UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de Artes VINICIUS DE ASSIS THANGKA: A PINTURA SAGRADA TIBETANA Tradição, História e Método São Paulo – SP 2016 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio, convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP A848t Assis, Vinicius de, 1984- Thangka : a pintura sagrada tibetana : tradição, história e método / Vinicius de Assis. - São Paulo, 2016. 118 p.: il. Orientador: Prof. Dr. Omar Khouri. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. 1. Arte – Tibete (China). 2. Pintura tibetana - História. 3. Budismo. I. Khouri, Omar. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título CDD 759.515 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de Artes PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ARTES MESTRADO ACADÊMICO STRICTU SENSU VINICIUS DE ASSIS THANGKA: A PINTURA SAGRADA TIBETANA Tradição, História e Método Dissertação apresentada ao programa de pós - graduação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Artes Visuais Área de concentração: Artes Visuais Linha de pesquisa: Abordagens teóricas, históricas e culturais da arte Orientador: Prof. Dr. Omar Khouri São Paulo – SP 2016 BANCA EXAMINADORA __________________________________________ Prof. Dr. Omar Khouri Presidente – Orientador UNESP – Instituto de Artes _________________________________________ Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento UNESP- Instituto de Artes _____________________________________ Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi USP – FFLCH/ DLCV Esta Dissertação é dedicada às Três Jóias. Agradecimentos Ao Departamento da Pós-Graduação em Artes pelo voto de confiança na pesquisa, ao meu orientador Prof. Omar Khouri pela paciência e disponibilidade, ao Prof. José Leonardo, Prof José Spaniol, Prof. Milton Sogabe e à Profa Lalada Dalglish pelos preciosos apontamentos. À Profa Cibele Aldrovandi pela generosa atenção e contribuição. Aos colegas pesquisadores da pós-graduação. A minha mãe Lúcia por toda confiança e suporte. Aos amigos Felipe Ikehara, Gabriel Urasaki, Rafael de Assis e Marco Antonio Baena. Ao amigo Richard Sanches pelas conversas, apoio e revisão. Ao Daniel Confortin pelo abrigo, amizade e filosofia, à Tiffani Gyatso pelos tesouros divididos, à Mona Bruchmann pelo carinho e à Karma Sichoe pela amizade e pela partilha. RESUMO O presente estudo intenta apresentar os princípios básicos, históricos e processuais, da pintura tradicional tibetana, thangka. Tal objetivo se justifica pela escassez de estudos em língua portuguesa sobre o assunto. Ainda que seja perceptível nos tempos atuais uma expansão dos estudos asiáticos no Brasil, em confluência com uma crescente aproximação e interesse pela cultura oriental na contemporaneidade; esta pesquisa, por meio de estudo de campo, levantamento bibliográfico e histórico, busca a investigação e exposição do profundo e específico âmbito do simbólico, sagrado e tradicional na pintura tibetana. Acreditando que o reconhecimento das artes e teorias estéticas não eurocêntricas corroboram a cognição e produção da inestimável diversidade cultural humana. Palavras chave: arte tradicional, budismo, Tibete, thangka, processo ABSTRACT The following study intends to present the basic, historical and procedural principles of the traditional Tibetan painting, thangka. This objective is justified by the lack of studies in Portuguese on the subject. Although it is noticeable nowadays an expansion of Asian studies in Brazil, in confluence with a growing approach and interest in Eastern culture in contemporary society; this dissertation, by field research, literature and history, wishes to investigate, explain and expose the deep and specific scope of the symbolic, sacred and traditional in Tibetan painting. Believing that the recognition of the arts and non eurocentric aesthetic theories corroborate the cognition and production of the invaluable human cultural diversity. Keywords: traditional art, buddhism, Tibet, thangka, process "O mundo que vemos é uma pintura, nascido a partir do pincel do pensamento discursivo. E dentro ou acima dele nada verdadeiramente existente pode ser encontrado. Todas as coisas no Saṃsāra e Nirvāṇa são apenas rótulos mentais e projeções. Sabendo isto se conhece a realidade; vendo isto vê-se o que é verdadeiro." Gendun Gyatso, O segundo Dalai Lama (1475 - 1542) LISTA DE IMAGENS Figura 01 – Templo Mahaboddhi, Bodhgaya, Bihar / Índia (2013).......................pg.28 Figura 02 – Bules tibetanos. Kathmandu / Nepal (2015)......................................pg.33 Figura 03 – Janelas de madeira. Praça Durbar. Kathmandu (2013)....................pg.35 Figura 04 - Pintor de thangka. Monastério Shechen (2015)................................pg.38 Figura 05 – Estátua Buda Śākyamuni. Bodhgaya – Índia (2013).......................pg.41 Figura 06 – Mandala de areia. Bodhgaya – Índia (2013)......................................pg.43 Figura 07 – Estupa de Boudhanath – Kathmandu / Nepal (2015)........................pg.46 Figura 08 – Cordilheira dos Himalaias – Dharamsala, Índia (2013).....................pg.48 Figura 09 – Thangka de Padmasambhava por Karma Sichoe.............................pg.53 Figura 10 – A Roda da Existência Cíclica. Thangka de Karma Sichoe................pg.60 Figura 11 – Karma Sichoe explicando as medidas e proporção do Buda............pg.64 Figura 12 – Treinamento das proporções da cabeça do Buda. (2015).................pg.73 Figura 13 – Karma Sichoe pintando uma thangka de Manjushri. (2015)..............pg.74 Figura 14 – Estúdio de Karma Sichoe, Dharamsala, Índia (2015)........................pg.76 Figura 15 – Karma Sichoe selecionando e inspecionando os carvões.................pg.77 Figura 16 – Adição de cola animal no carvão triturado e decantado....................pg.78 Figura 17 – Modelagem do tablete de nanquim...................................................pg.79 Figura 18 – Preparação de pigmento mineral (2013)...........................................pg.80 Figura 19 – Pelos de bode cortados, selecionados e amarrados.........................pg.81 Figura 20 – Algodão cru amarrado no chassi de madeira....................................pg.82 Figura 21 – Aplicação de goma e preparação da tela..........................................pg.83 Figura 22 – Polimento da thangka com copo de vidro..........................................pg.83 Figura 23 –. Estudo de flor e delineamento em nanquim (2013)..........................pg.85 Figura 24 – Caderno de anotações, estudos sobre a água..................................pg.87 Figura 25 – Estudo de nuvens, delineado em nanquim........................................pg.88 Figura 26 – Estudo de labaredas e formas do fogo..............................................pg.89 Figura 27 – Estudo da iconometria das mãos abertas..........................................pg.92 Figura 28 – Iconometria mãos e exercícios de pincel. Nanquim..........................pg.93 Figura 29 – Cabeça do Buda, nanquim.................................................................pg.94 Figura 30 – Iconometria, corpo do Buda, de pé e sentado...................................pg.95 Figura 31 – Projeto de pintura delineado em nanquim, thangka..........................pg.96 Figura 32 – Pormenor de thangka de Karma Sichoe............................................pg.99 Figura 33 – Fragmento de uma thangka de Karma Sichoe.................................pg.101 Figura 34 – Verso consagrado. Thangka de Vajradhara.....................................pg.103 Figura 35 – Inscrição no formato de uma estupa. Thangka................................pg.104 Figura 36 – Pintura mural na estupa de Boudhanath, Nepal...............................pg.105 SUMÁRIO - Prólogo ......................................................................................................pg.23 -Introdução ao estudo...................................................................................pg.25 1- TRADIÇÃO 1.1 - Introdução...........................................................................................pg.29 1.2 - Arte Tradicional...................................................................................pg.32 1.3 - Arte Tibetana.......................................................................................pg.40 2 – HISTÓRIA 2.1 – Os Himalaias e o Tibete......................................................................pg.47 2.2 – Breve história da arte budista no Tibete..............................................pg.49 2.3 –Thangkas: Tipos, temas e estilos..........................................................pg.57 3- MÉTODO 3.1 - Ensino tradicional..............................................................................pg.66 3.2 - Treinamento......................................................................................pg.70 3.3 - Ofício e Artesania..............................................................................pg.76 3.4 - Composição e Iconometria................................................................pg.84 3.5 - Pintura...............................................................................................pg.98 3.6 - Consagração....................................................................................pg.102 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................pg.106 - Glossário..................................................................................................pg.108 - Referências..............................................................................................pg.113 22 23 PRÓLOGO Em 2013 fiz uma viagem com a artista Tiffani Gyatso até a Índia e o Nepal para estudar arte budista tibetana. Durante a viagem, houve um workshop com o pintor tradicional e contemporâneo Karma Sichoe, ao qual fui apresentado. Após esse período da viagem com Tiffani, eu e dois amigos (que comigo integram o Coletivo RAGA1) decidimos estender em mais trinta dias nossa vivência com Karma. Ali, procedimentos artesanais e artísticos foram explicados e experimentados2. Após essa residência, retornei ao Brasil com a confiança e a certeza de que era ao estudo da pintura tradicional tibetana, thangka que desejava me dedicar. E que se houvesse a disposição de retornar à academia seria com esse interesse em mente, estudar essa arte tradicional a qual tive o privilégio de ter acesso, ver pinturas, visitar ateliês, conhecer os procedimentos, pintores, além de ser uma tradição viva, ainda existente. Tive esse vislumbre. Isto me deu confiança para saber que era a esse assunto que desejava me engajar (além do incentivo da escassa existência de estudos em português sobre o assunto). Assim, em 2014 ingresso no mestrado já com a intenção da pesquisa em pintura tibetana. No momento de compor o cronograma e programa de estudos, incluo uma viagem para a Índia como pesquisa de campo, para mais uma vivência com Karma, em 2015. Agora, a viagem era pensada como parte da Dissertação de Mestrado (capítulo sobre métodos e procedimentos). Compreendendo nesse caso que Sichoe era a minha fonte primária no assunto. Foi realizada a viagem de estudo de campo (fevereiro a abril de 2015) ao Nepal (em Kathmandu) e norte da Índia, (em Dharamsala) numa residência de 60 dias com Sichoe para os procedimentos e ofícios da arte tibetana (carvão, nanquim, pincel, tela). Este estudo é direcionado aos interessados na cultura e filosofia orientais, assim como aos amantes da arte que, com genuíno interesse buscam uma aproximação e fruição desta manifestação sublime da cultura oriental. 1 O Coletivo RAGA é formado pelos artistas visuais Felipe Ikehara, Rafael de Assis e Vinicius de Assis. Seus integrantes partilham o estudo de referências em arte tradicional de diversos povos com a mistura de suas peculiaridades, paridades estéticas e conceitos. 2 ASSIS, Vinicius. 30 dias em Dharamsala: Residência com um Pintor Tibetano. In: Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental - Oriente-se: Ampliando Fronteiras, 2014, São Paulo. 24 25 INTRODUÇÃO AO ESTUDO O estudo foi dividido em três grandes capítulos com suas respectivas subdivisões: Tradição; História e Método; já presentes no subtítulo da Dissertação. O caminho argumentativo se dá a partir do macro e universal (a arte tradicional ou sagrada) presente na história da cultura humana; galga até o contexto da arte budista do Tibete e complementa com a especificidade da pintura tibetana em rolo, a thangka. No primeiro capítulo ‘Tradição’ há a apresentação da Escola Perenialista (Filosofia Perene) utilizada como base teórica do estudo, a explanação da classificação da arte tradicional, ajuste de valores ao leitor moderno e aspectos da arte tibetana tradicional. No segundo capítulo História, de que maneira as tradições artísticas budistas migraram e floresceram no Tibete até se tornarem uma arte tradicional tibetana. A apresentação da thangka, seus tipos, temas e estilos de pintura. No terceiro capítulo Método, as particularidades da thangka, o fazer e procedimentos necessários para que a arte construída seja classificada como sagrada (conduta e cânone), os ofícios (tinta, ferramentas, tela) a tradição discipular, o treinamento e a repetição. Na última parte há considerações e impressões sobre o estudo desse assunto na contemporaneidade. O contraste cultural entre as permanências, do cânone tradicional, ante as quebras e rupturas do movimento de vanguarda ocidental no séc XX. Um glossário com termos budistas e as referências utilizadas estão no fim desta dissertação. 26 27 TRADIÇÃO Introdução à arte sagrada 28 Fig. 01 – Templo Mahaboddhi (260 a.c.) - O local da iluminação do Buda. Bodhgaya Bihar/Índia Fonte: Arquivo pessoal. – Foto: Vinicius de Assis 29 1.1 INTRODUÇÃO Um gesto ritual, a impecável face de um ícone, a postura de um mestre espiritual, um lugar de peregrinação3, as palavras cantadas de um texto sagrado, a flor. São todas formas de tradição. São todas ecos e reflexos de Deus. (CUTSINGER, 2009, p.96) Durante a pesquisa por uma aproximação adequada e relevante que levasse em consideração o contexto e os procedimentos do tradicional e sagrado, (presentes na arte tibetana) me deparei com os escritos filosóficos, históricos e estéticos da Filosofia Perene, (latim philosophia perennis ou Escola Perenialista) através dos autores Titus Burckhardt, Ananda Coomaraswamy, Marco Pallis, James Cutsinger, Timothy Scott e Seyyed Hossein Nasr. A partir da obra desses autores, percebi a contribuição conceitual que a escola perenialista poderia trazer ao específico âmbito do tradicional e sagrado da arte budista tibetana. O cuidado e zelo expressos pela escolha da Filosofia Perene como “pedra angular” e alicerce teórico do estudo, justificam-se pela notória necessidade de um reajuste de valores estéticos e uma contextualização imprescindível para a fruição adequada da arte sagrada tibetana. Deste modo, conceitos como tradição, revelação, religião, sagrado e arte serão expostos de acordo com a perspectiva perenialista. De acordo com Nasr (2009) no viés perene, tradição é compreendida não somente como a transmissão ou perpetuação de doutrinas e práticas de natureza oral e escrita ao longo do tempo, mas necessariamente provenientes de verdades sagradas, reveladas como de natureza transcendente divina. Tais práticas seriam assim fundamentalmente ligadas à uma revelação de caráter supra-formal e metafísico, estes enraizados na natureza da realidade (CUTSINGER, 2009). Trata-se da consolidação de axiomas ontológicos em aspectos mitológicos e religiosos que são transmitidos ao longo do tempo (SCOTT, 2010) e de acordo com Marco Pallis (PALLIS, apud, SCOTT, 2010, p. 13) “ (...) através do recurso a formas que terão surgido pela aplicação desses princípios a necessidades contingentes (...) ”. Em um sentido estrito, revelação, religião e tradição seriam três aspectos de um mesmo movimento. A revelação (NASR, 2009) expressaria o acesso e a 3 Vide figura 01. 30 codificação de aspectos transcendentais e absolutos (movimento vertical, atemporal) que ocorre através de agentes como mensageiros, profetas, mestres ou encarnações4. A religião, como ligação do humano ao divino através da revelação e ao mesmo tempo, o que liga a humanidade entre si como comunidade ou povo frente a essa revelação; tradição (movimento horizontal, temporal) que por sua vez seria a continuidade e transferência aos mais variados domínios do sagrado desvendado (leis, sociedade, ciência, artes, filosofia e conhecimento) que produz e dissemina a sociedade tradicional. Em um aspecto amplo, tradição é compreendida como todo esse movimento (vertical e horizontal), desde a sua origem até as suas ramificações e desdobramentos. É elementar enfatizar que nem tudo que é transmissível é tradicional; para tanto se faz crucial uma conexão com revelações iniciadas no sagrado e inefável. Desta maneira, é comum, alguns equívocos que a expressão tradição pode evocar, diz Scott (2010) como ser compreendida apenas como cronologicamente antiga ou ainda com o simples “conservadorismo” ou o próprio termo “ clássico” em qualquer sentido acadêmico. No pensamento da filosofia perene, tradição não está relacionada com um período classificável da história da arte, mas antes com a natureza última da realidade suprema e fundamental. Trata-se antes de tudo de uma exposição metafísica sobre o sentido das formas de uma arte que, por ser sagrada, tem suas raízes no eterno, já que o sagrado não é senão a manifestação do Eterno no temporal, ou do Centro no contorno da roda da existência. (NASR, Introdução. In: BURCKHARDT, 2004, p.14) Cutsinger (2009, p. 97) nota que, obviamente a tradição é sempre antiga “não sendo possível descobrir uma era em que esta não estivesse presente”. Logo, será frequente encontrar vestígios da tradição em qualquer lugar ou época que se procure. Deste modo, as premissas das diversas mitologias, doutrinas e religiões teriam origem em uma tradição em comum: a Tradição Primordial, que é derradeira e perpétua, “(..) a sabedoria eterna da qual a ideia de tradição não pode ser desassociada” (NASR, p. 50) é a Filosofia Perene, o Logos (grego: λόγος) o Tao taoísta, o Dharma budista. É essa sabedoria, segundo Nasr (2009) cuja fruição foi considerada a meta última tanto no oriente quanto no ocidente, 4 Ver glossário: Avatar 31 de acordo com a perspectiva sapiencial. O reconhecimento dessa unidade transcendente da qual derivam todas as tradições e religiões é a ideia central da filosofia perene. Porém com relação à escola perenialista, o tradicionalista Kenneth Oldmeadow (OLDMEADOW, apud, SCOTT, 2010, p.13) 5 argumenta que longe de oferecer uma nova filosofia, ela é pelo contrário, baseada na redescoberta ou reafirmação das tradições primordiais deste mundo. Consequentemente, de acordo com Nasr (2009) as diversas tradições e religiões não se contradizem, pois todas possuem o sagrado e “original”, seriam assim o reflexo múltiplo de uma unidade transcendente perene. Por isso as diversas religiões se expressam em termos absolutos, como verdadeiras e únicas. Cada uma à sua maneira concorda com arquétipos e símbolos em particular, manifestações diretas do Eterno. Que são expandidas a todo mundo, criando assim um ambiente tradicional e por consequência espiritual. Em uma sociedade tradicional, o sentido de sagrado é ubíquo. É essencial em um mundo tradicional, ampliar e impregnar a vida cotidiana com o sagrado, protegendo assim a vida humana “(...) do niilismo, ceticismo e ilusão que acompanham a perda da dimensão sagrada da existência e a destruição do caráter sagrado do conhecimento” (NASR, 2009, p.56). A tradição prolonga a presença do sagrado por toda a existência. O sentido do sagrado no humano é sua inevitável contemplação do absoluto e metafísico. Sua nostalgia para o que realmente é. No documentário Les Statues meurent aussi (1953)6 de Alain Resnais com texto de Chris Marker, há a menção a essa presença do sagrado em uma cultura tradicional, “ Tudo aqui é culto, o culto do mundo”. Ainda segundo Nasr (2009) na sociedade tradicional nada é excluído ou possui o direito de existir fora dos domínios da tradição, por consequência do sagrado ou de suas aplicações. Assim, viver em uma sociedade tradicional é estar presente em um ambiente onde a humanidade está relacionada com uma realidade transcendente, em que emanam fundamentos e princípios que constituem “(...) a própria textura da 5 Kenneth Oldmeadow Traditionalism: Religion in the Light of the Perennial Philosophy, 2011 6 ESTÁTUAS Também Morrem, As. Direção: Alain Resnais e Chris Marker. Produção: Présence Africaine. Documentário, 30' min" (1953). (vide referências) 32 existência humana” (NASR, 2010, p. 59). É viver onde o sagrado se faz como ontologia, como a compreensão da natureza do próprio ser, no intelecto que se faz para conceber e contemplar o imutável e eterno, o reconhecido e revelado. Nos mundos tradicionais, estar situado no espaço e no tempo é estar situado numa cosmologia e numa escatologia (...) O espaço e o tempo são simbolizados pelo centro e pela origem. (SCOTT, 2010, p.16) Em suma, a tradição existe para “lembrar quem nós somos”, (CUTSINGER, 2009, p. 96) criados em correspondência com a realidade suprema e fundamental, contemplados como um elo entre o mutável e o imutável, entre o absoluto e o relativo. A filosofia perene reitera a visão universal dos povos tradicionais, onde o mundo natural era compreendido de forma metafórica, concebido como uma imagem e cópia de padrões supra-formais e metafísicos, entendido assim de modo simbólico.7 Essa doutrina encontra sua expressão ocidental definitiva na Teoria das Ideias ou Formas de Platão.8 1.2 ARTE TRADICIONAL Titus Burckhardt assegura em sua obra ‘A Arte Sagrada no Oriente e Ocidente – Princípios e Métodos’ (2004, p.17) que “Nenhuma categoria de arte pode ser definida como sagrada a menos que também sua forma reflita a visão espiritual característica da religião da qual provém”. Portanto, fica evidente que na obra a ser feita, a temática ou intenção religiosa não seriam, por si só, suficientes para produzir o caráter e correspondência sagrada necessária, para que possamos classificá-la como arte tradicional. É necessário que sua forma e os símbolos a ela relacionados, estejam em consonância com o conhecimento sagrado a ser retratado (fig.02). Seu modus operandi e simbologia utilizada devem ser testemunhas da origem sacra da tradição. Deve constituir, portanto, uma ciência e manipulação do “simbolismo inerente as formas” (BURCKHARDT, 2004, p.18). 7 O poeta inglês Samuel Taylor Coleridge descreve o Cosmos como: “Um vasto e completo mythos ou representação simbólica”, o pintor e historiador da arte chinês Hsieh Ho (Xiè Hè) do século V observou: “Os pintores antigamente pintavam a ideia (í) e não apenas a forma (hsing)”, citados por Scott (2010, p.14) 8 Scott (2010, p.14) 33 Fig. 02 -Bules tibetanos com motivos budistas. Cerimônia do Losar– Kathmandu / Nepal 2015. Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Vinicius de Assis Essa relação ocorre, porque tradicionalmente as formas são compreendidas como “essência qualitativa”, detentoras de qualidades ou características imanentes. Assim há uma rigorosa relação entre forma e espírito.9 Logo, uma visão espiritual se manifesta necessariamente em uma linguagem formal 9 Presente na noção grega de êidos (grego: εἶδος) Teoria das Ideias e das Formas de Platão. “ Assim como uma forma mental, como um dogma ou uma doutrina, pode ser o reflexo adequado, ainda que limitado, de uma Verdade divina, assim também uma forma sensível pode representar e expressar uma verdade ou realidade que transcende tanto o plano das formas sensíveis quanto o plano do pensamento” (BURCKHARDT, 2004, p. 18) 34 adequada, recíproca e, portanto, simbólica; já que seu desígnio é o reconhecimento ou presença do inefável, metafísico e ontológico. Seu objetivo é guiar a humanidade ao Eterno, é perpetuar a presença do sagrado por toda a vida, como um lembrete. É a potência de acesso a arquétipos primordiais, através de símbolos e formas da própria tradição. A doutrina dos arquétipos e símbolos está na base de toda arte tradicional. Segundo Burckhardt (2004), lhe é atribuída, desta maneira, uma entidade sensível que direciona o entendimento do mundo físico para os níveis supra- sensíveis da realidade. Por essa razão, o simbolismo tradicional nunca é desprovido de beleza: de acordo com a visão espiritual do mundo, a beleza de algo não é senão a transparência de seus envoltórios ou véus existenciais; em uma arte autêntica, uma obra é bela porque é verdadeira. (BURCKHARDT. 2004, p.19) Da mesma maneira que a tradição se manifesta e se perpetua nos mais variados domínios humanos, produzindo a sociedade ou civilização tradicional, o mesmo acontece com a arte sagrada. Mas antes devemos compreender o papel da arte dentro do mundo da tradição. No âmbito sagrado, o conceito de “arte” é estendido aos mais diversos campos da ação humana, logo, em referência à sua aplicação é que são atribuídos às artes determinados nomes.10 Desde as necessidades imediatas e físicas como comida, abrigo e vestuário, até as necessidades últimas do espírito, como ensino, poesia, dança, música, meditação entre outras.11 É notório que em sociedades tradicionais, aponta Scott (2010, p.15) “ a mais simples taça e casa familiar eram obras de arte” (fig.03). A presença da arte tradicional desde utensílios cotidianos que à primeira vista não seriam “religiosos” é realçada pelo roteiro de Chris Marker no documentário sobre arte africana12, ao dizer que “ (...) 10 (...) de tal forma que temos uma arte da arquitetura, uma da agricultura, uma de trabalhar os metais, outra de pintura, outra de poesia e drama (...) Coomaraswamy ‘Mediaeval and Oriental Art’ (1989, p.51) citado por Scott (2010, p.15) 11 São João Crisóstomo nas suas homilias sobre o Evangelho de S. Mateus: “O nome arte deve ser aplicado apenas aquilo que constitui e produz suportes necessários para a vida”. (2010, SCOTT apud,COOMARASWAMY, 1989, p.51). 12 ESTÁTUAS Também Morrem, As. Direção: Alain Resnais e Chris Marker, op. cit., p. 31. 35 não nos serve muita coisa chamá-lo de objeto religioso, em um mundo em que tudo é religião, nem em objeto de arte, em um mundo em que tudo é arte”. Fig. 03. Janelas de madeira. Praça Patan Kathmandu/Nepal (2013) Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Vinicius de Assis No ambiente tradicional, a arte sagrada está relacionada com a tradição, com o conhecimento e estes com a beleza. Scott (2010, p.16) cita o pintor chinês Tao Chi (1642 – 1707) que endossa “ As obras dos mestres antigos são instrumentos de conhecimento” e São Tomás de Aquino para quem “ A beleza está relacionada com a faculdade cognitiva”. A beleza na arte sagrada “não depende do nosso reconhecimento” (SCOTT, 2010, p.16). Assim, ela não é compreendida no âmbito tradicional como fatalidade ou objetivo da arte, nem mesmo reduzida à percepção sensorial, mas antes, como indicativo da presença sacra do conhecimento. (...) beleza, é simplesmente um dado adquirido, como uma qualidade naturalmente intrínseca a algo feito corretamente, de modo que a sua presença não precisa ser salientada quando se discutem os méritos de alguma coisa. (PALLIS.1967, p.01) 36 A relação do artista com a obra a ser produzida é um desdobramento da tradição. Há o reconhecimento do caráter metafísico do sagrado. O artista almeja a participação na tradição para a realização e manifestação da arte sagrada. Para isso, o artista artesão sabe que não é auspicioso ou prudente, partir de uma linguagem pessoal, individual e sensorial, pois estas características são fundamentadas no limitado e falível ego humano. Não deve ser o “eu”, a raiz da ignorância e ilusão em nós mesmos, quem arbitrariamente escolherá os meios de expressão. Eles devem ser emprestados da tradição, a revelação formal e objetiva do “Ser Supremo”, que é o “Eu” de todos os seres. (BURCKHARDT, 2004, p.22) Portanto, o artista tradicional não reclama uma autoria sobre o trabalho,13 “A arte sagrada é anônima” (SCOTT. 2010, p.15). Entendida assim, como ofício, no qual não haveria espaço para auto expressão “(...) uma finalidade, regras e valores que não são os do homem propriamente, mas da obra de arte a ser feita”. (ANDRADE, apud MARITAIN, 1920, p.10)14. Não somente os autores tradicionalistas escreveram sobre esse aspecto da autoria frente à obra de arte. O fizeram também artistas e teóricos modernos, como T.S. Eliot (1989.p.42) para quem “A evolução de um artista é um contínuo auto sacrifício, uma contínua extinção da personalidade” e Mário de Andrade: E se um artista é verdadeiramente artista (...) está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegará fatalmente aquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte. (ANDRADE.1938, p.3) Com a constatação da obra de arte como primazia, sua manufatura, os procedimentos e ofícios se tornam imprescindíveis. Como atesta Andrade (1938, p.1) “Existe na arte um elemento material que precisa ser manipulado, colocado em movimento, para que a obra de arte aconteça, se faça”. Na perspectiva tradicional, não existe qualquer distinção entre artes e ofícios, entre artista e 13 Mesmo o esforço intenso do pintor é logo identificado e creditado ao sagrado que se fez através dele. Logo, uma arte tradicional não é autoral, nem pertence a um indivíduo, mas sim, a uma corrente de sabedoria reconhecida pela tradição, que tem origem no sagrado, primordial ou divino. O artista tradicional comunga e participa disso. (ASSIS, 2014, p.4) 14 Jacques Maritain, Art Et Scholastique, 1920. 37 artesão. O artista tradicional é artífice, seja das palavras, do som, das ideias ou da matéria (ANDRADE, 1938). A técnica é concebida como a relação entre o artista e o material a ser manuseado. E isto é ensinável, os caprichos, os segredos e exigências da matéria. Desse modo, os ofícios são frequentemente categóricos e dogmáticos. Não os considerar, pode ser inadequado e prejudicial para a obra de arte. Artista que não seja bom artesão, não que não possa ser artista: simplesmente, ele não é artista bom. E desde que vá se tornando verdadeiramente artista, é porque concomitantemente está se tornando artesão. (ANDRADE. 1938. p. 33) Na arte tradicional é possível usualmente diferenciar períodos estilísticos e técnicos, mas raramente notar soluções técnicas pessoais. A individualidade do artífice só se revela nos discretos detalhes do labor15. A citação do egiptólogo Gaston Maspero (1846 – 1916) sobre a impessoalidade e anonimato na arte tradicional, exemplifica o procedimento tradicional. Assim, nessa recusa sistemática em modificar os assuntos e os tipos tradicionais, a não ser no detalhe, o Egito imprimiu à sua arte esse caráter de uniformidade que nos assombra. O temperamento pessoal do indivíduo não se revela senão por detalhes de fatura quase imperceptíveis, e quem quer que estude por alto a arte egípcia nada mais percebe que essa noção de impessoalidade coletiva (...) (In: ANDRADE.1938, p.6) Portanto, a arte é compreendida como ofício; e como tal ela possui suas responsabilidades perante a tradição. Sobre a autoria, é dito que o artesão em seu trabalho, é “presidido” pela arte: “ (...) A posse de uma qualquer arte é uma participação, é uma vocação e uma responsabilidade”16. A conexão com os cânones e a tradição, exige um empenho intenso (fig.04). Segundo Eliot (1989, p.38) “A tradição implica um significado muito mais amplo, ela não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la através de um grande esforço”. 15 “A impessoalidade geral não deixa nunca de ceder aos pormenores da fatura, da mão que treme ao fazer, da criatura que sente ao criar” (ANDRADE. 1938, p.7) 16 COOMARASWAMY, Mediaeval and Oriental Art. 1989, p.50, citado em (SCOTT.2010, p.15). 38 Fig.04 – Pintor de thangka, Monastério Shechen - Kathmandu 2015 Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Vinicius de Assis Assim, com essa exposição da perspectiva perenialista, fica evidente a importância de conceitos como tradição e arte sagrada. É vital estar atento, para prevenir anacronismos em uma aproximação com o tradicional. Já que esses conceitos funcionam como ideias-chave para a apreciação da arte sagrada. Em síntese, nesta introdução, a tradição foi apresentada como origem e transmissão de saberes ontológicos; estes derivados da metafísica, que se desdobram e se 39 manifestam em toda sociedade, produzindo assim o estilo tradicional17. A arte sagrada é uma de suas proliferações. É assimilada como ofício, como materialização do conhecimento. Desde necessidades imediatas do corpo (comida, abrigo, indumentária) até necessidades últimas da vida humana (poesia, música, filosofia) são consideradas arte. Como utilitário espiritual, a arte tradicional se torna lembrete da doutrina sagrada. Por isso há uma obediência ao artesanato, para o bem da obra a ser feita. A necessidade e reconhecimento de uma linguagem formal que testemunhe a origem da tradição em questão, utilizando símbolos e arquétipos. O que deve ser salientado aqui, além do entendimento da visão tradicional da arte como “o que dá suporte à vida” (em contraste com a visão moderna de arte separada dos ofícios), é essencialmente os conceitos de autoria e originalidade. Nos estudos modernos da arte, uma grande parte dos critérios estéticos derivam da Grécia clássica e da Renascença18, que ao longo do tempo e com seus desenvolvimentos, consideraram “o indivíduo como verdadeiro criador da arte” (SCOTT. 2010, p. 15) logo, “(...) um trabalho é artístico na medida que mostre a marca de uma individualidade” (SCOTT, apud BURCKHARDT. 2010, p.15)19. Entretanto, na arte sagrada o artesão participa da tradição através do anonimato, e a obra de arte é concebida como meta do fazer artístico. Originalidade no contexto tradicional, só pode remeter à origem da tradição, ao início da revelação. Na concepção moderna, originalidade é o realce dos aspectos idiossincráticos, individuais e unívocos da personalidade do artista. Cientes destas diferenças, será mais compreensível fazer o contraste e ajustes adequados para a fruição da arte tradicional tibetana. 17 “ (...) Ela (tradição) possui uma força secreta que se comunica a toda uma civilização e determina até mesmo as artes e ofícios cujo objeto imediato nada tem de particularmente sagrado. Essa força cria o estilo da civilização tradicional, um estilo que não pode ser imitado exteriormente, e que é perpetuado sem dificuldade alguma, de modo quase orgânico, pelo poder do espírito que a anima e por nada mais” (BURCKHARDT. 2004, p.19) 18 De acordo com Mário de Andrade, é na Renascença que: “A beleza perde seu ideal e se materializa, tornando-se objeto de uma pesquisa de caráter objetivo, ao mesmo tempo o individualismo se acentua (...) Com essa pesquisa experimental da beleza e com esse individualismo a técnica pessoal tomou importância não só de primazia, como de verdadeira fatalidade (ANDRADE. 1938, p.11) 19 Titus Burckhardt. Perenial Values in Islamic Art’ from Mirror of the Intellect, 1987. 40 1.3 ARTE TIBETANA Quanto ao artista tibetano, ele sabe que sua própria habilidade, seja ela grande ou pequena, deve, sob o risco de incorrer na autodestruição, ser tanto inspirada pela Norma espiritual determinante como dedicada à Ela; e essa Norma, em sua própria revelação, é negadora do ego, excluindo por princípio todo o exibicionismo individualista. Esta é a natureza ou a inspiração artística no mundo tibetano: quanto mais somos capazes de nos identificar com esse ponto de vista, mais próximos estaremos de compreender sobre do que se trata a pintura tibetana (PALLIS ,1967, p.1, tradução nossa). A arte tradicional tibetana provém da tradição budista, o Dharma20 (A Lei). O Dharma é a exposição metafísica, religiosa e filosófica proferida por Sidarta Gautama no séc. VI a.C., fruto de sua epifania e perfeita iluminação. Assim, ficou conhecido como o Buda21, o “Desperto”, Śākyamuni. “Sábio dos Śākyas”, entre outros epítetos (fig.05). Logo, a arte tibetana é o “suporte” para as necessidades práticas e espirituais da comunidade budista, a sangha22. Como arte sagrada, ela possui suas características tradicionais, como seu simbolismo particular e não distinção entre artes e ofícios, ou entre artista e artesão. A arte tibetana é compreendida como utilitário espiritual, e tem como meta a lembrança ou presença da doutrina do Buda. (...)Tanto que a atitude consciente do artista tibetano com os produtos derivados de sua habilidade (..) venha sob o título de utensílio, em vários tipos e graus de significância; "utilitário" aqui está sendo levado para cobrir tanto o uso prático de qualquer determinado objeto de fabricação humana, como também para sua potencialidade simbólica. (PALLIS.1967, p.1) Desta maneira, na tradição tibetana (PALLIS, 1967) todo objeto artesanal vem sob a demanda de duas funções, uma prática e outra espiritual. De acordo com Pallis (1967, p.2) em uma análise, uma pessoa consequentemente deve se perguntar, em primeiro lugar: esse objeto bem feito para o seu propósito? Seu uso prático? E em segundo lugar: é esse objeto feito corretamente? Ou seja, é feito de acordo com a tradição e para seu objetivo final? Assim, não somente os objetos com “funções religiosas”, mas todos de uso ordinário podem se tornar ligações entre a vida humana cotidiana e a natureza inefável do sagrado. Ao 20 Ver glossário: Dharma 21 Ver glossário: Buda 22 Ver glossário Sangha 41 libertar-nos do “apego aos fatos toscos e efêmeros” (BURCKHARDT. 2004, p.21) da realidade, a arte sagrada nos redireciona para a “única coisa necessária”. Fig. 05 – Escultura Buda Śākyamuni – Monastério Real Butanês. Bodhgaya India 2013. Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Vinicius de Assis Através da simbologia que muitas vezes vem sob a forma de ornamento, há uma conexão com o conhecimento tradicional, aqui compreendido como uma linguagem simbólica particular da doutrina budista, e não como mero adorno ou “decoração desnecessária e luxuosa em seu apelo (...)”, mas “(...) sinais que podem ser lidos por aqueles que falam uma linguagem tradicional particular”. (PALLIS, 1967, p.2). O artesão se relaciona com o anonimato. Há o regozijo em participar do cânone de maneira habilidosa, confeccionar uma figura auspiciosa, próspera e correta, sem necessariamente reclamar direitos ou autoria sobre. É uma arte que, por consequência de sua natureza budista, é “ego-negadora”. 42 Os ofícios são transmitidos de maneira consecutiva em uma relação professor-aluno. Além da técnica e segredos da matéria a ser manipulada, (seja cerâmica, madeira, metal) o aprendiz é apresentado ao cânone e à simbologia tradicional. Para o artífice que se empenha para a arte sagrada, não é imprescindível e muitas vezes possível estar ciente da correspondência sagrada e ontológica com todas as formas e símbolos. Assim, é pelas regras do ofício que ele conhecerá certos procedimentos e aspectos que lhe permitirão confeccionar uma obra sagrada “de maneira liturgicamente válida, sem que necessariamente ele conheça os significados últimos dos símbolos que utiliza e opera”. (BURCKHARDT, 2004, p.19). Os motivos e temas da arte tibetana derivam principalmente da Índia budista. Já a influência chinesa se faz sentir mais no campo das amenidades sociais, como vestuário, decoração interna da casa (PALLIS, 1967), como mobiliário, tapetes e xales. Naturalmente, com os séculos, estes foram “tibetanizados”, em sua técnica e significado. Mesmo com o passar do tempo, muito da forma e influência budista indiana ainda pode ser notada. A arte tradicional se alastra a diferentes domínios, e na cultura tibetana assim o é. Desde a dança, música, teatro, até tecelagem, (tecidos, tapeçarias) com o uso da lã do iaque, a reprodução xilográfica (do extenso cânone de textos budistas), metalurgia, ourivesaria, marcenaria, cerâmica (arquitetônica e utilitária), escultura, e com atenção especial neste estudo, a pintura. Entre todas as artes e ofícios, a pintura ocupa uma posição muito especial, não só foi essencial para a concepção, decoração e acabamento de muitos objetos mundanos, mas é também um meio altamente desenvolvido e importante de expressão religiosa. Para entender o lugar da pintura na cultura tibetana é necessário olhar para os ritos e práticas sagradas que levaram à sua criação. A pintura (juntamente com escultura) foi crucial para a vida religiosa do Tibete, porque foi o meio através do qual os mais altos ideais do budismo foram evocados e trazidos vivos desde a sua introdução no Tibete no século VII até os dias de hoje. Uma pintura sagrada é para o tibetano um "suporte físico" - em outras palavras, uma incorporação – do estado natural da mente, a iluminação, Buda. A pintura no Tibete se aplica às seguintes categorias: Pinturas em templos (murais), monumentos (estupas), estátuas, iluminuras em textos sagrados (livros) e as pinturas em rolo, as thangkas. Uma thangka (thang ka, than sku ou 43 sku than) é uma pintura em tecido que pode ser enrolada (como um pergaminho); assim a thangka é uma imagem em um rolo pintado orientado verticalmente (PAL,2000). É sobre esta categoria de pintura que os esforços do estudo serão aplicados. Desde os primórdios do budismo no Tibete, as pinturas em superfícies enroladas são utilizadas por lamas para o ensino religioso nas áreas remotas dos Himalaias. A técnica garante além da praticidade de enrolar, a fixação perfeita da tinta, na região seca e árida das montanhas. No próximo capítulo, a continuidade será com a história da arte budista no Tibete, desde sua chegada e propagação, até o desenvolvimento particular da thangka (do séc VII ao XVII). Fig.06 – Mandala de areia: Kalachakra Mandala. Bodhgaya India 2013 Fonte: Arquivo pessoal - Foto: Vinicius de Assis 44 45 HISTÓRIA Os Himalaias e a arte budista no Tibete 46 Fig. 07 - Estupa de Boudhanath – Kathmandu / Nepal 2015 Fonte: Acervo Pessoal / Foto: Vinicius de Assis 47 2.1 OS HIMALAIAS E O TIBETE A cordilheira dos Himalaias, é a mais alta cadeia montanhosa do mundo, abrangendo cinco países: Índia, China (incluindo o Tibete) Paquistão, Nepal (fig.11) e o Butão. Ela atravessa desde a Ásia Central até a China, em um arco de montanhas com mais de 2.500 km de extensão. As mais altas montanhas do mundo estão lá. Várias culturas estão na região himalaica. Entre a cordilheira dos Himalaias (ao sul), a cordilheira do Caracórum (ao oeste) e a cordilheira Kunlun (ao norte) se situa o planalto tibetano, o mais alto planalto do mundo1, conhecido como o Teto do Mundo. O Tibete é descrito por seus habitantes como “Pö” (bod)2. Como salienta Powers (2007), existe uma distinção a ser feita entre a área cultural tibetana e o Tibete político. A cultura do Tibete abrange regiões que foram fortemente influenciadas pela tradição budista tibetana: Locais no lado sul do Himalaia (fig.12), como Nepal, Butão, Siquim, Mongólia, partes do Turquestão chinês, áreas da Rússia atual e os países da Ásia Central que faziam fronteira com o Tibete político. Este último inclui os territórios que eram mais ou menos diretamente controlados pelo governo tibetano em Lhasa antes da invasão chinesa de 1949-1950. Isso contextualiza o isolamento geográfico do Tibete, o que colaborou para as práticas e culturas tradicionais se tornassem intocadas até praticamente o século XX. Na sociedade tradicional o povo tibetano se divide em diversas classes sociais, como o pastoreio nômade, agricultura, artesanato, ofícios, cargos administrativos (aristocracia), comércio e vida monástica. O caminho budista praticado na cultura tibetana é o vajrayāna, que descende do budismo mahāyāna e tântrico praticado nas universidades monásticas da antiga Índia3 1 Situado acima dos 4.000 metros de altitude e com mais de 2 milhões de quilômetros quadrados. Sua região central que se situa à 4.000 metros onde a agricultura ainda é possível, a vida se torna difícil acima dos 5.000 e dos 6.000 o ambiente se torna inóspito. A maioria da população vive nos vales do sul, que são encontrados em altitudes que variam de 2.700 a 4.500 metros Por isso o nomadismo e pastoreio são bem comuns. (POWERS, 2007) e (KOSSAK;SINGER, 1998). 2 A origem do nome é incerta, mas originalmente significava “terra nativa” ou “ lugar original”. O nome "Tibete", pelo qual é conhecido para o mundo exterior, provavelmente é derivado da palavra mongol Thubet. É muitas vezes chamado de "Kangchen" por seus habitantes, que significa "País das Neves". (POWERS. 2007, p.137) 3 Uma série de monastérios e centros de aprendizagem cresceram na antiga Magadha (moderna Bihar) e Bengala. De acordo com fontes tibetanas, eram cinco os grandes Mahāvihāras durante o 48 Fig.08- Cordilheira dos Himalaias (Dhauladhar Range) – Dharamsala, Índia, 2013 Fonte: Arquivo pessoal – Foto: Vinicius de Assis período do Império Pala (séc VIII – XII d.C.): Vikramaśilā, Nalanda, Somapura, Odantapuri e Jagaddala; 49 2.2 BREVE HISTÓRIA DA ARTE BUDISTA NO TIBETE (séc VIII à XVII) “Nos textos budistas é dito que até que as Três Jóias – O Buda, o Dharma e a Sangha – sejam manifestadas numa região, a doutrina do Buda não poderá criar raízes ali. Por isso, governantes que desejavam as bençãos do Dharma para seu povo, não poupavam esforços para obter uma imagem do Buda. (TULKU.2002, p. 17) Os estudiosos que buscam escrever sobre a história tibetana se deparam com muitas dificuldades, como atenta Powers (2007). Isso acontece porque o budismo veio a influenciar todos os aspectos da vida tibetana de tal maneira, que a história de seu país está intimamente ligada com o budismo na mente do povo tibetano. As fontes tradicionais tibetanas tendem a sobrepor acontecimentos históricos com significados sagrados e atribuem aspectos importantes de suas narrativas a intervenções das deidades budistas. Este processo é tão onipresente em obras históricas que mesmo a história pré-budista do Tibete tem sido expressa como uma história da preparação do país para a difusão do budismo. Assim, é importante considerar que o início e os desdobramentos da arte tibetana estão entrelaçados com a história e geografia do Tibete. Os historiadores se referem à introdução do budismo no Tibete em dois momentos: durante o império tibetano, sob o patrocínio dos “Reis do Dharma” 4, o que ficou conhecido como “primeira disseminação do budismo” (Ngadar) e após um intervalo de duzentos anos houve o que se conhece como “segunda disseminação do budismo” (Chidar) durante o século XI.5 O Império Tibetano (de 640 até 842 d.C.) foi uma das grandes potências militares da Ásia central. No século VII, os vizinhos do Tibete eram predominantemente budistas. No reinado de Songtsen Gampo, regiões da Índia, Nepal, China, e grande parte da Ásia Central foram sucessivamente controladas por forças tibetanas. Fascinado com o budismo (e com as culturas estrangeiras com as quais entrou em contato), Songtsen Gampo deliberadamente importou 4 Chögyal ou “Os três reis ancestrais religiosos” são os antigos e famosos reis tibetanos que contribuíram de maneira substancial para estabelecer os ensinamentos do Buda no Tibete, eles são: Songtsen Gampo (605 -49), Trisong Detsen (755- 97) e Relpachen (815 -38). Disponível em: THREE ANCESTRAL KINGS In: RIGPA SHEDRA WIKI, an online encyclopedia of Tibetan Buddhism, 2011. Disponível em:http://www.rigpawiki.org/index.php?title=Three_ancestral_religious_kings (tradução nossa) 5 KOSSAK;SINGER (1998,p.3) http://www.rigpawiki.org/index.php?title=Three_ancestral_religious_kings 50 aspectos da tradição budista dos seus vizinhos. Seu auge foi no século VII, chegando a estabelecer relações diplomáticas com as grandes civilizações da época: Índia, Nepal e China. O reinado de Songtsen Gampo foi caracterizado por uma crescente percepção por parte da classe aristocrática dominante, (POWERS, 2007) de que o Tibete havia ficado muito para trás, em termos culturais, dos seus vizinhos, e o budismo foi percebido como um diferencial elementar das culturas avançadas estrangeiras. Uma das lacunas mais evidentes na cultura tibetana era a ausência de uma tradição literária ou mesmo uma gramática comum. Reconhecendo essa falha, Songtsen Gampo enviou o erudito Tonmi Sambhota, - à Índia para aprender o sânscrito e criar um alfabeto para a língua tibetana.6 Em meados do século VII, os primeiros tratados legais tibetanos apareceram, e, sob o patrocínio real, foram feitos esforços para traduzir o extenso corpus da literatura budista indiana para o tibetano. Como o budismo havia se originado na Índia e a maioria das suas doutrinas foram desenvolvidas lá, os tibetanos procuraram modelar sua filosofia de acordo com a que era praticada na Índia na época. Na religião e na arte, os tibetanos se tornaram aprendizes dos grandes mestres indianos, uma associação que foi longa e frutífera. Como Tarthang Tulku (2002, p.7) afirma: (...) nesses lugares onde a comunidade budista floresceu, a arte sagrada com a habilidade de comunicar-se diretamente com o coração e os sentidos, - tornou-se um complemento poderoso aos ensinamentos escritos. Buscando fazer alianças políticas, Songtsen Gampo enviou emissários ao rei do Nepal, para solicitar um casamento com sua filha Bhrikuti. O rei concordou, e quando a princesa (supostamente uma budista devota) viajou para o Tibete, ela trouxe consigo uma pintura do Buda Akshobhya. Esta foi alojada em um templo que havia sido construído no centro de um lago, que foi chamado de Ramoche. Ela é geralmente referida pelos tibetanos como Belsa, que significa “mulher nepalesa”, ou Tritsun, “Senhora Real. A tentativa seguinte do rei de efetuar um casamento político funcionou com algumas dificuldades. Ele enviou emissários 6 Como a Caxemira era amplamente conhecida como um centro de aprendizagem na época, Tonmi Sambhota viajou até lá, a fim de trabalhar com eruditos do sânscrito. Ele permaneceu na Índia durante anos, estudando a língua e literatura com os eruditos brâmanes. A língua escrita desenvolvida por Tonmi Sambhota passaria a ser norma em toda a área governada pelo governo central tibetano. (POWERS, 2007, p.147) 51 para o imperador chinês Taizong (627-650), fundador da dinastia Tang, solicitando um casamento com uma princesa real. O imperador considerava os tibetanos bárbaros e incultos, e por isso recusou. Songtsen Gampo respondeu atacando e derrotando tribos afiliadas com os Tang, e marcharam sobre a cidade chinesa de Songzhou. Depois de ameaçar os chineses com ainda mais violência, ele enviou ao imperador uma armadura incrustada com ouro, juntamente com um pedido para que ele reconsiderasse sua decisão anterior. Tendo pouca escolha, Taizong concordou, e a princesa Wencheng foi enviada para o Tibete em 640. Ela é referida pelos tibetanos como “Gyasa”, que significa “mulher chinesa” – Ela trouxe uma escultura em sândalo do Buda Śākyamuni como um jovem príncipe, a qual foi instalada em um templo que mais tarde veio a ser conhecido como o Jokhang. 7 Embora nenhuma obra deste período (séc VII e VIII) possa ser atribuída a um pintor tibetano, é evidente que os tibetanos estavam familiarizados com a pintura budista da Índia, Nepal, China e da Ásia central. Provavelmente os tibetanos estivessem iniciando a prática desta arte não apenas nos territórios da Ásia Central – que estavam intermitentemente ocupados – mas no Tibete Central também. Os templos Jokhang e Ramoche do século VII em Lhasa e o primeiro monastério Samye, - foram fundados sob patrocínio real, construídos e adornados por artistas locais, bem como estrangeiros.8 Sabendo que nenhuma cultura se desenvolve em um vácuo, é natural que a arte do Tibete reflita muitos traços das civilizações vizinhas. É também um fato histórico que a arte budista criou raízes no Tibete quando este, era politicamente ascendente e culturalmente receptivo (TULKU,1976). Outro grande monarca patrono foi Trisong Detsen (755-97), um budista devoto que teve um interesse pessoal em propagar o Dharma. De acordo com as crônicas tradicionais, ele enviou um convite ao erudito indiano Śāntarakṣita, pedindo-lhe para viajar para o Tibete. Como abade do monastério de Vikramaśilā, uma das maiores universidades (Mahāvihāra) de ensino budista na Índia, Śāntarakṣita tornou-se conhecido no Tibete como “O Abade Bodhisattva”. Tradicionalmente é descrito que quando ele chegou, no entanto, foi confrontado pela oposição de alguns dos ministros do rei, que são descritos em documentos 7 POWERS,2007 p.145 8 KOSSAK;SINGER 1998, p.5 52 tradicionais como Bönpos9. Uma série de desastres naturais e forças obstrutoras ocorreram e não permitiram Śāntarakṣita concluir a construção do primeiro monastério do Tibete. Os ministros afirmaram que os impedimentos teriam sido causados pelos espíritos e deuses do Bön, que se opuseram à chegada do Dharma budista. A oposição foi eficaz o suficiente para que Śāntarakṣita fosse forçado a deixar o Tibete, e assim o fez, passando vários anos antes que fosse capaz de retornar. Antes de partir, ele aconselhou o rei a convidar o adepto e mestre tântrico Padmasambhava (fig.13)10, que poderia derrotar os espíritos e entidades nativas do Bön. Assim, de acordo com as histórias tradicionais, Padmasambhava sabia de antemão que o rei iria convidá-lo, para o Tibete, e por isso, quando o mensageiro chegou para convidá-lo, ele já estava preparado para partir. Quando alcançou os limites externos do Tibete, forças demoníacas procuraram barrar seu progresso através de uma enorme tempestade de neve. Ele retirou-se para uma caverna e entrou em uma profunda absorção meditativa, assim foi capaz de subjugá-los. Logo ele viajou para o Tibete central, onde os demônios e espíritos nativos se concentraram contra ele, mas seu poder era tão grande que ele, sozinho, derrotou todos eles. As pessoas ficaram maravilhadas como um único homem pôde desafiar seus poderosos demônios para um combate pessoal e sair triunfante. Como resultado desta vitória, Padmasambhava também foi capaz de superar a oposição humana, depois da qual ele aconselhou o rei a convidar Śāntarakṣita para retornar. Em 775, Trisong Detsen, Padmasambhava, e Śāntarakṣita celebraram o vitorioso estabelecimento do budismo no Tibete, fundando seu primeiro monastério, que foi chamado Samye. Edifícios do mosteiro foram arranjados em um padrão de mandala, com um templo no centro e seus quatro lados orientados com as direções cardeais. É dito ter sido arquitetado tendo como modelo o monastério indiano de Odantapuri no Bihar. Foi construído em três andares, cada um em um diferente estilo arquitetônico, um indiano, um chinês e um tibetano. O monastério foi concluído em 766 e consagrado em 767. Quando o monastério estava acabado, sete tibetanos receberam os votos monásticos. Eles se tornaram conhecidos como os “os sete probacionistas”, e 9 Adeptos da religião xamânica nativa do Tibete, o Bön. 53 sua ordenação é considerada a inauguração da tradição monástica no Tibete. Samye se tornou um dos primeiros centros de tradução dos textos budistas. Fig.09- Thangka de Padmasambhava “Guru Rinpoche”, feita por Karma Sichoe Fonte: Arquivo pessoal – Foto: Karma Sichoe Tradicionalmente é dito que Śāntarakṣita ficou responsável pela supervisão dos Sutras e Padmasambhava pelas traduções dos Tantras. 54 O terceiro dos reis do Dharma é Ralpachen (815-38). Conhecido por ser um adepto ardente do Dharma. Durante seu reinado, foram perpetuados os patrocínios, como o envio de tibetanos à Índia e as traduções dos textos canônicos. Durante seu reinado o sânscrito tornou-se a única língua estrangeira oficialmente aprovada como uma fonte de literatura budista. Um léxico tibetano sânscrito foi concluído durante o seu reinado e ficou conhecido como Mahavyutpatti11, que se destinava a garantir uma uniformidade e precisão na tradução da linguagem filosófica frequentemente recôndita usada nos textos budistas indianos.12 Tarthang Tulku relata (1978) que Ralpachen assinou um tratado de paz com a China em 821, e convidou artesãos qualificados da Índia, China, Nepal, Caxemira e Khotan13. O rei, particularmente impressionado com os artesãos khotaneses, exigiu seus serviços com a ameaça de invadir Khotan. O estilo khotanês que apresenta a visão panorâmica de grupos arquitetônicos e utiliza finos e ondulados bigodes em retratos, influenciou bem a arte tibetana até o século XV. Ralpachen foi assassinado e quem o sucedeu foi seu irmão mais velho, Langdarma (que reinou entre 838-842), e que é reconhecido por ter oprimido violentamente o budismo. A perseguição trouxe ao fim o período da “primeira disseminação”, que foi iniciada pelos reis religiosos no século VII a.C. Langdarma é retratado como um devoto do Bön que estava possuído por um demônio. (POWERS, 2007). Estimulado por estas influências, ele ordenou que templos e monastérios fossem fechados; monges e monjas foram forçados a retornar à vida leiga (alguns se recusaram e foram executados). Interrompeu os contatos culturais com a Índia e a ele é creditado ter ordenado a destruição de textos e imagens budistas. Seu curto reinado chegou ao fim com seu assassinato, o que iniciou o colapso da dinastia tibetana e o processo de fragmentação do império tibetano. Com o fim da realeza, o Tibete central entrou 11 O Mahāvyutpatti “O Grande Volume de Compreensão Precisa ou Etimologia Essencial”, foi compilado no Tibete durante o final do século VIII e o início do século IX d.C., proporcionando um dicionário composto por milhares de termos budistas em sânscrito e tibetano, concebido como meio para fornecer uma padronização da tradução do cânone budista. É o mais antigo dicionário bilíngüe substancial conhecido. In: BIBLIOTHECA POLYGLOTTA. Universidade de Oslo. 2010. Disponível em: https://www2.hf.uio.no/polyglotta/index.php?page=volume&vid=263 12 (KOSSAK;SINGER.1998, p.4.) 13 Antigo reino budista da Ásia Central https://www2.hf.uio.no/polyglotta/index.php?page=volume&vid=263 55 em um período de agitação política. O Patronato real do budismo desapareceu, porém no Tibete ocidental, o interesse pelo budismo permaneceu forte. No século X, o rei do reino de Guge14, Yeshe Ö, com a intenção de reviver o Dharma no Tibete, enviou vinte e um promissores monges tibetanos para a Índia e Caxemira para estudar. Todos os monges morreram na Índia, com a exceção de dois que voltaram e se tornaram eruditos tradutores proeminentes. Eles eram Rinchen Sangpo e Lekbé Sherap, que retornaram ao Tibete em 978 d.C., juntamente com alguns mestres indianos. De acordo com Powers (2007, p 155), nas histórias tibetanas, este evento marca a inauguração da segunda disseminação” “Chidar” do budismo no Tibete. A maior figura tibetana deste período foi Rinchen Sangpo15 (958 – 1055), que supervisionou a tradução de muitos Sutras e Tantras em sânscrito, juntamente com os seus volumosos comentários. Ele fez três visitas à Índia, onde passou um total de dezessete anos, viajando de professor para professor, recebendo iniciações e instruções orais, e adquirindo cópias dos textos budistas. Estes foram levados ao Tibete, e sua atividade literária desempenhou um papel significativo na renascença budista. Considerando que, na primeira disseminação do budismo, a arte budista tinha ficado em grande parte restrita aos círculos reais e aristocráticos, neste momento o budismo teve um enorme apelo popular. Levando budistas tibetanos do século XI a reconhecerem a necessidade de aprofundar a compreensão intelectual do budismo e purificar a sua prática que havia sido degenerada durante o longo período de negligência após a morte de Langdarma em 842 (KOSSAK; SINGER.1998, p.6). Com o ressurgimento do budismo no Tibete no século XI, e por causa da ausência de qualquer autoridade política central, muito da economia e poderio político do país ficou concentrado nos monastérios. Muitas vezes essas instituições religiosas trabalharam em cumplicidade com os príncipes locais e senhores feudais, essas famílias supriram os monastérios com administradores e abades. Assim, pela constante demanda religiosa de imagens consagradas nos monastérios, foi inaugurado um grande período de atividade artística no 14 Antigo reino no Tibete ocidental 15 (PATRUL, 2008, p.610) 56 Tibete. Os dois séculos mais ativos em fundações de monastérios no Tibete foram os séculos XI e XIV.16 Assim como os primeiros monges indianos, os lamas viajantes usavam pinturas para levar os conhecimentos do Dharma aos mais remotos vilarejos. Com o tempo, as pinturas em algodão ou linho engomado, que podiam ser facilmente enroladas e transportadas, tornaram-se a forma mais difundida da arte tibetana. Como sua transmissão era discipular, linhagens de artistas desenvolveram-se em torno dos grandes monastérios, onde havia uma necessidade contínua de seus talentos. De acordo com Pratapaditya Pal (2000), sabemos que, na primeira metade do século XI, trinta e dois artistas foram trazidos da Caxemira por Rinchen Sangpo. Isso já demonstra o intenso movimento que ocorria no Tibete com a presença de artistas estrangeiros convidados. A arte sagrada era compreendida com importância equivalente aos textos budistas na transmissão do Dharma. Além de pintores leigos, muitos monges também foram bem versados nas teorias da arte e alguns eram de fato bons artistas. Pal (2000) cita a contribuição de Buton Rinpoche nos desenhos dos monastérios de Shalu e no Kumbum de Gyantse. O polímata do século XVII, Taranatha (1575), e o historiador Sumpa Khenpo (1709-86) são também reconhecidos por suas atividades e conhecimentos artísticos. Os últimos três na hierarquia Karmapa foram artistas realizados, e um deles, Mikyo Dorje (1507 -1554), é creditado por ter inspirado um novo estilo de pintura conhecido como Karma Gadri. Desde que os monastérios foram, em larga medida, responsáveis pelo custeamento das artes, pode-se compreender que, embora estabelecidos no século XI, os monastérios não poderiam ter se tornado poderosos e ricos como eram no século XIII. De fato, o período de real abundância talvez não tenha começado até os Lamas oficializarem uma relação economicamente compensadora de patronato com os imperadores chineses em meados do século XIII. Resume Pal (2000, p.6): “A história da pintura tibetana depois do século XIV se torna extremamente complexa. Esse foi o período da rápida expansão da escola Gelug17 por todo Tibete”. Em 1578 Sonam Gyatso havia 16 PAL,2000.p.6 17 As quatro grandes escolas do budismo no Tibete são: Nyingma, Kagyü, Sakya e Gelug - elas surgiram como resultado da primeira e segunda disseminação dos ensinamentos budistas no Tibete. The four main schools of Tibetan Buddhism In: RIGPA SHEDRA WIKI, an online 57 recebido o título de Dalai Lama do soberano mongol Altan Khan. A autoridade dos Gelugpa era agora inquestionável em matéria religiosa. Durante o século XVII, o quinto Dalai Lama ainda assumiu todo o poder político e temporal com a ajuda dos mongóis, e isso se perpetuou até 1951 com a invasão chinesa no Tibete. Através desta breve, porém profusa, história, fica claro como a tradição budista em suas diferentes manifestações, floresceu em diferentes momentos no Tibete durante mil anos (do séc VII ao séc XVII). O que parece, é que, desde o começo de sua história, o Tibete atraiu artistas e artesãos de diferentes países que contribuíram para o desenvolvimento de um gosto eclético entre os tibetanos. Com uma exposição a várias influências externas, os artistas tibetanos as absorveram e criaram seus notáveis, originais e expressivos estilos: as formas essenciais pelas quais reconhecemos as thangkas tibetanas. 2.3 THANGKAS: TIPOS, TEMAS E ESTILOS “Uma consistência única de estilo é observável em todo vasto território onde a tradição budista tibetana dominou, apesar da ampla diversidade climática e étnica. É um chamado ao olho treinado distinguir se certa pintura foi executada em Lhasa ou na Mongólia, e se a fotografia de uma construção se refere à Ladakh ou Kham, com milhares de quilômetros dividindo-os. (...) Uma mudança ocorreu, como pode ser comprovada comparando trabalhos separados por séculos, mas o desenvolvimento foi por etapas graduais que se fundem umas nas outras imperceptivelmente”. (PALLIS apud PAL, 2000, p.7, tradução nossa) A thangka é uma pintura em tecido que pode ser enrolada (como um pergaminho); no entanto é um rolo orientado verticalmente, em vez do rolo horizontal longo, preferido pelos chineses18. Um pedaço cru de algodão é esticado num chassi e preparado com uma mistura de cal e goma. Depois de seco, é polido e então feito o desenho para ser colorido. Os pigmentos para a encyclopedia of Tibetan Buddhism, 2011. Disponível em: http://www.rigpawiki.org/index.php?title=The_four_main_schools_of_Tibetan_Buddhism (tradução nossa) 18 Alguns rolos chineses usualmente são de seda, o suporte da thangka é regularmente de algodão ou linho. Nisso os tibetanos seguiram mais o modelo indiano, do que o chinês. Na Índia, tais pinturas são conhecidas por pata, onde são sempre pintadas em algodão (PAL. 2000, p.3, tradução nossa). http://www.rigpawiki.org/index.php?title=The_four_main_schools_of_Tibetan_Buddhism 58 pintura são derivados de vegetais e minerais, o aglutinante é a cola animal ou goma. A técnica, tanto na Índia como no Nepal, consiste em uma aquarela opaca que torna as thangkas tanto vulneráveis a condições atmosféricas como extremamente sensíveis à água. Uma ou mais pessoas podem trabalhar em uma thangka; muitas vezes o tamanho enorme e a iconografia complexa de muitas thangkas exigem o esforço em conjunto de muitos artistas. Depois da thangka ser pintada, ela é montada em uma moldura de seda19. Finalmente, duas hastes de madeira são fixadas no topo e embaixo da thangka, com isso ela pode ser enrolada facilmente. Geralmente são penduradas nos templos (alguns contam com dezenas de thangkas em uma mesma sala) ou em altares domésticos. O uso da cor pode variar bastante de uma thangka para outra. O número e tipos de cores usadas são um conjunto de critérios pelos quais as thangkas tibetanas são tradicionalmente classificadas. Thangkas pintadas podem ser de dois tipos: aquelas em que foram utilizadas todas as cores e outras em que apenas uma cor prevalece. A maioria das thangkas são pinturas do primeiro tipo, coloridas, nas quais foi utilizada uma paleta diversa. O segundo tipo é composto por pinturas em que uma cor predomina e algumas outras cores são usadas em funções restritas. Pinturas que empregam paletas limitadas podem ser divididas em três principais “sub-tipos” de acordo com a cor predominante (JACKSON, 1988). São elas: as thangkas pretas, thangkas prateadas, thangkas douradas e thangkas vermelhas. As thangkas pretas são mais comuns, sendo usadas principalmente para representar deidades protetoras iradas, enquanto as prateadas, douradas e vermelhas são mais raras. Como os tipos, os temas da thangka possuem uma extensa variedade de acordo com sua função (uso religioso). Os temais mais comuns são: seres iluminados (Budas, gurus e bodhisattvas), yidams (deidades tutelares pessoais), dharmapalas (guardiões/protetores), mandalas, símbolos auspiciosos e yantras (amuletos). De acordo com Tarthang Tulku (1974), representações dos budas e dos grandes bodhisattvas conferem bênçãos e inspiram a prática da meditação; 19 Nas thangkas antigas, as montagens eram simples, em seda azul escura ou algodão, isso é evidente em obras remanescentes do século XV e XVI que foram mantidas em suas guarnições originais. Porém, em algum momento daquela época, se tornou padrão nos grandes monastérios, montar as thangkas em elaborados brocados chineses. Essa prática deve ter começado com os imperadores mongóis da China que presentearam com enormes quantidades de seda os importantes monges e monastérios tibetanos (PAL.2000, p.4, tradução nossa) 59 pinturas dos principais gurus e dos mestres das linhagens despertam atitudes devocionais e receptividade aos ensinamentos. As thangkas são utilizadas em muitas cerimônias e rituais; as pinturas de yidams são utilizadas para iniciações e práticas de visualização, enquanto representações de dharmapalas e de outras figuras iradas fornecem proteção e remoção de obstáculos. Tipos específicos de thangkas oferecem proteção contra desastres, doenças e obstruções de todo tipo20 Os estilos de thangka são um assunto difícil e controverso. Pelo isolamento geográfico e político, o Tibete só começou a ser acessível a pesquisadores ocidentais no século XX.21 A história da arte tibetana é complexa e fragmentada em dezenas de textos em monastérios e bibliotecas. E desde a “Grande Revolução Cultural” muito foi destruído para sempre, como pinturas, murais e templos. Por isso o acesso a informações é difícil. Até o presente, somente alguns poucos materiais sistemáticos se dedicaram ao assunto. 22 Os estilos da thangka se formaram regionalmente (com maior ou menor influência indiana, nepalesa e chinesa). Há diversas descrições de estilos, e relato aqui somente os mais comuns encontrados na bibliografia23. O estilo Menri me é mais familiar, pelo treinamento com Karma Sichoe (fig.14). Na região sul do Tibete, em Gyantse, houve um importante centro artístico durante os séculos XIV e XV. Desde que o estilo sulista absorveu a tradição nepalesa que incorporava elementos da arte Pala, tornou-se conhecido como Beri, ou “estilo nepalês” (TULKU,2002). Já o Tibete ocidental reflete o estilo de pintura desenvolvido na Caxemira, que por sua vez foi influenciada pela arte que florescia na Índia central e oriental durante as dinastias Gupta (300 – 600) e Pala (730 – 1200). O Tibete oriental também deu origem a estilos distintos e ricas tradições artísticas, cultivadas em Derge e nas áreas circundantes. Na primeira metade do século XV, Menla Dondrup de Menthang em Lobrak, fundou a escola 20 Em um uso muito semelhante ao que conhecemos por ex-voto no Brasil. 21 (JACKSON.1996, p.13, tradução nossa). “Não é um mistério saber o porquê estudiosos modernos não puderam investigar a matéria em detalhe até recentemente. Indo de mão em mão e com a notória inacessibilidade do Tibete, seus maiores trabalhos sobre arte religiosa circulam, por isso há uma grande dificuldade em encontrar escritos relevantes de fontes tibetanas”. 22 Recomendo a extensa obra de David Jackson A History of Tibetan Painting, 1996. 23 Nos livros Sacred Art of Tibet (1976) de Tarthang Tulku, A History of Tibetan Painting (1996) de David Jackson e The Principles of Tibetan Art (1983) de Gega Lama. 60 Menri que incorporou elementos chineses do período Yuan, incluindo desenhos e técnicas usadas em elegantes brocados e tapeçarias. Fig.10 – “A Roda da Existência Cíclica”24, thangka de Karma Sichoe em estilo Menri. Fonte: Arquivo pessoal – Foto: Karma Sichoe 24 Ou Roda da Vida, em sânscrito Bhavacakra. É uma representação conhecida de ensinamentos essenciais do budismo que é muito comum em todo o Tibete. Na entrada de monastérios e residências particulares, uma lembrança constante da natureza do Saṃsāra e da necessidade de transcendê-lo. In: RIGPA WIKI, an online encyclopedia of Tibetan Buddhism, 2011. Disponível em: http://www.rigpawiki.org/index.php?title=Wheel_of_Life (tradução nossa) 61 O estilo Khyenlug, é baseado no estilo de pintura de Khyentse Chenmo. Esse estilo também usa elementos chineses. O estilo “Novo Menri” que é atribuído a Chokying Gyatso, prosperou entre 1620 até 1665. Já inspirado no Menri, o trabalho de Namkhai Tashi (segunda metade do século XVI) se desenvolve no estilo chamado de Gadri, e as principais características desta escola foram o uso das cores, sombreamento e as inovações no tratamento dos cenários e composições (TULKU, 1976). A escola relacionada conhecida como Karma Gadri mostra a grande influência chinesa no uso de elementos realistas nas paisagens, tais como penhascos rochosos e árvores sutilmente elaboradas, animais e flores. Particularmente acho muito difícil a percepção de estilos em thangkas, a sutileza na percepção de como certos detalhes são feitos. Sichoe com facilidade reconhecia e me dizia de imediato se era “tibetana”, “nepalesa”, ou se era um Menri ou Karma Gadri, que foram os dois estilos que encontrei nas escolas de pintura no Nepal e Índia. Mas mesmo com essa proliferação de estilos, a arte tibetana não se tornou fragmentada. Como uma arte tradicional, seus estilos artísticos são sempre subordinados ao conteúdo, à origem. Isto se deve ao fato de que a arte tibetana foi, e ainda é, basicamente uma arte tradicional inseparável do conhecimento filosófico do budismo mahayana, que enfatiza o crescimento espiritual e que torna acessível o entendimento através dos símbolos. 62 63 MÉTODO Processos e Procedimentos 64 Fig 11. Karma Sichoe na mensura e explicação das medidas e proporção das mãos do Buda. Fonte: Arquivo Pessoal – Fotografia: Vinicius de Assis 65 As artes, a preparação de medicamentos, os rituais tântricos e a profunda natureza última dos fenômenos, não estão sujeitos a mera especulação intelectual, e não devem ser abordados com orgulho e auto engrandecimento (Taranatha, venerável mestre Jonang. Séc XVI – XVII).1 Este capítulo é sobre os aspectos tradicionais de ensino, ofícios e processos da pintura tradicional tibetana. As fontes para esta parte do estudo foram o pintor tibetano Karma Sichoe (fig.11), em uma residência de trinta dias em 2013, e no estudo de campo de sessenta dias em 2015, ambos em seu ateliê em Dharamsala, norte da Índia.2 Assim, por sua presença notória, seja através do conhecimento oral, acesso a livros e pintores, ou, pela própria prática e habilidade técnica, Sichoe é tido como a fonte primária deste capítulo. Karma Sichoe, 41 anos, é um pintor tradicional e artista contemporâneo. Órfão e refugiado, Karma foi criado e educado no TCV (Tibetan Children’s Village School) em Dharamsala. Ele recebeu seu treinamento formal em pintura thangka no Centro Tibetano de Artes e Ofícios em Dharamsala (hoje Instituto Norbulingka), sob a orientação do renomado mestre pintor Ridzin Paljor, que foi um dos principais pintores da corte Potala no Tibete e no exílio continuou trabalhando diretamente para Sua Santidade o Dalai Lama. Depois de se formar, em 1993, Karma tem trabalhado principalmente como um artista independente com encomendas particulares, em monastérios e escolas, e dedica grande parte de seu tempo e energia a diversas atividades políticas dentro da comunidade tibetana no exílio, bem como ao estudo da diversidade de estilos da pintura thangka e formas de arte. Como complementação teórica, os seguintes autores foram utilizados: Gega Lama com o livro Principles of Tibetan Art (1983), David e Janice Jackson com Tibetan Thangka Painting (1988) e Tarthang Tulku com os livros Sacred Art of Tibet (1974) e a única publicação encontrada em português sobre thangka, A Arte Iluminada (2002). Houve também visitas às escolas de pintura, como a Tsering Art School em Kathmandu no Nepal, e nas escolas Institute of Tibetan Thangka Art (ITTA) e Norbulingka Institute, estas 1 GEGA,Lama. Principles of Tibetan Art. 1983, p.75 2 Ambas experiências relatadas nos artigos publicados. 30 dias em Dharamsala: Residência com um Pintor Tibetano (2014) e Artífice ou Artista Artesão: Os Ofícios e Treinamento Tradicional na Pintura Tibetana (2015) 66 duas em Dharamsala, Índia. Além de conversas, instruções orais e minha curta experiência. 3.1 ENSINO TRADICIONAL O aspecto preliminar do ensino tradicional lida com a motivação e intenção do artífice. O artista que pretende seguir os cânones, as regras de ofício e a linguagem simbólica apropriada, deve ter boas motivações, basicamente as de um praticante budista que respeite e reverencie o Dharma. Sobre isso, Tarthang Tulku comenta: O artista poderia ser um mestre realizado, treinado nos textos e nas linhagens orais da sua tradição, sua visão aperfeiçoada por meio da realização meditativa, sua mão refinada pela prática de uma longa aprendizagem. Mas frequentemente, o artista era uma pessoa leiga, treinada em regras e estilos de representação, que havia trabalhado por muitos anos sob a supervisão direta de um artista mestre (TULKU, 2002. P.23). O fato de ser um artista leigo não o isenta de possuir responsabilidades e, por isso, alguns atributos, de acordo com Tarthang (2002), como ser modesto, bem-humorado, humilde, dedicado ao Dharma, diligente e consciente. O artesão tem a responsabilidade de estar ali pela propagação e manutenção dos assuntos sagrados.3 É essa motivação e intenção que o artista utiliza como base de todo o incentivo que será necessário para se dedicar a essa arte geométrica, simbólica e canônica. No sentido ideal, o artista deve conhecer as linhagens, práticas meditativas e os textos sagrados. Quando houver dúvidas, deve consultar os textos ou pedir esclarecimentos a lamas e mestres. É na motivação com o Dharma que reside o incentivo inspirador. É essa aproximação adequada que vai preparar a mente do artífice para as rigorosas proporções e simbologias de um árduo treinamento. Há o reconhecimento de que a sincera admiração e devoção do artesão pela doutrina do Buda pode se manifestar como arte sagrada. Deste modo, o artista se prepara para um complexo universo de arquétipos, símbolos e formas. E é de acordo com essa proximidade, que se 3 “Portanto o artista deve se submeter as regras e se elevar aos padrões do sagrado representado (ou assim deveria operar) pois, Karma dizia: a pintura é como um espelho que reflete a mente, se perturbada por emoções negativas, como ansiedade, raiva ou medo, esse substrato ficará nítido como um reflexo na pintura, trazendo assim condições não auspiciosas ou inadequadas” (ASSIS. 2014, p.4) 67 percebe o caráter do artesão. O pintor Gega Lama (1983) diz sobre os aspectos do caráter de um artista tradicional: seus defeitos e qualidades ou falhas e virtudes. Os defeitos vão desde a relação do artesão com a arte e com o sagrado, até a relação com patronos e clientes que encomendam obras. Tais falhas devem ser conscientemente e constantemente evitadas4. Alguns exemplos são: Envolver-se com arte visando somente benefício próprio ou de outros; ter orgulho e se presumir artista mesmo que seja um ignorante na técnica de desenho, proporção e nas descrições dos aspectos retratados; enganar outros com um exagero equivocado, o que contradiz as escrituras tradicionais e a sabedoria da linhagem; apresentar como autêntica qualquer coisa que não tenha base na tradição artística ou julgar uma obra sem conhecimento de origem ou as qualificações do artista que a concebeu. É igualmente nocivo e danoso estar envolvido com seus clientes, ou explorar um bom relacionamento com eles a fim de garantir um ganho pessoal. Ter fala ríspida, ser melindroso com condições de trabalho, exigente com cobranças exorbitantes, se irritar facilmente, trabalhar velozmente e sem cuidado, consumir desenfreadamente carne e álcool não consagrados, ser tagarela e profano. É substancial possuir um comportamento adequado, de tal forma que as deidades, ensinamentos e aspectos retratados sejam respeitados. Com relação a isso, Gega Lama cita as falhas como a de tratar o assunto (arte sagrada) casualmente ou com desprezo; ser desleixado e não corrigir eventuais erros e outras funções das quais se tem consciência; ser negligente em consentir que padrões sejam aplicados em toda parte, devido a ignorância e falta de discernimento sobre os assuntos tradicionais, como os Tantras inferiores e superiores. É dito que um artista com essas falhas não poderá desenvolver seu potencial, seu talento criativo. Já sobre as qualidades do artista, Gega Lama explica: ser habilidoso em desenho e bem versado nas proporções corretas, manter adequadamente a linhagem de transmissão artística e técnica, ter o discernimento e saber discriminar entre os assuntos dos Tantras inferiores e 4 Gega Lama descreve uma lista extensa (1983, p. 57). Estas advertências têm como fonte os Sutras e Tantras (textos canônicos budistas) como: Kalachakratantra, Mahasamvarodayatantraraja, Kalayamatantra e Sariputrapariprcchasutra, além dos conhecimentos orais das linhagens de pintura. 68 superiores, reconhecer as características das deidades iradas e pacíficas e retratar fielmente os elementos da composição como posturas e gestos (mudrā) descritos nos apropriados textos canônicos. Além das qualidades técnicas, o artista idealmente deve possuir as qualidades de um praticante (leigo ou ordenado) do Dharma budista, como: ser compassivo e paciente face o trabalho duro, condições e críticas; uma contida disposição com respeito ao sagrado retratado; ser competente nas artes; sem vaidade a respeito de sua habilidade; lento para a raiva e a desconfiança; pouco preocupado com a riqueza ou bens alheios e seguir de maneira diligente as instruções de seu patrono. Ao cultivar qualidades, o artista estará apto a manter uma conduta apropriada, o que envolve o cerimonial com a pintura. De acordo com Gega (1983), ao retratar a forma impassível (do Buda) ou das deidades dos Tantras externos, o artista deveria se banhar regularmente e ser minucioso em sua conduta5. Ao retratar deidades dos Tantras internos, o pintor deve receber a iniciação apropriada e manter os votos e compromissos, seja a meditação diária ou a repetição ininterrupta do mantra adequado. A conduta deve ser mantida até a finalização da obra. O trabalho é iniciado com práticas meditativas e rituais relativos à remoção de obstáculos. Tarthang Tulku (2002, p.24) comenta: “(...) o artista se engaja em um ritual de criação consciente da estação do ano e do tempo apropriado para produzir cada tipo de imagem”. Desde bênçãos do artista, ao local de trabalho, às ferramentas (pincéis, pigmentos, tela), até a manutenção da ordem e limpeza em todos os estágios de produção. Somente materiais da melhor qualidade são utilizados. Como algodão, colas de origem animal, pigmentos minerais, seda, prata e ouro. Karma Sichoe dizia que para os melhores resultados, sempre os melhores materiais deveriam ser utilizados, pois são uma oferenda e fazem parte da obra. Até que o projeto seja concluído, o artista deve ser capaz de devotar uma incessante energia sem procrastinar. Quando o trabalho for concluído, deve ser capaz de explicar as qualidades afim de alegrar o patrono e ao final, dedicar a virtude de todo esforço para o bem- 5 Ver glossário: Cinco Preceitos 69 estar dos seres sencientes com espírito de celebração. O ideal do artista mestre como um indivíduo santo é citado em textos e linhagens de pintura: Ungido pelas palavras do sábio incomparável. Honrado com devoção por seres de todos os tipos. Reverenciado em cânticos de louvor por deuses e homens. Tal é um verdadeiro mestre das artes, não apenas um nome. (GEGA. 1983, p.59) Os textos tradicionais e comentários orais também descrevem sobre a relação do artista com o patrono, na produção de empreitas e patrocínio de obras. O patronato é essencial para que haja as causas e condições necessárias para a realização da arte sagrada: oferendas de materiais, pagamento dos custos e sustento dos artistas envolvidos. Sobre a figura do patrono, os mesmos preceitos do artista (qualidades, defeitos e conduta) são descritos em Sutras e Tantras. Gega Lama discorre detalhadamente sobre as falhas e defeitos do patrono6, aqui limito a alguns exemplos como: Ter pouca fé ou respeito pelos ideais e símbolos espirituais, não ver benefício na construção de estupas, rodas de oração, imagens e não acreditar mesmo quando os benefícios são explicados. Ou mesmo fazer um patrocínio por uma motivação pessoal com preocupações mundanas, tais como o desejo de fama nesta vida, ou fazer fama aos outros. Estes e outros comportamentos são tidos como falhas a serem evitadas, em contrapartida, uma vez que o patrono se comprometa a patrocinar um projeto, deverá se envolver sem qualquer pesar, mesmo que o projeto possa levar toda a sua vida e requeira toda a sua riqueza para ser concluído. Sobre as qualidades e conduta ideais de um bom patrono, é dito que este deve exemplificar as seis virtudes ou perfeições transcendentes do budismo mahayana7 em suas maneiras. Do Discurso por Paljor Gyatso (GEGA, 1983, p. 60, tradução nossa), lê-se: Com a sabedoria para ver os benefícios (de seu patrocínio) Com a concentração de uma mente focada Com a energia de desfrutar suas atividades como um patrocinador 6 GEGA.Lama. Principles Of Tibetan Art (1983), p. 59 7 Ver glossário: Seis Perfeições Transcendentes 70 Com a paciência de não lamentar dificuldades. Com a disciplina de uma fala mansa e relaxada naturalidade Com a generosidade de apoio incondicional E com fé e respeito pelas deidades e pelo artista Ele se torna cada vez mais realizado (em seu papel de patrono das artes). Alguém que se comporta de forma incontestável com relação a esses pontos de conduta, é um verdadeiro patrono que cumpre completamente o papel de um rejuvenescedor da tradição budista. (Gega,1983) Ainda sobre a manutenção dos assuntos sagrados, é dito que as proporções canônicas existem para evitar a degeneração nas artes, e foram estabelecidas por artistas talentosos: elas não são rigidamente fixas. Assim, um artista qualificado é geralmente livre para o improviso e introdução de suas próprias inovações, sempre que as normas estejam incompletas, ou se há algo que não está claramente delineado pela tradição, entretanto, Gega Lama (1983) afirma que todas as manifestações do Dharma, desde o ápice dos ensinamentos do caminho espiritual até a mais simples das ciências mundanas, ao menor sinal de degeneração ou erro daninho, peritos qualificados deverão censurar e desencorajar a transmissão e perversão das doutrinas defeituosas. Por esta razão, as tradições permaneceram sem falhas e sem danos até recentemente. 3.2.TREINAMENTO A pintura tibetana, por seu primor e complexidade, é um ofício que exige um intenso treinamento, o que irá preparar as habilidades físicas e mentais do artesão. O treinamento costuma levar anos nos quais o desenho será refinado por exaustivas repetições, cânones, proporções assimiladas, a pintura esmerada e os ofícios transmitidos. Nos dias atuais, o período de treinamento é de três a seis anos8, mas de acordo com Sichoe, antes da invasão chinesa do Tibete9 em 1951, o tempo era maior, com treinamentos sendo estabelecidos ainda na 8 É a média de acordo com as escolas visitadas entre março e abril de 2015: Tsering Art School no Shechen Monastery (Kathmandu – Nepal), o Norbulingka Institute e o ITTA (Institute of Tibetan Thangka Art, ambos em Dharamsala, Índia. 9 (POWERS 2007 p. 137) 71 infância, dentro dos próprios monastérios. Usualmente o treinamento no Tibete (no caso da thangka) era iniciado pela caligrafia, passando posteriormente ao desenho e à pintura. Era o ambiente propício para a existência dos mestres, estes “habilidosos tecnicamente e no conhecimento budista”, dizia Sichoe. Naturalmente eram os locais que exigiam uma demanda de pintura e arte sagrada a ser atendida, seja em rituais e iniciações ou para a sangha. Atualmente, no primeiro ano de treinamento, o aluno pratica somente o desenho, com a laboriosa repetição de elementos da natureza, como folhas, flores, água, fogo, rochas, nuvens, além de animais, objetos ritualísticos e símbolos auspiciosos10. É no treino desses elementos básicos que já reside o traço, a fluidez, composição e harmonia que serão exigidas posteriormente nas composições e desenhos mais complexos. Existe a exigência da maestria sobre cada etapa do processo, essa é uma das garantias de que a obra de arte será feita de maneira adequada para o seu propósito. A transmissão treina a mente do artista, já que sua conduta será imprescindível para a manufatura da arte sagrada. Ainda sobre o treinamento, relato aqui impressões e percepções sobre a convivência e conhecimento oral transmitidos a mim por Karma Sichoe na residência em 2013 e no estudo de campo em 2015. Como relatado no artigo Artífice ou Artista Artesão (2015), houve um treino conciso e uma pequena amostra do que é a rotina de um treinamento tradicional tibetano. Isso começou com minha aproximação e pedido formal a Karma Sichoe, para que me ensinasse. Deste modo, expliquei a ele a situação, que estava ali como pesquisador e propus um roteiro sucinto no qual o treino do desenho, pincel e os ofícios estivessem presentes. O pedido formal, é algo presente na cultura tibetana, seja para o aprendizado de um ofício ou para um caminho espiritual. É nesse momento que com humildade, disposição e sabendo da disciplina e rigor envolvidos, que se pede para o professor ensinar. Karma discorria sobre essa relação: “ O professor de um lado deve ser paciente e generoso ao ensinar e transmitir o que sabe, enquanto o aluno, do outro, deve ser perseverante e humilde em sua prática“, em suma: “(...) uma experiência que envolvia grande confidência e dedicação mútua, entre o professor e o aluno” (ASSIS.2015, p.2). 10 Ver glossário: Oito Símbolos Auspiciosos. 72 No papel de aluno, procurei atender aos pedidos do professor e fazer o melhor possível, sem discordar e criar atritos, mas naturalmente perguntando e pedindo esclarecimentos em todas as etapas envolvidas. Em 2013, Sichoe ensinou sobre os elementos da natureza: flores, nuvens, fogo e água. Por isso em 2015, pedi especificamente esclarecimentos e estudos sobre as medidas do corpo do Buda (cabeça, mãos, pés e corpo), assim houve a repetição intensa destes pontos. Dedico aqui especial atenção à repetição, um aspecto presente em todo aprendizado. A repetição deve ser regrada, de maneira concentrada, consciente dos ajustes a serem feitos. Como exemplo, Karma demonstrava a proporção da cabeça do Buda, eu a copiava até que considerasse boa para ser mostrada (fig.12), ele verificava, fazia ajustes ou apagava todo o desenho e refazia, de maneira lenta e concentrada toda a proporção, isso várias vezes por dia, durante semanas.11 Com a repetição dos cânones, sabendo da disciplina necessária, foi prudente deixar de lado, o aspecto mimado, autocentrado e individual, para o empenho no esforço repetitivo e concentrado. Concomitante com os estudos de desenho, houve o treinamento do traço do pincel. O delineamento ou contorno do pincel é uma das maneiras de acabamento da thangka. Junto com o desenho e as técnicas de pintura, o contorno é uma parte importante que exige muitos anos de prática. Com Karma aprendi que o completo domínio do pincel não está na execução rápida e fluida da linha (como pensava), mas sim em exibir o controle lentamente. Assim, os exercícios eram o treino e repetição de três formas básicas: o quadrado, o círculo e o triângulo, seguidas vezes de maneira concêntrica e contínua, num só movimento e lentamente. Esses primordiais e simples exercícios ajudam no controle da pressão do pincel, na quantidade de tinta, na maestria em diversas direções12, na percepção do espaço negativo e no trabalho de paciência e domínio sobre a ansiedade e raiva. Os exercícios eram executados com atenção especial à respiração, o traço deve fluir junto com o 11 ASSIS. 2015, p.02 12 Da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima e as diagonais. 73 fôlego, não se deve prender a respiração, esta deve sempre ser contínua, calma e lenta. Fig. 12- Treinamento das proporções da cabeça do Buda. 2015 Fonte: arquivo pessoal – Foto: Vinicius de Assis Como havia sido dito por Sichoe, a pintura ou desenho é um reflexo do estado mental do artista, desta forma, à medida que ocorriam os exercícios e desenhos, pude observar e perceber melhor meu próprio estado mental e averiguar os subsequentes resultados, como distração na hora de executar as medidas e assimetria excessiva quando percebia em minha mente uma ansiedade por resultado e falta de atenção. Aos poucos, ao observar as 74 repetidas vezes que Sichoe corrigia os desenhos, pude notar a sutileza das formas, espaços negativos e suavidade dos detalhes. Fig.13- Karma Sichoe pintando uma thangka de Manjushri. 2015 Fonte: Acervo pessoal / Foto: Vinicius de Assis Outro ponto salientado por Sichoe era sobre a postura física do pintor, no caso da