquisa e, principalmente, seus funcionários que sempre me trataram com muita cordialidade e dedicação. Agradeço ao Departamento da Pós-Graduação (UNESP/Câmpus Assis), à Biblioteca Acácio José Santa Rosa, ao Centro de Documentação de Apoio à Pesquisa Profa. Dra. Anna Maria Martinez Corrêa (CEDAP) e a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Expresso eterno agradecimento ao Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Aos funcionários, como Zaíra Teodoro de Oliveira, Clarice Gonçalves Rhumann e Regina Lúcia Gonçalves Truchlaeff. E aos professores, responsáveis pela minha formação e pelo meu desejo de continuar remexendo documentos e histórias. Entre eles, destaco as excelentes aulas, encontros, conselhos e indicações da prof. Dra. Karina Anhenzini de Araujo e da prof. Dra. Lúcia Helena Oliveira Silva. Memorável também foram as palestras do prof. Dr. James Woodard da Montclair State University (New Jersey/USA). Sua passagem deixou extravagantes conhecimentos de historiografia brasileira e momentos valiosos de conversa e descontração. Não poderia deixar de mencionar a participação decisiva da Prof. Dra. Sílvia Maria Azevedo na minha trajetória. Orientadora da iniciação científica e membro da minha banca de qualificação, a professora enriqueceu a cada encontro minha visão acerca do objeto de pesquisa e, ainda, possibilitou-me conhecer abordagens, desafios e preocupações de outra área, a Literatura. Nada teria sido igual sem minhas idas para o Rio de Janeiro. Ver e ouvir de perto os autores que cotidianamente eu lia e relia foi revigorante, e melhor ainda, era encontrar a prof. Dra Laura Nery da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Com a sensação de estar em casa, tinha a possibilidade de compartilhar, pessoalmente, o mesmo entusiasmo que seus textos despertavam-me. Esbanjando inteligência e domínio teórico e histórico sobre o riso, Laura Nery mostrou-me o quanto uma pesquisa sobre revistas ilustradas do século XIX poderia ser interessante. Foi admirável lê-la e conhecê-la. Ainda entre os mestres, dois são inesquecíveis. Em sua passagem pela UNESP, conhecer o prof. Dr. Fernando Cândido da Silva e assistir suas aulas me deram a chance de repensar minha posição política enquanto historiador. Seus posicionamentos e sua bibliografia para o curso abriram-me caminho para uma mudança sensorial perante minha fonte e minha realidade. E como não agradecer a prof. Dra. Zélia Lopes da Silva? Além das críticas valiosas na qualificação, uma referência de como deve se comportar um professor. Atribuindo singularidade para cada aluno, acredito que foi ela que, ainda na graduação, leu com atenção e senso crítico os primeiros devaneios de um limitado contador/fazedor de histórias. Prof. Dra. Tania Regina de Luca, que grande oportunidade e prazer ter trabalhado e convivido com uma profissional desse calibre. Correções de textos, e-mails, encontros, reuniões, debates, momentos de tensão e descontração, tudo isso está guardado com muito carinho. Aprender, aprender e aprender, foi isso que busquei em cada instante ao seu lado. Quanta entrega, quanta dedicação, quanta paixão pela arte de historicizar que existe nela, um exemplo a ser seguido. Ícone da nossa historiografia, porém, acima de tudo, uma grande pessoa. Agradeço aos amigos do ofício que me ajudaram e me ensinaram. Danilo Bezerra, Breno Sabino, Leonardo Dallacqua de Carvalho, Camila Bueno, Henrique Sena dos Santos, Alexandre Andrade, Deivid Aparecido Costruba, Pedro Henrique Victorasso, Patrícia Trizotti e Anelize Vergara. Agradeço aos amigos “das antigas” e aqueles que encontrei e levei de Assis. É, eu sei, nesses meses árduos de conclusão da dissertação, eu esqueci o samba, o futebol e a recreação. Grato aos familiares. Aqueles que se preocupam e torcem sempre por mim, como meu pai, Irineu de Menezes Pereira. E o eterno agradecimento à minha grande amiga, aquela que admiro muito por tudo o que é, faz e pensa: Maria Regina Rivaben, uma mãe mais que especial. Lívia Bruzasco de Oliveira, que mulher! Que orgulho ter ela ao meu lado. Obrigado por mergulhar comigo nessa empreitada e ter tido participação efetiva. Ela lia, opinava, ajudava, reclamava e aclamava. Agradeço por fazer-me sentir forte quando estava fraco e, outras vezes, mostrar-me que ninguém era tão forte. Tudo para ela, tudo por ela. O ano de 2014 não foi fácil, quantas perdas e mortes. Pessoalmente, perdi meu avô, José Osvaldo Pereira, e meu amigo, André Michel de Andrade. Agradeço e também dedico esse trabalho a eles. PEREIRA, Renan Rivaben. Semana Ilustrada, o Moleque e o Dr. Semana: imprensa, cidade e humor no Rio de Janeiro do 2º Reinado. 2015. 188 f. Dissertação (Mestrado em História). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015. RESUMO A partir de 1860, dois personagens tornaram-se familiares aos leitores da imprensa fluminense: o Moleque e o Dr. Semana, figuras que se transformaram em sinônimo da publicação que lhes deu vida, a Semana Ilustrada. Nas edições semanais, o cenário urbano da corte ganhava traços caricaturais e o jovem escravo alfabetizado e seu senhor branco circulavam livremente pelas ruas, abordavam os rumos da política imperial, as apresentações artísticas dos teatros e denunciavam as condições precárias dos serviços públicos. Dentro de uma grande comédia dos cidadãos, os mendigos, ratoneiros, pretos tigres, leões do norte, políticos e sinhás namoradeiras estavam sujeitos a esbarrar no esperto menino de libré e seu ioiô de cabeça avantajada e cabeleira volumosa. Para compor um heterogêneo mapa citadino, a sociedade fluminense, suas relações sociais e seus hábitos públicos e privados eram expostos pelas crônicas e caricaturas que não deixavam de cultuar a fumaça industrial, as artes civilizadoras, os estudiosos da ciência e o tempo do progresso. Tendo em conta a longevidade da revista, que atravessou diversas conjunturas que particularizaram o Segundo Reinado, a Semana Ilustrada apresenta-se ao historiador como uma fonte instigante, que se entrelaçou à imprensa ilustrada oitocentista, à escravidão urbana do Rio de Janeiro, aos aspectos anatômicos, afetivos e morais dos habitantes e à lógica do riso e do humor da época. Palavras-chave: imprensa, humor, escravidão, Moleque, Dr. Semana e Semana Ilustrada. PEREIRA, Renan Rivaben. Semana Ilustrada, o Moleque e o Dr. Semana: imprensa, cidade e humor no Rio de Janeiro do 2º Reinado. 2015. 188 f. Dissertação (Mestrado em História). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015. ABSTRACT From 1860, two characters became familiar to the readers of the Fluminense Press: the Moleque and Dr. Semana, figures that have become synonymous with the publication that gave them life, the Semana Ilustrada. Weekly editions, the urban setting of the Court wincaricature traces and the young literate slave and his white Lord freely circulated in the streets, talked about the imperial politics directions, the artistic presentations of theatres and denounced the precarious conditions of public services. Inside of large citizens of comedy, the beggars, lurchers, black tigers, lions of North, politicians and flirt ladies were subjects to bump the smart boy of liveryand your yo-yo, of a big head and voluminous hair. To compose a heterogeneous map city, the Fluminense society, their social relations and their publicand private habits were exposed by the chronics and caricatures that did not fail to worship the industrial smoke, civilizing arts, the scholars of science and the time of progress.Having regard to the longevity of the magazine, that crossed several times in the Second Reign, the Semana Ilustrada presents itself to the historian as an exciting source, that intertwined to illustrated press of 19th Century, to urban slavery of Rio de Janeiro, to anatomic, emotional and moral aspects of the inhabitants and to logic oflaughter and humor of the time. Keywords: press, humor, slavery, Moleque, Dr. Semana e Semana Ilustrada. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 CAPÍTULO 1. Revistas e imprensa ilustrada no reinado de d. Pedro II. 18 1.1. Revistas em circulação no Rio de Janeiro em meados do séc. XIX. 20 1.2. Fleiuss e o projeto da Semana Ilustrada . 31 1.3. As revistas ilustradas humorísticas nas últimas décadas do Império. 37 1.4. O Moleque, o Dr. Semana e a Semana Ilustrada versus o Bazar Volante, O Mosquito, A Vida Fluminense, Angelo Agostini e a historiografia. 41 CAPÍTULO 2. A Semana Ilustrada e o Rio de Janeiro. 48 2.1. O progresso, a nação, os espaços urbanos e os trabalhadores. 50 2.2. O dispositivo de mostrar e rir: mulheres, tias e calcanhares. 65 CAPÍTULO 3. O Imperial Instituto Artístico e os impressos da seção Publicações. 88 3.1. O imperial Instituto Artístico. 89 3.2. A seção Publicações. 97 3.3. Publicações: Livreiros, tipógrafos, poetas, naturalistas e a mocidade Esclarecida. 110 CAPÍTULO 4. Dez anos depois: a Semana Ilustrada na década de 1870 122 4.1. O Sr. Brasil e a Guerra do Paraguai. 124 4.2. As Cruzadas da Semana Ilustrada. 128 4.3. Para além da corte. 134 4.4. De volta à cidade: operetas, vaudevilles, banhos de mar, bondes e a multidão. 143 4.5. A Lei de 1871 e a instrução de um povo. 160 CONCLUSÃO 171 REFERÊNCIAS 183 9 INTRODUÇÃO No dia 20 de novembro de 1864, era publicado no Rio de Janeiro um aviso sobre as reformas do estabelecimento phothographico de Matheus de Oliveira. Impresso como anexo da edição nº206 da revista Semana Ilustrada, o anúncio garantia trabalhos fotográficos coloridos, reproduções de quadros, retratos e tudo concernente à arte. Com maquinismo novo e peritos artistas, o estabelecimento declarava ter aparato suficiente para deixar os trabalhos em estado de perfeição. Figura 1 - Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 4, n°206, p. 9, 20 de nov. 1864. Localizado na Rua do Ouvidor nº123, a casa de produção fotográfica, impressão e reprodução de imagens, atestava o apelo comercial que a imagem gravada já tinha adquirido na corte. Não eram poucos os empreendimentos comerciais dessa categoria que operavam na cidade e que além de produzirem um amplo rol de gravuras avulsas, desenhos de engenharia civil e militar, retratos da família imperial e de figuras aristocráticas, esses estabelecimentos eram responsáveis pela impressão das revistas ilustradas que circularam no Brasil no século XIX. Ainda na primeira metade do século, a vinda de vários estrangeiros como Boulanger e Risso, Ludwing e Briggs, Larée, Heaton e Rensburg, Martinet, Cardoso, Lauzinger e Sisson permitiram que vários espaços de produção e reprodução de gravuras fossem estabelecidos no 10 Rio de Janeiro.1 A gravura afirmava-se como meio de expressão, transmissão da informação e, ainda, produto comercial, cabendo notar que até o período final da Regência, a imagem fazia alusão, predominantemente, aos atores políticos e eventos do poder político. Porém, durante Segundo Reinado, a direção acabou por se inverter e as imagens passaram a trazer os mais diversos espaços urbanos, situações cotidianas, relações pessoais, acontecimentos e fatos de interesse público.2 Apesar da longevidade e importância de grandes jornais como o Diário do Rio de Janeiro (RJ, 1821/1878), O Jornal do Comércio (RJ, 1827/2013) e a Gazeta de Notícias (RJ, 1875/1942), o Segundo Reinado é lembrado na história da imprensa pelo florescimento da reprodução de imagens e a circulação das revistas ilustradas humorísticas.3 Dentro desse gênero de impresso, a primeira folha periódica a publicar quantidade significativa de ilustrações a cada edição e desfrutar de grande sucesso por mais de quinze anos de vida foi a Semana Ilustrada (RJ, 1860/1876). Pela longevidade e consagração de um padrão estético, espécie de modelo para as folhas subsequentes, o semanário de Henrique Fleiuss tornou- se pioneiro de um novo gênero da imprensa brasileira. Ainda que a produção de imagens impressas e a circulação de periódicos de cunho humorístico não tenham começado com a Semana, é fato que esta publicação uniu, de forma inovadora, humor e ilustração o que a consagrou como referência incontornável nas três décadas seguintes. 1 Consultar em: FERREIRA, Orlando da Costa. Introdução à bibliologia brasileira: imagem gravada. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo. 1994, p. 366. 2 SANTOS, Renata. A imagem gravada no Rio de janeiro entre 1808 a 1853. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008, p.83/94. Além, de explicitar o surgimento de novas perspectivas e temas abordados pela imagem litográfica, essas páginas trazem ilustrações das litografias de crítica política desenhadas por Rafael Mendes de Carvalho e Araújo Porto Alegre, e também a série Costumes do Brasil de Joaquim Lopes de Barros Cabral Teives, que retratou, em cinqüenta litogravuras trabalhadores(as) negros(as). Ambos os trabalhos foram produzidos no ateliê Litografia do Comércio, de posse de Frederico Guilherme Briggs. 3 CARDOZO, Rafael. Origens do projeto gráfico no Brasil. In: CARDOZO, Rafael (org.) Impresso no Brasil, 1808- 1930: destaques da história gráfica no acervo da Biblioteca nacional. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2009, p. 76. 11 Figura 2 - Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 4, n°206, p. 9, 20 de nov. 1864. A Semana Ilustrada começa sua viagem humorística pela América Meridional Composta por crônicas, ilustrações, caricaturas, contos e críticas teatrais o periódico de Henrique Fleiuss comentava, semanalmente, os espetáculos musicais, teatrais, as reuniões e bailes do Clube Botafogo e Fluminense. Nas ruas, era a denúncia dos problemas urbanísticos da cidade que motivava as crônicas, como passeios públicos inadequados, falta de arborização, insalubridade, inundações e a problemas no abastecimento de água. No mesmo teor de criticidade, a precariedade dos serviços públicos, como o correio, a alfândega, os fiscais das águas paradas e a polícia eram anotados. Para comentar, rir e compor as caricaturas que abordavam essas e outras questões, Henrique Fleiuss criou dos irreverentes personagens: o Moleque e o Dr. Semana. Grandes destaques da publicação, o mais novo da dupla era um jovem escravo alfabetizado, sempre pronto para auxiliar seu senhor branco, uma figura bizarra, dotada de cabeça avantajada, coberta por vasta cabeleira e que cultivava relações com a elite e circulava livremente pela corte, o que lhe oferecia oportunidades para observar condutas, acompanhar fatos e comentá- los com seu leal companheiro. Caricaturados exaustivamente na revista, muitas das capas da edição traziam as andanças da dupla pelos cenários públicos da corte. 12 Figura 3 – Semana Ilustrada, ano2, n°70, capa, 13 de abril 1862. - Que edifício é esse nhonhô? - É a Câmara Municipal, onde trabalham nove cidadãos prestantes para o bem público. - Ah... E este campo tão sujo? - Isto é o jardim da mesma Câmara, serve de norma para que os fiscais aprendam a cuidar da limpeza nas ruas. - De tal maneira, eu também queria ser fiscal, nhonhô A Semana Ilustrada singularizava-se por fazer jus ao adjetivo “ilustrada” e pelo predomínio da comicidade, em que o contexto urbano do Rio de Janeiro ganhava expressão imagética a cada novo número. Ademais, às peças e concertos, os problemas das ruas e a crítica sobre a maneira vagarosa que o país caminha atrás do progresso, outra intenção da publicação era transformar suas páginas em uma “grande comédia urbana”. Com uma sátira de costumes, que tinha em Molière o grande exemplo cômico, a revista recriava em suas páginas personagens que circulariam pelos salões, teatros, ruas e passeios públicos da Capital do Império. Dos pretos de ganho, mucamas e moleques às sinhas namoradeiras, esposas adulteras e os vergonhosos velhos conquistadores, a publicação compôs de forma caricatural um quadro social da corte. A pesquisa inicia-se pelos bastidores da imprensa oitocentista, seus impressores, litógrafos e tipografias, perpassa pela Rua do Ouvidor, o Campo de Santana, os bondes, o Teatro Ginásio e escolas privadas, para terminar nos calcanhares dos pretos pedreiros, na posição de cócoras das lavadeiras e nas panturrilhas das belas representantes do “belo sexo”, retratos íntimos que não se desvencilhavam dos signos de poder racial, social e sexual que marcavam as relações do imperialismo europeu com outras regiões, povos e grupos do período. Na Semana Ilustrada, tomada aqui como fonte/objeto, entrecruzavam-se hierarquia, escravidão, distinções sociais, 13 raciais e humor, o que evidencia o potencial analítico da publicação para a compreensão do período. Tomada como espaço de fermentação intelectual e de relações afetivas,4 o grupo responsável pela revista debateu questões como progresso, nação, monarquia, a cidade do Rio de Janeiro, a higiene e os serviços públicos, a imprensa, os espaços urbanos, mas ainda, os trabalhadores (as), as mães, as tias e os mendigos, ou seja, a sociedade fluminense, suas relações sociais e seus hábitos públicos e privados. Para abordar alguns aspectos desse universo complexo, o trabalho está organizado em quatro capítulos. O primeiro tem por objetivo traçar um panorama da imprensa oitocentista e especificar os impressos contemporâneos da Semana Ilustrada, suas tendências editoriais, projeto gráfico, agentes, colaboradores da pena e do lápis que dividiram o cenário público com a revista de Henrique Fleiuss. Procurou-se evidenciar que, antes do predomínio do gênero humorístico, revistas de cunho literário e científico, ou seja, cujos temas mais recorrentes eram arte, literatura, filosofia e doutrinas científicas, marcaram as décadas de 1840 e 1850. Nesse momento, já se anunciavam publicações diversas, em termos de formato, número de páginas e conteúdo menos denso, como atestam os impressos lançados por Manuel Araújo Porto Alegre e Paula Brito, para citar apenas os nomes mais destacados, que lançaram folhas que se valiam de ilustrações e do humor, para abordar comportamentos, teatro e moda. Ideias, tendências e valores vigentes no velho mundo que atravessavam o oceano e chegavam até nós via livros e impressos periódicos e que provocavam suspiros numa elite que sonhava com Londres e, sobretudo, Paris, mas tinha que lidar com a realidade de uma nação recém-formada nos trópicos, cuja economia era essencialmente agrícola, dependente do trabalho escravo e com a grande maioria da população analfabeta. Em seguida aborda-se a Semana Ilustrada, que caiu no gosto do público ao aliar humorismo e sátira às notícias relativas às peças e concertos que entretinham a chamada “boa sociedade” fluminense. O grande destaque da publicação eram os personagens Dr. Semana e Moleque, dupla a partir na qual se materializava a empreitada satírica da revista, que incluía a denuncia a propósito da precariedade dos serviços públicos, como o correio, a alfândega ou a segurança. Sempre prontos para apontar as mazelas e as adversidades e, ao mesmo tempo, fazer troça das desgraças, a dupla composta por um senhor e um escravo era litografada em cenas 4 SIRINELLI, Jean François. Os intelectuais. In: RÉMOND, Rene. (org.) Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 249. 14 urbanas (praças, ruas, casas comerciais), interior de residências, tipografias e salões que deixavam entrever a força da presença escrava no Rio de Janeiro. Por último, ênfase é sobre revistas como o Diabo Coxo (SP, 1864/1865), Cabrião (SP, 1866), O Mosquito (RJ, 1869/1877) A Vida Fluminense (RJ, 1868/1875), O Mequetrefe (RJ, 1875/1893), Ba-Ta-Clan (RJ, 1867/1872), O Psit!!! (RJ, 1877), O Besouro (RJ, 1878/1879) e a Revista Ilustrada (RJ, 1876/1898) que indicam a diversidade de publicações humorísticas ilustradas que tinham por referência, em termos de formato e padrão estético, o modelo inaugurado pela Semana Ilustrada, ainda que expressassem posicionamentos políticos distintos e chegassem mesmo a reivindicar transformações sistêmicas para o país. Com freqüência, o Moleque e o Dr. Semana eram mencionados e se faziam presentes nessas folhas, o que evidencia o sucesso e centralidade ocupada pela revista de Fleiuss. Com um balanço historiográfico acerca da imagem negativa construída sobre Fleiuss e sua revista, buscou-se repensar essas ideias e relativizar a oposição, consagrada na historiografia, entre Henrique Fleiuss e Angelo Agostini. No segundo capítulo, a análise volta-se para a cidade do Rio de Janeiro no início da década de 1860, tal como representada nas páginas da Semana Ilustrada. Frente às epidemias de febre amarela (1850) e de cólera (1855), que resultaram na criação da Junta Central da Higiene,5 a revista de Fleiuss preocupava-se, a cada semana, com as áreas urbanas e a insalubridade. Numa articulação que associava, de maneira imediata, doença e contágio à raça e classe social, os setores hegemônicos clamavam por maior controle social, tido como garantia de saúde, moralidade e progresso. O fato de contar com o Moleque, personagem negra presente na maioria de suas capas, não impedia que o periódico vociferasse contra a presença maciça de vendedores ambulantes, escravos de ganho e trabalhadoras nas ruas, especialmente no Campo de Sant’Ana e no porto. O Dr. Semana e o Moleque, sutis para lidar com os códigos sociais e, ao mesmo tempo, desfiá-los com seu humor sarcástico, tinham álibi para circular pelos teatros, lojas, clubes e bailes e assim mostrar, nas páginas da Semana Ilustrada, o que a elite imperial assistia, escutava e lia. Nessas divagações, as condutas femininas e parte de seus corpos, como cadeiras, barrigas e pernas, eram avaliadas e comparadas, sem que nada escapasse ao olhar arguto do Dr. Semana, 5 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 29/30. 15 principalmente quando se tratava de aspectos físicos e morais, tidos como racialmente atrasados ou degenerados. No capítulo 3, os olhares abandonam as ruas e os passeios públicos e se voltam para os bastidores da produção e impressão da Semana Ilustrada. Em meados de 1860, a corte ganhava outro estabelecimento tipográfico, localizado no Largo de São Francisco. Era Fleiuss que adquiria sua própria tipografia e tornava-se responsável pela produção dos exemplares de seu periódico, atividade até então realizada por outras oficinas do Rio de Janeiro. O novo cenário propiciou mudanças e a Semana passou a anunciar os novos produtos que saiam dos prelos de Fleiuss, como a História Natural Popular e o Almanack Ilustrado da Semana Ilustrada, numa estratégia de autopropaganda. Dono de órgão que colaborava para a difusão dos impressos, fossem livros, periódicos, boletins, cartazes ou propagandas, o Instituto Artístico dos irmãos Fleiuss & Linde ganhava ilustre reconhecimento ao receber o título de Imperial. No ano seguinte, Fleiuss também decide investir no maior produto editorial do Instituto, a Semana Ilustrada que, graças à organização de uma escola xilográfica pelo próprio Instituto, conseguia incorporar, por breve momento, iconografias de traços e sombras bem mais precisas. Assim, Fleiuss somava à sua condição de caricaturista e de editor de revistas, o de impressor e sua Semana Ilustrada diversificava-se com a seção Publicações, que divulgava livros, jornais, revistas, álbuns, folhetos e brochuras, produzidos por ele e por outros editores e tipógrafos. Por seu intermédio, foi possível entrever títulos, autores, editores, mas também diversificados gêneros e lugares de impressão e/ou venda que compunha o cenário da imprensa oitocentista. No último capítulo, os conteúdos das crônicas e caricaturas da revista voltam a ser a tônica. Agora sob a égide do contexto bélico atravessado pelo país, a campanha de incentivo à destruição do inimigo, à integração de forças, à vitória e aos combates contra os paraguaios ganhavam lances ilustrados e o humor castigava o “incivilizado” Paraguai e seu líder Solano Lopez. Ainda antes do final da Guerra, a revista assumiu de vez sua posição anticatólica, não poupando, com piadas vexatórias, os dogmas vaticanos, a ordem jesuíta e, ainda, a folha religiosa O Apóstolo (RJ, 1866/1901). Já na década de 1870, as colunas da Semana ganhavam novo aspecto. Além dos já tradicionais contos, caricaturas e crônicas sobre a Capital, acontecimentos de províncias 16 figuraram nas páginas da publicação. Não se tratava de notícias de teor político partidário, científico ou literário, mas de citações e referências ao que os impressos de outras províncias publicavam de fatos anormais, estranhos, ilógicos ou até mesmo trágicos. Diga-se, uma espécie de “sensacionalismo literário”, que se aproximava das colunas faits divers dos jornais europeus e americanos. Na última parte da dissertação, as ruas do Rio, novamente, são a grande atração, mas num novo momento, os primeiros anos de 1870. Segundo as crônicas e caricaturas, o texto percorre a cidade, concentrando-se no Alcazar Lírico e no teatro Ginásio, nas comédias vaudevilles, nas novas revistas ilustradas humorísticas, nas praias e nos bondes. A cidade crescera e uma multidão ansiava por diversão. Rir das operetas do Alcazar, dos vaudevilles do Ginásio e das caricaturas das revistas ilustradas não era privilégios de poucos, ainda mais quando se tratava de ir à praia ou pegar um bonde. Para finalizar, em meio às discussões que envolviam a votação da Lei de 1871, novas doutrinas sociais e políticas eram debatidas na Semana, no Rio de Janeiro e no país. A nova coluna da revista, Badaladas, desdenhava daqueles que não tiravam a república e o barrete frígio da cabeça, mas admitia que a política, assim como a cura, deveria ser atingida por meio da ciência, que ganhava cada vez mais legitimidade para cuidar das doenças e problemas sociais que afligiam o Rio de Janeiro e o futuro da nação. Sem deixar de lado a civilidade material e moral que a ideologia do progresso prometia, o discurso da Semana comportou o riso de exclusão sobre os sujeitos que circulavam no Campo de Santana nos anos iniciais de 1860, para incorporar o desejo de criação de escolas para receber pretos livre e cativos no início da década de 1870, numa mescla que envolvia instrução e medo. Em síntese, entre os calcanhares de moças, tias, velhos, políticos, trabalhadores, escravos e maltrapilhos, o Dr. Semana e o Moleque trouxeram os “tipos sociais” e os problemas urbanos para as páginas da revista. Preocupados com a nação, o progresso, a moral, as artes, a instrução pública, a religião e tudo que envolvia a “boa sociedade” junto da cidade negra, a revista emitira opiniões, ora propondo soluções ora julgando penosamente, mas nunca deixando de rir.6 Folhear 6 Para Sidney Chalhoub a formação da cidade negra foi um processo que se deu no Rio de Janeiro entre 1830 e 1870. Na definição do autor: “A cidade negra é o engendramento de um tecido de significados e de práticas sociais que politiza o cotidiano dos sujeitos históricos num sentido específico – isto é, no sentido da transformação de eventos aparentemente corriqueiros no cotidiano das relações sociais na escravidão em acontecimentos políticos que fazem desmoronar os pilares da instituição do trabalho forçado. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das letras, 1990, p. 186. 17 a publicação do prussiano Henrique Fleiuss é como abrir uma janela que dá para uma movimentada via pública, no caso, as ruas do Rio Janeiro da Semana Ilustrada. Figura 4 – Semana Ilustrada, ano 11, n°543, p. 4/5, 7 de maio 1871. O que se vê da minha janela. 18 CAPÍTULO 1 REVISTAS E IMPRENSA ILUSTRADA NO IMPÉRIO DE D. PEDRO II 19 O século XIX foi marcado pela industrialização da imagem, graças às evoluções técnicas expressas no processo litográfico, que permitiu o crescimento da produção da literatura ilustrada, dos livros de bolso, então uma novidade, dos romances de folhetim, mas também das gravuras avulsas, dos anúncios e cartazes, que conferiram outro estatuto à comunicação visual e à publicidade, presentes no cotidiano das cidades. A prática de ilustrar tornava-se ofício assalariado dentro das oficinas tipográficas, que proliferavam. Com demanda por mão de obra qualificada e exigências da divisão de trabalho, esses estabelecimentos comerciais dominavam técnicas de impressão, como a litografia e a xilografia que permitiam reproduzir imagens, estampas, cartazes, rótulos, embalagens, jornais, revistas, e outros.7 Por despender menos tempo, ser menos custosa e demandar mão de obra, com menor qualificação do que a xilografia, aspecto importante num país escravista, a litografia imperou como a técnica mais utilizada dentro das casas de impressão no Rio de Janeiro. Já a xilografia, que resulta em traços delicados de maior precisão e consiste no processo de talhar a matriz de madeira, foi amplamente empregada pela imprensa europeia ilustrada, mas não fez escola por aqui, apesar de alguns incentivos. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos as revistas ilustradas de humor e caricatura dividiram o mercado com os periódicos ilustrados noticiosos, que se utilizavam da impressão xilográfica e também da reprodução de fotografias pelo mesmo modo, aqui os ilustrados humorísticos, que se valiam da produção de caricaturas pelo processo litográfico, foram unânimes. 8 Contudo, nas décadas anteriores, antes do predomínio do gênero, revistas de cunho literário e científico constituíram o primeiro círculo intelectual e literário de figuras importantes da imprensa no país. Não é fruto do acaso, portanto, que floresceram publicações como o Museu Universal, A Lanterna Mágica, Ilustração Brasileira, O Brasil Ilustrado, a Marmota que, apesar de guardarem considerável distância entre si, contribuíram para a formação de cultura visual de informação, que entrelaçava formalidade, sisudez, humor e riso em suas páginas. 7 “Em linhas gerais, a divisão de tarefas na oficina obedecia à seguinte ordem: ajudantes e aprendizes cuidavam das pedras, polindo-as e dando os banhos químicos de preparação para o desenho ou aplicação da tinta; o desenhista, que muitas vezes também era chamado de litógrafo, se responsabilizava pela criação na pedra; e o impressor operava a prensa. Em alguns casos havia ainda o letrista, prendado na arte de escrever invertido.” REZENDE, Lívia Lazzaro. A circulação de imagens no Brasil oitocentista. In: CARDOZO, Rafael (org.) O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870 /1960. São Paulo: COSACNAIFY, 2005, p. 36. 8 ANDRADE, Joaquim Marçal. Op cit., p. 52. 20 1.1. Revistas em circulação no Rio de Janeiro em meados do século XIX. Ao tratar do processo de constituição do espaço público no Brasil oitocentista, Marco Morel assinala a sua especificidade, tendo em vista a realidade da escravidão e da dependência de Portugal. A partida do rei em 1820 e o fim da censura foram essenciais para a circulação de ideias e o debate, em grande parte travado e mesmo possibilitado pela imprensa.9 Nos turbulentos anos da Independência e do Primeiro Reinado, uma imprensa panfletária foi o palco no qual se travaram as disputas, muitas vezes acerbas e numa linguagem que estava longe de seguir as regras da polidez .10 Nas décadas de 1840 e 1850, apaziguados os ânimos, o desafio era o de fazer avançar a nação, o que se deveria se expressar por meio de produções artísticas, literárias, científicas , que fossem reconhecidas como contribuição efetiva para o que então se denominava de “concerto das nações”. Depois do acordo selado entre os luzias e os saquaremas e o fim da última revolta de cunho liberal do período, A Revolta Praieira (1848) em Pernambuco, o regime não conheceu contestações importantes e seus códigos, hierarquias e formas de atuação pareciam fazer parte da ordem natural das coisas e contavam com amplo apoio social. Visto que o “despotismo” do Primeiro Reinado e a “anarquia” da Regência faziam parte da experiência de grande parte da elite que compunha o Segundo Reinado, parecia essencial evitar os excessos revolucionários causados pela “falta de ordem” que imperou no momento anterior e assegurar a paz e a estabilidade capazes de fazer o país avançar na econômica e moralmente.11 Referindo-se ao tempo desperdiçado por conta dos levantes políticos e sociais que assolaram várias regiões do país, a revista Guanabara (RJ, 1849/1856), colocando-se como propugnadora do progresso, alertava: A época atual, em face dos acontecimentos recentes, já provados por nós em dias calamitosos, parece que convence os espíritos de que nada mais nos resta a experimentar, e que devemos concentrar todas as nossas forças para o desenvolvimento moral e intelectual, única base de um seguro e permanente progresso.12 9 Marco Morel analisou a construção desses espaços e conceitos dentro do século XVIII ocidental, e como eles. Opinião pública ainda foi definida pelo autor como leis abstratas, gerais e morais construídas pelo público letrado para criticar o absolutismo no requerer de um novo tipo de poder político. MOREL, Marco Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 10 Sobre o tema ver Lustosa, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência, 1821-1823. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 11 Ver ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 51/56. 12 Guanabara, Rio de Janeiro, ano 2, tomo I, p. 2, 1850. 21 Nas primeiras três décadas do Império, instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a Academia Imperial de Belas Artes e o Colégio Pedro II foram geridas e frequentadas por indivíduos empenhados em constituir uma nação civilizada nos trópicos e que aí encontravam cômodos espaços de atuação. Os homens que frequentavam e geriam essas instituições inspiravam-se nos “intelectuais políticos” do Segundo Império francês, a exemplo de Guizot e Victor Cousin que, com a sua teologia hegeliana afinada com o romantismo, estava entre as influências mais importantes da época.13 Além do prestígio por pertencerem a tais instituições que representavam o Império do Brasil, esses homens escreviam na imprensa, lançavam jornais e revistas, debatiam questões estéticas sempre na busca da desejada civilidade, que deveria se expressar na produção de uma literatura e de uma arte nacional, à semelhança das grandes nações europeias. Além de serem balizadas pela experiência interna, essas ideias também dialogam com repertórios europeus, presentes nas revistas literárias, filosóficas e científicas.14 A Revue des Deux Mondes (1829/1971) e a Quaterley Review (1809/1967) são exemplos de revistas estrangeiras que informavam e formavam a elite imperial, quiçá não as únicas, já que a produção desse gênero impresso também obteve êxito no país. As revistas extensas, ainda bastante próximas dos livros, como Niterói, revista brasiliense (Paris, 1836), Minerva Brasiliense (RJ, 1843/1845) e Guanabara tinham por objetivo discutir e promover o desenvolvimento das artes, letras e ciências do Brasil. Publicada por um grupo de jovens que residia em Paris – Manoel Araújo Porto Alegre, Domingos José de Magalhães e Francisco de Sales Torres Homem – Niterói é considerada marco do nosso romantismo e um brado de independência intelectual levado a cabo por essa geração. Mantendo preocupações próximas às de Niterói, mas incorporando nomes como Santiago Nunes Ribeiro, Joaquim Norberto Souza e Silva, além de pequena participação de Joaquim Manoel de Macedo, a Minerva Brasiliense deixava explicita suas intenções modernizadoras ao tratar de temas literários, políticos e filosóficos. Aos primeiros românticos brasileiros também se deve a fundação de Guanabara que, logo no primeiro número, já agradecia o apoio do Imperador aos literatos.15 13 Ver ALONSO, Angela. Op. cit., p. 54. 14 Idem, p. 53. 15 Ver RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nação. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 89/102 e SCHWACZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro I: um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.126/142. 22 Figura 5 – Guanabara, Rio de Janeiro, ano 2, tomo I, capa, 1850. Fundada por Manoel Araújo Porto Alegre, Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo, a Guanabara foi a última revista literária do primeiro momento romântico brasileiro. Segundo algumas fontes,16 a sua relativa perenidade explica-se pelo apoio do Imperador que, de acordo com Moreira de Azevedo, estendeu-se também àquela que pode ser considerada sua continuadora, a Revista Brasileira (RJ, 1857/1861), que teve à frente Cândido Batista de Oliveira, responsável pelos textos de cunho científico publicados em Guanabara. 17 Atuando como político ou alto funcionário do Estado, escritores e intelectuais esses homens constituíam a elite do Império. Torres Homem foi Deputado, Senador, Ministro e Visconde, enquanto Joaquim Manuel Pereira da Silva exerceu as funções de Deputado e Senador. Receberam títulos de nobreza o Deputado Domingos José Gonçalves de Magalhães e o diplomata Francisco Adolpho Varnhagen. Joaquim Manuel de Macedo, por seu turno, foi membro da Câmara e Manuel José Araújo Porto Alegre Barão e diplomata.18 Araújo Porto Alegre desempenhou papel dos mais destacados nas artes plásticas e na Academia Imperial de Belas Artes. Além de ter sido presença marcante no cenário político, a 16 LOPES, Hélio. A divisão das águas: contribuição ao estudo das revistas românticas Minerva Brasiliense (1843 -1845) e Guanabara (1849 – 1856). São Paulo: Conselho Estadual de Arte e Ciências Humanas, 1978, p. 62. 17 Idem, p. 70/72. 18 RICUPERO, Bernardo.Op. cit., p. 20. 23 ele é atribuída à primeira caricatura feita em solo brasileiro.19 Produções como o seu primeiro álbum em 1836, a série Caricatura de 1837 a 1839, o periódico A Lanterna Mágica (1844/1845) e a série Guerra dos Chouriços na Marmota Fluminense (1852/1857) estão entre seus trabalhos mais destacados. 20 No entanto, o pintor, cenógrafo, arquiteto e dramaturgo, foi o responsável por inaugurar o mercado editorial brasileiro com um gênero de impresso de menos de quinze páginas e que possuíam força pela junção de ilustração e humor. Entre 1830 e 1880, os termos “ilustrar”, “ilustração” e “ilustrador” expandiram-se pelo globo e a prática de ilustrar tornou-se uma profissão especializada.21 Nesse processo de “dessacralização da imagem”,22 o humor foi um ingrediente importante. Para muitos, o caricaturista Honoré Daumier (1808/1879), com seu personagem de conduta pouco ortodoxa, Robert Macaire, foi um dos grandes precursores do encontro entre imprensa e humor. Denominado de “século Macaire”,23 o período foi marcado pela circulação internacional de textos, imagens, artistas e jornalistas que se valiam do cômico e da caricatura.24 A difusão de um estilo de ilustração, independente das fronteiras nacionais, assim como de gêneros jornalísticos e literários, evidência a representatividade que a informação, elemento essencial do mundo urbano, ganhou nas folhas da imprensa, agora ilustrada. Porto Alegre viajou para a Europa em 1831, em companhia de Debret, e o álbum de 1836 retrata seu itinerário, que incluiu Bruxelas, Paris e Roma. Em 1837, de volta no Brasil e certamente impactado pelo contato com o panorama artístico parisiense, repleto de estampas, cartazes variados e com uma atuante imprensa ilustrada, na qual se distinguiam as litografias satíricas de Honoré Daumier (1808/1879), lançou seu álbum Caricatura. Litografado na tipografia de Victor Larée, as duas primeiras estampas avulsas traziam crítica à nomeação do jornalista Justiniano José da Rocha para o cargo do Correio Oficial. Justiniano havia publicado crítica sobre a diminuta inclinação de Porto Alegre para a música e o teatro, na qual 19 Ainda que exista polemica no que respeita às primazias, é consenso que dentre as primeiras caricaturas desenhadas em terras brasileiras estavam as de Rafael Mendes de Carvalho e Araújo Porto Alegre. Porém, o país recém independente já havia sido alvo de caricatura anônima, publicada em Londres em 1826, que retratou os servos do império como primatas, e outra, datada de 1831, de Honoré Daumier, relativa à disputa entre os irmãos D. Pedro I e D. Miguel. Ver: MARTINS, Ana Luiza. Desenho, letra e humor. Estereótipos na caricatura do Império. In: LUSTOSA, Isabel (org.) Imprensa, Humor e caricatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 521 e MAGNO, Luciano. História da caricatura brasileira: Os precursores e a consolidação da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Gala Edições de Arte, 2012, p. 56. 20 Idem, p. 75. 21 KAENEL, Philippe. Le métier d’Iiustrateur (1830 - 1880): Rodolphe Topffer, J. J. Grandeville, Gustave Doré. Paris: Ed. Messene, 1996. Apud: TELLES, Angela Cunha da Motta. Desenhando a nação: revistas ilustradas do Rio de Janeiro e Buenos Aires nas décadas de 1860-1870. Brasília: FUNAG, 2010, p. 30. 22 SALGUEIRO, Heliana Angotti. Op. cit., p. 35. 23 Idem, p. 114. 24 TELLES, Angela Cunha da Motta. Op. cit., p. 46. 24 restringia suas qualidades ao campo da pintura.25 Rinchas pessoais à parte, o Jornal do Comércio (RJ, 1827/2013) noticiou a circulação desse novo tipo de arte: “A bela invenção de caricaturas, tão apreciadas na Europa, apareceu hoje pela primeira vez no nosso país, e, sem dúvida, receberá do público aqueles sinais de estima que ele tributa às coisas úteis, necessárias e agradáveis.” 26 Porto Alegre, nas suas estampas avulsas, também criticou o político Bernardo de Vasconcelos que, com grande liderança no período regencial, teria sido um dos responsáveis pela abdicação de D. Pedro I, admirado pessoalmente por Porto Alegre, com quem travou relações no Brasil e reencontrou na Europa.27 Em 1844, Araújo de Porto Alegre lançou, em colaboração com Rafael Mendes de Carvalho, A Lanterna Mágica (1844/1845), periódico singular na imprensa oitocentista brasileira. Inspirado nas personagens Robert Macarie e Bertrand, que ganharam vida nos desenhos de Daumier, ele criou Laverno e Belchior, que circularam litograficamente pelas ruas da Corte a pregar falcatruas. Ambientados no cenário urbano, que lembrava o Largo do Paço, não raro as personagens valiam-se de disfarces, como cientistas charlatões, cantores de ópera italianos, médicos homeopatas, ou fingiam ser viajantes estrangeiros para enganar os brasileiros que se curvavam diante de tudo o que vinha de fora. Ao interpretar a sociabilidade que ganhava forma nos centros urbanos europeus, a folha de Porto Alegre marcou a chegada desse tipo de sátira na capital do Império.28 Figura 6 – A Lanterna Mágica, Rio de Janeiro, ano 1, nº1 , p. 7, - de - 1844. 25 Idem, p. 58/66. 26 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, nº 277, 14 de dez. de 1837. Apud: MAGNO, Luciano. Op. cit., p. 67. 27 MAGNO, Luciano. Op. cit., p. 71/75. 28 Idem, p. 88/95 25 Laverno e Belchior projetando Laverno: - O nome sempre é o mesmo pateta, a terminação faz a nacionalidade. Serei francês, sendo Lavernu; russo, Lavernoff; Inglês, Laverson; Italiano, Lavernini ou Lavernelli; Polaco; Laverniski; Alemão, Von Lavernitz; Holandês, Van Lavernick; Egípcio, Lavermuda-Bei; Espanhol, Dom Laverno d’Alfarrache, e assim por diante, porém não me interrompa mais. Belchior: - Percebo meu amor, tu és um homem admirável. Em fevereiro de 1854 foi lançada a Ilustração brasileira (RJ, 1854/1855), mensário que tinha como proprietário e redator Ciro Cardozo de Menezes. Segundo os estudiosos, a nova revista não tinha a mesma qualidade literária da Guanabara, porém representou grande avanço no que diz respeito às ilustrações. Seu proprietário, em constante contato com litógrafos e gravadores, mostrava-se consciente da força desse recurso,29 e pode-se afirmar que a revista foi uma das primeiras a dedicar uma página inteira ao humor gráfico.30 A revista teve continuidade em O Brasil Ilustrado (RJ, 1855/1856), de responsabilidade de Menezes, agora associado a Francisco de Joaquim Bethencout da Silva, Francisco de Paula Candido, Francisco de Paula Menezes e Francisco Nunes de Souza. Com um preço elevado frente às suas contemporâneas e mais próxima das folhas ilustradas publicadas na Europa, a revista saia ao final de cada mês, com oito páginas e texto dividido em três colunas.31 Logo no primeiro número trouxe o Imperador na capa e avisou que se ocuparia da moral pública, de história, economia política, indústria, comércio, ciência, belas- artes e literatura.32 29 Idem, p. 68/70. 30 A Lanterna Mágica (1844/1845), O Universo Ilustrado (1858/1859), L’Iride Italiana (1854/1856), O Charivari Nacional (1859) e O Brasil Ilustrado (1855/1856) também configuraram pioneiras no Rio de Janeiro na arte de ilustração. MARTINS, Ana Luiza. Op. cit., p. 521. 31 SANT’ANNA, Benedita de Cássia Lima. D’O Brasil Ilustrado (1855/1856) à Revista Ilustrada (1876-1898): trajetória da imprensa periódica literária ilustrada fluminense. Jundiaí/SP: Paço editorial, 2011, p. 76/78. 32 Idem, p. 102. 26 Figura 7 – O Brasil Ilustrado, Rio de Janeiro, ano 1, nº1 , capa, 14 de mar. 1855. Publicado n’O Brasil Ilustrado com o nome “Namoro, Quadros ao Vivo”, o alsaciano Sebastien foi o criador da primeira história em quadrinhos por aqui. Litografando cenas satíricas a propósito da moda, tipos e costumes, Sisson colaborou intensamente com O Brasil ilustrado e L’Iride Italiana (RJ, 1854/1856). No primeiro, manteve certa constância de publicação a partir do terceiro número, tendo abordado temas como a administração pública, o lixo, o custo de vida e as tramas políticas.33 Publicação bilíngui, a L’Iride Italiana orgulhava- se de afirmar sua distribuição por outras cidades do Império, nas principais cidades europeias e na Itália. Quando troca de dono, no final de 1855, alterou sua feição editorial e passou a conter ilustrações e caricaturas. Visto que foi o caricaturista exclusivo da revista, Sisson teve papel fundamental no fato de a folha começar a oferecer gratuitamente álbuns de ilustrações para os seus assinantes. Próximo do Imperador, a revista tratava mais de assuntos artísticos, teatrais e musicais e evitava fazer críticas explícitas bem como temas políticos em suas ilustrações.34 33 Idem, p. 121/122. 34 Idem, p. 122/131. 27 Figura 8 – Líride Italiana, Rio de Janeiro, ano 2, n° 16, p. 3, 4 de out. 1855. L’Iride armata riappare agli artisti del Teatro Lirico Litógrafo, pioneiro da caricatura de costumes e da arte dos quadrinhos, Auguste Sisson também prestou serviços para a Biblioteca Nacional, restaurando gravuras, o que lhe valeu a condecoração de Cavaleiro da Rosa (1882). Suas gravuras ilustraram revistas fluminenses na década de 1850, que dividiam espaço com as revistas de Paula Brito (1809/1861). Na livraria da Praça da Constituição, nº 64 (atual Praça Tiradentes), nos fundos da livraria de Francisco Paula Brito, reuniam-se romancistas, poetas, dramaturgos, pintores e políticos que organizaram a Sociedade Petalógica, com a participação de Gonçalves Dias, Laurindo Rabelo, Joaquim Manuel de Macedo, Araújo Porto Alegre e outros. De origem humilde, o pai era carpinteiro descendente de escravos,35 Paula Brito venceu barreiras sociais e culturais e tornou-se grande nome da imprensa oitocentista, contribuiu para a disseminação da cultura letrada no país, além de ter aberto espaço para jovens promissores, como Machado de Assis. 36 Poeta, tradutor, editor, tipógrafo e empreendedor, Paula Brito começou sua trajetória trabalhando na tipografia do Jornal do Comércio e depois abriu sua própria casa de impressão: Empresa Tipográfica Dois de Dezembro, cujo nome fazia alusão ao seu aniversário e do Imperador. Durante a Regência, distinguiu-se na produção de panfletos que criticavam os rumos do país e pediam a posse de D. Pedro II.37 Mais tarde e já com o título de Impressor da Casa Imperial, a revista Guanabara foi uma das folhas que imprimiu e 35 CAMARGO, Oswaldo de. Um negro histórico: Francisco de Paula Brito, primeiro editor brasileiro. In: DEAECTO, Marisa Midori; FILHO, Plinio Martins; RAMOS JR, José de Paula (orgs). Paula Brito: editor, poeta e artífice das letras. São Paulo: Edusp: Com arte, 2012, p. 13. 36 Idem, p. 25/33. 37 Idem, p. 13/20. 28 distribuiu. Por ter editado o jornal O Mulato ou O Homem de Cor (RJ 1833), no qual propugnava contra a discriminação racial, seu nome é relacionado ao surgimento da imprensa negra brasileira.38 Paula Brito teve suas próprias publicações de sucesso, nas quais oferecia entretenimento em periódicos que atravessaram toda a década de 1850: a Marmota na Corte (RJ 1849/1852), Marmota Fluminense (RJ 1852/1857) e A Marmota (RJ 1857/1861 e 1864). A folha chegou a publicar ilustrações de sátiras de costumes e também reproduzir caricaturas do Le Jounal pour Rire (Paris, 1848/1855) de Charles Philipon (1800/1862).39 Bissemanal, a Marmota circulava geralmente as terças e sextas-feiras, com quatro páginas e formato 32 x 23 cm, texto dividido em duas colunas e, depois de 1852, em três. Os temas mais tratados diziam respeito à literatura, teatro, música, moda e moralidade, com destaque para o que se passava na França.40 Figura 9 – Marmota Fluminense, Rio de Janeiro, ano 6, nº 467 , p. 3, 5 de mai. 1854. 38 Segundo estudiosos, essa imprensa alternativa tomou grande fôlego na São Paulo do início do século XX, quando as publicações tratavam de temas como violência, dominação e exclusão racial. Sobre o assunto, ver: PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tinta preta: a imprensa negra do século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Programa de pós-graduação em História, UnB, Brasília, 2006. Disponível em: Acesso em: 18 de set. 2013. FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista 1915-1963. Dissertação (Mestrado em Antropologia). FFLC H, USP, São Paulo, 1981. GARCIA, Marinalda. Os arcanos da cidadania: A Imprensa Negra paulistana nos primórdios do século XX. Dissertação (Mestrado em História). FFLCH, USP. São Paulo, 1997. BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de São Paulo. In: Estudos Afrobrasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973. 39 SIMIONATO, Juliana. A Marmota de Paula Brito. In: DEAECTO, Marisa Midori; FILHO, Plinio Martins; RAMOS JR, José de Paula (orgs). Op. cit., p. 170. 40 Idem, p. 113 http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/6432/1/Ana%20Flavia%20Magalhaes%20Pinto.pdf 29 Na sua primeira fase, a Marmota na Corte (1849/1852) contou com contribuição frequente do baiano próspero Diniz, que assinou número avultado de crônicas a propósito de problemas relativos à locomoção, mal estado de conservação das ruas e deterioração de prédios. Na publicação subsequente, a Marmota Fluminense (1852/1857), além de ser diretor, Paula Brito foi o principal redator. A publicação reservava espaço para a seção Folhetim, com aumento de textos de cunho ficcional, em poesia e prosa. Nesse momento, as notícias da cidade diminuíram e aumentaram as ilustrações e caricaturas, o que dava refinamento e leveza à publicação. Por fim, ele lançou A Marmota (1857/1861 e 1864), que manteve enfático a parte literária e cuja existência chegou a ser ameaçada pelo fechamento da tipografia Dois de Dezembro, fato que não se concretizou pois Paula Brito formou uma nova sociedade.41 Figura 10 – Marmota Fluminense, Rio de Janeiro, ano5, nº 391 , capa, 12 de ago. 1853. Apesar de a Marmota ter voltado ao público em 1864, a sequência de mais de uma década de circulação foi interrompida com a morte de Paula Brito, em dezembro de 1861. Publicada duas vezes na semana, a revista privilegiava os comportamentos sociais, as regras de etiqueta, as vestimentas e as artes, tal como vigoravam em Paris.42 Paula Brito proveu o público fluminense por toda a década de 1850 com suas Marmotas, lugar que, na década seguinte, foi ocupado por Henrique Fleiuss e seu Imperial Instituto Artístico, que sustentou a Semana Ilustrada entre 1860 e 1876. As publicações do brasileiro e do prussiano 41 Idem, p. 106/108. 42 Idem, p. 165. 30 compartilharam a grande longevidade, a preocupação de tratar de regras de comportamento, do vestir e do agir em espaços públicos e privados, além de serem consideradas próximas da monarquia. No final de junho de 1861, a Semana Ilustrada divulgava que um dedicado amigo havia obsequiado-a “com uma excelente fotografia representando a estátua equestre de D. Pedro I”. Graças à boa qualidade do material, até os magníficos grupos de índios que ornavam o pedestal da estátua poderiam ser admirados, razão pela qual a folha reproduziu a fotografia, com a “maior fidelidade na cópia”, como suplemento no seu número seguinte.43 No final, revelava-se que: “O amigo que me remeteu a referida fotografia foi o Sr. Francisco de Paula Brito, cuja bondade agradeço de todo o coração”.44 Na Marmota, foram várias as ilustrações comemorativas do aniversário de D. Pedro II e, com certa constância, apareceram textos de exaltação e louvor à família imperial. Pelo fato de a Marmota procurar evitar temas polêmicos, como a escravidão e as disputas políticas, a revista foi tida como publicação de cunho “oficial”, que expressaria a relação de mecenato que ligaria Paula Brito e D. Pedro II.45 Da mesma forma, por ter poupado a família real de suas sátiras e caricaturas e possuir no título de seu empreendimento editorial o nome “imperial”, a Semana Ilustrada e Fleiuss receberam o mesmo tipo de julgamento. Figura 11 – Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 1, n° 17, capa, 7 de abr. 1861. Minha prezada comadre D. Marmota; não poderia deixar passar as festas, sem vir apresentar-lhe os meus respeitos e oferecer-lhe como prova de minha sincera afeição este cartuchinho de amêndoas. 43 Contos do Rio de Janeiro. Semana Ilustrada, ano 1, nº 29, p. 2, 30 de jun. 1861. 44 Idem. 45 SIMIONATO, Juliana. Op. cit., p. 176/181. 31 As referências a Paula Brito e sua revista era cercada de simpatias na folha de Fleiuss. Como se observa na capa da Semana acima reproduzida, na qual o Dr. Semana mostrava sincera afeição pela D. Marmota e o Moleque pela “Moleca” da D. Marmota, havia boas relações mantidas por Paula Brito e Henrique Fleiuss, que compartilhavam ideais políticas e dedicavam-se ao mundo dos impressos. Entretanto, diferentemente da Marmota, assuntos como eleição, escravidão e precariedade urbana eram constantes na Semana Ilustrada, enquanto na revista de Paula Brito, fazia as vezes de uma senhora, mais recatada e próxima da literatura e do ambiente doméstico, como convinha ao seu gênero. A partir de 1850 e 1860, uma imprensa ilustrada “caricatural” virou sinônimo de imprensa ilustrada em geral. Além dos fatores de ordem econômica e sociológica, a existência e vinda de grandes artistas, editores e empreendedores do humor caricatural litográfico, como os imigrantes Henrique Fleiuss, Rafael Bordalo e Ângelo Agostini, propiciaram um ambiente favorável para décadas de sucesso e boa aceitação desses impressos.46 Dentro desse gênero, a primeira folha periódica a publicar quantidade significativa de ilustrações a cada edição, e deleitar-se de grande sucesso com seus mais de quinze anos de vida foi a Semana Ilustrada (RJ, 1860/1876). Por tantos anos de circulação e a consagração de um padrão estético, espécie de modelo para as folhas subsequentes, a Semana Ilustrada tornou-se pioneiro e pode ser considerada fundadora de um novo tempo para a imprensa brasileira. 1.2. Fleiuss e o projeto da Semana Ilustrada. No dia 15 de julho de 1859, aportaram no Rio de Janeiro Carlos Fleiuss, Carlos Linde e Henrique Fleiuss, que trazia em mãos carta de recomendação de von Martius ao imperador D. Pedro II.47 O trio fundou, em 11 de janeiro de 1860, um estúdio de litografia que em 1863 ganhou o reconhecimento do Imperador e recebeu o título de Imperial.48 No final de 1860, na 46 Idem. 47Henrique Fleiuss era filho de família tradicional, o pai era doutor em Filosofia e Diretor Geral da Instrução Pública na Prússia Renana enquanto sua mãe, católica fervorosa e dona de casa, era filha do conselheiro professor da Universidade de Coblença.47 Henrique, ainda criança, mostrou aptidão para o desenho e cursou Belas Artes em Colônia e Dussedorf e, depois, Música e Ciências Naturais em Munique, quando se tornou amigo e discípulo de Karl Friederich Phillipe von Martius, famoso por seus estudos e expedições botânicas em terras brasileiras e que mantinha relações próximas com a Corte Imperial e com o recém criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que reunia a elite intelectual brasileira. ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira. A trajetória de Henrique Fleiuss, da Semana Ilustrada: subsídios para uma biografia. In: KNAUSS, Paulo (org.) Revistas Ilustradas: modos de ler e ver o Segundo Reinado.Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011, p.53. 48 Segundo Guimarães, em função dos serviços de decoração externa da Exposição Nacional e da realização de álbum alusivo ao evento, intitulado Recordações da Exposição Nacional, O Instituto Artístico ganhou o reconhecimento do Imperador e recebeu o título de Imperial. O Imperial Instituto prestava serviços variados ao público em geral e ao governo, que incluíam a produção de mapas, roteiros, plantas hidrográficas, livros, 32 época de lançamento do seu periódico, Fleiuss anunciou a novidade por meio de cartazes- anúncios fixados em pontos estratégicos da cidade, como boticas e confeitarias da Rua do Ouvidor, prática até então inédita entre nós.49 Em função do sucesso alcançado e por desfrutar da amizade do Imperador, Fleiuss pode conviver com a “boa sociedade” da corte, ou seja, a “reduzida elite econômica, política e cultural do Império, que comungava dos mesmos valores e comportamentos modelados na concepção européia de civilização”.50 Assim como seu compatriota Wilhelm Busch, que já havia criado a dupla Max und Moritz, o alemão Fleiuss criou duas personagens cômicas e irreverentes para comentar os assuntos candentes na revista. Nobre senhor branco, de vasta cabeleira e fisionomia horrenda, o Dr. Semana e seu pajem e leal companheiro, o Moleque, sempre em libré vistoso, estiveram presentes na grande maioria das capas do periódico. Se, Daumier criou as personagens cômicas Robert Macaire e Bertrand e Araújo Porto Alegre teve Laverno e Belchior, Fleiuss investiu numa relação cômica inter-racial. O Dr. Semana e o Moleque, assim como outras duplas famosas humorísticas - como Dom Quixote e Sancho Pança, ou, mesmo personagens caricatos como Robert Macarie e Bertrand - havia, pelo menos em princípio, relações de subordinação social de cunho humorístico, no qual a hierarquia e pertencimento a classes sociais distintas eram aspectos explícitos nas relações, apesar da proximidade física e afetiva das personagens. dicionários, cartazes de propaganda, rótulos, álbuns, revistas científicas e publicações ilustradas. Ao lado da Semana Ilustrada, merecem destaque alguns projetos importantes, caso da Carta Geral do Império, da coleção de vinte e nove vistas da Estrada de Ferro de D. Pedro II, e a reprodução da obra Prosopopéia, de Bento Teixeira, de 1601. A empresa recebeu menções honrosas em todas as exposições nacionais e nas internacionais realizadas em Paris (1867), Viena (1873) e Filadélfia (1876). GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Henrique M. Fleiuss: vida e obra de um artista prussiano na corte (1859/1882). ArtCultura, Revista do Instituto de História/UFU, v.8, n.12, p. 85/97, jan/jun 2006 p. 90. 49 Semana Ilustrada: história de uma inovação editorial. In: Secretaria Especial de Comunicação Social. Cadernos da comunicação: série memória, 19. Rio de Janeiro: Secretaria, 2007. Disponível em: Acesso em: 13 de set. 2013. 50 Idem, p. 91. http://www0.rio.rj.gov.br/arquivo/pdf/cadernos_comunicacao/memoria/memoria19.pdf 33 Figura 12 – Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 2, n°59, capa, 26 de jan. 1862. - ... moleque, reconhecendo eu o nenhum direito que tenho de pedir todos os dias a limpeza e embelezamento da cidade, reconhecendo a falta de atenção que tem merecido as minhas reclamações a respeito do perigo que oferece o morro do Castelo, e reconhecendo ainda os inconvenientes que me podem provir por falar no status quo em que se acha o Passeio Público, e tantas outras empresas começadas e não acabadas; lavo-me de todas as minhas culpas, é prometo ceder-te completamente essas prerrogativas de que lançava mão. - Ora, nhonhô, deixe isso ao meu cuidado... Fez bem em ceder-me esses assuntos tão importantes, porque todos os dias, hei de falar neles tão baixinho que ninguém perceba. A Semana Ilustrada tinha oito páginas, impressas em uma só folha, era dobrada duas vezes e refilada, resultando caderno de tamanho in-quarto (28 x 22 cm), com as imagens nas páginas um, quatro, cinco, oito e texto nas dois, três, seis e sete. Note-se que, a despeito de ter as similares francesas e inglesas como inspiração, aproximava-se do estilo das revistas germânicas das décadas de 1830 e 1840, justamente os anos de formação do editor e caricaturista. 51 A parte inferior da capa, geralmente, trazia imagem alusiva ao principal assunto tratado na edição e na parte superior, via-se busto do Dr. Semana, de piscadela e sorriso maroto nos lábios, portando um exemplar da revista na mão direita, enquanto na outra trazia um clichê (imagem sobre um vidro plano pequeno) para projetação numa lanterna mágica. 51 NERY, Laura. Henrique Fleiuss e sua Semana Ilustrada. Em: http://www.icgermanico.com.br/img/index/PDF/Educacao_em_linha_15.pdf. Acesso em: 16 de julho de 2012. http://www.icgermanico.com.br/img/index/PDF/Educacao_em_linha_15.pdf 34 Figura 13 – Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano1, n°2, capa, 16 de dez. 1860. SEMANA ILUSTRADA La[n]terna Mágica Ridendo castigat mores Em volta do personagem e de sua lanterna, alinhavam-se pessoas em situações consideradas pouco abonadoras, como as do esquerdo, um casal de namorados cujo rapaz parece vestir-se como um padre. No logo marcado pelo humor, malícia e mesmo desordem, o Dr. Semana convida o leitor a observar condutas e males da sociedade de forma humorística, como sugere o sorriso e a piscadela. Esse modelo de capa, que não foi modificado ao longo dos dezesseis anos da publicação, era acompanhado da máxima Ridendo castigat mores, postada no meio da lanterna mágica. Importante para se entender o estilo de humor da revista, castigar os costumes rindo, ditado e lema do teatro cômico, que exprimia a função moralizadora da comédia e da sátira, lembrando que nos anos 1830 o jornal La Caricature (Paris, 1830/1843) fez uso do mesmo. A partir da 19º edição, a revista garante maior padrão na publicação com a acepção da crônica Contos do Rio de Janeiro como o principal texto da revista. No entanto foi a coluna Pontos e Vírgula, sobretudo, na segunda metade da década de 1860, e Badaladas, na década de 1870, que atingiram maior tempo de vida dentro do periódico. De modo mais geral, as discussões sobre os rumos da nação, assuntos econômicos e políticos e aqueles também de ordem pública, porém mais vinculados aos ofícios do dia-a-dia do Rio de Janeiro, eram, majoritariamente, abordados nas páginas dois e três. Depois das páginas quatro e cinco, que eram inteiramente ilustradas, as páginas seis e sete possuíam viés mais artístico, no qual peças, apresentações, artistas, pintores, músicos e óperas recebiam comentários, saudações e críticas, como as orquestras do maestro Antônio Carlos Gomes e as peças encenadas no Teatro Ginásio. Visto que não raro essa lógica era quebrada, reflexões sobre o progresso das 35 artes no país foi tema certo em muitas crônicas e páginas. Na penúltima página, muitas vezes, eram publicados contos de autoria anônima ou por pseudônimos, que chegavam a ter a duração de três a seis edições.52 A revista o Museu Universal: Jornal das famílias brasileiras (RJ, 1838/1844) foi, segundo Rafael Cardoso, o primeiro grande projeto editorial no qual as imagens ocuparam papel de destaque, ainda que fossem produzidas na Europa.53 Entretanto, a Semana Ilustrada singularizou-se por fazer jus ao termo ilustrada e pelo predomínio da comicidade, cujo projeto, muito diverso daquele perseguido pelo Museu Universal, conseguiu fazer o contexto urbano do Rio de Janeiro ganhar expressão imagética, com as litografias aqui produzidas ocupando cerca da metade de cada edição. Em muitos momentos, a métrica racional de equilíbrio e simetria de estilo neoclássico, tão peculiar do século XIX,54 era deixada de lado em prol de uma diagramação que evocava as histórias em quadrinhos do século XX. Figura 14 – Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 1, n° 35, p. 8, 11 de ago. 1861. Os problemas urbanos, assim como a ineficiência dos serviços públicos e a incompetência dos políticos para resolvê-los faziam-se presentes a cada novo número do periódico. Visto o tamanho das barbaridades que cometiam, as leis e a justiça chegaram a ser satirizadas como cegas e a alfândega transformada em uma senhora doente sem condições de trabalhar com êxito.55 Contudo, nada ganhou mais espaço nas ilustrações do que a insatisfação 52 Para citar alguns, na edição nº 6, 8 e 9 foi publicado o conto As facas de Ouro e Aventuras do Sr. Cosme, que ocuparam as últimas páginas dos nº 16, 17, 24, 26 e 27. 53 Cerca de mil ilustrações foram difundidas ao longo de sua existência, que respondiam à demanda e ao interesse de consumo que os clichês despertavam no público local. Ver: CARDOSO, Rafael. Op. cit., p. 20. 54 REZENDE, Lívia Lazzaro. Op cit., p. 44/57. 55 Semana Ilustrada, ano 1, nº 38, capa, 17 de set. 1861. 36 da Semana Ilustrada como a segurança pública e os correios. As piadas e criticas foram de tal freqüência, que a própria revista intitulava-se como um pesadelo na vida dos correios. Figura 15 – Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 1, n°37, p. 4, 25 de ago. 1861. Pesadelo horrível O Correio roncando Oh, ih, ah, uh! Socorro! Querem matar-me... Estou morto! Oh, uh!... Os homens encarregados de assegurar a ordem nas ruas do Rio apareciam na Semana Ilustrada como brandos, dorminhocos e até bêbados. Além da preocupação com a cidade, o semanário reproduzia contos, romances e buscava recriar a sociabilidade branca fluminense descrevendo bailes, óperas, peças e os costumes de uma elite econômica que pretendia se regular pelos parâmetros materiais e comportamentais europeus. Lucia Maria Paschoal Guimarães considerou que o propósito do periódico era produzir o riso, contudo, uma espécie de riso de instrução que pretendia corrigir condutas. Dessa forma, a revista pretendeu assumir uma função cívica e de caráter pedagógico, evidenciar os maus costumes sociais, mas com o intuito de orientar cidadão e sua ação no espaço público.56 Apresentando-se como instrumento capaz de observar e analisar a sociedade, a exemplo dos muitos instrumentos óticos que então se multiplicavam, o humor presente na Semana Ilustrada visava rir de “toda essa multidão que se move curvada sobre o futuro”. 57 O crescimento da circulação de revistas satíricas, do gênero da inglesa Punch (Londres, 1841/1992) e da francesa Le Charivari (Paris, 1832/1937), ganhou força a partir do grande projeto da Semana Ilustrada, que serviu como abre alas para esse tipo de impresso no 56 Ver: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Op. cit. 57 Ridendo Castigat Mores. Semana Ilustrada, ano 1, nº 1, p. 2, 16 de dez. 1860. 37 país em termos comerciais e em relação às técnicas de produção e edição.58 Os caricaturistas mais prestigiados das décadas de 1870 e 1880 iniciaram suas carreiras opondo-se à revista de Fleiuss, em momento no qual a ordem vigente era questionada sobre múltiplos aspectos e os anseios por mudanças entraram na ordem do dia, sendo a imprensa um dos principais veículos de difusão dos novos ideais. 1.3 As revistas ilustradas humorísticas nas últimas décadas do Império. Figura 16 – Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 1, n°1, capa, 1 de jan. 1876. Aparece a Revista Ilustrada, é mais um; não importa o campo é vasto... Angelo Agostini e a sua Revista Ilustrada (RJ, 1876/1898) tornaram-se ícones do humor e do jornalismo brasileiro do final dos oitocentos. Famosa por expressar todo o ímpeto político e artístico do seu proprietário, a publicação compartilhou e ilustrou, semanalmente, ideias republicanas, anticlericais e abolicionistas, que ganhavam força nas últimas décadas imperiais, o que levou o estadista Joaquim Nabuco a considerar a publicação como “a Bíblia da Abolição dos que não sabem ler”.59 O momento era propício, pois a década de 1870 notabilizou-se pela geração intelectual que conduziu o país ao fim da monarquia e da escravidão. 58 CARDOSO, Rafael. Projeto gráfico e meio editorial nas revistas ilustradas do Segundo Reinado. In: KNAUSS, Paulo (org.) Revistas Ilustradas: modos de ler e ver o Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011, p. 23/26. 59 BALABAN, Marcelo. Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Ângelo Agostini no Brasil Imperial (1864-1888). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009, p. 86/87. 38 Relativamente marginalizados das grandes instâncias do poder do Segundo Reinado e influenciados por novos ideais, tais homens de letras interpretavam a sociedade brasileira a partir de outros parâmetros, o que os levou a contestar as bases do status quo imperial e propugnar outros caminhos para o país.60 A geração61 foi marcada por grande heterogeneidade em termos de formação social, intelectual e de atuação, cabendo destacar nomes como Pereira Barreto, Tobias Barreto, Miranda Azevedo, Clóvis Beviláqua, Farias Brito, Silvio Romero, Joaquim Nabuco, André Rebouças, Julio de Castilho e Aníbal Falcão, para ficar nos mais proeminentes. A modernização realizada pelo esforço dos conservadores, que pretendiam colocar o país na escalada do progresso, não atingiu sua completude e dividia a elite imperial. As mudanças socioeconômicas e o incremento das atividades urbanas compunham um novo panorama, no qual as tradicionais práticas senhoriais de exercício do poder começavam a ser questionadas enquanto o regime escravista entrava na ordem do dia, seja no Parlamento ou nas manifestações de caráter público.62 Inspirados no cientificismo, positivismo e no novo liberalismo, os integrantes da chamada geração de 1870 engrossavam as fileiras partidárias, integravam as redações de jornais e revistas, mas também fundaram clubes, sociedades e pequenas folhas, organizaram comícios, banquetes e recitais, ensaiando novas maneiras de atuar politicamente.63 Entre meados dos anos 1870 e o final do regime, multiplicaram-se associações constituídas por militares, literatos e políticos, que clamavam por reformas de cunho liberal e defendiam a República e a Abolição, cuja ação impregnou a imprensa ilustrada humorística. No universo dos impressos, especificamente das revistas ilustradas, as grandes honras pelo combate recaíram sobre a figura de Agostini, que colocou o seu traço artístico a favor dessas causas. No entanto, seria simplista transformá-lo num combatente solitário, parece mais apropriado inseri-lo num grupo que, por várias décadas, expressou-se por meio de textos e imagens, circulou por redações e tipografias, em prol de transformações profundas para o país. Depois de trabalhar em São Paulo, onde seu traço, ainda em formação, já criara 60 ALONSO, Angela. Op. cit., p. 263. 61 Na visão tradicional, gerações se definem a cada quinze anos, no entanto novas abordagens credibilizam ao acontecimento fundador, independente de datas, a origem de uma geração, no qual esse passado comum é capaz de gerar uma memória coletiva e posicionamentos relacionados a ele, que podem tem caráter de negação ou afirmação. Para Sirinelli, “as repercussões do acontecimento fundador não são eternas e referem-se, por definição, à gestação dessa geração e a seus primeiro anos de existência. Mas uma geração dada extrai dessa gestação uma bagagem genética e desses primeiro anos uma memória coletiva, portanto o inato e o adquirido, que a marcam por toda a vida”. SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: REMOND, René (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003, p. 255. 62 ALONSO, Angela. Op. cit., p. 97/98. 63 Idem, p. 284. 39 polêmicas no Diabo Coxo (SP, 1864/1865) e no Cabrião (SP, 1866), 64 o “poeta do lápis” mudou-se para a Corte, onde colaborou no O Arlequim (RJ, 1867), o que lhe permitiu entrar em contato com os caricaturistas Josef Mill, João Pinheiro Guimarães, Candido Aragonez de Faria, Antônio Alves do Valle, Flumen Junius (Ernesto Augusto de Sousa e Silva Rio) e, mais tarde, com o também italiano como ele próprio, Luigi Borgomaineiro e o português Rafael Bordalo Pinheiro. Este último, criador do personagem Zé Povinho, figura que sintetizava o português, tal qual o Tio Sam para os Estados Unidos, John Bull para a Grã-Bretanha e o Jeca Tatu para o brasileiro,65 Bordalo Pinheiro foi um artista de grande apuro técnico e versatilidade, reconhecido aqui e em Portugal. Aportou no Rio de Janeiro a convite de O Mosquito (RJ, 1869/1877) e mais tarde fundou o Psit!!! (RJ, 1877) e O Besouro (RJ, 1878/1879), publicações que contribuíram para diversificar o panorama da imprensa fluminense.66 No mesmo período, outros caricaturistas talentosos, como Candido Aragonez de Faria e Luigi Borgomaineiro contribuíam para A Vida Fluminense (RJ, 1868/1875).67 Os títulos de cunho humorístico, multiplicaram-se rapidamente nesse período, cabendo destacar, ainda, Ba-Ta- Clan (RJ, 1867/1872), O Mundo da Lua (RJ, 1871/1872), o Mephistopheles (RJ, 1874/1878), O Fígaro (RJ, 1876/1878), a Comédia Popular (RJ, 1877/1878) e o Mequetrefe (RJ, 1875/1893), este último com destaque para as caricaturas de Aluízio de Azevedo. 68 64 Sobre Ângelo Agostini e sua trajetória profissional ver OLIVEIRA, Gilberto Maringoni. Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da corte à capital federal (1864/1910). Tese (Doutorado em História). São Paulo: FFLCH/USP, 2006 e BALABAN, Marcelo. Op. cit. 65 Sobre o tema ver NAXARA, Márcia Regina Capelari. O estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998. LAJOLO, Marisa. "Monteiro Lobato: a modernidade do contra." São Paulo: Brasiliense, 1985. DE LUCA, Tânia Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Editora da UNESP, 1999. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990. XAVIER, Vanessa Balsanello. O Brasil de Monteiro Lobato: de Jeca Tatu ao desencantamento. Dissertação (Mestrado em História). Curitiba: Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes/UFP, 2010. 66 MAGNO, Luciano. Op. cit., p. 308/309. 67 Sobre esse periódico, ver AUGUSTO, José Carlos. A Vida Fluminense, “folha joco-séria-ilustrada” (1868/1875). In: Congresso brasileiro de ciências comunicação, 32, 2009. Curitiba, PR. Anais... Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2013. 68 MAGNO, Luciano. Op. cit., p. 30/31. http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/R4-1235-1.pdf 40 Figura 17 – O Mosquito, Rio de Janeiro, ano 5, n°205, capa, 16 de ago. 1873. - Deixe-me borrar esses diabos, isto também já é muito padre! As décadas de 1870 e 1880 foram anos de crise econômica e de disputas acerca da expansão de uma burocracia-legal em detrimento dos estamentos privados de poder, que a classe senhorial de terras tinha cristalizado no Estado. Nessa conjuntura, que comportava grupos sociais abastados não possuidores de escravos, terras e nem representação notória no Parlamento,69 a imprensa ilustrada humorística encontrou terreno fértil para denunciar as mazelas de um país escravista que, além de alijar parte de sua população dos direitos de cidadania, estava eivado de práticas personalistas. A Questão Religiosa, o movimento abolicionista e a campanha republicana estavam na ordem do dia e a imprensa jogava papel dos mais importantes nesse processo, uma vez que era por seu intermédio que diferentes grupos tentavam fazer valer seus ideais e leituras de mundo.70 Tanto o português Rafael Bordalo, como os italianos Agostini e Luigi Borgomaineiro, fizeram parte de um rol de jornalistas e ilustradores que, em várias publicações, marcaram posição crítica em relação ao governo, à monarquia e ao clero. O periódico o Bazar Volante (1863/1867) foi o primeiro projeto do grupo, que depois seguiria uma trajetória de quinze anos de publicação por revistas como O Arlequim, A Vida Fluminense, O Mosquito e O Fígaro, no qual esses ilustradores e homens da imprensa 69 ALONSO, Angela. Op. cit., p. 75/78. 70 ALONSO, Angela.Op. cit., p. 98. 41 acabavam encontrando e reencontrando-se nas redações e tipografias a cada novo projeto editorial.71 Figura 18 – Bazar Volante, Rio de Janeiro, ano 1, n°16, capa, 10 de jan. 1864. A corda nem sempre arrebenta pela parte mais fraca. Contando também com a participação de artistas nacionais, a exemplo de V. Mola, J. Mill, Valle, Guimarães, FlumenJunius e Faria, esses impressos ganharam grande notoriedade por sua feição de luta explícita. É certo que esses indivíduos compartilharam projetos editoriais, afinidades políticas e conexões pessoais, numa trajetória marcada pelo combate às instituições antiliberais, cuja figura central foi Angelo Agostini. Porém, destaca-se que, “o adversário comum deles, emulado por todos e com quem rivalizavam, era Fleiuss – à época, ainda o dono da mais influente revista ilustrada, a qual se tornou o embrião de todas as outras, mesmo que por oposição”.72 1.4. O Moleque, o Dr. Semana e a Semana Ilustrada versus o Bazar Volante, O Mosquito, A Vida Fluminense, Angelo Agostini e a historiografia. Luis Guilherme Sodré Teixeira considerou a relação de Fleiuss com a ordem instituída curiosa, visto que a sátira, expressa pelo traço da charge, caracteriza-se, normalmente, pela 71 CARDOSO, Rafael. Projeto gráfico e meio editorial nas revistas ilustradas do Segundo Reinado. In: KNAUSS, Paulo (org.) Revistas Ilustradas: modos de ler e ver o Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011, p. 31. 72 CARDOSO, Rafael. Op. cit., p. 31. 42 permanente oposição a todo poder constituído.73 Herman Lima, no seu extenso trabalho sobre a história da caricatura brasileira, publicado no início dos anos 1960, afirmou, muitas vezes, o inegável talento do traço do combativo caricaturista italiano, influenciado pela estética francesa, contraposto ao traço limitado e conciliador do prussiano.74 Nelson Werneck Sodré, na mesma linha, exaltou o caráter inovador e pioneiro da Semana Ilustrada, porém caracterizou Henrique Fleiuss como caricaturista de menor talento e cuja arte não provocava desconfortos ao poder (SODRE, 1999, p. 206).75 Foi voz corrente na historiografia considerar Fleiuss como subserviente à Casa Imperial, mero defensor e porta voz dos seus interesses. É fato que os julgamentos expressos não podem ser desvinculados da trajetória pessoal do imigrante prussiano, no entanto, tais críticas merecem ser reavaliadas, já que foram responsáveis por estabelecer uma visão dicotômica extremista, segundo a qual Agostini seria o revolucionário, com seu anticlericalismo e abolicionismo, enquanto Fleiuss o reacionário monarquista e escravista. Assim como Paula Brito, Impressor da Casa Imperial, e Henrique Fleiuss com o seu Imperial Instituto Artístico, vários outros produtos e fábricas receberam a denominação de imperial, o que não necessariamente envolvia questões monetárias. Mais do que esse tipo de incentivo, o título concedia ao estabelecimento legitimidade e poder simbólico, pois se tratava de reconhecer a qualidade e excelência do empreendimento, reconhecidos pelo poder estabelecido. Elevando-os, emblematicamente, a outro nível de excelência, a nomenclatura acabava por produzir uma espécie de selo de qualidade e distinção perante o mercado nacional.76 O que induze a pensar no desfrute e prestígio de sucesso de público da revista de Fleiuss, o que a tornava um inimigo de mercado a ser batido pelos concorrentes, tanto que o Moleque e o Dr. Semana tornaram-se alvos e foram ridicularizados nas páginas dos periódicos rivais.77 73 TEIXEIRA, Luis Guilherme Sodré. O traço como texto: a história da charge no Rio de Janeiro de 1860 a 1930. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. Coleção Papéis Avulsos, nº 38, 2001, p. 10. 74 Um exemplo da máxima encontra-se no quarto capítulo: “Fleiuss dedicou-se também, com freqüência, a satirizar o ditador paraguaio, no que era acompanhado, nas páginas da Vida Fluminense, pelo lápis inegavelmente muito mais ágil e corrosivo de Angelo Agostini.” LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de janeiro: José Olímpico, 1963, p. 234. 75 SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 206. 76 Sobre o tema ver: REZENDE, Lívia Lazzaro. A circulação de imagens no Brasil oitocentista. In: CARDOZO, Rafael (org.) O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870 /1960. São Paulo: COSACNAIFY, 2005, p. 52/53 e IPANEMA, Rogéria Moreira de. Distinção do Poder: título de imperial, as razões pelas quais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 170, nº 442, p. 249/266, jan/mar, 2009, p. 264/265. 77 MAGNO, Luciano. História da caricatura brasileira: os precursores e a consolidação da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Gala Edições de Arte, 2012, p. 404/409. 43 Figura 19 – A Vida Fluminense, Rio de Janeiro, ano 1, n°06, p. 3, 08 de fev. 1868. - Que é isto, nhônhô! Não se sirva d’essa tinta que respinga muito na gente. - Qual! Com ela é que tenho ido vivendo Dialogo em surdina - Vês, moleque, até onde conseguimos subir, graças aos relevantes serviços que prestamos? - É verdade, nhônhô; chagamos subir muito alto. Mas não acha que esta posição é um tanto incomoda? Sempre de bruços. - Toleirão!... não se apanham trutas a bragas enxutas!... Atacados por Pinheiro Guimarães, J. Mill, Flumen Junius e Agostini, os símbolos da Semana Ilustrada também compareciam n’O Bazar Volante, n’O Arlequim, n’A Vida Fluminense e em outros periódicos. Vulgarizados como tolos, estúpidos e de pouco caráter, a reprodução das personagens em outras revistas também pode ser encarada como indicio da popularidade da Semana Ilustrada. O bom número de aparições da dupla em outras revistas atesta que os consumidores estavam familiarizados com as personagens e os reconheciam imediatamente como ícones de Fleiuss e sua revista, mesmo que fosse por vias transversas. No mesmo ano em que a Semana deixava de circular, em 1876, Agostini começava a sua mais nobre empreitada editorial humorística. Convencido do atraso que a monarquia relegava ao país, o italiano se consagraria como o revolucionário que utilizou da sátira política para desprestigiar a monarquia e aumentar a euforia dos setores da sociedade que almejavam o regime republicano. Entretanto, antes da Guerra do Paraguai e no auge econômico e político do Império, as ideias de nação vindoura não encontravam fertilidade longe dos ditames 44 senhoriais, do romantismo religioso não revolucionário, e do catolicismo hierárquico.78 Quando a Semana Ilustrada era lançada, o pensamento francês da Restauração de Guizot, Thiers e Royer-Collard ainda fazia a cabeça daqueles que regiam o que Florestan Fernandes chamou de “liberalismo estamental”, e, ainda bastante convincente, era o vislumbre com a estabilidade e força civilizadora de um poder, fundado na legitimidade dinástica europeia, capaz de domesticar a realidade tropical.79 Apesar de contemporâneos, Fleiuss e Agostini conquistaram seus respectivos espaços de atuação na sociedade fluminense em contextos distintos, no qual as relações sociais e afetivas construídas marcam saliente distância. Ainda que o reformismo exigido posteriormente pela Geração 1870 e a contestação dos valores e instituições imperiais não ganhasse ainda grande popularidade, os problemas urbanos, assim como a ineficiência dos serviços públicos e a incompetência dos políticos para resolvê-los, fizeram-se presentes a cada novo número da Semana Ilustrada. A insalubridade das ruas ganhou constantemente as suas páginas e ilustrações, na qual a morte era caricaturada em caveiras como símbolo das doenças que viriam a proliferar. No mesmo teor de criticidade, o Dr. Semana e o Moleque navegavam pelas águas que inundavam as ruas do Rio de Janeiro e a falta de abastecimento de água igualmente ganhava notoriedade80. Os políticos também foram alvo na Semana, que deflagrava a falta de comprometimento desses para com a cidade e a nação, nos quais os senadores faltavam às sessões de voto, os deputados vinham à Corte para selar acordos pessoais e esbanjar-se em requintes, e de modo geral, faltavam-lhe juízo e capacidade para realizar as obras que o país necessitava, como pontes, portos, estradas, indústria, lavoura e comércio.81 78 ALONSO, Angela. Apropriação de ideias no Segundo Reinado. In: GRINBERG, Keila & SALES, Ricardo (orgs). O Brasil Imperial, volume III: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 93/95. 79 PÁDUA, José Augusto. Natureza e sociedade no Brasil monárquico. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (org.)Op. cit., p. 337. 80Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 1, n°10, p. 8, 17 de fev. 1862; Água potável. Semana Ilustrada, ano 1, nº 11, p. 7, 17 de fev de1861; Contos do Rio de Janeiro. Semana Ilustrada, ano 1, nº 19, p. 2, 21 de abril de 1861 e Semana Ilustrada, ano 1, nº 46, p. 5, 27 de out. 1861. 81Semana Ilustrada, ano 2, nº 81, capa, 29 de jun 1861; Contos do Rio de Janeiro. Semana Ilustrada, ano 1, nº 27, p. 2, 16 de jun 1861. 45 Figura 20 – Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 1, n°32, p. 5, 21 de julho 1861. Um deputado na Corte 1 – S. Ex. chega da província e vai incontinente à rua do Ouvidor comprar fato novo. 2 – Sai todo bonito da casa do alfaiate, mas entende que o governo deve mandar alargar a Rua do Ouvidor ou estreitar os balões. 3 – S. Ex. entra na Câmara, tendo já em mente um projeto de lei sobre a rotundidade dos balões. 4 – Trata-se na Câmara da verificação de poderes. 5 – N’um brilhante discurso, S. Ex. prova COM TODA A CLAREZA, ser o legítimo representante de seus ilustrados provinvianos. 6 – Houve duplicata! S. Ex., que não é reconhecido deputado volta para sua província carregado de encomendas. A curiosidade de Luis Guilherme Sodré Teixeira frente à Semana Ilustrada provém de uma certa naturalização que o autor estabelece para o humor. Para ele, o ofício de Fleiuss, “o da sátira política expressa pelo traço da charge”, caracteriza-se pela permanente oposição a tudo, porém, tal ideia, além de colocar o ofício da sátira política como meta-histórico, limita bastante a extensão de possibilidades do humor. Sem alongas teóricas, de imediato é tirado o poder de escolha do produtor do chiste em atacar e poupar quem ou o que quiser, ante seus valores, credos, posições políticas, visões de mundo, afinidades pessoais e/ou outros elementos que podem nortear escolhas e alvos. A visão desses estudiosos sobre o que era uma boa caricatura talvez relacionasse, principalmente no caso de Werneck e Herman Lima, com concepções políticas e ideológicas do momento histórico então vivido, a década de 1960. A qualidade ou não de uma caricatura dependia do posicionamento político, esperava-se que o traço carregasse o máximo possível 46 de oposição ao estado burguês, ou qualquer regime político não democrático. Assim, o contexto vigente garantiu simpatias para as caricaturas de Ângelo Agostini, que investiam contra o Estado Imperial, e enxergou Henrique Fleiuss como produtor de uma arte reacionária, que teria usado a figura do Moleque para pregar em favor da escravidão. Durante muito tempo cobrou-se da revista de Fleiuss o mesmo engajamento político de Agostini e dos periódicos impressos que adquiriram prestígio nas décadas subsequentes. Evidencia-se que muitas apreensões da Semana não provêm de uma análise da revista em si, mas da sua contraposição aos periódicos que surgiram depois dela. Noutros termos, a desqualificação de Fleiuss é feita a partir de um a posteriori que parece pouco do ponto de vista histórico. No entanto, novos estudos sobre a revista colocaram outros questionamentos, que permitiram realizar outras leituras de Fleiuss e sua produção82. Sutil para lidar com os códigos sociais e, ao mesmo tempo, desfiá-los com seu humor sarcástico, a Semana Ilustrada torna-se um objeto complexo de análise, no qual afirmações penosas podem ser facilmente desvalidadas. Segundo Laura Nery: “nas páginas da revista, o satírico e o caricatural instalam-se na representação, especialmente na composição da dupla Dr. Semana e Moleque, causando estranhamento, desconforto, distanciamento, riso e, em alguns casos, convidando o observador à reelaboração ou à complementação de sentidos contidos nas imagens”. 83 Muitas vezes, com traços de provocação e insubordinação, que levam as caricaturas e textos a flertarem com o grotesco o que “aparece como essencialmente conservador nessa produção pode ganhar novas interpretações”.84 De fato, a publicação de Fleiuss precisa ser inserida no cenário vigente na corte no momento de sua circulação e interpretada como um produto de meados dos oitocentos, quando a queda da monarquia ainda não estava no horizonte de expectativas. Apesar da Semana Ilustrada ter se posicionado de modo semelhante às publicações que a sucederam quando o assunto era a crítica dos serviços públicos, a defesa da posição brasileira na Guerra do Paraguai e a Questão Religiosa, os que satirizavam a ela e seus personagens ocupavam, de 82 Cabe citar três estudos: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Henrique M. Fleiuss: vida e obra de um artista prussiano na corte (1859/1882). ArtCultura, Revista do Instituto de História/UFU, v.8, n.12, p. 85-97, jan/jun, 2006. SOUZA, Karen Fernanda Rodrigues de. As cores do traço: paternalismo, raça e identidade nacional na Semana Ilustrada (1860-1876), Dissertação (Mestrado em História). Campinas, SP: UNICAMP, 2007. NERY, Laura. Os sentidos do humor: Henrique Fleiuss e as possibilidades de uma sátira bem comportada. In KNAUSS, Paulo (org.) Revistas Ilustradas: modos de ler e ver o Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2011. 83 NERY, Laura. Op. cit, p. 186. 84 Idem. 47 fato, lugar sócio-profissional distinto do desfrutado por Henrique Fleiuss. O prussiano pode ser integrado ao conjunto de editores, tipógrafos, artistas e escritores típicos de meados do século XIX, que acreditaram numa nacionalidade brasileira sob a égide monárquica, com a qual mantinham, ainda que em graus diversos, relações de proximidade com D. Pedro II, que por sua vez, cultivava a posição de mecenas, sempre disposto a apoiar o desenvolvimento artístico, científico e literário do Império.85 Mesmo assim, a análise da revista constata o quanto suas páginas e ilustrações apregoavam transformações no que se consideravam estigmas da nação, seu atraso histórico, sua “incivilidade” e ausência de progresso, principalmente de cunho industrial. Apesar de serem contemporâneos, Fleiuss e Agostini produziram suas publicações mais importantes em contextos diferentes, e integraram grupos que compartilhavam diferentes leituras sobre os caminhos que o país deveria seguir. Talvez não seja demais afirmar que Fleiuss e Agostini sonhavam com o mesmo progresso, mas preconizavam caminhos diferentes para o país lá chegar. 85 SCHWACZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro I: um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p 11. 48 CAPÍTULO 2 A SEMANA ILUSTRADA E O RIO DE JANEIRO 49 Figura 21 – Semana Ilustrada, ano 1, nº 13, p. 8, 10 de mar. 1861. Safa! Já não cabe mais ninguém. O primeiro trimestre está tão cheio, que quase forçam a porta. Não posso mais resistir... Aguenta, moleque! Na caricatura acima, que ilustrou a última página da edição na qual se completava o primeiro trimestre de publicação, o Moleque e o Dr. Semana tentavam manter fechada a porta do recinto em que estavam depositadas as figuras sociais que os colaboradores, caricaturistas e redatores, trouxeram para as páginas da Semana Ilustrada. Olhar mais atento permite identificar alguns “tipos” comuns para aqueles que, como o Moleque e o Dr. Semana, circulavam pelas ruas, passeios públicos, praças, bailes e teatros da corte. Já na parte inferior, membro da Igreja, com os pés descalços, empurra a porta e procura libertar-se, atitude compreensível tendo em vista que, nas páginas da revista, sua pregação distanciava-se da sua prática. Junto ao pequeno padre, o dandy, moço de boa aparência e roupa elegante, sempre pronto para conquistar não apenas uma donzela, mas quantas pudesse. À frente deste, um homem agachado com um balde na cabeça, possivelmente um preto “tigre”, que possuía a árdua tarefa de jogar o lixo orgânico da cidade nos mares. Atrás, ainda na parte inferior, vê-se um leão com cartola, alusão aos “leões do norte”, filhos da classe senhorial que, pelo menos em tese, estavam no Rio para estudos. Com o belo braço estendido e a mostrar a panturrilha arredondada, a moça, branca de aparência delicada e frágil, evocava as moças aprumadas, que sonhavam em se tornar esposas, porém, sobre ela, as mãos de um “velho gaiteiro” que, apesar de sua idade, ainda deseja virgens e não cultivava interesse pela mulher de meia idade que está a sua frente, com sua pele ruim e corpo magro, pejorativamente chamada de “seca” pela revista, talvez uma tia que não se casou e não teve filh