Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes MÔNICA LIE MARUYAMA A aprendizagem do desenho e da escrita: Uma experiência com ideogramas japoneses no ensino fundamental. São Paulo 2015 MÔNICA LIE MARUYAMA A aprendizagem do desenho e da escrita: Uma experiência com ideogramas japoneses no ensino fundamental. Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – Unesp, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Licenciado em Artes Visuais. Orientadora: Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho São Paulo 2015 MÔNICA LIE MARUYAMA A aprendizagem do desenho e da escrita: Uma experiência com ideogramas japoneses no ensino fundamental. Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – Unesp, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Licenciado em Artes Visuais, pela seguinte banca examinadora: ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho Instituto de Artes - Orientadora __________________________________________________________________ Prof. Mestre em Artes Visuais Guilherme Nakashato Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de São Paulo São Paulo Data da aprovação 25 de novembro de 2015 Agradeço e dedico este trabalho: À minha mãe, por povoar nossa casa de amor, espiritualidade, livros e arte, suas paixões. Aos meus irmãos, pela infância mágica e criativa. Ao meu pai, por sempre fazer o seu máximo. Às minhas avós, mulheres admiráveis, pela resistência travestida de resignação. Aos amigos, por serem grandes companheiros de descobertas. À minha orientadora, que construiu comigo o rumo deste trabalho. Ao Joaquim e Thiago, pelo hoje feliz. Lista de ilustração Figura 1 – Grupo Sol..............…………………………………………………................24 Figura 2 – Grupo Árvore.............................................................................................24 Figura 3 – Grupo Mulher/Homem...............................................................................25 Figura 4 – Grupo Corpo Humano...............................................................................25 Figura 5 – Grupo Pessoa...........................................................................................26 Figura 6 – Grupo Amor/Amizade................................................................................26 Figura 7 – Resultados Grupo Sol...............................................................................28 Figura 8 – Resultados Grupo Árvore nº 1..................................................................29 Figura 9 – Resultados Grupo Árvore nº 2..................................................................30 Figura 10 – Resultados Grupo Mulher/Homem nº 1..................................................31 Figura 11 – Resultados Grupo Mulher/Homem nº 2..................................................31 Figura 12 – Resultados Grupo Amor/Amizade...........................................................32 Figura 13 – Resultados Grupo Pessoa nº 1...............................................................33 Figura 14 – Resultados Grupo Pessoa nº 2...............................................................33 Figura 15 – Resultados Grupo Corpo nº 1.................................................................35 Figura 16 – Resultados Grupo Corpo nº 2.................................................................35 Figura 17 – Alunos com o zine sobre os ideogramas................................................37 Figura 18 – Ideogramas Árvore, Rio, Pessoa, Prisioneiro, Livro, Fogo, Boca..........38 Figura 19 – Ideogramas Gordo, Grande, Raiz, Sol, Lua e Olho................................39 Figura 20 – Ideogramas Árvore, Floresta e Selva......................................................40 Figura 21 – Ideogramas Corpo e Nihon.....................................................................41 Figura 22 – Ideograma Amanhã.................................................................................41 Figura 23 – Ideograma Bom/Próspero.......................................................................42 Figura 24 – Ideograma Pele.......................................................................................43 Figura 25 – Ideograma Homem..................................................................................43 Figura 26 – Ideogramas Mulher, Barulhento, Paz e Tranquilidade............................44 Sumário Introdução..............................................................................................................7 1 Desconstruindo o mito da alfabetização..............................................................10 1.1 A importância do ato de ler..................................................................................11 2 Aquisição de linguagens: evolução dos sistemas de representação..................13 2.1 A pesquisa de Analice Dutra Pillar......................................................................14 2.2 A evolução do desenho infantil............................................................................15 2.3 Aquisição da linguagem escrita...........................................................................17 2.4 Resultados da pesquisa de Analice D. Pillar.......................................................18 2.5 A complexidade da escrita..................................................................................19 3 Entre a escrita e o desenho: os ideogramas japoneses.....................................22 3.1 A atividade proposta............................................................................................23 3.2 O desenvolvimento do jogo e os resultados........................................................27 4 Ideograma e o desenho infantil...........................................................................38 4.1 O pensamento impresso nos ideogramas...........................................................40 5 Considerações Finais..........................................................................................45 Referências.........................................................................................................51 Anexo A...............................................................................................................53 Anexo B...............................................................................................................54 Apêndice A..........................................................................................................55 Resumo O presente trabalho pretende reunir informações de pesquisas e artigos publicados sobre a importância do meio social no desenvolvimento dos sistemas simbólicos nas crianças. A linguagem verbal, visual e escrita são sistemas de representação entrelaçados, mas cada um possui seus elementos e características próprias. O objetivo do trabalho é elucidar a importância de articular as diversas linguagens existentes e por consequência a importância de uma abordagem articulada também nas situações de ensino-aprendizagem desses sistemas. O trabalho pretende também revelar como é tênue a linha que distingue a escrita do desenho, sendo ambos sistemas de representação além de evidenciar como a visualidade e a linguagem são intrinsecamente ligadas uma vez que o pensamento se dá através das conexões entre ambas. O trabalho conta com o relato de uma atividade com ideogramas japoneses, realizada durante o estágio na educação formal da autora. Aborda o aspecto pictográfico, criativo e poético dos ideogramas, que, trazendo à tona novas formas de pensar e representar simbolicamente, conversando com os métodos da própria linguagem artística. Abstract The aim of this paper is to gather research information and studies posted about the importance of social environment in the development of symbolic systems on children. Languages verbal, visual and written are interrelated representation systems, although each one has its own characteristics and elements. The objective of this paper is to elucidate the importance of linking the various existing types of language and therefore the importance of a coordinate approach also in the teaching-learning situations of these systems. The work also intends to disclose how thin is the line that separates writing of drawing, both of them as representative systems. As well as to show how visual information and language are intrinsically linked as thought happens by the connections between them. The work includes the report of an activity with Japanese ideograms done in the author’s teacher’s training at formal education. It also approaches pictographic, creative and poetic aspects of ideograms that brings up new ways of thinking and representing symbolically just like the methods of artistic language. 7 Introdução Foi durante o estágio formal que cumpri na E.E. Cel. Raul Humaitá que a questão da alfabetização me tocou. Mesmo sendo estagiária de artes, não pude ficar indiferente a essa questão. Conheci alguns alunos que no terceiro e quarto anos do ensino fundamental, com idade entre 8 e 10 anos, não sabiam ler e escrever. Em uma aula de artes, eles estavam resolvendo um caça-palavras com nomes de instrumentos musicais e duas meninas circularam letras aleatórias. Achei estranho e questionei o motivo disso. Uma colega que estava próxima logo disse que elas não sabiam ler e escrever. Isso me chocou porque eu sempre estudei em escola particular, e não conhecia essa realidade, apenas ouvia falar. Passei a me questionar sobre quais fatores estavam ligados a esse não-aprendizado e como o arte-educador poderia contribuir com a alfabetização. Ao mesmo tempo, com essa questão me perturbando, fiquei mais atenta às turmas do primeiro ano que acompanhava. Ouvindo conversas entre as professoras do primeiro ano descobri que havia estágios na alfabetização e que era papel delas monitorar cada aluno e enquadrá-lo em um determinado estágio. Algumas vezes, quando me perguntavam como se escrevia tal palavra, eu tentava dar ênfase na sonoridade da palavra para ver se o aluno conseguia descobrir que letra seria, mas muitas vezes essa tentativa foi frustrada. Então descobri que esses ainda estavam no nível pré-silábico1. Quando eu perguntei quem sabia ler e escrever, a turma sabia exatamente quais eram os alunos que sabiam ler e escrever. O caso de um menino do primeiro ano que ainda se encontrava na fase das garatujas2 me chamou a atenção. Folheei o caderno de artes dele, que não tinha mais folhas em branco, e percebi que seus desenhos eram rabiscos aleatórios e algumas letras de seu nome, porém não havia nenhum nome escrito do início ao fim. As professoras comentavam das dificuldades de comportamento, atenção e consequentemente do aprendizado como um todo daquele menino. Depois de certo tempo, ele não queria mais fazer as atividades de artes por causa do julgamento que 1. Nível pré-silábico é um dos níveis da escrita segundo Emília Ferreiro, conforme pág. 15. 2. Garatujas são desenhos produzidos por crianças que se encontram no nível do realismo fortuito do desenho infantil segundo Luquet, conforme pág.13. 8 os colegas faziam de seus desenhos. Infelizmente a professora permitiu que ele não fizesse nada na aula de artes e ele passava a aula com a cabeça recostada na carteira. Fiquei triste por ela ter “desistido” do menino, pois acredito que nessas horas o educador tem que buscar uma solução, usar sua criatividade, conversar com outros educadores, com os pais, tentar alguma atividade diferente para aquele aluno e fazer o possível para integrá-lo às atividades e ao grupo. Essa experiência me fez pensar nos meus primeiros anos na escola em que fui uma boa aluna e acredito ter aprendido tudo ou quase tudo o que queriam me ensinar na escola. Nessa fase da infância eu me lembro de ter muitos livros em casa. Eu adorava ler e não tinha dificuldades na escola. Mas a partir dos 14 anos fui me distanciando da escola. Talvez porque aquele conteúdo abordado em sala de aula não conversasse mais com minhas experiências, minhas questões e meus anseios. Acredito que, como muitos adolescentes, foi nessa fase que comecei a me questionar sobre o sentido da vida, “por que as coisas são assim?”, “por que não podem ser diferentes?”, etc. E infelizmente a educação formal da maioria das escolas brasileiras ignora esses questionamentos dos jovens, o que acaba cavando um abismo entre o jovem e a escola. Comigo foi assim. Afastei-me da escola, recusando-me a aprender o que queriam me ensinar. Talvez por isso o desenho se tornou uma válvula de escape a partir daquele momento. Mesmo tendo o desenho como um instrumento da minha inconformidade com as coisas, as minhas questões não deixaram de existir. Faltavam-me palavras para organizar pensamentos e sentimentos. Essas preciosas palavras, essas que possibilitam calibrar os pensamentos, acredito que encontrei só mais tarde, ao longo dos anos, através de amigos com quem conversei sobre tudo (ou quase tudo) e também através de livros onde encontrei algumas de minhas ideias e sentimentos escritos por outras pessoas. Sobre as palavras que permitem calibrar os pensamentos, vou dar um exemplo. Quando fui ingressar no pré-primário, tive que tomar algumas aulas particulares para me submeter ao teste para ingresso naquela escola. Como vinha de uma escolinha “fraca”, precisava adquirir vocabulário. Lembro-me de uma aula em especial, quando 9 a professora me mostrou uma foto de uma viela e me perguntou como era esta rua. Respondi prontamente “fino” e ela me corrigiu dizendo “estreito”. São esses inúmeros sinônimos da língua portuguesa que nos permitem calibrar os pensamentos. E esse aprendizado só se adquire lendo e exercitando a construção de uma linha de pensamento através da escrita. Sobre os livros, posso citar o livro Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. Esse livro foi um grande marco, pois enquanto eu lia Os Lusíadas na escola (estava no primeiro colegial, atual primeiro ano do Ensino Médio), resolvi ler esse livro que sempre esteve na estante de casa (aquisição de minha mãe). Então descobri nele a possibilidade de uma literatura diferente daquela da escola e que me interessava muito mais. Também através de livros e de amigos conheci assuntos com os quais me identifiquei, como a ideia de anarquismo como uma possibilidade de sociedade ou a ideia de imanência de Spinoza, que contradiz a existência de um Deus transcendente ou a ideia de sociedade líquida de Zygmunt Bauman. Assuntos da cultura que diziam muito a respeito das minhas questões pessoais. Por isso, reconheço a importância da alfabetização como sendo o primeiro passo de uma longa caminhada. Uma caminhada na companhia das palavras. 10 “A alfabetização não é o único problema. Ela também não é a única solução.” Harvey Graff 1 Desconstruindo o mito da alfabetização Nos anos 80 do século passado, a alfabetização esteve em foco por parte de cientistas sociais e pesquisadores da educação. Para muitos, a alfabetização é uma qualidade distintiva do homem civilizado e portanto de uma sociedade civilizada. Existe uma ideia, de senso comum, de que a alfabetização está ligada ao desenvolvimento econômico, ao controle de natalidade, aos baixos índices de criminalidade e à sociedade mais participativa e democrática. Porém, apesar dos dados numéricos de pesquisas permitirem tal interpretação, é um equívoco pensar que apenas a alfabetização seria capaz de tais reflexos na sociedade. O que Harvey J. Graff1 (1995) aponta através de suas pesquisas é que esse índice de alfabetização contabiliza a parte da população que domina o sistema alfabético, ou seja, pessoas alfabetizadas que podem assinar documentos, entre outras coisas, mas não necessariamente têm o hábito da leitura ou de alguma produção literária. Graff afirma que apenas alfabetizar um indivíduo não é garantia que este venha a se tornar uma pessoa mais consciente, crítica ou participativa na vida em sociedade, etc. Graff considera que a escrita pode ser um mero acidente evolutivo: o Homo sapiens, como espécie, vem evoluindo há cerca de um milhão de anos, sendo que a arte rupestre, que indica a capacidade simbólica, surgiu há cerca de 30.000 anos e a escrita, há cerca de 5.000 anos. Ele afirma que a comunicação verbal é uma capacidade evolutiva que foi incorporada aos nossos genes, pois ao longo da evolução foi um fator seletivo para a sobrevivência de nossa espécie, ou seja, aqueles indivíduos que possuíam essa capacidade da comunicação verbal foram 1 Harvey J. Graff é professor de Inglês e História da Universidade Estadual de Ohio e dirige os Estudos de alfabetização, um programa interdisciplinar que envolve diversos departamentos da Universidade Estadual de Ohio. É conhecido internacionalmente por sua pesquisa sobre a história da alfabetização. Atualmente presta consultoria para organizações cívicas e comunitárias, sociedades históricas, jornais, estações de televisão e de rádio, redes de Internet e programas de alfabetização a nível internacional. 11 mais aptos à sobrevivência e reprodução enquanto seres sociais, inseridos numa coletividade que possibilitou a sobrevivência da espécie. Pois sabemos que a sobrevivência e a evolução de nossa espécie é consequência dos conhecimentos transmitidos de geração em geração, ou seja, dos ensinamentos da experiência adquirida, cultural, que durante muito tempo foi transmitida oralmente. Esse impulso para a comunicação verbal pode ser observado em bebês, que logo nos primeiros anos de vida começam a desenvolver a comunicação verbal. Graff segue afirmando que a linguagem escrita ainda não foi incorporada aos nossos genes, pois se trata de um fator recente, que ainda não atingiu tempo suficiente para ter se tornado ou não um fator de seleção natural da espécie humana. E a alfabetização ocidental, que se propõe como a democratização da escrita, existe desde aproximadamente o ano 600 a.C., o que corresponderia a apenas 0,26% do tempo de existência da espécie humana. A valorização da alfabetização é algo recente, proveniente da cultura ocidental eurocêntrica pós Iluminismo, tanto que a escrita durante muito tempo ficou restrita apenas aos intelectuais, filósofos, religiosos e aristocratas, como forma de dominância intelectual, religiosa e política. Posteriormente se tornou mais acessível a outras camadas da sociedade, mas até recentemente a escrita (e a educação formal como um todo) era restrita aos homens, sendo as mulheres proibidas de estudar. Essa era a realidade em diversas sociedades e infelizmente ainda é em algumas, como no Afeganistão, por exemplo, onde as mulheres são proibidas de estudar dentre outras coisas. O problema da supervalorização da alfabetização é que esta implica em desvalorizar as tantas outras sabedorias, conhecimentos e habilidades que existem independentes da linguagem escrita, que tende a perpetuar as desigualdades e segregar ainda mais a população entre letrados e iletrados. 1.1 A importância do ato de ler A alfabetização por si só não pode ser considerada solução para a violência ou para uma economia subdesenvolvida. Porém ainda é o passo inicial para o indivíduo ter 12 acesso a uma grande fatia da cultura e do conhecimento humano que até o presente momento se encontram disponíveis no meio literário. O educador Paulo Freire já nos alertava há bastante tempo que no processo de alfabetização, quando são trabalhadas palavras do universo vocabular dos educandos, impregnam de significação o ato de ler e escrever, pois as palavras dizem sobre as experiências existenciais dos próprios educandos. A alfabetização pode tratar-se de um ato criador quando esta não se restringir ao ensino puro e mecânico da palavra. Ensino em cujo processo o alfabetizador fosse ‘enchendo’ com suas palavras as cabeças supostamente ‘vazias’ dos alfabetizandos. Pelo contrário, enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo da alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito. (FREIRE, 1989, p.13) Infelizmente ainda se ensina mecanicamente a ler e escrever e, como fruto de uma educação mecânica, também se estimula a leitura mecânica. Mesmo que inconscientemente, muitos professores estimulam a leitura mecânica quando exigem uma quantidade absurda de leituras, sem o necessário aprofundamento nos textos para a compreensão daquilo que se lê. E sem compreensão, não é possível o verdadeiro conhecimento daqui que se lê, pois “linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.” (FREIRE, 1989, p.09). O ato de ler é importante quando este é a continuidade da leitura de mundo que o indivíduo faz do mundo ao seu redor. Assim sendo, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.” (FREIRE, 1989, p.13). É importante que a leitura das palavras seja um instrumento que some, que estenda a leitura e interpretação de mundo e que possibilite o registro e organização de ideias e pensamentos de um indivíduo para compreensão da realidade em que se insere. Assim sendo, a leitura é um valioso instrumento para a percepção crítica, interpretação e "reescrita” dessa realidade. 13 2 Aquisição de linguagens: evolução dos sistemas de representação No dicionário Houaiss, são atribuídas diversas definições para “linguagem”, sendo a primeira definição: “qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.”. A linguagem está diretamente atrelada à capacidade simbólica do ser humano, uma atividade extremamente complexa que vem evoluindo concomitante com o ser humano enquanto ser biológico, social e cultural. A linguagem/língua é quase sempre tratada nos livros de pedagogia simplesmente como a expressão do pensamento. É verdade que a linguagem/língua é um instrumento lógico, mas ela é fundamentalmente e primariamente um instrumento social. (DEWEY, 1987 apud BARBOSA, 2007, p.50). Os processos simbólicos mnemônicos, como marcar a madeira ou atar nós que algumas civilizações ancestrais utilizavam para marcar quantidades, por exemplo, modificam a estrutura psicológica do processo de memória e, portanto, do pensamento (VYGOTSKI1, 2003). Isso porque o processo simbólico se dá na complexidade e dinamismo do pensamento. O pensamento não é constituído apenas de imagens ou apenas de palavras, mais que isso, ele é um sistema que cria relações dinâmicas (PIAGET2, 1978 apud PILLAR, 2012, p.31). Uma imagem pode fazer vir à tona uma palavra ou um conceito e um conceito pode vir acompanhado de uma imagem ou um som, cheiro etc. “Nossa análise atribui à atividade simbólica uma função organizadora específica que invade o processo do uso de instrumentos e produz formas fundamentalmente novas de comportamento.” (VYGOTSKI, 2003, p.32). Todas as formas de atividade simbólica, portanto, são capazes de tal interferência na atividade cognitiva e 1 . Lev Vygotski (1896-1934) foi um importante psicólogo bielo-russo que atribuiu grande importância às relações sociais no desenvolvimento humano. Seus estudos deram origem à corrente pedagógica chamada socioconstrutivismo ou sociointeracionismo. Discordava da teoria epistemológica de Jean Piaget, que enfatizava mais os processos internos dos indivíduos no processo de desenvolvimento e aprendizagem. Apesar das divergências, muitos estudiosos reconhecem as importantes contribuições de ambos os autores e acreditam na conciliação de suas obras. 2 Jean Piaget (1896-1980) foi um importante biólogo suíço que criou um campo de investigação científica denominada epistemologia genética. Submeteu o processo de aquisição de conhecimento de indivíduos, em particular as crianças, à observação científica. Suas pesquisas influenciaram tanto a psicologia como a pedagogia. 14 consequentemente no comportamento humano. O próprio pensamento extrapola as fronteiras que delimitam as linguagens. Por isso, aquele que souber usufruir as diferentes linguagens tem mais instrumentos para leitura, interpretação e expressão de ideias e pensamentos. Em nossa cultura, as palavras, números, movimentos, imagem e padrões de formas e sons são formas por meio das quais os significados são representados. Para que se possa ler aquelas formas, é necessário que haja um entendimento de suas regras, seus contextos e sua estrutura sintética. Cada forma de representação impõe seus próprios limites e fornece suas próprias possibilidades. Alguns significados são melhor expressos por imagens visuais, outros pelo movimento, alguns significados exigem o uso de proposições, outros de números. Cada uma destas formas de representação foi criada para fazer o que as outras formas não conseguiram. (EISNER apud BARBOSA, 2007, p. 90). 2.1 A pesquisa de Analice Dutra Pillar A pesquisa de Analice Dutra Pilllar1 e equipe Desenho e Escrita como sistemas de representação buscou revelar as possíveis relações no desenvolvimento do desenho e da escrita, partindo do pressuposto de ambos se configurarem como sistemas de representação, baseado na concepção de Piaget sobre a formação do símbolo na criança2. A pesquisa contou com dois grupos de crianças do primeiro ano de uma escola pública de Porto Alegre. No grupo A, as crianças desenvolviam atividades de alfabetização e de desenho sistematicamente e em proporções semelhantes. Ambas as atividades recebiam a mesma importância. Já no grupo B, as crianças tinham mais atividades de alfabetização do que de desenho. As crianças foram submetidas a 03 entrevistas individuais ao longo do ano letivo para acompanhar o desenvolvimento do desenho e da escrita. Nas entrevistas, o entrevistador lia uma história para a criança. Em seguida era dada uma folha de papel e materiais gráfico 1 Analice Dutra Pillar realizou Estágio de Pós-Doutorado em Artes na Facultad de Bellas Artes da Universidad Complutense de Madrid, Espanha. Atua como professora na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS, orientando Mestrado e Doutorado na área de Educação e Artes Visuais. Também é especialista em Alfabetização de Classes Populares e coordena o Grupo de Pesquisa em Educação e Arte (GEARTE/UFRGS/CNPq). 2 PIAGET, Jean. A formação do símbolo da criança: Imitação, Jogo e Sonho, Imagem e Representação. Tradução: Álvaro Cabral e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1978. 15 como canetas hidrográfica, lápis de cera ela era convidada a desenhar o que quisesse. Não era imposto que se desenhasse algo relacionado à história lida. Em seguida havia um pequeno ditado de algumas palavras e de uma frase. E em algumas entrevistas a criança também podia escrever algo livre ou relacionado ao seu desenho. Nesta pesquisa, foram tomados por base os níveis de desenho categorizados por Luquet e os níveis de escrita categorizados por Emília Ferreiro, conforme os dois tópicos que seguem. 2.2 A evolução do desenho infantil Para observação do desenho infantil, foi utilizada a classificação de Luquet1 por haver nessa classificação uma trajetória evolutiva das formas e da construção espacial, que acompanham o desenvolvimento motor e intelectual da criança. Luquet classificou quatro estágios do desenho infantil: Realismo Fortuito, que é subdividido em Realismo Fortuito Involuntário e Voluntário; Incapacidade Sintética ou Realismo Falhado; Realismo Intelectual e Realismo Visual. No estágio do Realismo Fortuito, há duas subdivisões. A primeira é o Realismo Fortuito Involuntário, na qual só existe o prazer do gesto. A criança descobre que seus movimentos produzem as marcas no papel. O desenho é a experimentação dos movimentos que produzem linhas, pontos, curvas, massas de cor no espaço, que pode ser da folha em branco ou outro suporte. Não existe qualquer intenção de atribuir significado àquilo que se desenha. No momento seguinte, no estágio denominado Realismo Fortuito Voluntário, a criança, influenciada pelo meio, passa a ter uma preocupação em representar algo em seus desenhos. É iniciado o processo produtor de simbolização, quando ela produz uma forma e atribui um significado a esta forma. Ou mesmo anuncia que vai representar algo para depois produzir seu desenho. Nessa fase o desenho não necessariamente possui alguma semelhança com o que ela diz se tratar. É um 1 Georges Henri-Luquet (1876-1965) foi um filósofo francês que em sua tese de doutorado em Artes teve como tema o desenho infantil (1913). Sua tese se baseou na observação de mais de 1700 desenhos de sua filha coletados durante 10 anos. Suas teses influenciaram a psicologia do desenvolvimento e consequentemente a pedagogia. Também dedicou estudos à antropologia e etnologia, focados no desenvolvimento da comunicação por imagens e na arte primitiva. 16 processo produtor de simbolização, pois mesmo antes das garatujas a criança é capaz de identificar símbolos, como o desenho de um cachorro, que ela aponta e diz o nome “cachorro”, por exemplo. Aos poucos a criança vai se apropriando de esquemas representativos para suas figuras. Independente se esses esquemas são copiados de outros desenhos, o interessante desta fase é a formação de um repertório gráfico que a criança utiliza em diversas situações. A criança pode exagerar ou omitir partes das figuras. Ela é capaz de representar diversos objetos, animais e a figura humana, porém sem que esses objetos possuam relações espaciais entre si ou com o suporte. A criança pode, por exemplo, desenhar uma casa numa posição, virar a folha e desenhar uma árvore em outra posição. Pode desenhar diferentes figuras humanas “flutuando” no espaço do papel. A essa característica Luquet deu o nome de incapacidade sintética. Esse estágio ele nomeou de Incapacidade Sintética ou Realismo Falhado. No estágio seguinte, no Realismo Intelectual, surge a preocupação em não apenas representar figuras, mas de compor uma cena, com personagens, objetos e cenário. A criança consegue estabelecer relações espaciais euclidianas (de proporções e distâncias) e tem a consciência da perspectiva, mesmo que ainda não domine a representação desta. Ela estabelece um sentido para o desenho, o chão pode ser a borda inferior da folha de papel, por exemplo. Nesse estágio a criança desenha aquilo que sabe ou conhece, não exatamente aquilo que vê. A criança pode representar mais de um ponto de vista de um mesmo objeto, como a vista frontal e a lateral de uma casa, por exemplo. Também utiliza recursos como a transparência: pode desenhar uma casa e as pessoas no interior dessa casa, como se a parede fosse transparente. Esses recursos são meios que a criança encontra de tornar o desenho mais compreensível e verossímil. A criança nesse estágio já possui um bom repertório de representação das figuras. Por último vem o estágio do Realismo Visual, no qual a criança busca desenhar aquilo que vê, ou seja, pode chegar a interpretar e representar a perspectiva e as relações espaciais, caso seja iniciada nestes códigos. 17 2.3 Aquisição da linguagem escrita Para observação do processo de alfabetização durante a pesquisa, foi utilizada a classificação estabelecida por Emília Ferreiro1 por ser a utilizada atualmente nas escolas brasileiras para o acompanhamento do processo de alfabetização. São quatro níveis de escrita, brevemente descritos abaixo: Pré-silábico: a escrita é alheia à correspondência grafema-fonema. A criança pode representar uma palavra com apenas uma letra. Pode criar hipóteses sobre a quantidade de letras: a quantidade de grafemas não corresponde ao número de sílabas, muitas vezes a quantidade de grafemas tem relação com o tamanho do objeto (quanto maior o objeto, mais letras terá e objetos pequenos, menos letras). Também pode criar outras hipóteses sobre a quantidade e a variação das letras: uma palavra não pode ter menos de duas letras e não se pode repetir letras. Silábico: início da fonetização da escrita. A criança busca corresponder o som à escrita, porém ela começa fazendo a correspondência de um grafema por sílaba. Silábico-alfabético: a criança constata que apenas uma grafia para cada sílaba não é suficiente. Começa a analisar por sílabas e fonemas. Assim oscila entre representar cada fonema por um grafema e uma sílaba inteira por um grafema, dependendo da situação. Alfabético: a criança é capaz de representar uma grafia por fonema. Os grafemas podem ou não ter o valor sonoro convencional do fonema. 1 Emília Ferreiro é psicolinguista argentina que estudou os mecanismos do aprendizado da leitura e escrita baseada nos mecanismos de assimilação e reacomodação dos esquemas internos deduzidos por Piaget. Suas publicações em meados dos anos 80 revolucionaram a pedagogia, levando os educadores a reverem seus métodos. 18 2.4 Resultados da pesquisa de Analice D. Pillar1 Os resultados da pesquisa de Analice D. Pillar e equipe apontam a relação entre a evolução dos estágios do desenho e da escrita. De acordo com os resultados, em ambos os grupos pesquisados, nenhuma criança que chegou ao nível Alfabético da escrita permaneceu nos níveis do Realismo Fortuito ou Incapacidade Sintética de desenho. Todas as crianças que se enquadravam no nível Alfabético estavam no nível do Realismo Intelectual ou do Realismo Visual em seus desenhos. Com isso, pode-se concluir que para alcançar o nível Alfabético da escrita, a criança antes atingiu ao menos o nível de Realismo Intelectual de desenho, ou seja, ela se tornou capaz de estabelecer as relações projetivas (perspectiva) e euclidianas (proporções e distâncias) em seus desenhos. Esse modo de organizar o espaço revela a capacidade da criança em adquirir essas convenções da representação gráfica, que se mostra relacionada à capacidade da criança em adquirir as convenções da representação escrita. Os resultados também apontam que as crianças do Grupo A, que tiveram atividades tanto de desenho como escrita, tiveram um melhor desempenho na evolução tanto do desenho como da escrita em relação ao Grupo B. Do Grupo A, 09 crianças das 57 crianças não atingiram o nível Alfabético (15,78%). Do Grupo B, 08 das 40 crianças não atingiram o nível Alfabético (20%). Também no Grupo A não houve nenhuma criança que na terceira entrevista se situasse no nível Pré-silábico da escrita, sendo que no Grupo B, 03 crianças ainda se encontravam nesse nível. Para podermos comparar, no Grupo A, 26 crianças (45%) se situavam no nível Pré- silábico da escrita na primeira entrevista. Enquanto no Grupo B eram 23 crianças (57%). Sobre a evolução do desenho, cabe ressaltar que, no Grupo A, 09 crianças atingiram o nível do Realismo Visual de desenho e no Grupo B, nenhuma. Também é interessante o fato de que, no Grupo B, quase todas as crianças já iniciaram as entrevistas no nível do Realismo Intelectual do desenho. Nesse grupo não havia criança no estágio do Realismo Fortuito e apenas 03 crianças (7,5%) no estágio da 1 Tabelas dos resultados das três entrevistas com os Grupos A e B de crianças nos Anexos A e B, respectivamente. 19 Incapacidade Sintética. Já o Grupo A contava, na primeira entrevista, com 13 crianças (22,8%) no estágio da Incapacidade Sintética e 03 crianças (5,26%) no estágio do Realismo Fortuito. 2.5 A complexidade da escrita Em relação à escrita, apesar da maioria das crianças ter atingido ao longo do ano o nível Alfabético, os resultados apontam que algumas crianças, de ambos os grupos pesquisados, mesmo tendo atingido o nível do Realismo Intelectual de desenho, atingiram somente os níveis Pré-silábico, Silábico ou Silábico-alfabético de escrita. Posso citar o exemplo de um indivíduo do Grupo B que na primeira entrevista se encontrava no nível da Incapacidade Sintética do desenho e no nível Pré-silábico da escrita. Na segunda entrevista, já se situava no nível do Realismo Intelectual do desenho, mas se manteve no nível Pré-silábico da escrita. E na terceira entrevista se manteve como na segunda. Outros dois indivíduos, também do grupo B, se situavam no nível do Realismo Intelectual do desenho e no nível Pré-silábico da escrita e assim se mantiveram na segunda e terceira entrevistas, sem evoluírem na aquisição da escrita. (Anexo B) Ou seja, mesmo havendo evolução no desenho, ou já se situando nos níveis mais avançados do desenho, algumas crianças não evoluíram na escrita ou evoluíram menos do que no desenho. Por isso, cabe ressaltar o quão complexo é o processo de alfabetização da língua portuguesa e citar alguns fatores que podem dificultar a aquisição da linguagem escrita: – O alfabeto romano é um sistema arbitrário de símbolos, onde cada grafema corresponde a um fonema, e mesmo assim, na língua portuguesa, as regras ortográficas certas vezes contradizem essa relação grafema-fonema. Como, por exemplo, a palavra “casa”, onde a letra “s” tem o sm de “z”; ou a palavra “cheio” onde o “ch” tem som de “x”. Por isso, para a memorização do alfabeto e da ortografia correta das palavras é necessário criar uma rede de associações complexa. E isso só é possível com um processo de ensino-aprendizagem adequado que respeite o processo de aprendizado de cada indivíduo. 20 – O reconhecimento e memorização dos grafemas é uma dificuldade neurobiológica. A neurociência atesta que nosso cérebro é programado ...para processar o sinal visual simetricamente: para sobrevivência, é economicamente eficiente descartar as diferenças que eventualmente possam existir entre a direção dos traços para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, mas a percepção dessa diferença é essencial no reconhecimento das letras. (SCLIAR-CABRAL, 2009)1 – Na transposição do verbal para a escrita, há grande dificuldade em desmembrar a sílaba que é formada por duas ou mais letras, pois nosso sistema não é silábico e sim alfabético. A ideia inicial dos alfabetizandos é de que a sílaba é uma unidade indecomponível (SCLIAR-CABRAL, 2009), onde o alfabetizando julga ser necessário um grafema por sílaba. Isso também é atestado nos estudos de Emília Ferreiro, que classificou essa etapa do processo de alfabetização de Nível Silábico. – Diferentes níveis de aprendizado e condições socioculturais podem se tornar fatores negativos para o aprendizado. No ambiente escolar, principalmente nas redes públicas de ensino no Brasil, o educador se depara com indivíduos em diferentes níveis de aprendizado e condições socioculturais. No caso das escolas particulares, geralmente existem pré-requisitos para o aluno ingressar na escola, e em alguns casos, para o ingresso nessas escolas, os alunos são submetidos a um teste para comprovar esses pré-requisitos, o que torna as turmas mais homogêneas em nível de aprendizado. É fato que a heterogeneidade é bem-vinda em sala de aula e pode e deve ser utilizada para o enriquecimento das experiências de aprendizado de todos os envolvidos. Porém, no caso do ensino público brasileiro, a heterogeneidade de níveis de aprendizado pode se tornar um empecilho. Primeiro, pelo fato das turmas serem numerosas demais, e que, somadas à falta de atenção gerada justamente por esse grande contingente, contribuem para o insucesso das atividades. Segundo, por serem desenvolvidas atividades que dificilmente sofrem as alterações ou ajustes necessários para atender às demandas dos diferentes níveis de aprendizado que podem existir. 1 Leonor Scliar-Cabral é doutora em Linguística pela USP e coordena grupos de pesquisa em linguística e projetos de combate ao analfabetismo funcional. 21 Finalizando, sobre o caráter simbólico complexo da linguagem escrita, Vygotski afirma que Um aspecto desse sistema é que ele constitui um simbolismo de segunda ordem que, gradualmente, torna-se simbolismo direto. Isso significa que a linguagem é constituída por um sistema de signos que designam os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das relações e entidades reais. Gradualmente, esse elo intermediário (a linguagem falada) desaparece e a linguagem escrita converte-se num sistema de signos que simboliza diretamente as entidades reais e as relações entre elas. (VYGOTSKI, 2003, p. 140) Conclui-se com isso que a linguagem escrita merece especial atenção por toda a complexidade do seu aprendizado, e reconhecer a evolução do desenho como um precedente necessário para a aquisição da linguagem escrita é imprescindível para se pensar num programa de ensino que reconheça as atividades artísticas como fundamentais para o desenvolvimento das capacidades cognitivas e motoras da criança. 22 3 Entre a escrita e o desenho: os ideogramas japoneses Os ideogramas japoneses sempre estiveram presentes de maneira tímida em minha vida. Neta de japoneses, pertenço à terceira geração que reside no Brasil, então muito da cultura japonesa que meus avós trouxeram consigo do Japão se manteve apenas até a geração de meus pais. A língua foi um grande divisor. Meus pais falavam apenas em japonês dentro de casa com meus avós. Já minha geração se comunica apenas em português. No máximo são usadas algumas palavras e expressões em japonês. Geralmente para coisas triviais, como o nome de um prato típico, boa noite, bom dia, por exemplo. Também há um detalhe importante: meus pais e avós se comunicam verbalmente em japonês, porém são praticamente analfabetos, não dominam a língua escrita, com exceção de minha mãe, que fez curso de japonês quando adulta para aprender um pouco da escrita. Eu também estudei em nihongakko (escola de língua japonesa), mas por apenas alguns anos na infância. Lembro-me de um dia, durante uma aula, os colegas terem comentado que eu era a “bola-montanha”, pois os ideogramas que compõem meu sobrenome Maruyama são o Círculo (Maru) e Montanha (Yama), que na realidade fazem referência à geografia do local em que aquela família morava. No caso da família Maruyama, era uma montanha redonda. Por ter sido pouco o tempo no nihongakko e por minha pouca idade, não cheguei a estudar os kanjis, os ideogramas japoneses. Estudei apenas o hiragana e katakana, que são os alfabetos silábicos japoneses. Essa reaproximação com a língua japonesa, em especial com os ideogramas, aconteceu por acaso durante o estágio formal realizado na escola estadual de ensino fundamental I Raul Humaitá. Alguns alunos demonstraram muita curiosidade pela cultura japonesa, sempre me perguntando como se dizia isso ou aquilo em japonês e perguntando sobre o significado de nomes de personagens de desenhos animados japoneses e comidas. Certo dia, uma aluna do quinto ano insistiu para que eu ensinasse japonês para sua turma. Então conversando com Lúcia, professora de artes daquela turma, chegamos a conclusão que seria interessante abordar os ideogramas japoneses que, sendo representações pictográficas de palavras, possuem relação com a arte, e o tema 23 conversava também com o que eles estavam vivenciando nas aulas de artes naquele momento, que era a pixação, alfabeto pixo, estilização de letras e tags. 3.1 A atividade proposta Pensando no público-alvo da atividade, que eram os alunos do quinto ano, crianças de 10 ou 11 anos, minha vontade era de despertar a curiosidade deles e não apenas transmitir as informações sobre os ideogramas em uma lousa ou apenas expondo algum material. Então elaborei um jogo de cartas com os ideogramas e os seus significados. Minha pesquisa sobre os significados dos ideogramas se baseou no livro Kanji Pictográfico de Michael Rowley. Selecionei alguns ideogramas básicos, como Sol, Árvore, Pessoa e alguns ideogramas compostos por esses básicos, combinados com outros elementos, como, por exemplo, o ideograma Floresta, que é composto pela junção de dois ideogramas Árvore. Os separei em grupos por afinidade visual e afinidade temática. Em alguns grupos, incluí elementos que, à primeira vista, se levamos em conta apenas o seu significado em português, parecem não fazer sentido pertencer àquele grupo de palavras, mas ao observarmos os elementos dos ideogramas, podemos entender uma relação visual e semântica. Para auxiliar os alunos a saberem o sentido correto dos ideogramas (pois por se tratar de uma figura pode ser invertida e lida de ponta-cabeça), escrevi atrás a pronúncia das palavras em letras românicas, na mesma orientação dos ideogramas. Os grupos com os respectivos ideogramas foram os seguintes: Grupo Sol - Sol, Manhã, Amanhã, Lua, Brilhante, Bom/Próspero e Cristalino. (Figura 1) Grupo Natureza - Árvore, Floresta, Selva, Água, Rio, Montanha e Raiz. (Figura 2) Grupo Mulher/Homem - Mulher, Barulhento, Paz, Tranquilidade, Senhora, Homem e Força. (Figura 3) Grupo Corpo Humano - Boca, Olho, Coração, Mão, Pele, Pensar e Dizer. (Figura 4) Grupo Pessoa - Pessoa, Prisioneiro, Grande, Gordo, Cachorro, Corpo e Fogo. (Figura 5) 24 Grupo Amor/Família - Amor, Amigo, Criança, Pai, Mãe, Terminar/Completar/Entender e Livro. (Figura 6) Figura 1 – Grupo Sol Fonte: Arquivo pessoal. Figura 2 – Grupo Árvore Fonte: Arquivo pessoal. 25 Figura 3 – Grupo Mulher/Homem Fonte: Arquivo pessoal. Figura 4 – Grupo Corpo Humano Fonte: Arquivo pessoal. 26 Figura 5 – Grupo Pessoa Fonte: Arquivo pessoal Figura 6 – Grupo Amor/Amizade Fonte: Arquivo pessoal 27 3.2 O desenvolvimento e os resultados do jogo A atividade foi realizada em 04 turmas diferentes, 03 do quinto ano e 01 do quarto ano. Isso porque, depois da primeira experiência, as outras professoras de Arte, Carla e Ilzete, se interessaram e me convidaram a realizar a atividade com as turmas delas. Por isso, na exposição dos resultados a seguir existem dois ou mais grupos de alunos com o mesmo conjunto de ideogramas. Em cada sala, a turma foi dividida em 06 grupos, cada grupo recebeu um envelope contendo as cartas com os ideogramas e seus significados em português. Cada envelope continha em média sete ideogramas. Antes de abrirem os envelopes, falei rapidamente que a escrita por ideogramas era baseada no desenho daquilo que as palavras representavam e que cada ideograma correspondia a uma palavra. Então pedi para que abrissem os envelopes e relacionassem cada ideograma com uma das palavras contidas no envelope que receberam. O jogo foi bem aceito pelos estudantes. A partir do repertório deles, foram atribuindo os significados aos ideogramas, de uma maneira muito lógica e intuitiva. Em alguns momentos houve divergência de opiniões entre os integrantes do grupo a respeito de qual ideograma correspondia a tal palavra. Essas situações foram resolvidas com muito diálogo, um tentando convencer o outro do seu ponto de vista ou se ainda não se resolvesse assim, faziam uma pequena votação entre os integrantes para decidir qual ideograma seria atribuído a tal palavra. Começando pelo Grupo Sol (figura 7), podemos observar uma lógica intuitiva nas atribuições de significados. Foi anunciado ao grupo o ideograma Sol e, a partir disso, deduziram que a Lua seria o ideograma mais parecido com o Sol, com apenas uma pequena diferença, que é o traço horizontal abaixo da figura central. À palavra Brilhante, eles atribuíram a figura que para eles lembrava o Sol irradiando os raios. Podemos observar na figura os traços verticais que se prolongam levemente para baixo do último traço horizontal. À palavra Manhã eles atribuíram a figura que representava para eles um sol sobre prédios, como se estivesse nascendo naquela paisagem. À palavra Cristalino, a figura do Sol + Brilhante (interpretação posterior 28 que eles fizeram), como se a junção destes resultasse em Cristalino. À palavra Amanhã eles atribuíram a figura que disseram que parecia com a palavra, que é formada por 03 sílabas, e a figura é formada por 3 elementos. Acabaram acertando o significado, mas por um acaso. E à palavra Próspero, disseram que foi por eliminação, que a figura não se encaixava às outras palavras. Novamente acertaram por acaso. Figura 7 – Resultados do Grupo Sol Fonte: Arquivo pessoal. Aqui irei expor os resultados de dois Grupos Árvore, pois obtivemos alguns resultados semelhantes que vale a pena mencionar. Ao Grupo Árvore nº 1 (figura 8), foi anunciado o ideograma Árvore. A partir disso, as participantes fizeram suas relações. À palavra Montanha, elas atribuíram a figura que lembrava dois cumes, como conhecemos de fotos e pinturas de paisagem. À palavra Floresta, atribuíram a figura que para elas era uma paisagem de árvores. À Selva, elas atribuíram a figura que lembrava uma planta brotando do solo. Porém cabe ressaltar aqui que essa figura é o ideograma Raiz de ponta-cabeça. Elas não prestaram atenção na informação no verso da carta, que era a pronúncia do ideograma em letras românicas. Curiosamente, mesmo ignorando essa informação, elas utilizaram os outros ideogramas com a orientação correta. À palavra Raiz, atribuíram a figura que lembrava as raízes debaixo da terra, como nos desenhos dos livros didáticos. Note 29 que a figura (que na realidade é o ideograma Rio) são três traços em ordem crescente e que têm a extremidade superior começando do mesmo ponto. Para elas, esse detalhe, essa linha imaginária, representava o solo. Ao Rio, atribuíram a figura que lembrava o encontro de rios, como na vista topográfica que conhecemos dos livros didáticos de geografia e história. E à Água, atribuíram a imagem que restou, disseram que foi por eliminação, mas que lembrava uma fonte de água, um chafariz. Figura 8 – Resultados Grupo Árvore nº1 Fonte: arquivo pessoal Ao Grupo Árvore nº 2 (figura 9), o ideograma Árvore não foi informado. Os alunos atribuíram ao ideograma Árvore a palavra Raiz, pois para eles o traço na horizontal seria o solo e as partes abaixo deste traço, a raiz. O que faz muito sentido. À palavra Montanha, atribuíram a figura que para eles lembra uma paisagem de montanhas. As palavras Água e Rio ficaram com os ideogramas trocados. Isso porque o ideograma Água realmente se originou a partir da pictografia de um rio em curso, mas posteriormente tomou a forma que lembra mais a vista topográfica do encontro de rios e o ideograma Rio se manteve mais próximo da imagem do rio em curso. À palavra Selva atribuíram o ideograma Montanha de ponta-cabeça. Disseram que a figura lembrava cipós. À palavra Árvore atribuíram a figura com dois elementos, que para eles eram árvores. Interessante que, como não foi informado o ideograma Árvore, eles o atribuíram à palavra Raiz, pois o que parece estar em destaque é 30 realmente a parte inferior. E a figura com duas árvores remetem mais à silhueta longilínea que pertence ao nosso repertório visual. Figura 9 – Resultados do Grupo Árvore nº 2 Fonte: arquivo pessoal Ao Grupo Mulher/Homem nº1 (figura 10), foi anunciado o ideograma Mulher. À palavra Força, atribuíram a figura que são três mulheres, como se força fosse a união das forças destas. À palavra Homem, atribuíram a figura que repetia a figura da mulher, porém com um elemento a mais, que para o grupo se parecia com um chapéu, que distingue o gênero masculino. À palavra Barulhento, atribuíram a imagem que é o elementos mulher com três traços apontados para cima, como algo emitindo um som, artifício muito utilizado em história em quadrinhos, que podem caracterizar espanto também. 31 Figura 10 – Resultados Grupo Mulher/Homem nº 1 Fonte: arquivo pessoal O Grupo Mulher/Homem nº2 (figura 11) atribuiu a mesma figura à palavra Barulhento. Também com a justificativa de que os três traços apontados para cima remetem à emissão de som ou barulho. Figura 11 – Resultados Grupo Mulher/Homem nº2 Fonte: arquivo pessoal No grupo Amor/Amizade (figura 12), observamos que o grupo escolheu as figuras mais semelhantes para Mãe e Pai, com apenas o traço na horizontal que os diferencia. Notem que a figura sem o traço foi associada à palavra Pai, e a figura com o traço foi associada à Mãe, como se o traço representasse a saia ou os seios 32 da mãe, da mesma maneira que são aqueles símbolos dos banheiros públicos: a figura feminina de saia e a figura masculina sem nenhum adereço. À palavra Amigo/Amizade, atribuíram a imagem que para eles lembrava um abraço. À palavra Livro, a imagem que lembra um livro aberto na posição vertical. À palavra Terminar/Completar/Entender atribuíram a imagem que são 4 traços verticais cortados por um horizontal, que dá a impressão de fechamento, finalização daquela imagem. À palavra Amor, atribuíram a imagem que um dos integrantes afirmou ter visto em uma tatuagem e acreditava ser o ideograma Amor, porém era o ideograma de amizade. E à palavra Criança, acreditaram ser o ideograma mais diferente dos outros. Figura 12 – Resultados Grupo Amor/Amizade Fonte: arquivo pessoal Ao grupo Pessoa nº 1 (figura 13) foi anunciado o ideograma Pessoa. Já ao grupo Pessoa nº 2 (figura 14), não foi anunciado, porém ambos os grupos acertaram o ideograma Prisioneiro. Isso demonstra que uma figura dentro de um quadrado representa claramente uma prisão. Notem que no grupo Pessoa nº 2 (figura 14) o grupo atribuiu a palavra Corpo ao ideograma Pessoa, o que possibilitou a mesma interpretação de prisioneiro pois, pela lógica do pensamento deles, seria um corpo cercado. Ambos os grupos também atribuíram à palavra Gordo o ideograma 33 Cachorro. A figura possui um pequeno traço no canto superior direito. Os grupos justificaram a escolha alegando que esse pequeno traço no canto superior direito lembrava uma comida sendo “engolida” pela figura central. À palavra Cachorro, o grupo nº 1 atribuiu a imagem que possui um pequeno traço na parte inferior entre os dois traços curvos, que seria o rabo de um cachorro visto de cima. Já o grupo nº 2 escolheu a imagem que lembrava o focinho de um cachorro. Figura 13 – Resultados Grupo Pessoa nº 1 Fonte: arquivo pessoal Figura 14 – Resultados Grupo Pessoa nº 2 Fonte: Arquivo pessoal 34 Aos dois grupos Corpo Humano foi informado o ideograma Boca. Como olho e boca são elementos do rosto e ambos são cavidades, o grupo Corpo Humano nº 1 (figura 15) associou à palavra Olho o ideograma mais parecido com boca, com formato quadrado porém com os traços que se cruzam no meio do quadrado, representando a íris do olho. À palavra Dizer atribuíram a imagem que lembra uma boca com os traços na parte inferior que representam para o grupo algum som sendo emitido. Notem que o grupo Corpo Humano nº 2 (figura 16) fez a mesma associação, sendo que o grupo nº 2 foi mais além, invertendo a posição da figura, que tornou mais clara a ideia de som sendo emitido. Como já comentamos anteriormente, esses traços são um artifício muito usado em HQ’s, mangás, cartoons, tirinhas, etc. para representar som ou espanto. Ambos os grupos atribuíram à palavra Pele a mesma imagem, disseram que a imagem lembrava uma figura humana, ou seja, a silhueta de um corpo, que dentre as figuras que eles possuíam era a que se encaixava melhor àquela palavra. Os dois grupos acertaram o significado do ideograma Coração. Ambos os grupos disseram que a figura lembra o desenho de um coração por causa dos dois traços mais orgânicos, arredondados. Disseram também que deduziram por eliminação pois na concepção deles as outras palavras não poderiam ser combinadas com aquela figura. Os dois grupos também escolheram a mesma figura para a palavra Mão. Justificaram dizendo que lembrava dedos da mão quando estendida. O grupo Corpo Humano nº 1 (figura 15) atribuiu à palavra Pensar a imagem que o grupo interpretou como sendo duas cabeças, a primeira pensando, cheia e a segunda, vazia, sem pensar. Já o grupo nº 2 (figura 16) atribuiu à palavra Pensar a figura que lembrava um cérebro. O grupo nº 2 atribuiu à palavra Olho a figura formada por dois elementos, representando os dois olhos do rosto. 35 Figura 15 – Resultados Grupo Corpo Humano nº 1 Fonte: arquivo pessoal Figura 16 – Resultados Grupo Corpo Humano nº2 Fonte: arquivo pessoal 36 A atividade se encerra com minha “correção”, atribuindo as palavras aos respectivos ideogramas. Cada grupo que concluía as atribuições de significados me chamava e eu me dirigia até a mesa do grupo. Quando elaborei a atividade queria que todos terminassem as relações entre ideogramas e palavras e então todos pudessem acompanhar essa etapa final da “correção” e comentários. Mas como o tempo era curto (uma aula, 50 minutos), tive que ir para os comentários de grupo em grupo conforme eles terminassem as atribuições de significados. Na mesa dos grupos, no primeiro momento, eu perguntava o motivo de cada escolha que fizeram. Somente depois das explicações dos alunos eu anunciava os significados corretos e aproveitava para explicar a lógica daquela representação e como aquilo era fruto de uma linha de pensamento. Para cada grupo era destacado algo relacionado aos ideogramas ali expostos. Como, por exemplo, no grupo Sol, que abriu margem para falar da relação da sociedade japonesa com o Sol, de sua importância para a agricultura e, portanto, para a sobrevivência das pessoas. Após essa etapa, alguns alunos de grupos onde eu já havia feito a correção e comentários acompanhavam os grupos seguintes. Algumas crianças também aproveitaram para copiar alguns ideogramas em seus cadernos de Arte. O objetivo do jogo era apresentar uma forma diferente de escrita, onde as palavras são representadas por um único símbolo gráfico, diferente da nossa escrita, onde cada som é representado por um símbolo gráfico e a possibilidade de através de símbolos de objetos concretos criar significados abstratos. Também foi interessante observar essas questões do repertório visual dos alunos que influenciou bastante nas escolhas que fizeram. Acredito que a atividade não tem diretamente relação com a alfabetização, mas indiretamente tem relação com o ensino e aprendizagem de línguas, pois na atividade foi abordada a origem e o contexto social daquela escrita. Também foram abordados aspectos culturais, como a adoração ao Sol e a questão de gêneros. E isso seria bem-vindo também no ensino de qualquer língua, tornando o ensino menos mecânico, apenas focado nas regras gramaticais e ortográficas. 37 Como o contato dos alunos ficou restrito aos ideogramas de seu grupo, resolvi criar um pequeno zine com os ideogramas da atividade para todos os alunos tivessem acesso a todos os ideogramas. No zine, apresentei brevemente a origem da escrita e inseri os comentários que fiz durante a atividade. O zine foi muito bem recebido pelas crianças. Em uma turma que o recebeu, tive a oportunidade de permanecer em sala de aula e ver a reação deles (Figura 17). Era uma aula vaga, pois a professora fora participar de uma reunião. Os alunos ficaram bastante interessados e ficavam perguntando entre si como se dizia isto ou aquilo, pois no zine também havia a pronúncia em japonês (Apêndice A). Figura 17 – Alunos com o zine sobre ideogramas Fonte: arquivo pessoal 38 4 Ideograma e o desenho infantil Assim como o desenho infantil, um ideograma ou pictograma apresenta as configurações básicas e lineares de uma entidade (DUARTE, 2013). Alguns ideogramas básicos, apesar de arbitrários, carregam em si analogia visual com o objeto representado. Eles têm o caráter, assim como o desenho infantil, de representar objetos típicos, gerais e neutros, pertencentes ao Nível Cognitivo de Base (DUARTE, 2013, P. 31). O Nível Cognitivo de Base, ao qual Duarte se refere, foi categorizado pela pesquisadora Eleanor Rosch1 nos anos 1970. O que caracteriza esse nível “é o fato de ele reunir uma imagem mental visual, concreta e, ao mesmo tempo, remeter a uma palavra conceitual e abstrata” (DUARTE, 2013, p. 30). Um exemplo seria o desenho esquemático de uma cadeira, que representa a palavra cadeira e não necessariamente uma cadeira específica. Os ideogramas básicos, da mesma forma, atuam no Nível Cognitivo de Base. Os ideogramas são esquemas gráficos, ou seja, são a simplificação, a síntese de uma entidade. Essa forma de síntese gráfica se assemelha com a intenção do desenho da criança, onde o que está em xeque “...não é a exatidão e nem o assemelhamento visual, mas uma apresentação simples, suficiente e ‘lógica’ de um determinado objeto, da sua ‘compreensão’”. (LUQUET, 1913 apud DUARTE, 2013, p.37). Podemos observar essas características em muitos dos kanjis utilizados na atividade, como em Árvore, Rio, Pessoa, Prisioneiro, Livro, Fogo e Boca (Figura 18) Figura 18 – Ideogramas Árvore, Rio, Pessoa, Prisioneiro, Livro, Fogo, Boca Fonte: arquivo pessoal Ainda sobre a definição do desenho infantil segundo Luquet (1913), temos o que o autor denomina de “modelo interno”. Esse modelo interno seria a combinação de uma memória visual que a criança adquire e aplica em seu desenho, seguindo um 1 Eleanor Rosch é professora de psicologia na Universidade da Califórnia, Berkeley. Sua especialização é em psicologia cognitiva. Também se destaca por seus estudos em psicologias orientais e psicologia da religião. 39 padrão de procedimentos, ou seja, uma sequência motora que para a criança é lógica e necessária para a construção de determinado desenho. Na escrita de um ideograma, existe também uma ordem dos traços considerada correta, que auxilia na memorização e levam em conta a harmonia e posição correta de cada traço. Acredita-se também que por conta da caligrafia com pincéis (que durante muito tempo era o único instrumento utilizado para escrever) onde a linha não é regular como a de uma caneta esferográfica, por exemplo, um traço que começa pelo lado errado ou disposto de maneira errada poderia causar confusão, atribuindo outro significado ao ideograma. Mesmo que muito da pictografia dos ideogramas seja arbitrária, uma vez anunciada a lógica da representação, esta é facilmente identificada e memorizada. Como nos ideogramas Gordo, Grande, Raiz, Sol, Lua, e Olho (figura 19). No ideograma Gordo, por exemplo, é marcado o centro da figura principal, como se destacando a barriga, que denota a pessoa gorda. Em Grande, se destaca a parte superior da figura com um traço na horizontal. Em Raiz, se destaca a parte inferior do ideograma Árvore, com um pequeno traço horizontal. Já os ideogramas Sol, Lua e Olho são a estilização de formas circulares. Figura 19 – Ideogramas Gordo, Grande, Raiz, Sol, Lua e Olho Fonte: arquivo pessoal Devo destacar com a ajuda de Haroldo de Campos que o “pictograma” é decididamente um “ícone”: é uma pintura que, em virtude de suas próprias características se relaciona de algum modo por similaridade com o real, embora essa ‘qualidade representativa’ possa não decorrer de imitação servil, mas de diferenciada configuração de relações, segundo um critério seletivo e criativo. (CAMPOS, 2000, p. 48) 40 Isso significa que o processo pictográfico da construção de um ideograma foi um processo dinâmico e criativo, não apenas imitação da natureza ou do objeto retratado. 4.1 O pensamento impresso nos ideogramas Além do caráter pictográfico criativo dos ideogramas, ainda que superficialmente, a atividade foi uma oportunidade de apresentar um pouco da forma de pensar da sociedade que deu origem a esse sistema de escrita. “Todo conhecimento (conceitual) é um fato social, na medida em que o pensamento se articula pela linguagem e toda linguagem é comportamento social.” (SUZUKI, 1995, p.84). Os valores e pensamentos de uma sociedade influenciam a linguagem que, em contrapartida, também influencia a formação dos indivíduos e seu modo de pensar. “A formação de uma determinada cultura está no uso de um determinado conjunto de categorias, mas a relação entre elas não se estabelece em termos de causa e efeito. São dois aspectos de uma mesma entidade.” (TUNG-SUN, 2000, p.169). Começando por um exemplo bem básico, temos o ideograma Floresta, que é representado por dois ideogramas Árvore. E Selva é representado por três ideogramas Árvore (figura 20). Essa progressão mostra a simplicidade com que definem Floresta e Selva, pelo volume de árvores que cada uma representa. Figura 20 – Ideogramas Árvore, Floresta e Selva Fonte: arquivo pessoal Outro exemplo de ideograma que imprime o pensamento japonês é o ideograma Corpo, que é a junção do radical Pessoa com o elemento Raiz, como se o corpo fosse a origem da pessoa, ou a pessoa que nasce. Essa lógica se aplica também ao 41 nome do país, que em japonês se diz Nihon, os elementos que compõem Nihon são Sol e Raiz, ou seja, Sol Nascente (figura 21). Figura 21 – Ideogramas Corpo e Nihon Fonte: arquivo pessoal Os ideogramas, mesmo quando possuem finalidade denotativa, se utilizam do método figurativo de expressão. Um bom exemplo, dentre os ideogramas utilizados na atividade, é o ideograma Amanhã, que é representado por Sol, Lua e Sol, significando a passagem de um dia (Figura 22). Figura 22 – Ideograma Amanhã Fonte: arquivo pessoal Essa representação é uma metáfora visual, por isso esse tipo de escrita despertou o interesse de estudiosos da poesia, como Ernest Fenollosa1, que descreveu os caracteres de escrita chinesa (que deram origem à escrita japonesa) como instrumentos para a poesia. ...a poesia apenas faz conscientemente aquilo que raças primitivas2 faziam inconscientemente. O principal trabalho dos escritores, e dos poetas em particular, ao lidar com a linguagem, consiste em rastrear retrospectivamente as 1 Ernest Fenollosa (1853-1908) foi um professor americano de filosofia e política econômica, convidado a lecionar na Universidade Imperial de Tóquio em 1878. Esse convite aconteceu num período em que o Japão buscava se modernizar através da ocidentalização. Por isso, nesse período, muitos professores universitários foram “importados” de países ocidentais. Porém Fenollosa, ao entrar em contato com a cultura japonesa e posteriormente chinesa, se tornou um grande estudioso e entusiasta dessas culturas orientais. Após 08 anos no Japão, ajudou a fundar a Academia de Belas Artes de Tóquio e o Museu Imperial, auxiliando inclusive na composição do currículo da Academia de Belas Artes. Foi uma figura importante no processo do Japão redescobrir e valorizar a própria arte e cultura. 2 Nota-se que, como homem de seu tempo (transição do séc. XIX para séc. XX), fazia distinção entre raças primitivas e evoluídas. 42 antigas linhas de avanço. É o que têm de fazer para que as palavras conservem a riqueza dos matizes sutis de todos os seus significados. As metáforas originais se dispõem como uma espécie de fundo luminoso, emprestando-lhes cor e vitalidade, forçando-as a se aproximarem da concretude dos processos naturais.1 (FENOLLOSA, 2000, p.128). Quando os ideogramas foram incorporados pelo Japão, apesar de muitos terem sido simplificados e alguns abolidos, podemos afirmar que o próprio processo de seleção e simplificação dos ideogramas foram processos criativos, uma vez que aconteceram de acordo com as demandas e anseios da própria sociedade japonesa. E essa a simplificação dos traços aconteceu visando o entendimento através de formas mais simples e eficientes. Outro exemplo de uma linha de pensamento é a palavra Bom/Próspero, representada por dois sóis (figura 23). A sociedade japonesa, assim como muitas outras civilizações, tem o Sol como símbolo de adoração. No caso do Japão, que se auto-intitula como a Terra do Sol Nascente, a figura de dois sóis está relacionada à prosperidade, à boa sorte. Atribuir a prosperidade ao Sol tem a ver com a prosperidade no plantio e na colheita, crucial para a sobrevivência da população no período feudal. Figura 23 – Ideograma Bom/Próspero Fonte: arquivo pessoal 1 Os processos naturais mencionados são as linhas objetivas das relações na própria Natureza, como a semelhança da estrutura da raiz com a estrutura de nervos e do curso de rios, etc. Outra semelhança identificada por Fenollosa diz respeito à plasticidade da língua chinesa, pois, como na Natureza, as partes do discurso crescem literalmente, brotando umas das outras, pela sucessão de ideogramas. Conta também o fato de coisa e ação não serem separadas, pois um ideograma pode ser utilizado para designar coisa e verbo, dependendo de sua relação com os outros ideogramas da sentença. 43 Outro exemplo também da lógica do pensamento japonês é o ideograma Pele, representado por dois elementos: o primeiro é o radical Carne o segundo é apenas a parte externa do primeiro elemento (figura 24). Figura 24 – Ideograma Pele Fonte: arquivo pessoal Também podemos destacar o ideograma Homem, que é representado pelos elementos Plantação e Força (figura 25). Isso também tem a ver com o momento em que a sociedade era estritamente feudal e as plantações eram a base de sobrevivência da população, e o homem representava a força necessária nas plantações de arroz. Figura 25 – Ideograma Homem Fonte: arquivo pessoal Também podemos destacar um exemplo de como o machismo da sociedade refletiu na escrita. O ideograma Barulhento é formado por três ideogramas Mulher. Esse mesmo ideograma pode também ser interpretado como Imoral, dependendo do contexto em que se encontra. Porém, esse ideograma específico não é mais utilizado pelos japoneses, que o aboliram de sua escrita por o considerarem pejorativo. Os chineses ainda o utilizam, mas com o significado de adultério1. 1 Fonte consutada: Consulta em dez./2015. http://chineasy.org/basics/set-1/woman/argument.aspx?compound=1820 44 Existem também outros ideogramas com o elemento Mulher com conotação positiva, mas ainda machista, como Paz e Tranquilidade (figura 25). No caso de Tranquilidade, o ideograma é a junção de Telhado e Mulher, como se uma mulher dentro de casa significasse Tranquilidade. Figura 26 – Ideogramas Mulher, Barulhento, Paz e Tranquilidade Fonte: Arquivo Pessoal O processo de seleção e simplificação dos traços dos ideogramas se configura como um processo criativo e que acompanha um estilo próprio de representação. O ideograma se aproxima do desenho infantil pela simplicidade e eficácia dos traços que representam um objeto. Assim podemos identificar como o próprio processo de criação de um repertório gráfico das crianças se configura como um processo seletivo e criativo. E a construção de significados abstratos através de ideogramas de elementos concretos só foi possível por acompanhar as linhas de pensamento e as relações estabelecidas por aquela sociedade. Os valores simbólicos estavam atrelados aos objetos e costumes da época em que a escrita se originou. Nos dias de hoje, por exemplo, não se pensaria na figura do homem ligada ao campo de arroz. 45 5 Considerações finais A alfabetização Iniciei essa pesquisa com a questão da alfabetização que me preocupava. Assim como a maioria das pessoas, possuía a ideia de senso comum de que a alfabetização é fundamental nos dias atuais, mas sem me questionar exatamente para que fim. Através dessa pesquisa, ficou mais nítida a noção de que a alfabetização não deve ser o fim em si e sim o início de uma nova forma de estar no mundo. Através da pesquisa de Analice D. Pillar ficou clara a relação entre a evolução do desenho e da escrita na criança. Dessa maneira acredito que no papel de educadora estarei mais atenta para notar e tentar estimular a evolução desses sistemas de representação. Claro que no papel de arte-educadora meu foco estará mais centrado no desenho, mas na medida do possível tentar trabalhar de forma integrada com as outras disciplinas. O fato de a escrita ser um sistema de representação implica diretamente na necessidade de se desenvolver a capacidade simbólica da criança e a Arte é um instrumento valioso para esse desenvolvimento. Sobre os ideogramas Quando fui convidada a elaborar a aula com os ideogramas, não fazia ideia das possibilidades que o tema traria consigo. Foi uma experiência rica abordar os ideogramas japoneses em uma aula de arte primeiramente por sua etimologia visível: o caráter pictográfico dessa escrita conserva o impulso e o processo criador à vista e em ação. (FENOLLOSA, 2000). Segundo, pela capacidade dessa escrita transitar do visível para o invisível. É interessante conhecer quais imagens materiais são usadas para sugerir determinadas relações imateriais. Esse recurso da metáfora também é presente na poesia e artes visuais. 46 Outro ponto interessante da pesquisa é a relação que Fenollosa estabeleceu entre os processos metafóricos dessa escrita e a própria Natureza. Ele afirma que “... as metáforas primitivas não se originaram de processos subjetivos arbitrários. Elas só se tornaram possíveis por acompanharem as linhas objetivas das relações da própria Natureza.” (FENOLLOSA, 2000, p.127). “As ideias complexas só vão surgindo gradualmente, à medida que também vai surgindo a força que as une.” (FENOLLOSA, 2000 p.134). Também não seria possível abordar esta escrita sem mencionar o contexto histórico de sua origem e sua evolução, seu caráter criativo e não meramente copista e seu caráter poético-metafórico resultante de uma lógica de pensamento peculiar. Infelizmente a atividade foi pontual e ficou restrita ao espaço de uma aula, mas se existisse a oportunidade de estender o assunto, seria fundamental estabelecer a relação entre língua, história, cultura e arte japonesas, pois como pondera Ana Amália Barbosa, Para se compreender uma cultura torna-se necessário conhecer sua língua. A arte é parte significativa das diversas culturas existentes no mundo. A ação de integrar arte e língua falada por uma determinada cultura pode oferecer mais dados para a compreensão tanto desta língua quanto da arte e em última instância da cultura de um povo. (BARBOSA, 2007, p.32-33). Relação com a Arte-Educação No contexto do pensamento linear, da causalidade que ainda define as estruturas de nossa sociedade, conhecer e entender arte, assim como conhecer e entender outras culturas é fundamental para fazer emergir diferentes formas de pensar. Como reflete Elliot Eisner1, O que a arte proporciona é uma contribuição ampla ao desenvolvimento às experiências humanas… é um dos importantes meios pelos quais as potencialidades da mente humana são trazidos à tona. Uma segunda contribuição das artes refere-se aos tipos de significado que a arte possibilita. (EISNER, 2008, p. 90) 1 Eliot Eisner (1933-2014) foi um dos principais estudiosos do campo da Arte-educação. Foi professor de Educação e de Artes na Universidade de Stanford. Escreveu diversos artigos sobre currículo escolar, experiência estética, ensino e aprendizado. Acreditava na contribuição das Artes para a educação, sendo a Arte um dos aspectos mais impressionantes de uma cultura e um dos meios mais poderosos para o desenvolvimento da mente humana. 47 Através da arte e dos significados possíveis através dela podemos expandir nossa capacidade perceptiva e interpretativa, aumentando nossa sensibilidade e consciência do mundo. Não apenas do mundo material, na esfera do visível, mas das estruturas invisíveis que sustentam essa realidade. Conhecer a gênese de uma língua, como é possível com os ideogramas, possibilita uma visão integrada da evolução do homem como ser biológico, social e cultural. As linguagens tiveram seus embriões tanto na interação homem-natureza quanto na interação homem-homem. A Natureza fornece as suas próprias chaves. Se o universo não estivesse cheio de homologias, simpatias, identidades, o pensamento teria vivido à míngua e a língua acorrentada ao óbvio. Em parte alguma teriam existido pontes para a travessia da verdade menor do visível até a verdade maior do invisível. (FENOLLOSA, 2000, p.127). Frente à classificação e hierarquização das linguagens que existe hoje, se faz necessária a integração destas em seus usos e consequentemente na aprendizagem destas. A importância de integrar linguagem visual, verbal e escrita é reiterada por Michael Parsons1 no trecho que segue: O ensino integrado exige aumentar as associações tanto além como dentro do sistema de símbolos [...]. E exige, especialmente, fazer conexões entre os elementos dos sistemas visuais e linguísticos. O motivo é que muito do significado das obras de arte consiste em suas relações com o nosso mundo, com nossos propósitos pessoais e coletivos, nossa vida e a cultura em que vivemos. Gostaria de lembrar que cultura é acessível principalmente através da linguagem. Ainda que a imensa cadeia de significados que chamamos de cultura seja expressa em todas as mídias, ela é amplamente sustentada na linguagem e no comportamento. Temos um acesso bastante limitado à cultura sem a linguagem, e sem a linguagem as obras de arte têm conexões muitos limitadas com a cultura. É parte do meu argumento que fazer uma distinção tão rígida entre o pensamento visual e o pensamento linguístico é o mesmo que manter separadas arte e cultura [...]. Não podemos dizer exatamente o que vemos, nem ver tudo o que é sugerido por associações linguísticas. (PARSONS apud BARBOSA, 2007, p.32). 1 Michael Parsons é professor e pesquisador em Arte- educação da Universidade de Illinois. Suas pesquisas são direcionadas à Filosofia da Arte, Psicologia da Arte, desenvolvimento da criança e currículo integrado. 48 Relação com o ensino de línguas nas escolas No ensaio Os Caracteres da Escrita chinesa como Instrumentos para a Poesia, Fenollosa menciona em certos momentos o quanto as línguas ocidentais perderam suas raízes e o quanto se desconhece que, em algum momento embrionário, elas também carregavam em si o mesmo caráter pictográfico e/ou metafórico dos ideogramas. E mais que isso, assim como o chinês é independente das regras gramaticais, essas línguas também foram um dia. Ele cita alguns exemplos da origem de palavras em inglês: sobre a passagem de uma concepção verbal positiva para concepção verbal negativa, ele identifica uma possível similaridade entre a origem chinesa e o sânscrito. Em chinês, o signo que representa “estar perdido na floresta” se refere a um estado de não-existência. O not (não, em inglês) pode ter surgido da raiz na, que em sânscrito significa “estar perdido, perecer”. Também cita outros exemplos: Is (é, em inglês) vem da raiz ariana as, que quer dizer respirar. Fala que be (ser, em inglês) vem de bhu, crescer. Cita também que personalidade em outro momento significou não a alma, e sim a máscara da alma. E diz que é esse tipo de coisa que esquecemos (mas não deveríamos) e que a língua chinesa não deixa esquecer. Conhecer essas origens dá outro valor a nossa própria língua. Mas onde eu quero chegar com essas considerações? Bem, o ensino brasileiro da língua portuguesa, focado na gramática e na ortografia, torna mecânico o uso das palavras. Seria interessante e uma experiência muito mais enriquecedora ter também noções da origem das palavras, da história da nossa língua, assim como temos observado o quanto é importante contextualizar uma obra de arte para a leitura e compreensão desta. Não seria importante contextualizar nossa própria língua para melhor compreensão da mesma? Além desse fator, a criação literária no ensino brasileiro, a partir do ensino fundamental, é focado estritamente na dissertação, deixando de lado o caráter poético, criativo e expressivo que podem ser produzidos com as palavras. Isso 49 empobrece a experiência de criação literária, o que acaba por desestimular os estudantes e cria um abismo entre o universo das palavras e das pessoas. Transdisciplinaridade Não posso deixar de tocar neste assunto neste trabalho, pois antes de toda essa pesquisa e experiência no estágio, lá no começo do curso de licenciatura, tive contato com textos sobre a complexidade e transdisciplinaridade de Edgar Morin1 e de Bassarab Nicolescu2, que me fizeram questionar a finalidade do ensino como um todo. A cultura ocidental, fruto da lógica aristotélica, do pensamento linear da causalidade e baseada na lógica da identidade (relação sujeito-predicado), estabeleceu uma hierarquia do universo, do mundo e das relações naturais e humanas. Daí que essa hierarquia se estendeu aos sistemas de linguagens, onde a leitura e escrita foram instituídas como superiores às outras linguagens, um fator que dividiu os homens em letrados e iletrados. Isso resultou no obscurecimento da escrita e por consequência de grande parte do conhecimento atrelado ao universo da palavra escrita. Foi uma forma de dominância intelectual, política e social por parte daqueles que dominavam esse saber. Esse modelo serviu apenas para reforçar as hegemonias pré-existentes e pouco contribuiu para uma sociedade mais justa ou igualitária. As desigualdades e os problemas sociais apenas se perpetuaram ao longo dos séculos e hoje vivemos uma crise global que envolve questões econômicas, ambientais, sociais e culturais. As intolerâncias que geram violência física e moral continuam a afetar a vida de grande parte da população. Os avanços científicos e tecnológicos não estão devidamente comprometidos em solucionar esses problemas, e por trás desse descaso com as 1 Edgar Morin é filósofo e sociólogo francês. Realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia. É um dos principais pensadores da contemporaneidade sobre a complexidade. Critica o modelo de ensino atual e defende que a literatura e as artes não devem ser tratadas como conhecimentos secundários. Possui mais de 30 livros publicados, dentre os quais O método, Introdução ao pensamento complexo e Os sete saberes necessários para a educação do futuro. 2 Bassarab Nicolescu nasceu na Romênia e posteriormente se radicou na França. É físico e filósofo. É físico teórico e pesquisador especialista em partículas elementares e alta energia. É o presidente- fundador do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (CIRET), ONG fundada em 1987 que conta com 165 pesquisadores transdisciplinares de 26 países. 50 questões mais urgentes da sociedade estão interesses políticos e econômicos das grandes empresas e dos países mais ricos. Atualmente, os pensadores contemporâneos das mais diversas áreas alertam para a necessidade de pessoas capazes de relacionar os conhecimentos e experiências para a atuação em sociedade. Aquele sujeito especializado em um determinado assunto, técnica ou conhecimento que não saiba contextualizar seu conhecimento, sua experiência e sua capacidade prática não é o que a sociedade necessita. Preciso mencionar a história de Étiènne Jules Marey (1830-1904), médico, fisiologista, inventor e fotógrafo francês, que desenvolveu uma câmera capaz de capturar imagens sequenciais para seus estudos de movimentos. Com essa câmera ele registrou os movimentos de animais e seres humanos. A invenção deste fotógrafo foi primordial para a invenção do cinema e da forma que as imagens são capturadas. Por isso muitos afirmam que ele, ao invés dos irmãos Lumiére, seria o verdadeiro pai do cinema. Porém, um de seus inventos foi empregado para outro fim. Para seus estudos fotográficos sobre o voo de aves, ele criou uma máquina adaptada em uma espingarda, por ser mais leve, de fácil transporte e apontar para objeto estudado com maior precisão. Essa versão foi incorporada e adaptada para indústria bélica, que criou uma arma usada no treinamento de atiradores aéreos da Primeira Guerra Mundial. Por isso vale ressaltar aqui não apenas a importância do conhecimento plural e integrado, mas a importância de se questionar o emprego dos conhecimentos. A sociedade necessita de indivíduos conscientes do que fazem, como, para quê e por que o fazem. Ao conhecimento científico é necessário agregar as questões éticas e morais tão ausentes no processo que originou o mundo que hoje conhecemos e tão urgentes para a reescrita dele. Por reescrita, entenda-se o compromisso com a mudança, mudança de comportamentos, de desejos, de formas de relacionar, de formas de trabalho, ensino, consumo, produção, enfim, mudança no sentido de nossa existência. 51 REFERÊNCIAS LIVROS BARBOSA, Ana Amália Tavares Bastos. O Ensino de Artes e de Inglês: Uma Experiência Interdisciplinar. São Paulo: Cortez Editora, 2007. EISNER, Eliot (2008). Estrutura e mágica no ensino de artes. In: BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos (org.). Arte-educação: leitura no subsolo. - São Paulo: Cortez, p.89-91. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem; [tradução: Heloysa de Lima Dantas]. - São Paulo: Edusp, 2000. FENOLLOSA, Ernest (2000). Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para poesia. In: CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Edusp, p.109-148. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora, 1989. GRAFF, Harvey J. Os labirintos da alfabetização: reflexões sobre o passado e o presente da alfabetização. Tradução Tirza Myga Garcia. Porto Alegre: Artes Medicas, 1995. PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Tradução de Álvaro Cabral e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1978. PILLAR, Analice Dutra. 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Acesso em 26 set. 2015. SCLIAR-CABRAL, Leonor (2009). Processamento da leitura: recentes avanços das neurociências. In: COSTA, Jorge Campos da; PEREIRA, Vera Wannmacher (orgs.) Linguagem e cognição [recurso eletrônico]: relações interdisciplinares / Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 48-56. Disponível em: < http://www.pucrs.br/edipucrs/linguagemecognicao.pdf >. Acesso em 10 set. 2015. ARTIGO ONLINE SUZUKI, Tae. A montagem do texto “Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem.” Revista USP. São Paulo: Edição 27, p. 82-89, set./nov. 1995. Disponível em: < http://www.usp.br/revistausp/27/10suzuki.pdf >. Acesso em 21 set. 2015. VERBETE LINGUAGEM. In: HOUAISS, A. Grande dicionário Houaiss Beta da língua portuguesa. 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