ELLEN BEATRIZ SANTOS FONSECA DE CASTRO GENOCÍDIO VELADO TRAJETÓRIA DA EFNOB E PERSPECTIVAS PARA O PATRIMÔNIO INDUSTRIAL FERROVIÁRIO BAURU - SP 2016 ii ‘ ELLEN BEATRIZ SANTOS FONSECA DE CASTRO GENOCÍDIO VELADO TRAJETÓRIA DA EFNOB E PERSPECTIVAS PARA O PATRIMÔNIO INDUSTRIAL FERROVIÁRIO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Bauru, como requisito final para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosío Fernández Baca Salcedo BAURU - SP 2016 iii ‘ Castro, Ellen Beatriz Santos Fonseca de. Genocídio Velado: trajetória da EFNOB e perspectivas para o patrimônio industrial ferroviário / Ellen Beatriz Santos Fonseca de Castro, 2016 173 f. Orientadora: Rosío Fernández Baca Salcedo Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2016 1. Patrimônio industrial ferroviário. 2. Lugar, cultura e memória. 3. Urbanismo ambiental. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título. iv ‘ v ‘ À saudade de minha mãe, porque a saudade é o amor que fica... vi ‘ AGRADECIMENTOS Sempre li agradecimentos onde os autores, agradecendo, já iam, ao mesmo tempo, se desculpando para o caso de esquecerem alguém. E sempre pensei “imagina, lembrarei e agradecerei todo mundo” [...] ‘Cá’ estou eu, finalmente compreendendo que não existe a mínima possibilidade de lembrar e agradecer a colaboração de todos. Porque é uma imensidão de pessoas. I-men-si-dão! Essa dissertação só existe por causa de todas elas. Foram mais de 150 respostas aos questionários, amigos, família, amigos da família, e família de amigos. Funcionários dos museus, universidades, colegas, funcionários da Prefeitura Municipal de Bauru, diretores, secretários, gestores!! Vereador e Prefeito, imaginem só... Pessoas que encontro todos os dias, pessoas que vi uma vez na vida, algumas, encontro de tempos em tempos, e outras, eu sei que jamais encontrarei novamente. Enfim... se é impossível agradecer e descrever a importância de cada pequena e exclusiva participação, minhas sinceras desculpas. Mas vamos aos que jamais poderiam deixam de ser mencionados... Meu muito obrigada à Professora Rosío, que com tanto carinho desempenhou a função de orientar este trabalho. É claro que sua participação foi fundamental, desde a escolha do tema, em todo o seu desenvolvimento e correções de percurso... muitas vezes a amiga que desejei, outras tantas, a mãe que precisei. Aos professores Marcelo Zárate e Nilson Ghirardello, pelas importantes (e olha só, coincidentes) contribuições no exame de qualificação, decisivas para o amadurecimento e finalização deste trabalho. Só pessoas sérias e comprometidas com o que fazem são capazes de apontamentos tão imbricados no cerne da pesquisa, a ponto de se tornarem imprescindíveis ao trabalho. Obrigada! A todos os amigos, enfrentando as mesmas dificuldades... obrigada pelas animadas conversas na madrugada. Nosso grupo de whatsapp ‘bombando’ nos momentos mais oportunos, sempre com a presença online de alguém disposto a dividir o peso das mazelas, e também a somar o gosto bom das vitórias. Nossos divertidos encontros se tornaram inesquecíveis! Aos funcionários da Pós-Graduação da FAAC, e agora também amigos queridos, obrigada pela disponibilidade infindável, pelas paciência e portas abertas até depois do horário, quando não havia mais ninguém... obrigada pelos agradáveis intervalos e conversas da tarde. Sempre, muito obrigada. A todos que contribuíram para as reflexões sobre o tema, afinal, foram 30 meses falando sobre isso em qualquer recinto que adentrasse... Por fim, um obrigada especial à minha família. Principalmente pela compreensão de minha ausência: em cada tarde (e noite) no sofá, em cada sessão de cinema, em cada festa, comemoração, cada passeio não realizado. Agradeço ainda por todo carinho e respeito à essa minha escolha. Vivenciaram cada minuto da atenção que dediquei, cada dificuldade que encontrei, e essa vitória também é de vocês! Pai e irmã queridos. Marido e filha, minha vida. Obrigada por serem meu refúgio abençoado. Deus, obrigada por orquestrar todos esses encontros e acontecimentos em minha vida! vii ‘ RESUMO Os trens são reconhecidos como patrimônio cultural pela população bauruense, e o pátio ferroviário da cidade, tombado pelo CODEPAC e em Estudo de Tombamento pelo CONDEPHAAT (Conselhos municipal e estadual, respectivamente), está sem previsão de políticas, programas ou projetos públicos de salvaguarda de seu patrimônio, com suas edificações degradadas e abandonadas. Apesar dessa situação de descaso, o complexo da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil – CEFNOB (nosso estudo de caso) continua sendo considerado um dos melhores e mais completo exemplar de pátio ferroviário da América Latina. Muitas pesquisas na temática da ferrovia, e da Noroeste em particular, já foram desenvolvidas, entretanto, as diversas informações e resultados produzidos ainda não foram sistematizados, analisados e interpretados conjuntamente. No intuito de começar a se pensar em uma maneira de reintegrar o complexo ferroviário ao cenário urbano, esta pesquisa tem por objetivo testar se o reconhecimento do código genético do patrimônio, a partir de suas articulações socioeconômicas, simbólicas, de identidade e memória, é necessário para intervenção no complexo ferroviário da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (EFNOB); e, propor diretrizes urbanas sustentáveis para sua reintegração ao cenário urbano. A metodologia compreende seis etapas, sendo a primeira uma abordagem teórica sobre o patrimônio industrial ferroviário; sobre lugar, cultura e memória; métodos de intervenção; e, urbanismo ambiental. A segunda etapa apresenta o método, um novo urbanismo que compreende o espaço urbano através da relação cronotopica – ou sociofísica – do contexto com o texto, uma vez que o cronotopo é capaz de analisar a estrutura da configuração de um lugar, e ver como a mesma se modifica através do tempo. Na terceira, é apresentado o Contexto da estrada de ferro no Brasil, incluindo sua importância na evolução urbana e no processo histórico, social e cultural das cidades do interior do país; bem como análise da ideologia aportada, as políticas públicas que possibilitaram sua criação, as que foram responsáveis por sua gradativa substituição, e, finalmente, sobre gestão e gestores do patrimônio nas diversas escalas de governo. Na quarta, o Texto, ou, a própria companhia, e sua relação com a cidade de Bauru, sob análise sociofísica e tempo-espacial. Na quinta, buscamos as correspondências sociosimbólicas articuladas a congruências sociofísicas entre grupos humanos, atividades, cenário e significação, por considerar que através destes se pode compreender os componentes genéticos da lógica do lugar. Finalmente, na sexta etapa serão definidas as diretrizes urbanísticas para salvaguarda e valorização do patrimônio da CEFNOB, e sua reintegração ao contexto urbano. Palavras-chaves: Patrimônio industrial ferroviário; Lugar, cultura e memória; Urbanismo ambiental; Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. viii ‘ RESUMÉN El ferrocarril, reconocida como patrimonio cultural por la población de Bauru está protegido legalmente por el CODEPAC y en estudio de protección legal por el CONDEPHAAT (consejos municipales y estatales, respectivamente), sin políticas, programa s y proyectos públicos de salvaguardia de su patrimonio, permaneciendo sus edificaciones degradadas y abandonadas. En el Caso de Estudio, el complejo de la Compañía Estrada de Ferro Noroeste do Brasil – CEFNOB, se encuentra exactamente de esta manera, y así mismo, sigue siendo uno de los mejores y más completo ejemplo de un patio ferrocarrilero de América Latina. Han sido desarrolladas muchas investigaciones al respecto de la temática ferroviaria, sobretodo de la Noroeste, sin embargo, las diversas informaciones y los resultados producidos aún no han sido recogidos, analizados e interpretados en conjunto. Con el propósito de comenzar a pensar en una forma de reintegrar el complejo industrial ferrocarrilero en el escenario urbano, esta investigación tiene como objetivo probar si el reconocimiento del código genético de la equidad de su articulaciones socioeconómicas, simbólica, la identidad y la memoria, es necesario intervenir en el complejo ferroviario de Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (EFNOB), y proponer directrices urbanas sostenibles para la reintegración del complejo en la ciudad, vinculando su potencial simbólico, económico, identidad y memoria. La metodología consta de seis etapas, siendo la primera una aproximación teórica sobre: el patrimonio industrial ferrocarrilero; lugar, cultura y memoria; métodos de intervención; y, urbanismo ambiental. En la segunda etapa se presenta el método, un nuevo urbanismo que comprende el espacio urbano a través de la relación cronotopica - o sociofísica - del contexto con el texto. La tercera muestra el Contexto del ferrocarril en Brasil, incluyendo su importancia en la evolución urbana, y en el proceso histórico, social y cultural de las ciudades en el país; así como el análisis de la ideología aportada, las políticas públicas que permitieron su creación, aquellas que fueron responsables de su sustitución, y, finalmente, sobre la gestión y los gestores del patrimonio en las diferentes escalas de gobierno. El cuarto, el Texto o la propia compañía y su relación con la ciudad de Bauru, sobre un análisis sociofísico y tiempo espacial. En la quinta etapa, buscamos las articulaciones sociosimbólicas, o correspondencias entre ambiente social y ambiente simbólico articulando las congruencias sociofísicas entre los grupos humanos, actividades, paisajes y significación, teniendo en cuenta que a través de estos se puede entender los componentes genéticos del lugar. Por último, en la sexta etapa serán definidas las directrices de planificación urbana para la protección y mejora del patrimonio de CEFNOB, y su reinserción en el contexto urbano. Palabras claves: Patrimonio industrial ferrocarrilero; Lugar, cultura y memoria; Urbanismo ambiental; Compañía Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. ix ‘ Sumário INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15 1. ABORDAGEM TEÓRICA ...................................................................................... 23 1.1. Patrimônio industrial ferroviário .................................................................. 23 1.2. Lugar, cultura e memória .............................................................................. 25 1.3. Métodos de intervenção................................................................................ 29 1.4. Urbanismo ambiental .................................................................................... 36 2. URBANISMO ALTERNATIVO COMO MÉTODO ................................................... 47 3. CONTEXTO DA ESTRADA DE FERRO NO BRASIL............................................ 55 3.1. Políticas públicas de incentivo à criação das ferrovias ............................. 55 3.2. Administração taylorista na Companhia de Estrada de Ferro Noroeste ... 59 3.3. Políticas públicas de incentivo à criação das rodovias .............................. 64 3.4. Gestão e gestores do patrimônio ................................................................. 72 4. EFNOB E A CIDADE ............................................................................................. 87 4.1. Antes da ferrovia: cidade acampamento ..................................................... 87 4.2. Como a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil transformou Bauru ............. 89 4.3. Extinção e degradação................................................................................ 113 4.4. Sem os trens, mas com seu legado ........................................................... 119 5. PERSONAGENS, ATIVIDADES, CENÁRIO E SIGNIFICAÇÃO .......................... 139 5.1. Memória ferroviária ..................................................................................... 139 5.2. E agora, José? [...] um sentimento comum ............................................... 146 6. DIRETRIZES URBANÍSTICAS ............................................................................ 154 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 164 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 168 x ‘ LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. Foto aérea do complexo CEFNOB em meio ao contexto urbano _____________________ 17 Figura 2. Contexto modificando o texto, e vice-versa _____________________________________ 26 Figura 3. Brasília e seu urbanismo monumental que não privilegia as pessoas _________________ 41 Figura 4. Copenhague e sua relação com as pessoas _____________________________________ 42 Figura 5. VLT sobre relvado, infraestrutura verde urbana integrada em Düsseldorf, Alemanha ____ 44 Figura 6. Mapa. Bauru, centro-oeste paulista, Brasil ______________________________________ 47 Figura 7. Relação sociofísico-simbólica do lugar _________________________________________ 49 Figura 8. Delineamento da pesquisa __________________________________________________ 51 Figura 9. Inauguração da Estrada de Ferro Mauá ________________________________________ 56 Figura 10. Mapa. EFNOB na Transcontinental Santos-Arica. Do Atlântico ao Pacífico ____________ 58 Figura 11. Membros do Conselho da NOB, 192? _________________________________________ 61 Figura 12. Organograma e fluxograma no início da CEFNOB _______________________________ 62 Figura 13. Mapa. Edifícios da EFNOB em Bauru _________________________________________ 63 Figura 14. Mensagem aos ferroviários, publicada em jornal de grande circulação ______________ 68 Figura 15. Macrozoneamento de Bauru, com Zona de Interesse Histórico-cultural ______________ 75 Figura 16. D.O. publicação da decisão de tombamento pelo Conselho em 24/06/2009 ___________ 77 Figura 17. Mapa. Proposta de tombamento da ambiência do Complexo Ferroviário de Bauru _____ 79 Figura 18. Ofícios UPPH/GT – 992/2009 e GT/UPPH – 22/2012 _____________________________ 80 Figura 19. Estação Sorocabana e casas de turma (ao fundo), nos limites da ambiência proposta pelo CONDEPHAAT ____________________________________________________________________ 81 Figura 20. Rotunda da EFNOB, situação atual do complexo ________________________________ 84 Figura 21. Vista geral de Bauru em 1906 _______________________________________________ 88 Figura 22. Evolução ferroviária de SP __________________________________________________ 91 Figura 23. Antigas oficinas da NOB, que foram substituídas e demolidas ______________________ 93 Figura 24. Mapa. Expansão urbana de Bauru, entre 1919 e 1930____________________________ 94 Figura 25. Vila Noroeste com suas variadas tipologias; 1-Casa do Superintendente, 2- Casas dos Engenheiros, 3-Casas dos Funcionários Administrativos ___________________________ 95 Figura 26. Bauru após chegada da ferrovia, Rua Batista de Carvalho em 1910 _________________ 96 Figura 27. Mapa. Conformação urbana de Bauru em 1911, com ferrovias _____________________ 97 Figura 28. Mapa. Alteração do eixo comercial da cidade de Bauru ___________________________ 98 Figura 29. Primeira estação da Noroeste _______________________________________________ 99 Figura 30. Projeto da Estação Ferroviária,1934 _________________________________________ 103 Figura 31. Estação Ferroviária inaugurada em 1939 _____________________________________ 103 xi ‘ Figura 32. Oficinas Gerais de Bauru, inauguradas em 1921 _______________________________ 105 Figura 33. Fachada do Centro de Formação Profissional "Engenheiro Aurélio Ibiapina" _________ 107 Figura 34. Vila da Noroeste, tipologias _______________________________________________ 108 Figura 35. Vila Dutra, loteamento e implantação das casas _______________________________ 109 Figura 36. Mapa. Vila Dutra, distância aproximada ao complexo ferroviário __________________ 110 Figura 37. Calçamento das ruas com paralelepípedos na cidade de Bauru, década de 60 ________ 111 Figura 38. Mapa. Expansão urbana de Bauru, entre 1942 e 2016___________________________ 112 Figura 39. Lateral da Estação Ferroviária da EFNOB _____________________________________ 113 Figura 40. Transposição da ferrovia por pedestres ______________________________________ 114 Figura 41. Área central, esvaziamento do centro e edifício tombado abandonado _____________ 115 Figura 42. Situação atual do patrimônio (fachada das Oficinas Gerais) ______________________ 116 Figura 43. Situação atual do complexo ferroviário ______________________________________ 116 Figura 44. Moradias no entorno do complexo, Vila Falcão ________________________________ 118 Figura 45. Evolução urbana por décadas, 1910 – 2010 ___________________________________ 120 Figura 46. Mapa. Principais barreiras físicas: rodovias, ferrovias e bacias hidrográficas _________ 121 Figura 47. Mapa. Transposições férreas de Bauru _______________________________________ 122 Figura 48. Mapa. Travessias de linha férrea em nível ____________________________________ 123 Figura 49. Travessias em nível na cidade de Bauru ______________________________________ 124 Figura 50. Rede de transporte coletivo urbano em Bauru _________________________________ 126 Figura 51. Escalas de abrangência espacial de cada ponto na cidade________________________ 127 Figura 52. Mapa. Base IBGE, com eixos das ferrovias ____________________________________ 127 Figura 53. Mapa. Adensamento populacional, Censo IBGE 2010 ___________________________ 128 Figura 54. Mapa. Usos do solo na cidade de Bauru em 2016 (comércio em rosa, serviço em vinho, industrial em amarelo) ____________________________________________________________ 129 Figura 55. Mapa. Corredores comerciais e de serviços na cidade de Bauru, 2016 ______________ 130 Figura 56. Mapa. Concentração de comércio e serviços na cidade de Bauru __________________ 131 Figura 57. Mapa. Concentração das áreas industriais na cidade de Bauru ____________________ 132 Figura 58. Mapa. Equipamentos educacionais na cidade de Bauru _________________________ 133 Figura 59. Setores de Planejamento de Bauru __________________________________________ 134 Figura 60. Mapa 05 do PDP. “Áreas de Interesse Ambiental” ______________________________ 135 Figura 61. Mapa. Pátio ferroviário desempenhando papel de conector de parques lineares na cidade de Bauru _________________________________________________________________________ 136 Figura 62. Mapa. Centros urbanos de Zurique, Pittsburgh, Copenhague e Bauru _______________ 137 Figura 63. Mapa. Sobreposição de informações dos usos do solo: comércio, serviços, indústrias e equipamentos educacionais ________________________________________________________ 138 xii ‘ Figura 64. Situação atual do telhado das oficinas da EFNOB ______________________________ 139 Figura 65. Trabalhadores da EFNOB, nos trilhos e nas oficinas _____________________________ 141 Figura 66. Quantidade de imóveis residenciais da Rede em Bauru __________________________ 143 Figura 67. Posto Médico da NOB e Hospital de Base em construção ________________________ 144 Figura 68. Consultório dentário da NOB ______________________________________________ 145 Figura 69. Avenida Rodrigues Alves em 19?? ___________________________________________ 146 Figura 70. Estação ferroviária da EFNOB encoberta pelas árvores da praça Machado de Melo ___ 147 Figura 71. Gráfico. Tempo de residência dos entrevistados em Bauru _______________________ 148 Figura 72. Gráfico. Categoria das respostas à pergunta: __________________________________ 150 Figura 73. Gráfico. Justificativa da importância de se preservar o patrimônio _________________ 151 Figura 74. Gráfico. Expectativas para o complexo ferroviário ______________________________ 151 Figura 75. Trilhos (VLT) e permeabilidade de fluxo de pedestres em Düsseldorf, Alemanha ______ 159 Figura 76. Mapa. Proposta de áreas verdes livres incorporadas aos trilhos e vazios urbanos da cidade de Bauru _______________________________________________________________________ 160 Figura 77. Mapa. Proposta urbanística ao longo dos eixos ferroviários ______________________ 163 Figura 78. Desproporcionalidade na relação EFNOB x Bauru ______________________________ 165 xiii ‘ LISTA DE TABELAS Tabela 1. Crescimento populacional de Bauru entre 1905 e 1940 ......................................................94 Tabela 2. Cursos oferecidos no Centro de Formação Professional da NOB .......................................106 Tabela 3. Casas da Vila Noroeste em Bauru .....................................................................................108 Tabela 4. Crescimento populacional de Bauru entre 1942 e 1991 ....................................................112 Tabela 5. Estado de conservação e preservação dos edifícios da EFNOB ..........................................118 Tabela 6. Crescimento populacional de Bauru entre 2000 e 2015 ....................................................119 Tabela 7. Fluxo diário de veículos nas travessias em nível ................................................................124 Tabela 8. Categorias criadas para sistematização das respostas .....................................................149 Tabela 9. Propostas da Conferência Municipal relacionadas ao complexo ferroviário, 2016 ............152 Tabela 10. Ordenamento das propostas conforme o método ...........................................................156 Tabela 11. Resumo das propostas urbanísticas que deverão orientar projeto de intervenção no patrimônio industrial da CEFNOB ....................................................................................................162 xiv ‘ SIGLAS E ABREVIAÇÕES ALL – América Latina Logística S.A. – ALL Holding; ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres; CEFNOB – Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil; CODEPAC – Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Bauru; CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo; CNM – Confederação Nacional dos Municípios; DNIT – Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre; EFNOB – Estrada de Ferro Noroeste do Brasil; IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; MPF – Ministério Público Federal; NOB – Noroeste do Brasil; NUPHIS – Núcleo de Pesquisa e História da USC, Universidade do Sagrado Coração ONU – Organização das Nações Unidas; PMB – Prefeitura Municipal de Bauru; SEMMA – Secretaria Municipal do Meio Ambiente; SEPLAN – Secretaria Municipal de Planejamento; xv ‘ E é assim que chegamos ao final de nada senão ao princípio de um novo urbanismo, no qual profissão, investigação e educação se unem em uma mesma ‘arquigenética’ a serviço da sociedade. Como ocorre com os hospitais no campo da medicina, que é a união entre a educação, a prática profissional capaz de curar e a investigação paralela dos laboratórios, este novo urbanismo deve nos curar das patologias produzidas pelo mal urbanismo, com um pé em cada um desses âmbitos e com fidelidade a saúde integral de seus habitantes (Josep Muntañola, in ZÁRATE, 2015, prólogo, tradução e destaque da autora). 15 ‘ INTRODUÇÃO Os pátios industriais de diversas cidades no Brasil estão intimamente relacionados à existência de linhas férreas que cortaram o país e que foram por muito tempo a melhor maneira de escoamento de produção agrícola sentido portos, para exportação desses produtos, e, também, mais eficiente modo de transporte de passageiros. Responsável pelo status de modernidade, os trilhos sempre passavam por áreas privilegiadas cedidas pelos grandes fazendeiros. Caso assim não fosse, as ferrovias tinham assegurado por lei o direito de desapropriação, e passavam por onde lhe conviesse sem se importar com as cidades. O que não fazia muita diferença, já que na verdade, o que ocorreu foi que as construções se voltaram para os trilhos em reverência, e as estações se tornaram o principal acesso às cidades. Durante muito tempo a presença da ferrovia em uma cidade influenciava o seu crescimento espacial e a sua consolidação urbana. Em Bauru, por exemplo, foi a chegada dos trilhos no início do século XX que fez com que as construções de tijolos começassem a substituir a cidade “acampamento” que existia anteriormente. Temendo prejuízos, os latifundiários não investiam em solo urbano antes da ferrovia se estabelecer definitivamente (GHIRARDELLO, 1992, p. 73). Embora houvessem decretos estaduais que assegurassem a chegada da ferrovia à cidade, sua efetiva implantação sempre dependia de fatores econômicos e políticos, como tudo no país, desde sempre. Houveram políticas públicas que protagonizavam a ferrovia, ocasionando o auge e consolidação das cidades. No entanto, essencialmente a partir da década de 1950, foram propostas novas políticas públicas que evidenciavam o modelo rodoviarista, e que desencadearam um progressivo declínio e abandono dos trilhos. O resultado é visível, e essas áreas urbanas industriais de outrora, desativadas ou subutilizadas, estão localizadas na maioria das vezes em regiões estratégicas das cidades, e não estão mais “invisíveis” por sua dificuldade de posse e intervenção. Muito pelo contrário, seu evidente potencial fundiário e econômico para desenvolvimento de grandes projetos urbanos desperta interesse tanto no setor privado quanto aos gestores públicos, que vislumbram nessas extensas áreas um conjunto de vantagens para exploração de novos empreendimentos. 16 ‘ As cidades cresceram e se desenvolveram às margens desses grandes pátios industriais, constituindo um verdadeiro contorno de infraestrutura, onde as pessoas transitam e se locomovem de diversas formas, exceto permeando essas áreas, que se configuraram como barreiras urbanas nos deslocamentos diários. As transposições foram sendo criadas à medida que a cidade expandia, e o modelo de desenvolvimento rodoviarista, pautado no automóvel individual, não nos oferece outra alternativa senão o de contorno à essas estruturas até que encontremos essas poucas transposições – muitas delas em nível – para os deslocamentos entre bairros vizinhos. Além da barreira física, há a questão da apropriação indevida dessas áreas. A falta de cidadania, da noção de compartilhamento de ruas, somada a falta do entendimento da importância da manutenção do patrimônio, e, inclusive a falta de reconhecimento de identidade própria no patrimônio são agravantes no processo que abre espaço para a gestão social das cidades. Insensíveis a esse patrimônio e induzidas à crença de que a incorporação dessas áreas em formato de novos parcelamentos (com muita infraestrutura viária) resolveriam todos os problemas, a sociedade civil deposita suas esperanças nas mãos dos grandes empreendedores, que meramente se preocupam com o que possam lucrar com essas áreas. Portanto, apesar dos avanços sociais na gestão pública, da abertura para participação popular, essa é a população que cresceu recebendo toda sorte de informação sobre matemática, história, física, geografia do mundo..., mas nenhuma sobre o espaço em que vivem. A educação patrimonial não se justifica somente por razões morais e culturais, mas pelo fato de que, se não são educados, depois quando crescem, não sabem participar. Estamos lidando com uma população que nasceu após a extinção da ferrovia, e que desconhece sua identidade cultural, sendo que somente o lugar permite ao sujeito se situar na história. Já existe uma concentração de esforços dos órgãos gestores e Conselhos, no sentido de conscientizar a população sobre a compreensão do patrimônio, infelizmente, sem que resultem necessariamente na boa gestão e conservação desse bem. Sem a colaboração da sociedade civil, resta aos técnicos a produção de uma arquitetura nova, mais respeitosa, que faça a interpretação de patrimônio vivo e incorpore os elementos do passado de maneira exclusiva, inerente ao próprio bem a ser restaurado/valorizado. 17 ‘ A esses bens de interesse cultural, os projetos deveriam considerar os valores memoriais e simbólicos de interesse para a coletividade como um todo, de maneira a assegurar a transmissão “para as gerações futuras, através de intervenções pautadas nos aspectos documentais, formais e materiais, respeitando-os da maneira mais ampla possível” (KÜHL, 2011, p. 269). A título de sustentabilidade, a transmissão desses valores documentais deve, ainda, incorporar a noção de herança de patrimônio igual ou superior ao existente para as próximas gerações – referenciando a preservação de recursos naturais. A escala humana deve ser preservada, e mais, estimulada, para que as pessoas sejam mais importantes no momento do projeto, e para que seja promovida a integração com meio ambiente e equipamentos. O bem de interesse cultural objeto desta pesquisa é a área do complexo industrial ferroviário em Bauru (figura 1), que está atualmente sob concessão da operadora ferroviária América Latina Logística (ALL), e, apesar de estar em processo de Tombamento – ou por causa dele – encontra-se em completo estado de abandono. Os edifícios estão deteriorando rapidamente e não recebem nenhum tratamento preventivo. Figura 1. Foto aérea do complexo CEFNOB em meio ao contexto urbano Fonte: Instituto Soma (2011) A Noroeste do Brasil “se entrelaçou de tal forma à comunidade, que falar em Bauru e Noroeste quase significava o mesmo” (GHIRARDELLO, 1992, p. 163). A 18 ‘ identidade da cidade está claramente atrelada à ferrovia... ‘o amargo é palpável, e, a intervenção urge...’ A situação dos bens está de maneira que, embora possa parecer inapropriado, o termo “genocídio” serve tal qual luva: extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso... e, nos atrevemos a questionar... por que não “a cultura e a identidade de um povo” [?]. “Velado”, em virtude à morte lenta e agonizante ao qual o patrimônio foi sentenciado, de maneira dissimulada e disfarçada, desde as políticas públicas que privilegiaram o sistema de transporte rodoviário. Para tentar impedir que esses textos sejam apagados é que iniciamos a busca de uma gestão de preservação. Atualmente, um projeto de requalificação poderia ser realizado sem o devido conhecimento da área, mas por meio deste trabalho, defendemos que não deveria. “Questões como o que e por que conservar, até que ponto é lícito intervir, o controle de áreas envoltórias, usos adequados, exploração econômica e a dialética entre preservação e desenvolvimento” (KÜHL, 2011, p. 127) só serão amplamente compreendidas através do conhecimento da relação do contexto (urbano, político, econômico, social, cultural) com o texto (complexo ferroviário), a que essa dissertação se propõe a realizar. A maior dificuldade está em integrar teoria e prática no tratamento desses artefatos industriais, além de evitar – mesmo no campo das ideias – a influência dos interesses econômicos, políticos e setoriais. Sobre a ferrovia, vários estudos multidisciplinares foram realizados como: a análise do desenvolvimento histórico da cidade de Bauru, contando a história da ferrovia e sua chegada na cidade realizado por Nilson Ghirardello (1992, 2002); e as formações urbanas da Noroeste Paulista (NEVES, 1958; GHIRARDELLO, 2002; AZEVEDO, 1950). Com relação a expansão cafeeira e a ferrovia estão os trabalhos de Silva (1985) e os publicados pela Revista NOB (1960). A respeito das ‘Vilas Ferroviárias no Brasil’, os modos de habitação e principalmente a forma como os preceitos industriais interferem na lógica de urbanização das cidades, estão as pesquisas desenvolvidas por Elisa Finger (2009, 2013). Ainda o projeto ‘Ferrovia para Todos’ desenvolvido desde 1991 pelos funcionários do setor público da Prefeitura Municipal de Bauru, a sociedade civil e empresas privadas, visava preservar a questão do patrimônio histórico-cultural e a 19 ‘ história ferroviária no município, através de museus, restaurações, e já produziu publicações e organização de documentos que serão utilizados na pesquisa. É muito valiosa a contribuição do projeto “Nos trilhos da memória”, que teve como produto dois volumes com relatos orais dos funcionários das ferrovias que operaram na cidade, sob coordenação de Célio José Losnak (2003 e 2004) e publicação em parceria com a Prefeitura Municipal de Bauru/Secretaria de Cultura. Há também um grande inventário sobre a estrada de ferro Noroeste do Brasil desenvolvido por docentes do Grupo de Arquitetura: Teoria e Projetos (GA), do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP/Bauru, professoras Cláudio Silveira Amaral, Paulo Masseran, Rosío Fernández Baca Salcedo, Samir H. Tenório Gomes, coordenado pelo professor Dr. Nilson Ghirardello, em 2012, e, desenvolvido com o propósito de identificar, selecionar e analisar o patrimônio cultural pertencente ao complexo industrial ferroviário. Além destes, importantes trabalhos realizados por Kühl (2011) e Rufinoni (2013) sobre a preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização, e, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) sobre o estudo de tombamento do Complexo Ferroviário Noroeste do Brasil em Bauru, entre outros. Contamos também com a contribuição de Jan Gehl (2015), Marcelo Zárate (2015) e Carlos Leite (2012) para compreensão e aplicação dos novos conceitos urbanísticos ao patrimônio industrial, com objetivo único de produzir uma cidade para pessoas. Apesar do alto nível qualitativo dessas pesquisas, dos muitos dados e informações coletadas, não há nenhuma proposta de requalificação para o bem e sua reintegração à cidade. Perguntas como: razões que determinaram a configuração da CEFNOB [?], organização espacial do complexo ferroviário em Bauru [?], o porquê das tipologias diversas na configuração da Vila Noroeste [?], qual é a relação da EFNOB no processo de configuração histórica do território de Bauru [?], quais os elementos de caráter arquitetônico aportados pela CEFNOB [?], a importância da CEFNOB no desenvolvimento social, econômico e cultural de Bauru [?], principais potencialidades sociais, econômicas e culturais das estruturas físicas da EFNOB nas expectativas, aspirações, desejos da população [?], quais são os valores simbólicos atribuídos a EFNOB e as expectativas, desejos, para sua salvaguarda [?], qual a relação sociofísica dos espaços arquitetônicos [?], que fatores levaram a degradação 20 ‘ do complexo ferroviário [?], quais são as forças motoras que determinam a identidade, a simbologia e a memória coletiva [?]. ‘O que fazer’ e ‘como fazer para realizar a salvaguarda do patrimônio da EFNOB, com sua reintegração ao cenário urbano’ [?] ainda não foram respondidas, e a compatibilização das questões teóricas e práticas, resultando em diretrizes de ações e projetos, tampouco estabelecida. Nesse sentido, a presente pesquisa tem por objetivo testar se o reconhecimento do código genético do patrimônio, a partir de suas articulações socioeconômicas, simbólicas, de identidade e memória, é necessário para intervenção no complexo ferroviário da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (EFNOB); e, propor diretrizes urbanas sustentáveis para sua reintegração ao cenário urbano. O intuito das diretrizes é a preservação do complexo como ato de cultura, através da identificação de seu valor histórico, artístico, memorial e simbólico, e, a salvaguarda do patrimônio arquitetônico como expressão materializada das manifestações econômicas, sociais, culturais da sociedade, num determinado período histórico. Além da contribuição no estudo do patrimônio, a investigação justifica-se pelo fato de pesquisar o maior entroncamento férreo da América do Sul, considerado o melhor e mais completo exemplar existente no Brasil. Para isso, traçamos alguns objetivos específicos:  Compreender as motivações políticas, econômicas, sociais e ideológicas que possibilitaram a criação da CEFNOB;  Compreender a intenção/diretriz de ocupação e real organização espacial das edificações configuradas pela CEFNOB, suas potencialidades físicas, identidades e eixos estruturantes em relação à cidade;  Avaliar a importância da companhia no processo de formação e expansão da cidade; bem como no desenvolvimento socioeconômico e cultural de Bauru;  Analisar a qualidade do ambiente construído (trabalho, residência, lazer, saúde, educação) da companhia através da percepção dos antigos trabalhadores;  Identificar as dimensões física, social e simbólica (memória do lugar) e a Identidade Coletiva do patrimônio; 21 ‘  Analisar as principais valorizações associadas a ferrovia a partir dos grupos e atores sociais que manifestaram suas impressões, desejos e aspirações de desenvolvimento social e melhora da qualidade de vida em Bauru e em seu território;  Analisar as principais representações sociais associadas a realidade da ferrovia como fato físico, social e econômico de Bauru;  Identificar os principais simbolismos associados a companhia como fato sociofísico;  Avaliar as causas da degradação do complexo em Bauru;  Analisar os instrumentos e os processos de valoração e tutela do patrimônio;  Analisar as principais potencialidades socioeconômicas e culturais da ferrovia junto à percepção de diversos atores e grupos sociais da comunidade, quanto aos seus desejos e aspirações, na busca de um cenário de desenvolvimento social; A pesquisa está organizada em seis capítulos. O primeiro capítulo compreende a abordagem teórica sobre o patrimônio industrial ferroviário; lugar, cultura e memória; métodos de intervenção; e, urbanismo ambiental. O segundo capítulo apresenta o método, um novo urbanismo que compreende o espaço urbano através da relação cronotopica – ou sociofísica – do contexto com o texto, uma vez que o cronotopo possibilita análise da estrutura da configuração de um lugar, para ver como a mesma se modificou (e modifica) através do tempo. O terceiro capítulo, o Contexto da estrada de ferro no Brasil, incluindo a importância da ferrovia na evolução urbana e no processo histórico, social e cultural das cidades do interior do país; bem como análise da ideologia aportada, as políticas públicas que possibilitaram sua criação, as que foram responsáveis por sua gradativa substituição, e, finalmente, sobre gestão e gestores do patrimônio nas diversas escalas de governo. O quarto capítulo: o Texto, ou, o Complexo Ferroviário da Noroeste do Brasil na sua relação com a cidade de Bauru, sob a análise sociofísica e tempo-espacial. No quinto capítulo buscaremos as correspondências sociosimbólicas articuladas a congruências sociofísicas entre grupos humanos, atividades, cenário e significação, por considerar que através destes se pode compreender os componentes genéticos da lógica do 22 ‘ lugar. Finalmente, no sexto capítulo serão definidas as diretrizes para a salvaguarda e valorização do patrimônio da CEFNOB, e sua reintegração ao contexto urbano. 23 ‘ 1. ABORDAGEM TEÓRICA A intenção da abordagem teórica é uma contextualização sobre a aplicação dos conceitos básicos que fundamentarão o trabalho. Os conceitos adotados embasarão esse percurso, e, principalmente, justificarão teórica e filosoficamente a essência do texto final desta pesquisa. Os temas abordados são: patrimônio industrial ferroviário; lugar, cultura e memória; métodos de intervenção; e, urbanismo sustentável. 1.1. Patrimônio industrial ferroviário Existe uma grande variedade de definições e conceitos, os quais serão abordados enquanto intrínsecos ao recorte do presente trabalho, o pátio industrial ferroviário da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil – CEFNOB. Mesmo que delimitado, o objeto não difere de tantos outros monumentos industriais que existem no país e no mundo. Dentre os conceitos definidos nas Cartas Patrimoniais e documentos do IPHAN, conjunto histórico ou tradicional é todo agrupamento de construções e de espaços, inclusive os sítios arqueológicos e paleontológicos, que constituam um assentamento humano, tanto no meio urbano quanto no rural e cuja coesão e valor são reconhecidos do ponto de vista arqueológico, arquitetônico, pré-histórico, histórico, estético ou sócio cultural (UNESCO, 1976 apud IPHAN, 2004, p. 219). Representado por uma variedade de escalas, os conjuntos históricos podem ser desde sítios pré-históricos, as cidades históricas, os bairros antigos, as aldeias, lugarejos e conjuntos monumentais homogêneos, mas trataremos especificamente do patrimônio arquitetônico e sua ambiência. Patrimônio arquitetônico “é um capital espiritual, cultural, econômico e social cujos valores são insubstituíveis” (CARTA EUROPÉIA, 1975 apud IPHAN, 2004, p. 213). Junto ao patrimônio arquitetônico está sua ambiência, que deve ser entendida como “o quadro natural ou construído que influi na percepção estática ou dinâmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata no espaço, ou por laços sociais, econômicos ou culturais” (UNESCO, 1976 apud IPHAN, 2004, p. 220). 24 ‘ No período pós-guerra, em virtude da destruição em massa, e também pelo crescimento econômico que visava lucro, os elementos significativos de nossa cultura foram sendo apagados, ameaçados sem que tivéssemos tempo de compreendê-los. “E é justamente no âmbito dessa problemática que se evidencia a valorização de um importante grupo de artefatos até então deixados à sombra de qualquer representatividade cultural: os edifícios e sítios industriais” (RUFINONI, 2013, p. 146). O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de tratamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação (TICCIH, 2003, p. 3). Esses vestígios e estruturas ganharam notoriedade depois de 1960, quando diversos exemplares da arquitetura da industrialização foram destruídos, e, eles continuam sob “constante ameaça pela sua obsolescência funcional, pelo crescimento das cidades e pela pressão especulativa imobiliária” (KÜHL, 2011, p. 38). Trata-se de uma arquitetura peculiar, tanto quanto as próprias relações sociais, originadas e consolidadas em torno da atividade produtiva. Grandiosos edifícios estabelecem diálogo com entorno, com as residências operárias, com as ruas, onde os aglomerados preexistentes se reordenavam funcionalmente em torno da atividade produtiva. Um olhar mais atento para as relações que as compõem permitia desvendar atributos estéticos e formais inesperados, promover novas perspectivas de abordagem sobre a história social e urbana, assim como compreender a atribuição de valor referencial pela população que as vivencia (RUFINONI, 2013, p. 148-149). Tanto pela importância documental quanto pela especificidade estética e figurativa, o grupo de artefatos que compõem um conjunto industrial engloba uma variada gama de tipologias e escalas, que vão desde as residências, fábricas, enfermarias, escolas, estações até ferrovias. Esses agrupamentos consolidam a noção de patrimônio industrial como “monumento coletivo”. Já não é tarefa fácil defender a preservação de sítios industriais de interesse cultural, uma vez que as características arquitetônicas do conjunto são pouco apreciadas. Além disso, em geral, esses sítios ocupam uma vasta área, que 25 ‘ além de dificultar apreensão do todo, ainda aguça interesse do mercado imobiliário por novas construções, o que dificulta qualquer ação de preservação. Apesar disso, foram muitas as discussões realizadas em busca da compreensão das especificidades materiais e imateriais do patrimônio urbano industrial. Os meios legais para sua proteção e tutela, todavia, ainda estão vinculados essencialmente ao tombamento, que por si só é incapaz de garantir a preservação de alguma área urbana. Dessa maneira, consideraremos a falta de uma normativa específica e princípios de atuação para esse tipo de restauro, e, as complexas questões que a preservação envolve. A reflexão se pretende avaliadora de conceitos, dos princípios de preservação; inédita na proposta de metodologia de abordagem do patrimônio industrial, e, sua maior contribuição está atrelada ao objeto de estudo, a CEFNOB em Bauru, que é considerado pelo CONDEPHAAT, o melhor e mais completo exemplar de entroncamento férreo existente no país. 1.2. Lugar, cultura e memória Muitas disciplinas estudam e definem o ‘lugar’. Praticamente todas as ciências podem, de uma maneira ou de outra, se relacionar com esse tema. Portanto, existe uma grande variabilidade de aspectos inerentes às atividades condicionadas pela variedade de lugares onde se desempenham essas atividades – relacionados à cultura. Que por sua vez, conduzem à uma variabilidade de entornos. Diante da impossibilidade de unificar e sintetizar saberes tão variados, o lugar serve, segundo Zárate (2001, p. 312), para articular disciplinas como o Urbanismo, Antropologia, Sociologia, Economia, Ecologia, Biologia, dentre outras. Nesse sentido, a Teoria Sociofísica de Muntañola (1996, 2000), de construção, reprodução, apropriação e significação do espaço pode oferecer suporte teórico mais específico no âmbito do Urbanismo. Suporte teórico que define o lugar como resultado de uma articulação complexa e indivisível entre os pares: habitar/falar, meio físico/meio social, figurar/conceituar. Segundo Muntañola (1996, p. 55) a relação habitar/falar produz os itinerários sociofísicos transmitidos oralmente por gerações, enquanto que a relação entre meio físico/meio social determina os eixos que atuam como linhas de força do 26 ‘ espaço físico e ordenam a hierarquia sociofísica, e, por último, a relação entre figurar/conceituar é a busca constante e inalcançável do equilíbrio entre inteligibilidade conceitual e figurativa do lugar. O conceito de lugar nos remete à inumeráveis ambientes produzidos por atividades desenvolvidas a partir de uma maneira própria de habitar de uma pessoa ou um grupo de pessoas, espaços como cenários e recurso de ação, comunicação e suporte de signos (ZÁRATE, 2010, p. 32). Segundo Muntañola (2002c, p. 29), a construção social e cultural somente pode ser favorecida quando se integra as capacidades: individual de projetar, e coletiva de representar um diálogo. Porque o lugar é sempre lugar de algo ou alguém; é relação dialógica, e, portanto, sociofísica. Dessa articulação, resulta que o entorno construído atua diretamente no comportamento humano, modificando-o e vice-versa. O entorno determina o comportamento humano, da mesma maneira que é modificado pelo comportamento (figura 2). Para o bom desenho, uma boa intervenção no ambiente construído, deve- se ter conhecimento das formas de interação entre as pessoas e o entorno. O arquiteto, como construtor de lugares, deve ter a capacidade de se colocar no lugar do outro, uma vez que toda obra deve ser conscientemente planejada considerando as forças coletivas e individuais. Figura 2. Contexto modificando o texto, e vice-versa Fonte: Rapoport (2009, p. 23) E, segundo Rapoport (2009, p. 18), não se pode admitir que qualquer intervenção seja necessariamente para melhor. Se os aspectos sociais, culturais e físicos não forem considerados em conjunto, certamente não o será. Essa grande variedade de lugares e comportamentos variam de acordo com a cultura, específica e inerente a seu próprio lugar. A cultura é uma ideia, um conceito, uma etiqueta que indica o que muitas pessoas pensam, acreditam, fazem e como o fazem. Compreende o conhecimento, a fé, a arte, as leis, a moral, os costumes e qualquer hábito ou habilidade adquirido pelo 27 ‘ homem membro da sociedade. E ainda, o modo de vida das pessoas, que inclui seus ideais, normas, regras, comportamentos habituais, etc. (RAPOPORT, 2009, p. 131- 132). E ela, a cultura, é importante porque permite distinguir os grupos de usuários, lugares e situações particulares e específicas. Define nossa espécie, ao mesmo tempo que nos separa, a posse de uma cultura nos torna humanos e define nossa espécie; no entanto, ao mesmo tempo, a cultura nos separa – por critérios de idioma, religião, hábitos alimentares, normas sociais e muitos outros aspectos específicos (MUNTAÑOLA, 2004, p. 65, tradução da autora). Os estilos de vida são a expressão mais concreta da cultura, com a qual arquitetos e urbanistas estão relativamente bem familiarizados. São amplamente utilizados pelo marketing, estudos de consumo, publicidade e vendas de habitação, e como resultado, um grande volume de informações sobre os grupos está disponível. A questão é que os estilos de vida conduzem a uma impressão de pessoas ideais, vivendo vidas ideais, com entornos também ideais (MUNTAÑOLA, 2004, p. 165-167). De ideal, no entanto, a vida e os lugares têm pouco. Entornos podem ser potencializadores ou inibidores de certos tipos de comportamento, processos cognitivos, estados de ânimo, etc. (RAPOPORT, 2009, p. 25). Ainda segundo o autor, ambientes inibidores têm muito mais efeito sobre as pessoas. O que nos chama a atenção para o efeito negativo que um ambiente degradado – como o complexo ferroviário industrial objeto de estudo – pode ter sobre a população. Não é que a cidade deva estar avessa à modernidade e avanços tecnológicos, tampouco que uma intervenção moderna não caiba no local, mas sim que o local deve receber uma intervenção como nenhuma outra, específica e adequada à sua cultura e história. A intervenção a ser realizada não caberá em nenhum outro lugar senão ao qual está projetada. É necessário conhecer a estrutura identitária local, compreender as regras produtoras e reprodutoras da cidade, ou seja, seu código genético territorial. E é preciso, ainda, muito critério para realização de alguma intervenção em paisagem histórica pertencente a esse patrimônio territorial, tanto em aspectos tangíveis (físico, construído e natural) como intangíveis (representações sociais, imaginário, simbolismos, valorações). Segundo Ruskin (2013, p. 83) a preservação dos edifícios dos tempos passados não é uma questão de simpatia. A verdade é que não temos o direito de 28 ‘ tocá-los, porque não nos pertence, mas sim em parte, àqueles que os construíram, e em parte, às próximas gerações. “Milhões, no futuro, podem lamentar ou serem prejudicados pela destruição de edifícios que nós dispensamos levianamente, em nome de nossa presente conveniência” (RUSKIN, 2013, p. 83). Ainda pior, o que muito se faz atualmente, são ações autodenominadas revitalização, recuperação, reabilitação, reciclagem e muitos outros ‘re’, mas que se colocam, antes de tudo, como atos de deturpação de documentos históricos. Isso tem sim um nome, e é vandalismo. Transformar ou destruir de forma indiscriminada e ilegítima testemunhos expressivos da operosidade humana é um ato de barbárie (KÜHL, 2011, p. 270). Quando a autora fala vandalismo, barbárie [...], não está se referindo somente no ato em si de intervenção no documento histórico, mas no fato de a intervenção destruir os registros de memória individual e coletiva do bem. Porque, afinal de contas, “a Arquitetura deve ser considerada por nós com a maior seriedade. Nós podemos viver sem ela, e orar sem ela, mas não podemos rememorar sem ela” (RUSKIN, 2013, p. 54). Como o valor cultural reconhecido pela população pode entrar em diálogo com a contemporaneidade? De maneira simples, o Patrimônio, antes de tudo, deve ser considerado VIVO. A transformação deve dar manutenção na sua identidade cultural. A reabilitação, ou qualquer que seja o nome, deve considerar os aspectos do passado, e incorporar elementos de maneira exclusiva – respeitando a memória que dá significado ao patrimônio. A memória, como construção social, é formação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional. [...] é operação ideológica, processo psicossocial de representação de si próprio, que reorganiza simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagens e relações, pelas legitimações que produz (MENESES, 1992, p. 22). E já não é mais possível que as pessoas vivam sem espaço público, sem interação. A riqueza cultural de uma população segue com a riqueza econômica. O aspecto ambiental e social do patrimônio é tão integrado, tão político, que sua manutenção – e em consequência, a manutenção da memória coletiva – é uma responsabilidade de todos. 29 ‘ 1.3. Métodos de intervenção Diante da complexidade do objeto de estudo e do fortalecimento recente das questões da teoria de restauro – concepções sendo desenvolvidas desde o início do século XX, serão realizadas algumas considerações e apontamentos desse processo de maturação no campo do restauro. O conhecimento da área e de seus elementos constitutivos, das motivações de sua criação, passando pelas dinâmicas socioculturais vivenciadas, dos referenciais significativos – memória e identidade do espaço – não são suficientes para alcançar o objetivo deste trabalho, caso não sejam considerados os instrumentos basilares do restauro, somado à gestão das políticas das transformações urbanas. Portanto, para que seja possível uma reflexão crítica, a própria restauração deve ser entendida como um ato crítico que respeita as obras e suas transformações, em todos seus aspectos memoriais e simbólicos, afastando-se do superado imobilismo que congela o monumento e ignora a dinâmica urbana (KÜHL, 2011, p. 278). Analisaremos as “interpolações” do próprio conceito, partindo do restauro estilístico, além de outras importantes e atuais proposições de Viollet-le-Duc, e de seu antitético John Ruskin. Uma breve citação de Camillo Boito, e mais de quem consolidou suas ideias – do restauro científico ou, mais apropriadamente, restauro filológico, Gustavo Giovannoni, e, finalmente, a contribuição mais recente de Cesare Brandi. Todas essas teorias são as que ainda influenciam as atuais vertentes de intervenção sobre os bens culturais. * * * As intervenções sobre os bens adquiriram status de ações culturais a partir do final do século XVIII. O que era realizado antes, apesar da intenção de valoração e estudo, acabava por destruir o bem: eram apenas substituições. No entanto, somente ao longo do século XIX é que surgem duas denominadas e opostas vertentes de atuação: Viollet-Le-Duc e seus refazimentos em estilo, e John Ruskin com sua visão mais conservadora. O francês Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879) foi indicado em 1840 para sua primeira atuação no restauro da Igreja de Vézelay e seis anos depois já era reconhecido como grande especialista da restauração. A sua obra teórica toma 30 ‘ forma depois da atuação, dando coerência ao seu discurso da necessidade de prática em canteiros de obras para que se iniciasse um restauro. Seus textos influenciaram a formação de diversos profissionais que trabalhavam na restauração. Desenvolveu, paralelamente à suas obras de restauro, trabalhos para a Comissão de Monumentos Históricos, e a publicação de análises sobre as formas de construir, apresentando reflexões sobre a racionalidade, a adequação de materiais/formas/funções e estruturas, e foram propostos novos caminhos para a arquitetura do período (VIOLLET- LE-DUC, 2006, p. 17). Defendia que “restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento” (VIOLLET-LE-DUC, 2006, p. 29). O restauro estilístico desejava “alcançar uma suposta unidade ideal inerente a toda obra arquitetônica” (RUFINONI, 2013, p. 41) justificando para seu fim, refazimentos, completamentos ou ainda “melhoramentos” com supressão de partes consideradas dissonantes no conjunto da obra. Para que possamos melhor compreender, é importante ressaltar que Viollet-Le-Duc viveu em uma época onde se construía monumentos com fragmentos provenientes de diversos monumentos anteriores, o que afirmava ser “um ato de vandalismo, uma pilhagem de bárbaros” (VIOLLET-LE-DUC, 2006, p. 31). O resultado, indivíduos com partes de épocas e técnicas construtivas variadas, construídos por um tempo demasiado longo, dificultava a criação de um padrão técnico de intervenção no restauro. A tomada de decisão ficava por conta do artista, que poderia restaurar as partes primitivas, ou as modificadas, optando por estabelecer unidade com uma das modificações, ou ainda agir em razão de circunstâncias particulares. Quando se admitia a existência desses acréscimos realizados sem crítica, havia “que se considerar restituir ao edifício a sua unidade” (VIOLLET-LE-DUC, 2006, p. 50). Como resultado das intervenções estilísticas temos a notoriedade do caráter arbitrário na fachada gótica inventada da catedral de Clermont-Ferrand, flechas acrescentadas à Notre-Dame de Paris e à Sainte-Chapelle, esculturas destruídas ou mutiladas substituídas por cópias, reconstituições fantasiosas do castelo de Pierrefonds, reconstituições compósitas das partes superiores da Igreja Saint-Sernin, em Tolouse (CHOAY, 2006, p. 157). 31 ‘ Além disso, há de se considerar que para os arquitetos e pensadores franceses daquele momento, “uma cópia feita fielmente adquiria o mesmo valor conceitual de um original, embora não garantisse o valor de antiguidade” (SALCEDO, 2013, p. 29). Oras, mas o valor da antiguidade não era primordial até então, quando o interesse estava voltado na preservação (ou reconstrução) da unidade estilística do edifício. Contudo, apesar da polêmica de todas as suas contribuições, é muito coerente e contemporâneo quando Le-Duc defende que “o melhor meio para conservar um edifício é encontrar para ele uma destinação, é satisfazer tão bem todas as necessidades que exige essa destinação, que não haja modo de fazer modificações” (VIOLLET-LE-DUC, 2006, p. 65). Esse é um conceito moderno, presente nas discussões e intervenções na atualidade. Sem sombra de dúvida havia muita crítica a seu trabalho, e inclusive ocorriam manifestações de cunho conservativo – identificado como restauro arqueológico, e ocorria principalmente entre os arqueólogos – que partiam do princípio que os monumentos eram concebidos como unidades completas, perfeitas e imutáveis. Na intervenção, portanto, pressupunha-se o respeito pela conservação dos edifícios e mesmo das ruínas originais, não devendo ser criados, nem acrescentados a elas, novos elementos. A retirada de elementos justificava-se apenas quando o acréscimo havia sido realizado posteriormente à construção original (SALCEDO, 2013, p. 27). Na Inglaterra, e na mesma época, considerado antitético de Viollet-Le-Duc por sua visão conservadora, John Ruskin (1818-1900) preconizava associação entre o meio ambiente natural e o meio ambiente construído, precocemente. Defendia que era preferível um monumento demolido ou em ruínas, do que as restaurações depredadoras, que os revestiam artificialmente. A ruína “destrói a matéria mas respeita a alma”, como dizia Manuel Bandeira, intelectual genuinamente ruskiniano (RUSKIN, 2013, p. 45). A contribuição de Ruskin toca a essência poética do patrimônio, onde os ambientes construídos eram compreendidos como lugares de história e memória, na direção oposta da teoria estilística. “É na longa duração, com a passagem do tempo, que a arquitetura vai se impregnando da vida e dos valores humanos; daí a importância de construir edifícios duráveis, e de preservar aqueles que chegaram até nós” (RUSKIN, 2013, p. 27). 32 ‘ Porque compreendia a dimensão histórica memorial do edifício, que é vivo, afirmava que uma necessária restauração seria sempre a maior e mais completa destruição que um edifício poderia sofrer – é impossível devolver a vida à um edifício, o projeto restaurador é absurdo, da mesma forma que é impossível ressuscitar os mortos. Concluindo, para Ruskin, “o destino de todo monumento histórico é a ruína e a desagregação progressiva” (CHOAY, 2006, p. 155) Respeitada a individualidade de cada teoria, Viollet-le-Duc e John Ruskin contribuíram para os debates que se desenvolveram ao longo do século XIX, e também para o delineamento de diversos conceitos relacionados à monumento, valor, ambiente. Foram vertentes antagônicas e excludentes, ou como chamada, antitéticas, inclusive pelos diferentes contextos urbanos que vivenciavam. Segundo Françoise Choay (2006, p. 160), muito diferente da visão inglesa, na França o monumento histórico não é visto como ruína nem relíquia que se destina à memória afetiva. A restauração, portanto, é vista como obrigatória para a conservação. No início do século XX, o italiano Camillo Boito (1836-1914) foi o teórico responsável por confrontar ambas doutrinas e extrair o melhor de cada uma delas. Com Viollet-le-Duc, “postula a prioridade do presente em relação ao passado e afirma a legitimidade da restauração” (CHOAY, 2006, p. 165), mas somente quando todas as outras medidas de conservação tiverem fracassado e não puderem garantir a integridade da obra – realizando intervenção minimamente necessária. Boito herdou de Ruskin a manutenção da estratificação e acréscimos da edificação como sinais da historicidade e vida do monumento. Estabelece ainda o critério de autenticidade da intervenção, onde nenhum trabalho refeito possa se passar por matéria original, e que seja possível, em um olhar, “distinguir a inautenticidade da parte restaurada das partes originais do edifício” (CHOAY, 2006, p. 166). Para isso, deve-se recorrer a oito princípios ou recursos, anunciados por Boito (2008): (...) diferença de estilo entre o novo e o velho; diferença dos materiais de construção; supressão de linhas ou ornatos; exposição das velhas partes removidas, nas vizinhanças do monumento; incisão, em cada uma das partes renovadas, da data de restauração ou de um sinal convencionado; epígrafe descritiva gravada sobre o monumento; descrição e fotografia dos diversos períodos das obras, expostas no edifício ou em local próximo a ele, ou ainda descrições em publicações; notoriedade (BOITO, 2008, p. 26). 33 ‘ Outra questão importante de Boito “é a capacidade do monumento de satisfazer as exigências práticas da contemporaneidade, ou seja, a relação entre a conservação de um edifício antigo (ou a restauração, quando necessária) e a sua funcionalidade no presente” (RUFINONI, 2013, p. 59) – o uso como instrumento eficaz de conservação, já preconizado por Viollet-le-Duc. Mesmo que o termo teoria intermediária (entre as visões antitéticas de restauro de John Ruskin e Viollet-le-Duc) seja associado a Camillo Boito, foi seu conterrâneo Gustavo Giovannoni (1873-1947) quem amplificou suas teorias e deu vazão a uma diversidade de discussões, desde o papel dos arquitetos até questões de urbanismo e de restauro urbano. Ele consolidou a linha de pensamento que ficou conhecida como restauro científico ou, mais apropriadamente, restauro filológico. Tal teoria consiste em defender a conservação do monumento como documento histórico e obra de arte. Giovannoni (2013) amplia o conceito de monumento justamente a partir de valores artísticos e históricos das metodologias precedentes. De acordo com o teórico, a arquitetura não se interessa apenas pelo objeto, mas também pelo contexto a que está inserido, desde o conjunto urbano de uma rua, de uma praça, até um bairro inteiro – considerados monumento único. A indissociabilidade entre o monumento e o entorno é necessária não somente para garantir estas relações, mas também devido a importância do próprio conjunto. Além disso, Giovannoni (2013) estabelece cinco modelos de ação operativa: 1-consolidação, intervenção de caráter técnico somente para garantir permanência do edifício; 2-recomposição através da recuperação de restos do edifício, para retornar ao local de origem; 3-liberação somente quando a exclusão não afete o edifício; 4- complementação desde que as peças não forem, em número, dominantes às autenticas, e demonstrando sua modernidade; 5-inovação, quando inevitável, identificadas como novas intervenções. Esses modelos de ação propostos por Giovannoni ainda no início do século chegam a reverberar o texto da Carta do Restauro Italiana, um importante documento resultado dos temas debatidos e princípios acordados, que estabelece critérios para restaurações arquitetônicas ainda utilizados hoje (desde 1972). Aborda temas como a importância da manutenção constante para assegurar longa vida aos monumentos, e, reforça o já proposto por Viollet-le-Duc sobre as novas possibilidades de utilizações para os edifícios monumentais antigos, desde que compatíveis. 34 ‘ Mas apesar de ter muitos princípios ainda válidos, o restauro filológico mostrou certos limites operativos, “que ficaram evidentes com as devastações geradas pela Segunda Guerra Mundial” (KÜHL, 2013, p. 28). Não havia como considerar as questões documentais destas vastas áreas destruídas, quando os edifícios eram destituídos de sua ambiência, e vice-versa. No período pós-guerra houve a consolidação do entendimento do “restauro como ato histórico-crítico, ou seja, como intervenção que comporta, inevitavelmente, certo grau de interferência na configuração figurativa da obra e que, portanto, deve assumir como premissas, a investigação, a apreensão e o conhecimento dessa realidade compositiva” (RUFINONI, 2013, p. 113). É o restauro crítico, portanto, que assume a tarefa de compreender as especificidades de cada monumento (ou ambiente-monumento), de indagá-lo atentamente, com sensibilidade e competência técnica, de modo a buscar os meios mais corretos de atuação a partir das respostas fornecidas pelo próprio artefato (RUFINONI, 2013, p. 113). Ao mesmo tempo que incorpora princípios fundamentais do restauro filológico como o “respeito pelas várias estratificações do bem e de diferenciar a ação contemporânea”, também introduz “no processo metodológico, teorias estéticas e questões relacionadas à percepção” (KÜHL, 2013, p. 29), o que, além de reafirmar os princípios teóricos propostos por Boito, evidencia a continuidade das discussões e consolidação de valores, como o da percepção, por exemplo. A “ênfase na manutenção constante e o respeito pelas várias fases de uma mesma obra permanecem como pilares fundamentais para intervenções em edifícios de interesse cultural até os dias de hoje” (KÜHL, 2013, p. 29). Recomendações estas, presentes da Carta de Veneza, que desde maio de 1964 transmite a essência dos princípios fundamentais que devem ser aplicados à conservação e restauração de todos os monumentos – em âmbito internacional, “ainda que caiba a cada nação aplica-los no contexto de sua própria cultura e de suas tradições” (ICOMOS, 1964 apud IPHAN, 2004, p. 91). É um “documento que mantém sua atualidade como nosso principal referencial teórico” (RUFINONI, 2013, p.113). Cesare Brandi (1906-1988) estabeleceu uma relação dialética entre a estética e a história do monumento (prefiguração + configuração). Definiu que “a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na 35 ‘ sua consistência física e da sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro” (BRANDI, 2013, p. 30). O restauro para Brandi, é, portanto, ato histórico-crítico. O autor afasta o restauro da ação personalizada ou escolhas arbitrárias, em vista a manutenção da qualidade do artístico nas obras patrimoniais, e oferece subsídios para debate de preservação e restauro, tanto de monumentos únicos quanto monumentos coletivos. Para a restauração, defendia tanto a conservação das estratificações históricas a partir da instancia histórica, quanto das qualidades estéticas da obra por suas complexas particularidades a partir da instancia estética. Preconizava que a análise devesse ser exclusiva em cada monumento, embora em casos controversos, defendia a predileção pela instancia estética em virtude da condição artística e singular de um monumento. É Brandi também quem define a interação monumento-ambiente, “(...) na arquitetura a espacialidade própria do monumento é coexistente ao espaço ambiente em que o monumento foi construído” (BRANDI, 2013, p. 132). De fato, Argan afirma que Brandi ‘sabia perfeitamente que nenhum texto é lido corretamente se não for lido como contexto, e esse contexto é determinado pelas obras menores que se agrupam ao redor de uma obra prima, que derivam dessa obra-prima e formam o tecido de uma cidade, de um território, de uma país, de um continente’ (apud RUFINONI, 2012, p. 133). Por isso que em relação a elaboração de novos projetos em contextos históricos “deveriam ser integrados a paisagem edilícia do contexto, respeitando suas características”, e, ainda, deveriam ser “levados em consideração o contexto urbano, os gabaritos de altura, os aspectos formais das edificações existentes, entre outros” (SALCEDO, 2009, p. 78). Apesar da abrangência conferida aos “planos urbanísticos enquanto instrumentos reguladores, era clara a necessidade de uma visão de conjunto que permitisse entender e coordenar a atuação sobre a cidade” (RUFINONI, 2012, p. 124). O restauro crítico, ou como posteriormente denominado, restauro urbano tem como premissa a aproximação crítica do objeto, antes de qualquer intervenção. Mais atual, a conservação integrada implica na presença de diferentes esferas do poder público, equipes multidisciplinares, conscientização de comunidades envolvidas, critérios e procedimentos específicos a serem empregados na elaboração e aplicação de debates, para abordagem do tema. Demanda programas que atendam concomitantemente as exigências de preservação do patrimônio, e, as necessidades 36 ‘ de desenvolvimento urbano ordenado, representando assim, até mesmo a economia de recursos, quando impulsionariam a valorização de áreas já servidas de considerável infraestrutura urbana. Monumentos são sempre únicos. O respeito ao método e à teoria são fundamentais para que a proposta esteja pautada na manutenção de suas características, de sua trajetória no tempo, e que ainda, permita sua atualização ao longo de tempo, preservando esses conjuntos da melhor maneira possível. As futuras gerações têm o direito de acessar, ler e apreender essas informações, pois são documentos de memória, individual e coletiva. 1.4. Urbanismo ambiental Desde o início da década de 90 assistimos o desenvolvimento de um urbanismo que se preocupa com a incorporação de perspectivas e conceitos próprios de estudos urbanos culturais. Onde o território como eixo cultural transcende a ideia de paisagem como representação visual de outrora, e atua como articulador de processos naturais, sociais e de significação (ZÁRATE, 2010, p. 30-31, tradução da autora). Um urbanismo para abordar a complexidade sociofísica do lugar, que compreende a cidade como complexa articulação de lugares a partir dos aspectos fundamentais que se articulam para sua produção. Onde, segundo Zárate (2010, p. 34), o território assume rasgos de matéria cultural configurada e significada, para atuar como infraestrutura possibilitante de mediação simbólica na construção do complexo sistema de lugares. Um urbanismo necessariamente dialógico. Uma perspectiva que não permite afastar a arquitetura de seu contexto geográfico e histórico no qual se desenvolve, já que a interação das dimensões do próprio lugar constrói tramas narrativas, regularidades estruturais, padrões, e são articulados pelos cronotopos do território (tempo-espaço e sentido de lugar). A dialogia tem base na fundamentação teórica e filosófica de Bakhtin, Ricoeur e Muntañola. Segundo Holquist (apud MUNTANOLA, 2006, p. 63-64), o pensamento arquitetônico está indissoluvelmente unido a ‘contestabilidade’ (answerability), ou seja, a capacidade de se dirigir a alguém ou algo desde outro alguém ou outro algo. “Essa capacidade de dirigir-se à (to address) é essencial na teoria dialógica do ‘conversar’ que pressupõe uma intenção de se dirigir, de comunicar, não ‘individual’, se não ‘social’” (SALCEDO et al., 2015, p. 230). A 37 ‘ capacidade de comunicação entre dois objetos ou duas pessoas é fundamental para que exista o diálogo, a sustentabilidade, o equilíbrio. A comunicação de algo com alguém, ou a comunicação da arquitetura com seu contexto não é estático, é dinâmico, transcorre na dimensão cronotopica. Para Bakhtin (2003), o cronotopo é a capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo e, por outro lado, de perceber o preenchimento do espaço não como um fundo imóvel e um dado acabado de uma vez por todas, mas como um todo em formação, como acontecimento: é a capacidade de ler os indícios do curso do tempo em tudo, começando pela natureza e terminando pelas regras e ideias humanas (até conceitos abstratos) (BAKHTIN, 2003, p. 225). A cidade não é imóvel, está em contínua formação, propiciando várias leituras e a possibilidade de diversas intervenções no tempo. Essa base teórica filosófica da dialogia, que trata de ver as relações entre texto e seu contexto numa relação cronotopica e fenomenológica, foi descrita por Bakhtin e teorizada por Paul Ricoeur. A tripla natureza dessas relações: o projeto, a construção e o uso social, acontecem numa estrutura cronotopica entre realidade e representação do espaço sociofísico. Muntañola (2006, p. 64) ressalta que essa estrutura, na arquitetura, é a construção sociofísica de um território, na qual construir e habitar que se relacionam cronotopicamente. A tripla natureza das relações entre corpo e lugar, articula o projeto, a construção e o uso social em uma mesma estrutura cronotopica entre realidade e representação do espaço-tempo sociofísico (MUNTAÑOLA, 2006, p. 65). Por outro lado, a relação (diálogo) entre o projeto, a sua leitura, o seu contexto e o objeto final, é caracterizada por Mikhail Bakhtin (1999) como a dialogia de uma obra. Portanto, a dialogia inicia-se pela compreensão do texto arquitetônico com seu contexto. A análise dessa relação só pode ser realizada e interpretada dialogicamente entendendo o contexto histórico e interpretando os fatos políticos e sociológicos em que a obra está inserida (ZÚQUETE, 2000). Dessa maneira, a cidade deve ser compreendida, interpretada e analisada como um conjunto de lugares. Zárate (2010, p. 34) ressalta que interpretar a cidade a partir do conceito de lugar implica concebê-la como um complexo sistema de assentamentos gerados a partir das interações entre cenário físico, grupo de pessoas e práticas sociais, mediadas por um mundo simbólico. Isto é, estudar, interpretar e analisar a cidade a partir dos ambientes: epistêmico, físico, social e simbólico. 38 ‘ O ambiente epistêmico, segundo Zárate (2010, p. 35) seria o campo aberto e virtual do pensamento, em constante transformação e atualização de seus conteúdos, nos quais podem ser reconhecidos os momentos de equilíbrio dinâmico tempo-espacial e de sentido a partir de um processo de apreensão da realidade orientada pela manifestação concreta e contextualizada da forma histórica e tempo- espacial de uma problemática dentro de um encontro de horizontes. Neste ambiente podem ser abordadas as ideologias, políticas e formas de atuação na gestão, de gestores com relação ao lugar. Ambiente físico ou espacial seria a dimensão material concreta e parcial das manifestações do ambiente sociocultural em seu processo de apropriação e transformação do território. Também, cabe a técnica e a prática do nível operacional do urbanismo. O ambiente social reflete uma ordem funcional das práticas sociais, que as pessoas desenvolvem através das maneiras com que se relacionam com o meio físico. Para Zárate (2015, p. 163), relaciona-se com a identidade social, os grupos sociais, os capitais sociais, distinção de classes e reconhecimento. Já o ambiente simbólico se refere às expressões verbais e escritas, acompanhadas do gestual e comportamento das pessoas, que expressam os conteúdos de valores, significados, representações sociais, imaginários sociais construídos (ZÁRATE, 2015, p. 163). O código genético do lugar, ou, as relações entre ambiente físico, social e simbólico, é o objeto de estudo teórico do tipo de urbanismo que aqui se propõe. Ou seja, suas articulações sociofísicas, ou congruências entre o ambiente físico e ambiente social; mais as articulações sociosimbólicas, ou correspondências entre ambiente social e ambiente simbólico; e, as articulações simbólico-físicas, ou correspondências entre ambiente simbólico e ambiente físico. A leitura dos cronotopos é que possibilitam o entendimento do processo de territorialização – produção de qualidade ambiental, de habitação, valorização de identidade territorial e urbana, de pertencimento, de produções típicas em paisagens típicas, de crescimento e consolidação de sociedades locais. Um novo urbanismo que, aliás, articula os cronotopos da territorialização como estratégia interpretativa da identidade, a fim de reconhecer e atuar sobre a identidade genética do lugar. Um urbanismo ao qual Zárate (2010, p. 34-35) denomina urbanismo ambiental hermenêutico. 39 ‘ A escala do objeto de pesquisa direciona abordagem urbanística. E nos coloca face à novos desafios, enfrentamentos, uma nova agenda, surgida nesse século, e que é resultado de nossas novas e urgentes necessidades. Esse urbanismo que é um urbanismo sustentável. Alternativo. Ambiental. Saudável. Equânime. Estamos em pleno século 21 – e somos essencialmente urbanos. Em 1900, somente 10% da população mundial vivia em áreas urbanas, em 2007 já éramos 50%, e até 2050 poderemos chegar a 75%, de uma estimativa de 9 bilhões de pessoas (GEHL, 2015, p. 215). E o maior desafio deste século não poderia ser outro, mas o desenvolvimento sustentável, já que “[...] dois terços do consumo mundial de energia advêm das cidades, 75% dos resíduos são gerados nas cidades e vive-se um processo dramático de esgotamentos dos recursos hídricos e de consumo exagerado de água potável” (LEITE, 2012, p. 8). Temos de melhorar nossos padrões atuais de produção e consumo, utilizar os recursos naturais de forma sustentável. Segundo algumas das conclusões do estudo Previsão Meio Ambiental Global (GEO-6) o aumento da população, a rápida urbanização, os crescentes níveis de consumo, a desertificação e degradação do solo são justamente os fatores que já provocaram a escassez de água e puseram em risco a segurança alimentar de centenas de milhões de pessoas. As cidades são como organismos, absorvem recursos e emitem resíduos. E quanto maiores, quanto mais habitantes, maiores os problemas e degradação ambiental decorrente do funcionamento desse ‘organismo’. A qualidade do ar piorou e as emissões de gases do efeito estuda ainda aumentam na América Latina. Até a metade do próximo século teremos problemas com o fornecimento de alimentos, por causa da gestão insustentável do uso da terra. A demanda mundial de água duplica a cada 20 anos, mas a quantidade disponível desse recurso é praticamente a mesma desde a era glacial. O destino de resíduos já se tornou problema, e nosso planeta já demonstra, o tempo todo, que não tem capacidade para absorver tudo o que produzimos. Essa sensação de colocar o lixo na sacolinha na calçada, do ‘lado de fora’ de nossa casa tem que acabar, uma vez que, no sentido mais amplo – do planeta – não existe ‘lado de fora’, e a diminuição da quantidade e o manejo desses resíduos é uma responsabilidade de todos. Sir Crispin Tickell, na introdução de Rogers (2012), enumera diversos outros problemas consequentes de nosso modo de vida: precipitação ácida, 40 ‘ diminuição da camada de ozônio, mudanças climáticas, elevação do nível do mar, mudanças nos padrões e tipos de doenças, destino dos esgotos... uma verdadeira “reunião e combinação de riscos, cada um deles impulsionado em maior ou menor grau pelo crescimento urbano e aumento da população mundial” (ROGERS, 2012, p. v). Todas essas adversidades se somam ao modelo de urbanismo moderno, que nos últimos 60 anos têm privilegiado a ocupação e permanência das ruas pelos veículos, ignorando a escala humana, e atestam nossa incompetência no desenvolvimento urbano. “Eles [os planejadores e os engenheiros de tráfego] não sabem o que fazer com os automóveis nas cidades porque não têm a mínima ideia de como projetar cidades funcionais e saudáveis – com ou sem automóveis” (JACOBS, 2003, p. 6). Ainda segundo Jacobs (2003) é muito mais fácil compreender e satisfazer as necessidades dos automóveis que as complexas necessidades das cidades, mas o erro está em acreditar que solucionar os problemas de tráfego é solucionar o maior problema das cidades. Muitos anos mais tarde, essa situação de vida insustentável foi igualmente reconhecida por Jan Gehl, que afirma que há décadas, “a dimensão humana tem sido um tópico do planejamento urbano esquecido e tratado a esmo, enquanto várias outras questões ganham mais força, como a acomodação do vertiginoso aumento do tráfego de automóveis” (GEHL, 2015, p. 3). Como resultado, a paisagem humana nas cidades está descuidada, resultado direto dessa prioridade dada ao tráfego de veículos (GEHL, 2015, p. 209). O urbanismo moderno, embora tenha trabalhado brilhantemente com as escalas macro e média nas cidades, teve como característica dar maior ênfase na lógica industrial e seus produtos – inclusive e mais, no automóvel. Brasília, cidade completamente construída seguindo esses conceitos modernos foi amplamente repetida – tida como “excelente” princípio urbanístico, e leva o ordenamento de tráfego às últimas consequências. Apesar de Brasília (figura 3) ser um dos exemplos mais notáveis de plano urbano modernista, também é uma catástrofe se considerado na escala humana. Os espaços urbanos são muito grandes e amorfos, as ruas muito largas, e as calçadas e passagens muito longas e retas. (...). Se você não estiver em um avião ou helicóptero ou carro – e a maioria dos moradores de Brasília não está – não há muito que comemorar (GEHL, 2015, p. 197). 41 ‘ Ainda segundo Gehl (2015), esse modelo de urbanismo esgotado, fracassado, tem sido repetido em diversas partes do mundo, como na China e outras regiões asiáticas, novos empreendimentos e bairros urbanos europeus, Dubai e mesmo em grandes cidades como Orestad, no entorno de Copenhague. Grandes edifícios e construções espetaculares, mas que centram os esforços na escala maior e ignoram o nível dos olhos. Figura 3. Brasília e seu urbanismo monumental que não privilegia as pessoas Fonte: acervo IPHAN disponível em acesso em 08 ago. 2016 É de uma repetição cansativa, que nos provoca questionamentos sobre a falta de referência, e, onde a impressão que se tem é que houve um surto de falta criativa em todos os arquitetos e produtores de espaços e edifícios. São muitas franquias, multinacionais, hotéis, todos com mesmo padrão construtivo em todo o mundo, sempre mais do mesmo... estamos produzindo cidades sem identidade. Essa aplicação não tem se dado em cidades culturalmente idênticas, então, esses espaços pouco servem – e, de maneiras diversas. São produções monológicas, que não estabelecem diálogo com o entorno onde é inserida, não se importam com as necessidades prévias do lugar, não consideram a cidade como organismo vivo, criado e gerido pelo homem. Algumas poucas cidades, no entanto, perceberam o erro de negligenciar a escala humana, e iniciaram um processo de definição de um outro modelo, onde as pessoas pudessem ser protagonistas. “A única abordagem bem-sucedida para o projeto de grandes cidades para as pessoas deve considerar a vida e o espaço da cidade como ponto de partida” (GEHL, 2015, p. 198). 42 ‘ Assim, essas poucas cidades vêm se tornando ícones, criando melhores condições sociais e econômicas, além de saúde, educação, moradia e opções de lazer. Não é à toa que uma lista das melhores cidades de se viver, ranking elaborado pela ONU, tem estrita relação com as cidades mais cicláveis do planeta, e estão localizadas em sua grande maioria, na Europa, como exemplo Copenhague. Figura 4. Copenhague [por exemplo] é considerada uma das cidades mais sustentáveis do mundo basicamente por conta da ativa participação de toda a sociedade, incluindo o fato de 37% da população locomover-se de bicicleta e do transporte público utilizar bateria e não combustível; 51% da comida consumida nos órgãos públicos municipais é orgânica (LEITE, 2012, p. 134). Aqui do outro lado do oceano, e, essencialmente as cidades dos países em desenvolvimento em geral, a situação é bem outra. Nossas cidades possuem diversas características e desafios comuns. A solidariedade e a vinculação psicológica referente à cidade decresce à medida que ela se torna mais complexa. E quanto menos se vive a cidade como entidade identitária, mais se refugia em identidades mais fragmentadas. Figura 4. Copenhague e sua relação com as pessoas Fonte: acervo Copenhagen Media Center disponível em acesso em 10 ago. 2016 Sabemos que modelos urbanísticos não são exatamente para serem replicados livremente por aí, e Zárate (2015) defende que o urbanismo deve estar intimamente relacionado ao código genético, ou estrutura identitária da cidade. O estado configurativo ou estruturação apresentados pelos vestígios multidimensionais e patrimoniais, representará um certo momento cronotopico do lugar, ou seja, uma articulação única entre os atores sociais, práxis sociais, cenários, significações, e tempo dentre de um determinado contexto cultura. O cronotopo representa um modo possível de acessar esse código genético do lugar. 43 ‘ O código genético do lugar, ou seja, as relações entre ambiente físico, social e simbólico, é o objeto de estudo teórico do tipo de urbanismo que aqui se propõe. Trata-se de um estudo complexo, que que surge articulações sociofísicas, ou congruências entre ambiente físico e ambiente social; articulações sociosimbólicas, ou correspondências entre ambiente social e ambiente simbólico; e, articulações simbólico-físicas, ou correspondências entre ambiente simbólico e ambiente físico. Dessa maneira, o estudo de qualquer problema urbano sempre estará contido dentro deste sistema de lugares que é a cidade, e em consequência, a natureza particular do problema, será estudada em referência a seu contexto ambiental ou lugar de pertencimento e sentido (ZÁRATE, 2015, p. 164, tradução e destaque da autora). Por outro lado, o autor, Zárate (2015) também afirma que alguns preceitos gerais não devem ser recusados, uma vez que eles dão apenas os primeiros traços do que se propõe à determinada realidade. Na América Latina, o tráfego de pedestres e ciclistas está quase desaparecendo enquanto o crescente tráfego motorizado entope as cidades. Há uma redução na qualidade de vida justamente por causa dos longos deslocamentos diários e as vias à beira de colapso, resultado de políticas de ocupação de áreas periféricas das cidades. Somado a atual situação de esgotamento de recursos, fica claro que já é tempo de melhores práticas. O redesenvolvimento das regiões centrais que estão abandonadas, com o intuito de desestimular o crescimento periférico e o espraiamento urbano é considerada uma das mais promissoras políticas públicas do momento (LEITE, 2012, p. 94/143). Mas, são considerados políticos e urbanistas visionários, aqueles que estão em busca de soluções para esses problemas mais urgentes. Pois não deveriam estar, cada político, e cada urbanista, focado nesse propósito? Todos esforçados no sentido de reforçar a vida na cidade e melhorar as oportunidades para caminhar e pedalar como um elo nas políticas globais para incrementar o potencial econômico, a qualidade urbana e a qualidade de vida [?] (GEHL, 2015, p. 220). Cidades pós-modernas estão em busca de modelos sustentáveis, que inclui “a visão do ciclo de vida de seus componentes, buscando eliminar desperdícios, [...] garantindo que os recursos disponíveis serão utilizados de forma eficiente” (LEITE, 2012, p. 135). Cidade sustentável se preocupa em deixar de herança para próximas gerações, recursos iguais ou superiores aos encontrados hoje disponíveis. Para conseguir isso, cidades sustentáveis são necessariamente cidades compactas. Já existe um movimento em diversas cidades norte americanas no sentido de planejar, propositadamente, o encolhimento de sua extensão urbana, gerando 44 ‘ territórios mais compactos e implementação de infraestrutura verde nos espaços obsoletos (LEITE, 2012, p. 26). Infraestrutura verde elenca uma série de alternativas de baixo impacto orçamentário e que contribui para construção dessa cidade mais sustentável. São elementos naturais e construídos, de maneira a compensar as alterações da natureza ocorridas em áreas urbanizadas e a minimizar os problemas decorrentes, que vão desde teto verde, cisterna urbana, canteiro e jardim de chuva, biovaleta, lagoa pluvial, corredores urbanos, reflorestamento de encostas, ruas verdes, dentre outros. O ideal é que em conjunto formem matizes, manchas ou corredores verdes (CALLEGARO, 2012). Corredores verdes urbanos “são elementos lineares que servem como conexão entre um fragmento e outro, e que integram equipamentos e outras funções importantes para a cidade” (COSTA, 2006). Ainda segundo o mesmo autor, entre as funções básicas destes, estão a manutenção da biodiversidade da flora e fauna, a proteção dos cursos d’água, e, a criação e incremento de espaços para recreação e cultura. É extremamente importante que essas áreas de recreação também proporcionem possibilidades de locomoção pela cidade, através de ciclovias e pistas de caminhada, como forma de mobilidade urbana sustentável. Figura 5. Figura 5. VLT sobre relvado, infraestrutura verde urbana integrada em Düsseldorf, Alemanha Fonte: acervo da autora, 2016 Tal modelo de desenvolvimento urbano, portanto, otimiza uso das infraestruturas urbanas e alcança sustentabilidade através de maior eficiência energética, boa relação com as águas e áreas verdes, e ainda, incorpora redução de 45 ‘ poluição, promoção de altas densidades, com adequado e planejado uso misto do solo. Carlos Leite (2012) também defende que esse modelo deve prever e integrar um eficiente sistema de mobilidade urbana, com transporte público de alta eficiência em conjunto com desenho urbano que encoraje a caminhada e o ciclismo. Dessa forma, o uso democrático do espaço urbano oferece mais oportunidades para interação social (LEITE, 2012, p 135-137). Edificações concentradas otimizam a infraestrutura existente, sem a necessidade de expansão dessa infraestrutura, sem falar que gera maior nível de acessibilidade. Já o uso misto das edificações, com superposição de atividades “permite maior convivência e pode reduzir as necessidades de deslocamentos em automóveis, o que, por sua vez, reduz drasticamente a energia utilizada para transporte – geralmente um quarto do consumo global da cidade” (ROGERS, 2012, p. 49). Se neste modelo de cidade compacta promovem-se densidades qualificadas – com uso misto do solo e multicentralidade ligadas por uma eficiente rede de mobilidade (transportes públicos eficientes, ciclovias e áreas adequadas ao pedestre) –, têm-se os ingredientes básicos para uma cidade sustentável (LEITE, 2012, p. 136). Outra vantagem da cidade compacta é que ela evita a invasão das áreas rurais, ou o conhecido espraiamento periférico, que também está relacionado ao esvaziamento das áreas centrais dos municípios. As vantagens ambientais do planejamento sustentável são imensuráveis. As prioridades devem ser revistas. A vida na cidade deve estar visível, em primeiro plano, como um fator decisivo para as melhorias qualitativas a serem propostas no espaço urbano. A vida pública deve ser encarada como instrumento de planejamento, e a história, a identidade da cidade, como pressuposto teórico a ser incorporado em qualquer projeto. Somente quando houver compatibilidade entre as diversas práticas sociais, e os grupos puderem desenvolver sobre um cenário particular comum o que for congruente com todas elas, é que haverá a presença da situação de forte identidade. Nesse lugar, os grupos se identificam, se reconhecem, se apropriam, estão arraigados e tem interesse pela sua transformação (ZÁRATE, 2015, p. 191). O início de processo de planejamento participativo sempre terá maiores chances de sucesso, quando de casos de articulações positivas entre correspondências e congruências. Ainda bem que 46 ‘ é barato, simples, saudável e sustentável construir cidades para as pessoas – bem como é uma política óbvia para atender aos desafios do século 21. Já está mais do que na hora de redescobrirmos a dimensão humana no planejamento urbano – no mundo todo (GEHL, 2015, p.229). Acreditando nisso, esses serão os pressupostos que nortearão a proposição das diretrizes, objetivo deste trabalho. 47 ‘ 2. URBANISMO ALTERNATIVO COMO MÉTODO O bem de interesse cultural objeto desta pesquisa é a área do complexo industrial ferroviário que abriga as edificações e pátio da EFNOB, localizado na cidade de Bauru, centro-oeste do estado de São Paulo, e que possui perímetro aproximado de 435 mil metros quadrados (figura 6). É considerado o melhor exemplar da América Latina, tanto por sua escala e inter-relação com a cidade, como por sua completude de equipamentos, que outrora permitiu total autonomia para criação, montagem e manutenção de trilhos, vagões e locomotivas. Figura 6. Mapa. Bauru, centro-oeste paulista, Brasil Fonte: 1 Wikipedia, disponível em . Acesso em 25 ago. 2016; 2 JC versão digital de 03/02/2013, disponível em . Acesso em 25 ago. 2016 Único de seu tipo, teve seu fim desencadeado pela falta de investimentos e substituição do modelo de transporte no país. Um gigante em área privilegiada, mas que pouco a pouco tem se tornado invisível por sua dificuldade de posse, gestão e intervenção. Uma área que foi abandonada, onde os edifícios estão degradados, e refletem o descaso da população, do interesse privado e dos gestores públicos. Para olhos mais sensíveis, a intervenção é urgente. Um bom projeto arquitetônico deve partir da compreensão da relação do contexto (urbano, político, econômico, social, cultural) com o texto – o próprio complexo industrial ferroviário. Essa dissertação se propõe a identificar as principais potencialidades físicas, sociais, econômicas e culturais da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (EFNOB) na sua relação com a cidade de Bauru, e, propor diretrizes urbanas sustentáveis para 48 ‘ reintegração do complexo da EFNOB à cidade, articulando suas potencialidades socioeconômicas, simbólicas, de identidade e memória. A pesquisa será realizada com base no método dialógico que tem como base a fundamentação teórica e filosófica de Bakhtin, Muntañola e Zárate. A ‘dialogia de uma obra’ é a relação, ou justamente o diálogo, entre o projeto, sua leitura, seu contexto e o objeto final construído. Segundo pensamento descrito por Mikhail Bakhtin, o texto pode ser compreendido como o objeto físico – a edificação em si, que nos é visualmente compreensível, desde o projeto até o uso social – como resposta a um contexto, que motiva e justifica o texto. Compreender essa relação é fundamental para que as diretrizes pautem uma arquitetura que seja harmoniosa ao contexto e texto pré-existentes. A variável dependente – o complexo da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, será inicialmente descrita em seu contexto nacional, regional e local, e esse resgate histórico vinculado ao contexto é que nos permite conhecer a natureza do objeto. Tal entendimento se torna essencial para construir sobre o construído sem que o texto anterior seja apagado, porque é a compreensão do contexto sobre o texto, e vice-versa, que possibilita a conexão entre a nova produção e o passado através de um elemento comum a ser estabelecido, o elo que funcione como unidade de linguagem. É válido recordar a dinamicidade desse processo: o primeiro contexto, aquele anterior à existência do texto, já não é mais o mesmo quando se relaciona com o próprio objeto edificado, afinal, as relações evoluem o tempo tod