REGINALDO JUNIOR FERNANDES O DELITO DOS PROSCRITOS: A marginalidade política em Londrina (1956-1967) Assis 2007 REGINALDO JUNIOR FERNANDES O DELITO DOS PROSCRITOS: A marginalidade política em Londrina (1956-1967) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientadora: Dr. Flávia Arlanch Martins de Oliveira Assis 2007 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Fernandes, Reginaldo Junior F363d O delito dos proscritos: a marginalidade política em Lon- drina (1956-1967) / Reginaldo Junior Fernandes. Assis, 2007 250 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Poder judiciário - Brasil. 2. Crime político 3. Sindicatos- Trabalhadores rurais. 4. Autoritarismo. 5. Comunismo. I. Tí- tulo. CDD 335.82 342.81 REGINALDO JUNIOR FERNANDES O DELITO DOS PROSCRITOS: A marginalidade política em Londrina (1956-1967) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Data da Aprovação: _______/______/________ Banca Examinadora Presidente: Dra. Flávia Arlanch Martins de Oliveira – UNESP/Assis, SP Membros: Dra. Márcia Regina Berbel – USP/ São Paulo, SP Dra. Tânia Regina de Luca – UNESP/Assis, SP Ao Cristo, proscrito, discurso e prática. AGRADECIMENTOS Um trabalho desta natureza, requer sem dúvida, um esforço conjunto, e qual não foi minha surpresa em perceber a solicitude e o engajamento das pessoas, que, de um maneira ou de outra, mesmo sem saber o teor exato do estudo, foram conscienciosas com as necessidades que um projeto como esse requer, talvez mais do que eu mesmo inicialmente desconfiasse. Desse modo, gostaria de mencionar o pessoal do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica (CDPH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Edson Holtz, Edson Souza, Leila, Cacilda, Laureci, Cleide, Marcelo e Josué, pela dedicação freqüentemente anônima e a lida imprescindível com a matéria-prima da história, além da eficiência com que atenderam as demandas de documentação que foram surgindo durante a pesquisa, e particularmente à Profa. Enezila, que sugeriu e oportunizou o acesso às fontes que deram origem a este estudo. Agradeço também à Aparecida do Arquivo Público do Paraná (DEAP), em Curitiba, ao pessoal da Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), em São Paulo, além das bibliotecárias da UEL e UNESP, pelo empenho e acolhida. Sou grato também à Fernanda que ajudou com a editoração gráfica dos mapas. Aos professores José Luiz Beired e Tânia Regina de Luca, agradeço pela postura objetiva e sugestões para o encaminhamento do estudo, feitas durante o exame de qualificação. Agradeço especialmente à paciência e à orientação eficiente e pragmática da profa. Flávia Arlanch, com quem muito aprendi sobre o fazer da história. Não poderia deixar de mencionar minha especial dívida de gratidão ao Prof. Paulo Alves, pela instigação intelectual e generosidade com que apoiou, de diversas formas, esta pesquisa. Sou grato também ao Prof. Hélio Rebello pela leitura e sugestões teóricas e metodológicas na abordagem das fontes. Finalmente, agradeço aos meus familiares, amigos, e colegas da pós-graduação e do trabalho, pelo incentivo e compreensão nos momentos mais críticos, e sobretudo à minha esposa, Kátia, quem tolerou meus humores durante estes anos de pressa e ausência. RESUMO Este estudo tem por objetivo fazer uma análise de tipo qualitativo no sentido de inteligir os acontecimentos envolvendo o judiciário, enquanto dispositivo de contenção e de produção do social, e sua atuação visando reprimir o nascente movimento sindical rural de influência comunista em Londrina, a partir da figura criminal da marginalidade política. Tendo como fontes primárias, um processo-crime iniciado em 1956, portanto, no período denominado democrático (1945-1964) e outro instaurado nos primeiros momentos do regime civil-militar (1964), acrescidos de documentos produzidos pela Delegacia de Ordem Política e Social do Paraná (DOPS/PR) e artigos de jornais da época, objetivou-se também extrair elementos de comparação entre os dois processos-crime nos diferentes regimes, com o fito de verificar as similaridades e as diferenças entre ambos. Partiu-se da perspectiva foucaultiana de que o dispositivo jurídico não reproduz apenas o discurso do Estado, mas constitui um amálgama de diferentes discursos como o veiculado na imprensa, nas escolas, nas igrejas, nas empresas, no meio acadêmico, etc. Verifica-se que a estrutura sindical legalista e corporativista preconizada pelo Estado e aceita pelo movimento sindical como modalidade de luta política nesse período produziu a proeminência do advogado como liderança iniciada nos rituais jurídicos e, portanto, habilitado a reivindicar em nome dos trabalhadores rurais os direitos balizados pela legislação trabalhista. Pode-se constatar também que, independente da modalidade do regime político estabelecido, os dispositivos policiais e jurídicos de informação, controle e repressão, foram sistematicamente se especializando no Brasil, desde a década de vinte, sendo deflagrados ostensivamente durante os regimes autoritários, ainda que nunca desativados durante os períodos considerados democráticos. Verifica-se ainda que, particularmente nos processos-crime analisados, alguns magistrados do judiciário londrinense constituíram um óbice à pretensão punitiva da polícia e da promotoria, que, em sua interpretação do crime político frente à legislação de Segurança Nacional, resultaram em um anteparo jurídico contra a persecução de natureza política, naquele momento, sobretudo anticomunista, motivada por fatores de ordem econômica, cultural e religiosa. Palavras-chave: Judiciário, Crime-político, Segurança Nacional, Movimento sindical, Trabalhador rural, Autoritarismo, Comunismo. Title: The Crime of the proscribed. Political marginality in Londrina (1956-1967) ABSTRACT The purpose of this study is a qualitative analysis to understand events in which the judiciary is seen as a device for social contention and production, and its work in preventing the surge of the rural union movement under the communist influence in Londrina, making use of the criminal figure of political marginality. Having as primary sources a criminal process that started in 1956, a period called as democratic (1945-1964) and another process from the initial moments of the civil-military regime (1964), together with documents prepared by the Delegacia de Ordem Política e Social do Paraná (DOPS/PR) and newspaper articles from that time, this study also aimed at comparing these two criminal processes from two different regimens in order to identify their similarities and differences. This study follows the Foucault perspective that the juridical device does not only translate the State’s discourse but it also comprehends an amalgam of other discourses as found in the press, in schools, churches, companies, academic communities and the like. It is verified that the legalist and corporative labor structure, as advocated by the State and accepted by the labor union movement as a political fight modality, in that period, turned the professional lawyer as a leader, initiated in the juridical rituals and, therefore, an individual qualified to demand, on behalf of the rural workers, those rights guaranteed by the labor legislation. It was also verified that no matter the modality of political regimen, the police and judicial devices of information, control and repression had been systematically improved in Brazil since the 1920s and were ostensibly put into action during the authoritarian regimens and never put into disuse during the so-called democratic periods. It is also noticed that, mainly in the criminal processes under analysis herein, some magistrates from the judicial power in Londrina made up for an impediment to the punitive pretension of the police and of the district attorneys, and their interpretation of political crimes in face of the National Security, resulted in a juridical protection against political persecution at that time, mainly the anti-communist, as moved by economic, cultural and religious reasons. Key words: Judiciary, Political Crime, National Security, Labor Union Movement, Rural Worker, Authoritarianism, Communism. LISTA DE ILUSTRAÇÕES ILUSTRAÇÃO 1 - SELOS COMEMORATIVOS DO IV CONGRESSO DO PCB EM 1954. NO SELO DA ESQUERDA TEMOS A FIGURA DE LUIS CARLOS PRESTES, TRAZENDO EM SEU OMBRO DIREITO A FOICE E O MARTELO SOBRE UM RAMO DE LOURO; NO SELO CENTRAL TEMOS NOVAMENTE LUIS CARLOS PRESTES, AGORA COMO CAVALEIRO DA ESPERANÇA, NA “COLUNA PRESTES” DA DÉCADA DE 1920, DENOTANDO O PERSONALISMO EM TORNO DA SUA FIGURA. NO SELO À DIREITA, DE MAIOR VALOR, TEMOS (DA ESQUERDA PARA A DIREITA) MARX, ENGELS, LÊNIN E STÁLIN. ESTES SELO ERAM VENDIDOS COMO MEIO DE ARRECADAR FUNDOS PARA O PARTIDO. . ....................................................................................... 60 ILUSTRAÇÃO 2– EDITAL DE ASSEMBLÉIA DO SINDICATO. .................................................................. 99 ILUSTRAÇÃO 3 – FOTO PESSOAL DE FLÁVIO RIBEIRO APREENDIDA PELA POLÍCIA.................... 102 ILUSTRAÇÃO 4– CONVITE PARA O CHURRASCO DOS CARROCEIROS NO TIBAGI..................... 109 ILUSTRAÇÃO 5– MANOEL JACINTO CORREIA EM UMA DE SUAS ÚLTIMAS FOTOS DURANTE O CONFLITO DE PORECATU ................................................................................................................... 113 ILUSTRAÇÃO 6– DUPLA DE POLICIAIS DO EXÉRCITO VIGIA AS RUAS NO DIA DO GOLPE EM 1964 ........................................................................................................................................................... 158 ILUSTRAÇÃO 7 – DEPREDAÇÃO DO JORNAL ÚLTIMA HORA NOS PRIMEIROS DIAS DO REGIME MILITAR DE 1964 ................................................................................................................................... 162 ILUSTRAÇÃO 8 – POLÍCIA VIGIA ENTRADA DO SINDICATO................................................................ 164 ILUSTRAÇÃO 9– MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS PELA LIBERDADE EM LONDRINA................ 167 ILUSTRAÇÃO 10– “O TREM VERMELHO NÃO PAROU NA ESTAÇÃO VERDE E AMARELA. BOA VIAGEM”.................................................................................................................................................. 168 ILUSTRAÇÃO 11 – CAMPANHA NACIONAL PRÓ-IMPRENSA POPULAR. ............................................ 230 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Principais Comitês de Zona do PCB no Paraná (1975)........................107 Quadro 2 - Atividades de Manoel Jacinto Correia (1947-1975)...............................120 Quadro 3 - Enquadramento e Denúncia..................................................................233 LISTA DE MAPAS Mapa 1 – Norte do Paraná.........................................................................................45 Mapa 2 - Sindicatos fundados pelo PCB no Paraná até 1964...................................88 LISTA DE TABELAS TABELA 1 – Quadro de Custo de Vida - URSS ......................................................199 Lista de siglas ACL Associação Comercial de Londrina ADOPS Arquivo do Departamento de Ordem Política e Social AML Associação Médica de Londrina ANL Aliança Nacional Libertadora CC Comitê Central (PCB) CDPH Centro de Documentação e Pesquisa Histórica CD Comitê Distrital CE Comitê Estadual (PCB) CGT Central Geral dos Trabalhadores CLT Consolidação das Leis do Trabalho CTB Confederação de Trabalhadores do Brasil CTNP Companhia de Terras Norte do Paraná CZ Comitê de Zona (PCB) CONTAG Confederação dos Trabalhadores Agrícolas DEAP Deparamento de Arquivo Público Estadual DOPS Departamento de Ordem Política e Social IBC Instituto Brasileiro do Café MUT Movimento Unificador dos Trabalhadores PCB Partido Comunista Brasileiro PSD Partido Social Democrático PTB Partido Trabalhista Brasileiro PTN Partido Trabalhista Nacional PUI Pacto de Unidade Intersindical SAMDU Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência STF Supremo Tribunal Federal STM Supremo Tribunal Militar SUMOC Superintendência da Moeda e do Crédito UDN União Democrática Nacional UEL Universidade Estadual de Londrina ULTAB União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil UTL União dos Trabalhadores de Londrina SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................15 1 ITINERÁRIOS DO CONFRONTO .............................................................................32 1.1 Perspectivas de Abordagem.......................................................................................32 1.2 O processo-crime como fonte histórica.....................................................................35 1.3 Aspectos da ocupação do Norte do Paraná ..............................................................41 1.4 O camponês e a legislação trabalhista ......................................................................51 1.5 O PCB e o sindicalismo rural ....................................................................................59 2 A CRIMINALIZAÇÃO DA POLÍTICA......................................................................66 2.1 Um espectro ronda o Norte do Paraná .....................................................................66 2.2 Os marginalizados da política ...................................................................................97 2.3 As reivindicações dos trabalhadores.......................................................................120 2.4 O veredicto ................................................................................................................134 2.5 O inquérito e a Conspirata Soviética ......................................................................139 2.6 O desfecho do processo-crime .................................................................................153 3 A PROSCRIÇÃO DA POLÍTICA..............................................................................156 3.1 A purga autoritária ..................................................................................................156 3.2 Manoel Silva: este péssimo brasileiro .....................................................................170 3.3 O judiciário londrinense e o crime político em 1964 .............................................212 3.4 A situação dos trabalhadores rurais no pós-64......................................................221 3.5 Dois processos-crime, um movimento.....................................................................227 Considerações Finais ............................................................................................................239 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................244 ANEXOS ...............................................................................................................................266 ANEXO A – Foto tirada em frente o consultório de Arnaldo Cardias, em Tamarana (antigo distrito de Londrina), onde aparece indicado também Magno de Castro Burgos. ................................................................................................................................................267 ANEXO B – Carta manuscrita de Gregório Bezerra a Manoel Jacinto Correia. ..........268 ANEXO C – Verificação ideológica sobre Flávio Ribeiro. ...............................................269 ANEXO D – Ficha de Valdevino Madeira na DOPS/PR. .................................................270 ANEXO E – Documento do PCB assinado por Flávio Ribeiro em fevereiro de 1946, período em que o partido era legal. ....................................................................................271 ANEXO F – Bilhete manuscrito em que Flávio Ribeiro denuncia “juiz de direito latifundiário” na região de Campo Mourão, PR. ..............................................................272 15 INTRODUÇÃO Il n’ y a peut-être pas de question juridique qui offre un aussi large champ aux thèories les plus contradictories, que celle du crime politique. Lombroso e Laschi No ano de 1995, o Fórum de Londrina, após um pedido formal, cedeu ao Centro de Documentação e Pesquisa Histórica (CDPH) da Universidade Estadual de Londrina um amplo conjunto de autos criminais, na iminência de sua incineração1, que abrangiam desde a fundação da Comarca, em 1938, até o ano de 1972. Dentre estes, foram encontrados 14 processos criminais de motivação política, instaurados nos anos 50 e 60, sendo cinco na primeira década e nove na segunda, todos pelo critério da Lei nº. 1802, de 05 de janeiro de 1953, a Lei de Segurança Nacional vigente até a 1967, quando foi reeditada no Decreto-Lei nº. 314, já durante o regime militar. Na análise e seleção documental, verificou-se que dois processos- crime em períodos distintos, um de agosto de 1956 e outro de julho de 1964, eram relativos ao Sindicato dos colonos e assalariados agrícolas de Londrina e coincidiam com a época de seu surgimento e ocaso. Constatou-se, posteriormente, que o ano de 1956 representara o início da proliferação de sindicatos de trabalhadores rurais no sul do Brasil. No primeiro processo, instaurado neste ano, dirigentes sindicais estavam sendo acusados de, através da criação de um sindicato ilegal, liderarem um grande movimento de sindicalização dos camponeses, e, a esse pretexto, reestruturar o Partido Comunista do Brasil no Norte do Paraná, o que vinha 1 PARANÁ. Corregedoria Geral da Justiça. Ofício nº. 961/95 de 27 de dezembro de 1995. Eliminação de Autos. Curitiba, 1995. 16 assustando e mobilizando os setores mais conservadores da cidade e região. A promotoria os enquadrou nos crimes de usurpação de nome ou pseudônimo alheio, de estelionato e, no âmbito da legislação especial, direcionada ao crime político, na Lei de Segurança Nacional, por estarem “tentando rearticular a extinta organização”.2 No segundo processo, quando do fechamento do sindicato, em abril de 1964, a acusação foi semelhante: a tentativa de “reorganizar, de fato e de direito, o extinto Partido Comunista Brasileiro (PCB)”.3 É importante assinalar que, segundo HELLER DA SILVA, “exceto muito raras exceções, nenhuma organização sindical produziu arquivos relativos ao período anterior ao golpe de Estado de 1964”,4 tornando essa documentação escassa do ponto de vista de fontes primárias para a historiografia. O período histórico da vida política nacional que compreende do ano de 1945 a 1964 é comumente denominado pela historiografia como democrático,5 em que pese, como é sabido, ter sido marcado pelo paroxismo dos confrontos políticos em torno do Estado brasileiro, chegando às vias da violência institucional como meio de resolução, logrando êxito na instauração do regime de exceção perpetrado pelos militares em abril de 1964. Nos estertores do Estado Novo, ainda sob o impacto da violência da Grande Guerra (1939-1945), comemorava-se a vitória das “democracias” sobre os regimes nazi-fascistas, com a expectativa de construção de um mundo novo, contando com as inovações científicas e tecnológicas oriundas da própria guerra. É essa crença difusa que caracteriza, inicialmente, o período dito democrático, balizado por dois golpes políticos: no governo de Getúlio Vargas, deposto em 1945; e de seu herdeiro político, João Goulart, defenestrado em 1964. Nesse ínterim, deve-se recordar que o vezo autoritário manifestara-se diversas vezes no plano institucional da nação: o Partido Comunista Brasileiro (PCB) tivera 2 Processo-crime nº 6094/56, fl.3-4. Londrina, UEL/CDPH. 3 Processo-crime nº 158/64, fl.3. Londrina, UEL/CDPH. 4 “No Brasil, ainda largamente impregnado da cultura oral, é surpreendente que no sindicalismo a documentação não preencha mais que uma função meramente burocrático-administrativa e não foi percebida como reserva de memória coletiva. Os arquivos são considerados como montes de "papéis velhos", que, para grande prejuízo do investigador, são regularmente sujeitos à "limpezas". As atas que dão conta das reuniões sindicais, quando existem, pecam pelo seu extremo formalismo e limitam-se ao respeito das normas legais”. (Tradução nossa). Cf. HELLER DA SILVA, Osvaldo. Communistes e anticommunistes: l’enjeu du syndicalisme agricole dans l’etat du Paraná de 1945 a la fin des anees 70. Thèse (doctorat de sociologie) - Paris, Ecole des Hautes Etudes en sciences sociales, 1993. p.12. (Tradução Nossa). 5 Ver por exemplo, CARONE, Edgar. A República liberal: instituições e classes sociais (1945-1964). São Paulo: DIFEL, 1985. 17 seu registro cassado pela Justiça Eleitoral no ano de 1947; Getúlio sai de cena em 1954; no ano de 1956, Juscelino Kubitschek assume mediante o “golpe preventivo” do General Teixeira Lott contra os dissidentes da caserna e, em 1961, Jânio Quadros renuncia, após alguns meses de governo, num lance histriônico ainda pouco esclarecido pela história. A constituição de 1946, que levava o rótulo de liberal em anátema à legislação estadonovista, conservava ciosamente princípios discriminatórios e hierárquicos flagrantes, como a ilegalidade da greve, a verticalidade e corporativismo da estrutura sindical prevista na Consolidação das Leis do Trabalho, interditava o voto aos analfabetos e preservava diferenciações quanto aos direitos raciais e das mulheres.6 Segundo a Revista Le Mouvemente Syndical Mondial, o movimento paredista de 1953 teria aglutinado cerca de 800 mil trabalhadores; em 1954, saltaria para um milhão e seiscentos mil, denotando a política de oposição do Partido Comunista Brasileiro devido à insatisfação crescente com o Governo Vargas e o tratamento dispensado à “greve dos 300 mil” ocorrida em 1951. 7 No direcionamento dado à política econômica, desde o início da década de 1950, sob influência do nacionalismo varguista e da CEPAL 8, vinha sendo debatida a perspectiva de uma doutrina do desenvolvimento econômico, depois denominada “nacional-desenvolvimentismo” 9, que se caracterizava por estar 6 CHAUÍ, Marilena. apud. ADUM, Sônia Maria.S.Lopes. Subversão no Paraíso. O comunismo em Londrina. 1945/1951. 2002. Tese (Doutorado em História) – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p.6. 7 Le Mouvemente Syndical Mondial apud BOITO JR, Armando. O golpe de 1954: a burguesia contra o populismo. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.89. 8 Os estudos da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão ligado às Organizações das Nações Unidas (ONU), tiveram grande repercussão durante as décadas de 1950 e 1960 com relação à temática do “subdesenvolvimento” e a “dependência” da América Latina, abordando a dinâmica do sistema centro- periferia e os desequilíbrios estruturais nas economias periféricas em função da ascensão do Estados Unidos da América como novo centro político-econômico mundial, tendo em Celso Furtado seu principal expoente no Brasil. RICUPERO, Bernardo. Celso Furtado e o pensamento social brasileiro. Estud. av., São Paulo, v. 19, n. 53, 2005. Disponível em: . Accesso em: 19 Jan 2007. doi: 10.1590/S0103- 40142005000100024. 9 Projeto formulado pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 14 de julho de 1955, subordinado ao Ministério da Educação e Cultura, congregou intelectuais das mais diversas extrações teóricas, como Anísio Teixeira, Hélio Jaguaribe, Ewaldo Correia de Lima, Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes de Almeida e Alberto Guerreiro Ramos. Caracterizou-se por ser um centro de formação política e ideológica, de cunho democrático e reformista, convergindo na perspectiva de que, por meio de estudos e confrontos de idéias, seria possível formular um projeto para o Brasil. Seria então o nacional-desenvolvimentismo a síntese capaz de levar o país, através do planejamento e intervenção econômica do Estado, à superação do atraso econômico- social e cultural, tornando-se uma nação soberana e desenvolvida. TOLEDO, Caio Navarro de. 50 anos de fundação do ISEB. Jornal da UNICAMP. 18 voltada a uma acelerada industrialização em substituição das importações, sem, contudo, contrabalançar o modesto desempenho da produção de alimentos e matérias-primas nacionais. 10 Desse modo, no início da década de 1950, o decréscimo da produção interna de alimentos em face ao rápido aumento da demanda urbana e à necessidade de conter o êxodo rural, entre outros fatores, levou Vargas a anunciar um plano de modernização da agricultura, para corrigir a desigualdade no tratamento entre os trabalhadores urbanos e rurais, estendendo a legislação trabalhista ao campo, anunciando a venda de terras públicas e a divisão de latifúndios improdutivos para assentar trabalhadores rurais sem terra. 11 Em 1951, Vargas cria a Comissão Nacional de Política Agrária para o estudo e proposição de soluções à modernização das relações no campo, e, em 1953, envia ao Congresso um projeto de lei com o fito de ampliar seus poderes no assentamento de trabalhadores rurais sem terra e arrendatários nas terras consideradas sub-aproveitadas e devolutas. A forte reação e a sistemática obstrução da pauta no congresso postergaram qualquer medida mais significativa com relação ao assunto até a final aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural em 1963. O sucedâneo mais imediato fora a criação do Serviço Social Rural (SSR), em 1954, financiado pela taxação do patronato agrícola,12 como paliativo de curto alcance. É nesse estado de letargia estatal no que se refere à questão do homem do campo que o sindicalismo rural encontrou terreno fértil para abrir a “caixa de pandora” da Legislação Trabalhista, que, feito letra morta no discurso governamental, alastrou-se como um rastilho de pólvora nos confins do sertão brasileiro, capitaneada, sobretudo pelos sindicalistas e militantes comunistas, em face à miséria do camponês que, de um lance, cria-se integrado no tabuleiro jurídico da relação capital-trabalho, ainda que escudado em uma legislação outorgada e assaz restritiva das possibilidades organizacionais e políticas dos trabalhadores. Entre os anos de 1952 e 1955, período de significativa alta nos preços do café, produto responsável pela maior parte das receitas cambiais que Disponível em . Acesso em: 24 ago.2006. 10 STOLCKE, Verena. Cafeicultura: homens, mulheres e capital. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.133; 184. 11 Ibid., p.140. 12 Ibid., p.142 19 financiavam o processo de substituição de importações no país, os níveis salariais do trabalhador rural vinham declinando gradualmente, tornando cada vez mais explosiva as relações entre os cafeicultores, que reclamavam do “confisco cambial” 13 promovido pelo governo desde 1953, e os trabalhadores cada vez mais pauperizados. 14 Em função dos grandes excedentes da produção cafeeira na década de 1950, em 1961, o Estado adotara, com o surgimento do Grupo Executivo de Racionalização da Agricultura (GERCA), criado por João Goulart, a política de erradicação maciça de cafezais visando comprimir a oferta e liberar áreas para plantio de outras culturas alimentares e matérias-primas para a indústria. Isso se deu através da extinção do confisco cambial e de financiamentos facilitados aos proprietários no Banco do Brasil, aprofundando as transformações nas relações sociais de trabalho nos campos do Sudeste e Sul do país, baseadas, sobretudo, no colonato. O surgimento das Ligas Camponesas, associações e sindicatos, representaram, nesse contexto, um importante espaço de reconhecimento e de luta dos trabalhadores rurais ante as políticas praticadas pelo Estado francamente desfavoráveis a essa categoria social. As refregas entre essas entidades ou cidadãos contestadores e os setores conservadores da sociedade, freqüentemente concertados com o Estado, deram ensejo a que lançassem mão do recurso ao aparato policial e ao judiciário, resultando na produção de vários processos-crime, fundados na Lei de Segurança Nacional, contra os denominados crimes políticos, com o objetivo de conter o protesto social. No Paraná, como em outras regiões do país15, a questão agrária assumiu contornos de “guerra revolucionária” com o desastroso histórico de 13 O denominado “confisco cambial”, promovido pelo Ministro da Fazenda Lucas Lopes, na exportação do café, foi o motivador da conhecida “Marcha da Produção” em 1957 e 1958, quando cafeicultores dos Estados de São Paulo e Paraná se reuniram em caravanas de carros e caminhões para tentar chegar ao Rio de Janeiro, então capital federal, para protestar, sendo barradas pelo exército a mando do presidente Juscelino Kubitschek. MARCHA da Produção. In: ABREU, Alzira Alves de et al. (Coord). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós 1930. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001, v. 3, p.3552. 14 STOLCKE, 1986, p.172. 15 Movimentos como o de "Trombas e Formoso", em Goiás; "Demônios de Catulé", em Minas Gerais; "Santa Fé do Sul", em São Paulo; a organização das "Ligas Camponesas", no Nordeste e a proliferação dos "Sindicatos de Trabalhadores Rurais", a partir de 1956, no sul do Brasil, a fundação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) em 1954, substituída pela Confederação dos Trabalhadores Agrícolas do Brasil (CONTAG) em 1963, os conflitos agrários no Paraná, de 1952 para 1957, às vésperas do golpe de Estado de 20 ocupação da terra. A “guerra de Porecatu” (1950-1951) e a “Revolta do Sudoeste” (1957)16 alimentaram as representações sobre o Estado do Paraná como o “Trampolim da Revolução Bolchevista no Sul do País”.17 O grave conflito em Porecatu, situado na região norte do Estado, ocorrido nos anos 1950-1951, propiciara o engendramento de representações simbólicas bastante divergentes acerca do mundo social, onde indivíduos de extratos sociais os mais diversos reclamaram para si o papel de porta-vozes das camadas populares envolvidas nas lutas agrárias, buscando constituir estruturas de representação desses atores sociais e porfiando pela legitimidade representativa dessas camadas ante ao Estado. 18 Sobre a natureza da dinâmica de poder que atravessou a luta pela conquista do controle de entidades de representação sócio- política no período, observou HELLER DA SILVA que: Enquanto dominantes, comunistas ou anticomunistas, sentiam-se bastante inclinados a adotar estratégias de conservação. Os dominados não têm outra escolha que a de tentar levar a efeito estratégias de renovação. Malgrado toda a obra de distância ideológica e política que separa os partidários de Marx dos adeptos de Cristo, todos trabalham, à sua maneira, para a manutenção de seu campo de ação. 19 (Tradução nossa) O processo histórico de ocupação de terras do Norte do Paraná provocou conflitos de grandes proporções envolvendo a disputa pela posse da terra, o que, de certo modo, propiciou as condições do desenvolvimento de células do Partido Comunista Brasileiro na região 20, as quais, por sua vez, moldaram as primeiras formas de representação coletiva dos trabalhadores no campo, conhecidas 1964, as invasões de terras na Paraíba, em Pernambuco, Minas Gerais e Goiás. As greves de setembro de 1954, nas plantações de cana-de-açúcar no estado de São Paulo; em 1961, dos trabalhadores na cana-de-açúcar, em Guariba e Barrinha (São Paulo); em 1962, dos trabalhadores da Fábrica Nova América, em Itanhaém e na região de Sertãozinho, São Joaquim e Alto Sorocabana (São Paulo); e, em novembro de 1963, 200 mil e fevereiro de 1964, 300 mil trabalhadores da região açucareira do estado de Pernambuco constituem exemplos do cenário no campo nas décadas de 1950 e 1960 no Brasil. Ver MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1983, p.71-76; IANNI, Octávio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, p.80-83. BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 169. 16 A Revolta dos Colonos do Sudoeste do Paraná teve sua apoteose quando da invasão dos escritórios das colonizadoras que aterrorizavam a população da região, e rasgaram os títulos de propriedade por ela emitidos. A Revolta dos Colonos. [nov.2006]. Curitiba: TV Globo, 2006. Duração: 00:15 min. Programa Meu Paraná. 17 SERIA o Paraná o trampolim da Revolução Bolchevista no sul do país. Folha de Londrina, Londrina, 10 ago. 1956. p.5. 18 HELLER DA SILVA, 1993, p.7. 19 Ibid. 20 O PCB atuou na região de Porecatu à partir dos Comitês Regionais de Londrina, Presidente Prudente, SP e Assis, SP. Cf. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p.73-4. 21 por “ligas camponesas”. Após o término dos conflitos mais ingentes na região de Porecatu, os comunistas orientaram os seus esforços no sentido de criar, no princípio da década de 1950, as “Uniões Gerais de Trabalhadores” (UGT), organismos de representação de caráter sindical que visava enquadrar tanto os trabalhadores rurais como os urbanos. A reação dos proprietários de terra a essas organizações foi virulenta. Contudo, mesmo assim, essas entidades lograram grande inserção entre os trabalhadores do campo, notadamente entre os colonos e demais trabalhadores das plantações de café. Em conseqüência, foram desmembrados dando origem aos primeiros sindicatos de natureza agrícola, que, ante a pobreza ostensiva dos trabalhadores rurais, acenaram com a perspectiva de inclusão desses na legislação trabalhista. O Sindicato dos colonos e assalariados agrícolas de Londrina, fundado no início de 1956, surgiu como expressão dessa demanda, conseguindo obter larga adesão dos trabalhadores nos campos paranaenses e provocando um grande temor nas oligarquias agrárias e na Igreja, pela possibilidade de não só pressionar pela elevação salarial dos camponeses, mas vir a tornar-se o estopim de um movimento revolucionário, devido à presença dos comunistas em sua diretoria, ainda que, naquele momento, o PCB assumisse uma posição mais reformista e mesmo legalista, que propriamente revolucionária. Aquelas, por sua vez, passaram a emular pela representação da população rural, através da influência da Igreja Católica e outras entidades de caráter civil21, culminando na criação da Associação dos Lavradores do Norte do Paraná, em 195622, e na Frente Agrária do Paraná (FAP), em 196123, de onde saíram muitos dos quadros para assumir os sindicatos após a intervenção do governo militar. Assim, segundo Osvaldo Heller da Silva, pode-se afirmar que o Norte do Paraná constituiu uma das primeiras regiões onde as organizações sindicais de natureza camponesa irromperam de modo relevante no Brasil. 24 21 Por essa época já existia a Associação Rural de Londrina (ARL), fundada por fazendeiros em 1946, tendo Hugo Cabral e Álvaro Godoy entre seus fundadores, Segundo ARIAS NETO, foi através desta associação “[...] que a primeira diretoria mobilizou as forças rurais para as eleições municipais de 1947. Hugo Cabral – advogado, fazendeiro de café e primeiro presidente da Associação Rural – foi o candidato vitorioso no pleito de 1947 pela legenda da UDN”. Cf. ARIAS NETO, José Miguel. O Eldorado: representações da política em Londrina, 1930/1975. Londrina: Ed. UEL, 1998. p.115. 22 GODOY, Olavo. A agitação e as condições de colonos e patrões tem como causa a política do Ministro da Fazenda. Folha de Londrina, Londrina, 03 ago. 1956. p.4. 23 HELLER DA SILVA, 1993, p.7. 24 Ibid.. 22 O golpe civil-militar de 1964 arrefecera os movimentos no campo e, com eles, a presença do PCB no meio rural paranaense. Esse vácuo deixado pelos comunistas seria imediatamente ocupado pelos sindicalistas católicos formados pelas congregações marianas que transformaram os sindicatos em entidades prestadoras de serviços à comunidade rural. Essa influência entrara em descenso junto com o ocaso do regime militar, dando lugar ao novo movimento sindical, que caracterizou as décadas de 1980 e 1990. 25 Surgiu então, para esse estudo, o problema de como a promotoria e o judiciário percebeu e representou a figura jurídica do “criminoso político” em duas diferentes décadas e como procedeu com relação às entidades e indivíduos considerados “perigosos”,26 em um processo do período democrático, durante o Governo de Juscelino Kubitschek, e outro, nos primeiros miasmas do regime militar que havia tomado o país de assalto, quando então se iniciara uma caça às bruxas na cidade de Londrina. As diferentes figuras jurídicas do crime político, segundo CARRARA, remontam à Antigüidade, alcançando a Roma Republicana na figura do perduellio. A seguir, desde o império Romano até 1786, assumiram a forma de Lesa-majestade, contra o monarca identificado ao corpo da própria nação, e, por fim, surge nos códigos modernos, com a Revolução Francesa, o delito contra a Segurança do Estado e sua divisão entre segurança interna e externa. 27 O rigorismo que acompanhou as penas para os delitos de natureza política pode ser explicado pela fusão metonímica, anterior ao século XIX, entre o regime político, o estado e a nação, tomados como entidades naturais e perenes. Segundo o silogismo do poder, a diferença valorativa entre a existência do corpo da nação e o corpo do indivíduo, induzia celeremente à crença na necessidade de exterminar qualquer recalcitrante. 28 Após a degola massiva a que procedeu o período da Convenção, durante a Revolução Francesa, germinou com mais força a percepção de uma nova 25 HELLER DA SILVA, 1993, p.7. 26 O conceito de “periculosidade” aqui utilizado nos remete à “escandalosa noção em termos de teoria penal” que indica que o indivíduo deva ser julgado ao nível de seu potencial e não de seus atos, não em função de uma infração efetiva, mais do virtual comportamento que poderá assumir. Cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2002. p.85. 27 CARRARA apud MENEZES, Evandro Moniz Correia de. Crime político: noção histórica e fundamentos doutrinários. Curitiba: Gráfica Paranaense, 1944. p.7. 28 SANTOS, Boaventura de Souza. Os crimes políticos e a pena de morte. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro, n.1, p.46, jan./mar. 1971. 23 visão da política que se consolidou através da era moderna, afirmando a transitoriedade dos regimes políticos e dos governos e a caducidade dos ideários políticos em relação à comunidade nacional, propiciando um maior matizamento na distinção entre a nação e o estado, e este em relação ao governo que, em determinado momento, o representa, de modo que se concebeu a possibilidade jurídica do criminoso político ver reconhecida a sua fidelidade altruísta à justiça social, transcendendo o próprio estado ou o governo. 29 É nesse sentido que surge a possibilidade eventual de se interpretar a figura do criminoso político, como alguém que, quando intenta derrubar um certo governo ou regime político, tem em mente a ascensão de um outro que, em princípio, promoveria a justiça social na nação, segundo o qual deveria ser distinguido do criminoso comum, devendo, em face da nobreza suposta de sua conduta, receber tratamento diferenciado, tanto mais que se trate de suposto crime contra o Estado, vítima, e ao mesmo tempo, juiz em causa própria. 30 Para percorrer os caminhos que levaram à elaboração dos processos de cunho político-criminal, auxiliar a reconstrução do itinerário dos acusados e informar a percepção que a promotoria e o judiciário tiveram do problema, em face da natureza lacunar e fragmentária dos autos, foi necessário uma pesquisa no Departamento Estadual de Arquivo Público (DEAP), em Curitiba, na expectativa de encontrar informações produzidas pela DOPS/PR, constantes daquele acervo, composto por dossiês – pessoais e temáticos - e fichas, com menor teor de informação. Com relação aos réus e envolvidos, foram encontrados documentos diversos, além de cópias de documentos dos inquéritos policiais havidos em Londrina e fichas contendo dados sobre outros nomes citados nos processos ou recortes de jornais da época constantes dos autos. Procedeu-se também à busca de dados complementares no jornal local “Folha de Londrina”, relativos ao período, pertencentes ao acervo do CDPH, e a conversas com contemporâneos aos acontecimentos, também citados nos processos, constatando a polêmica e a contundência do assunto, não sendo possível estender a pesquisa através da ampliação documental e de depoimentos orais em função da disponibilidade do tempo previsto para sua execução. 29 SANTOS, Boaventura de Souza, 1971, p.46. 30 Ibid. 24 No que se refere à perspectiva historiográfica, esta análise situa-se a meio século do desencadeamento do primeiro processo e após mais de quatro décadas do golpe civil-militar de 31 de março. Na história republicana brasileira, esse evento tem sido interpretado como re-materialização de um mito fundador31 de profunda inserção em nossa mentalidade, qual seja, a vocação autoritária da política brasileira e a tolerância popular em face dela, reverberando, desde então, nas representações que a historiografia vem produzindo, e denotando a presença ostensiva desta temática no imaginário nacional. 32 É nessa perspectiva que, como proposta de abordagem, teve-se por objetivo ultrapassar uma análise dos processos a partir de categorias antinômicas que ocultam imbricações verificadas entre representações relativas aos períodos “democráticos” e aos períodos “autoritários” da história republicana brasileira. Isso induziria a um dualismo que identifica, nos períodos ditatoriais, um Estado Leviatan em oposição absoluta e exterior à sociedade civil e democrática, colocando na sombra o consentimento de setores da sociedade e de indivíduos, não adstritos necessariamente à chamada “classe dominante”, às práticas autoritárias nos diferentes regimes e ao compartilhamento de modos de representação depreciativos 31 Utilizo aqui o termo “mito” na acepção que Marilena Chauí empresta ao termo: “Ao falarmos em mito, nós o tomamos não apenas no sentido etimológico de narração pública de feitos lendários da comunidade (isto é, no sentido grego da palavra mythos), mas também no sentido antropológico, no qual essa narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade. Se também dizemos mito fundador é porque, à maneira de toda fundatio, esse mito impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal. Nesse sentido, falamos em mito também na acepção psicanalítica, ou seja, como impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela. Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.”. CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.9. 32 Para uma discussão relativa ao autoritarismo no Brasil, poderíamos citar o debate a partir dos mais conhecidos pensadores autoritários brasileiros, Oliveira Viana , Alberto Torres e Azevedo Amaral. Na historiografia recente, temos como exemplo os debates instaurados no ano de 2004, por ocasião dos quarenta anos do golpe civil- militar, consignados no livro O Golpe e a ditadura militar. Quarenta anos depois (1964-2004), organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, editado pela EDUSC, e a discussão proposta em Além do Golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar, de Carlos Fico, editado pela Record, ambos no ano de 2004. Sobre uma literatura específica relativa à violência do Estado e à transição entre regimes políticos, temos os artigos e livros produzidos por Paulo Sérgio Pinheiro, conforme a seguir: PINHEIRO, Paulo Sérgio "Autoritarismo e transição". Revista da USP: Dossiê Violência, São Paulo, n.9, mar./maio de 1991. PINHEIRO, Paulo Sérgio. "Violência, crime e sistemas policiais em países de novas democracias". Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v.9, n.1, maio de 1997. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estado e terror. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Cia das Letras, 1992. VIOLÊNCIA de Estado e classes populares. Dados, Rio de Janeiro, n.22, 1979. Crime, violência e poder. São Paulo: Brasiliense, 1983. SADER, Emir. O controle da polícia no processo de transição democrática no Brasil. Temas IMESC, São Paulo, v.2, n.2, 1985. 25 do “outro”, conforme verificou-se nos diversos discursos integrantes do corpus documental que constituem as fontes deste estudo e que remetem à percepção de uma continuidade ascendente e descendente na economia do poder 33 em busca da governamentabilidade, as quais atravessam as relações sociais de cima abaixo da hierarquia forjada socialmente, mas também horizontalmente, em toda extensão do tecido societário. Partindo dessa constatação, a questão que se coloca é pensar o poder, segundo Michel Foucault, não apenas em suas formas negativas e repressivas – uma concepção jurídica do poder – mas pensá-lo para além do Estado e suas instâncias político-institucionais e buscá-lo em suas táticas e estratégias de dominação, pulverizadas por toda a rede de relações sociais, que caracterizaria a sociedade disciplinar 34 desde meados do século XIX. De acordo com a leitura de Deleuze sobre Foucault: As relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações... a posição (delas) não é a de superestrutura... elas possuem, onde agem, um papel diretamente produtor’. O que ainda há de piramidal na imagem marxista é substituído na microanálise funcional por uma estreita imanência na qual os focos de poder e as técnicas disciplinares formam um número equivalente de segmentos que se articulam uns sobre os outros e através dos quais os indivíduos de uma massa passam ou permanecem, corpos e almas (família, escola, quartel, fábrica e, se necessário, prisão). ‘O’ poder tem como características a imanência de seu campo, sem unificação transcendente, a continuidade de sua linha, sem uma centralização global, a continuidade de seus segmentos sem totalização distinta: espaço serial. 35 Partindo da necessidade de normalizar as relações intersocietárias, as práticas de poder engendram toda uma tecnologia de disciplinarização dos indivíduos, por meio da qual se busca apreender e produzir desde o gestual adequado até as atitudes de comportamento de foro íntimo no sentido de obter a sujeição dos corpos e mentes. No âmbito da jurisdição estatal, opera a dimensão estratégica do poder, naquilo que Foucault denominou de biopoder, o qual, a partir da teoria política, constrói dispositivos de vigilância e normalização da população 33 FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998. p.165. 34 “Ligadas aos imperativos econômicos e políticos de uma ordem que se impunha, as disciplinas – técnicas já conhecidas na civilização ocidental, como, por exemplo, nos conventos, nas oficinas e nas legiões romanas – passaram a ser utilizadas maciçamente. Fábricas, hospitais, hospícios, prisões, instituições fundamentais ao funcionamento da sociedade industrial capitalista, nelas se estruturaram e adotaram como lógica de funcionamento as técnicas e táticas oriundas deste processo de disciplinarização” Cf. Michel Foucault : da arqueologia do saber a estética da existência / organizadores Guilherme Castelo Branco e Luis Felipe Baeta Neves. - Rio de Janeiro : NAU ; Londrina : CEFIL, 1998. p.130. 35 DELEUZE, Gilles. Foucault. Brasiliense: São Paulo, 1998. p. 36. 26 através do controle demográfico e estatístico, ou seja, das taxas de natalidade, mortalidade, patologias, classificação sócio-econômica, disposição habitacional, etc. É assim que a arte de governar implicaria uma multiplicidade de objetivos específicos, e é nesse sentido que, mais que justificar a soberania na perspectiva jurídica, o governo deve dispor as coisas – “utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas”. 36 A diferença reside no fato de que a ênfase jurídica da soberania é deslocada para uma racionalidade do governo na sua relação com a “população”, tendo subsumida e como núcleo celular, a família, outrora o arquétipo do Estado. A eclosão da perspectiva foucaultiana na historiografia brasileira deu-se, sobretudo, em fins da década de 1970 e início da de 1980, quando o país, em compasso de “redemocratização”, ou por outra, de saída da “longa noite” da ditadura, vivia a reemergência dos movimentos sociais, parecendo a busca de outras formas de olhar a questão da transformação social tanto mais pertinente em razão da necessidade de fazer-se uma nova crítica do autoritarismo, de esquerda e de direita, e a repensar a questão da cidadania e do direito. Segundo Margareth Rago: Ponto fundamental para os historiadores: a dominação não se fazia apenas de cima para baixo, do Estado para a ‘sociedade civil’, ou ainda da mídia para os consumidores passivos da escola frankfurtiana, mas incidia pelos espaços físicos e institucionais, a despeito do controle e da vontade dos indivíduos. Sem negar a existência da dominação classista [...] a hegemonia não se constituía apenas pelo silenciamento, mas pela própria produção da subjetividade. 37 Desse modo, na definição do objeto deste estudo, conforme a perspectiva teórica de Foucault38, não se partiu do objeto “crime político”, senão do entrecruzamento de práticas discursivas e não-discursivas (neste estudo, 36 Michel Foucault, em seu último capítulo de A Microfísica do Poder, discorreu sobre os problemas da relação entre o Estado e a sua população, o que denominou “governamentabilidade”. Ao modo de governo predominante na estrutura feudal, fundado, sobretudo, na figura do Rei, identificado com o conjunto dos súditos, sucedeu um processo de concentração estatal, dando origem aos grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais, e, com ele, novos problemas na articulação entre este Estado e os seus nacionais, ou, de outro modo, de aprofundamento da unificação nacional. Ver FOUCAULT, 1998, p.165-167. 37 RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores. Resgate nº 5, Campinas: Papirus,1993. p.24. 38 Segundo RABINOW e DREYFUS é possível isolar três temas metodológicos no pensamento de FOUCAULT. O primeiro seria a passagem das formações discursivas para as não-discursivas, tais como as práticas culturais e a questão do poder, o segundo trata da questão do poder a partir das práticas culturais que reúnem saber e poder, e, por fim, o isolamento do bio-poder, um conceito que articula as tecnologias políticas do corpo com o discurso das ciências humanas e as estruturas de dominação, desde o início do século XIX. RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1995. p.13. 27 particularmente as práticas jurídicas que produzem, por sua vez, relações de saber e poder) e das práticas de subjetivação entendidas como a produção histórica de certos modos de ser, de sentir, de pensar e de agir, e que o constituem como “objeto” para o pensamento. É assim que, historicamente, a própria expressão crime ou delito político surgira, de acordo com Galdino Siqueira, com Filangieri, tendo sido adotada por Kluit, vindo a aparecer na Constituição da França em 1830, e da Bélgica em 1831, antes que em qualquer outra. 39 Com efeito, no entendimento da historicidade do conceito de crime político para este estudo, partiu-se da contraposição ao conceito de Estado como “lugar” exclusivo do poder, ao qual Foucault propõe que “o poder deve ser analisado como algo que circula”40, algo que só funciona em uma teia de relações, não podendo situá-lo apenas no aparato estatal como “entidade” essencial e exclusiva de onde se exerce o poder. O próprio poder judiciário41, uma das instituições basilares do Estado, funciona e se exerce sempre em rede com os discursos de outros saberes que atravessam e constituem o corpo social, como o saber veiculado na imprensa, na escola, na religião, na “crença” científico-tecnológica, no plano das normas42, entre outros, como é possível verificar no interior dos processos-crime, os quais concorrem para a produção de um “quadro factual” que inclinará a decisão do magistrado para a condenação ou absolvição dos réus. Nesse sentido, para Foucault, importa perguntar quais são e como se organizam as regras de direito que as relações de poder põem em funcionamento a fim de produzir discursos de verdade. Em conseqüência, para os fins desta análise, considerou-se, sobretudo, o dispositivo jurídico de controle e subjetivação do indivíduo social. Contudo, vale lembrar que o locus do poder de punir ou absolver não está situado apenas na instituição judiciária, pois, antes de ser a força que se 39 SIQUEIRA, Galdino. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Ed. Jacinto, 1924. Parte Especial. p.17. apud, MENEZES, 1944, p.16. 40 "Não é algo que se possa dividir entre aqueles que possuem e o detém exclusivamente e aqueles que não possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem." FOUCAULT, 1998, p.103. 41 “Parece-me que a história da justiça como aparelho de Estado permite compreender porque, pelo menos na França, os atos de justiça realmente populares tendem a escapar ao Tribunal e por que, ao contrário, cada vez que a burguesia quis impor à sedição do povo a coação de um aparelho de Estado, instaurou-se um tribunal: uma mesa, um presidente, assessores e dois adversários em frente. Assim reaparece o judiciário.” Foucault, 1998, p.25. 42 A norma, para Foucault, é “uma maneira do grupo se dotar de uma medida comum segundo um rigoroso princípio de auto-referência, sem recurso a nenhuma exterioridade, quer seja a de uma idéia, quer a de um objeto”. EWALD, François. Foucault: a norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993. p.108. 28 exerce para coagir e normalizar, o poder é uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada, 43 ou seja, possui um caráter relacional. Em suma, constitui uma prática social pulverizada por toda a sociedade, prática essa que comporta os discursos de controle/punição e de ortopedia moral como duas faces da ação prescritiva que o direito e a norma exercem na sociedade disciplinar: O controle dos indivíduos, essa espécie de controle penal punitivo ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção – a polícia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para a correção [...] Toda essa rede de um poder que não é judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades. Entramos assim na idade do que eu chamaria de ortopedia social. Trata-se de uma forma de poder, de um tipo de sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente. É a idade de controle social. 44 No plano da análise documental, considerou-se o plano intradiscursivo da linguagem de seus agentes, em relação às suas “práticas”, entendidas dentro da perspectiva foucaultiana de Veyne, definida por Cardoso Jr. como: Aquilo que imanta todo um conjunto de acontecimentos, aquilo que permite, no plano discursivo, costurar a dobra narrativo-teórica, isto é, entre a diferença temporal de um acontecimento e uma operação conceitual que lhe seja afeita. ‘Prática’ é aquilo que os homens efetivamente fazem, não aquilo que eles pensam a respeito do que fazem. Mais ainda: prática é o fazer que se reitera em toda uma série de acontecimentos, disso derivando sua maneira de ser oculta, disso derivando sua raridade. 45 Como diz Foucault, dentre as práticas sociais onde é possível localizar a irrupção de novas formas de subjetividade, as práticas judiciárias figuram entre as mais importantes. É nessa “materialidade discursiva” dos inquéritos e dos processos que se constitui a efetivação de um determinado modo de ser e agir que vai operar ou para a construção da “prova” da culpabilidade ou para a conformação ao modelo de inocência engendrada por um conjunto de “verdades” que confronta e 43 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 11.ed. Rio de janeiro: Graal, 1993. p.89. 44 Idem, 1998, p.86. 45 CARDOSO JR, Hélio Rebello “Tramas de Clio”. Convivência entre Filosofia e História. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2001. p.113-114. 29 busca a redução dos modos particulares46 do indivíduo apanhado nessa relação dessimétrica entre si e os instrumentos de poder e saber, pulverizados por todo o tecido social, no limiar onde o conceito mais sutil de dominação dissocia-se da ostensividade da repressão.47 Nas palavras do próprio Foucault: O inquérito não é absolutamente um conteúdo, mas a forma de saber. Forma de saber situada na junção de um certo tipo de poder e de certo número de conteúdos e conhecimentos [...]. Parece-me que a verdadeira junção entre processos econômico-políticos e conflitos de saber poderá ser encontrada nessas formas que são ao mesmo tempo modalidades de exercício de poder e modalidades de aquisição e transmissão do saber. O Inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autenticar a verdade [...] O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e as determinações econômico-políticas.48 Dentro dessa perspectiva, o objetivo deste estudo foi apreender práticas jurídicas de conservação da ordem interna contra os chamados “delinqüentes políticos”, sob a égide do ideário da “Doutrina de Segurança Nacional” vigente no Brasil após a Segunda Grande Guerra e estabelecer elementos comparativos entre os dois processos-crime contra os líderes sindicais, instaurados com os objetivos de reprimir e normalizar os conflitos no campo, sob influência majoritariamente comunista, na região de Londrina, Norte do Paraná, em dois diferentes momentos históricos. O marco temporal da análise privilegiou o período do primeiro processo criminal, instaurado no alvorecer do governo de Juscelino Kubitschek, em agosto de 1956, por ocasião da fundação do Sindicato dos Colonos e Assalariados Agrícolas de Londrina, tendo sido arquivado em maio de 1958, período em que a discussão sobre a extensão da legislação trabalhista ao campo em substituição ao regime de colonato estava na ordem do dia, e após, o período relativo ao segundo processo-crime, já sob o governo militar, principiado em julho de 1964, quando o 46 “Particular” é tomado aqui em oposição à “específico”; enquanto a história procura uma espécie de generalidade, ou mais precisamente de especificidade, para além da individualidade dos acontecimentos, passa- se da singularidade individual à especificidade, isto é, ao indivíduo como ser inteligente (é por isso que “específico” quer dizer ao mesmo tempo “geral” e “particular”). O indivíduo, seja como papel principal da história ou figurante entre milhões de outros, só conta historicamente pela sua especificidade; daí ser importante a distinção entre o singular e o específico. “É histórico tudo o que for específico”. Cf. VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: Edunb. 1982, p. 92. 47 FOUCAULT, 1998, p.85. 48 Idem, 2002, p.78. 30 novo Ministério do Trabalho e Previdência Social, sob o comando de Arnaldo Lopes Sussekind, que assumira a pasta já em 04 de abril, iniciou a intervenção em todos os sindicatos do país que fossem considerados “subversivos”, e foi arquivado em julho de 1967, quando o colonato, regime de trabalho predominante por mais de um século na cafeicultura paulista e paranaense, já havia entrado em processo de extinção, e a CLT tinha por sucedâneo o inócuo Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), cujos efeitos práticos produziram o trabalhador volante, conhecido por “bóia- fria”. Nos dois casos em questão, os denunciantes invocaram o judiciário com o objetivo de conter a ameaça aos seus interesses econômicos e políticos, tendo por argumento, em última instância, a própria governabilidade da região, lançando mão de sua influência junto à imprensa, Igreja e outras entidades civis, para exorcizar os fumos de uma revolução comunista, que reverberava muito concretamente desde os conflitos de Porecatu e a presença de integrantes do PCB na área conflagrada, depois atuantes nos sindicatos, associações e ligas de camponeses existentes no norte paranaense. O estudo foi divido em três partes. No primeiro capítulo, além de algumas considerações de ordem teórica, procedeu-se a uma breve referencialização historiográfica das condições de produção dos processos-crime, situando-os na teia de acontecimentos locais em sua articulação com o cenário nacional e as especificidades da figura do “camponês” e da presença do PCB no Norte do Paraná. No segundo capítulo, abordou-se, a partir do processo-crime de nº 6094/56, iniciado em 10 de agosto de 1956, os argumentos da acusação, objetivando desqualificar a criação do Sindicato dos colonos e assalariados agrícolas de Londrina, enquadrando seus dirigentes na figura jurídica do delito político, através da Lei de Segurança Nacional, além de outras acusações de crime comum e como se articulou e se instrumentalizou o discurso jurídico em favor dos réus, nas próprias considerações do juiz. No terceiro capítulo, abordou-se o segundo processo-crime, de nº 158/64, no contexto do fechamento do mesmo sindicato, contra um de seus principais dirigentes, já no furor da instauração do regime militar e a hipertrofia imediata do executivo que o caracterizou. Como proposto anteriormente, o objetivo deste estudo foi verificar como procedeu o judiciário e qual o repertório discursivo mobilizado, em ambos os 31 processos - nos dois momentos citados da vida política nacional brasileira - com o fito de verificar o que os assemelha e o que os separa, do ponto de vista das práticas policiais e jurídicas contra a assim denominada criminalidade política na cidade de Londrina, no que se refere às modalidades de disciplinamento, controle, e repressão do sindicato dos trabalhadores rurais norte-paranaenses, em face à sua criação e após os desdobramentos políticos do golpe de estado imposto pelos militares em abril de 1964, que deliberaram pela intervenção nesta entidade, como de resto, em várias outras por todo o país. 32 1 ITINERÁRIOS DO CONFRONTO 1.1 Perspectivas de Abordagem A instauração dos dois processos que constituem as fontes primárias deste estudo remete a dois “acontecimentos” distintos aos quais buscamos inteligir. O primeiro, no plano das práticas relativas aos conflitos pela consolidação de um determinado modelo fundiário e de representação política na região denominada Norte Novo do Paraná, localizada na porção central do setentrião paranaense. O segundo, no plano discursivo dos processos, quando se estabeleceu o locus jurídico como arena do confronto pela condenação ou absolvição dos réus. Há, contudo, um terceiro “acontecimento” o qual deve-se considerar que é o tempo da intriga narrativa à qual procedeu-se neste momento. Para Paul Ricoeur, este terceiro tempo, o tempo histórico, é quando se realiza a mediação entre os tempos da natureza e o da consciência que, em princípio, estavam separados. O tempo histórico opera essa mediação não apenas como tempo do vivido, mas como “discurso”, como imitação narrativa desse vivido. 49 Pois “o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal”. 50 É na narrativa que se “inventa” uma intriga que é também ela uma síntese: a tensão e a composição entre as virtudes e os vícios dos indivíduos, o altruísmo ou vileza de seus objetivos, as possíveis causas e acasos e os eventos múltiplos e dispersos são todos dispostos sob a unidade temporal de uma ação total e acabada, já que não é possível descrever uma realidade que é inacessível à descrição direta. 51 Como afirma Ricoeur, as intrigas inventadas constituem o meio privilegiado pelo qual reconfiguramos nossa experiência temporal confusa, informe e, no limite, muda [...]. 52 É nesse sentido que, dentro da perspectiva foucaultiana de análise, procurou-se estabelecer uma genealogia que reconheça a dispersão dos 49 RICOEUR, P. Temps e récits. apud REIS, José Carlos. Tempo, história e evasão. Campinas: Papirus, 1994. p.78. 50 RICOUER, P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Tomo 1. p.15.. 51 Ibid., p.10. 52 Ibid., p.11-12. 33 acontecimentos (FOUCAULT, 1979, P.21), demonstrando que existe uma descontinuidade entre o “objeto” e a palavra que o nomeia, que o conceito de crime político não constitui, desde sempre, um mesmo problema, pelo contrário, ele é produto de dispositivos historicamente forjados, de modo que devemos nos interrogar de quais relações de saber-poder é produzido. O dispositivo em questão para este estudo é o judiciário, através do inquérito policial e do processo criminal, que atuam como mecanismos de produção de um “caso”, que, uma vez desencadeado, passa a produzir um campo documentário que visa capturar e fixar a “superfície social” de um indivíduo, colocando-o em relação comparativa com o sujeito transcendental da personalidade sócio-jurídica, sendo então classificado e objetivado. Os arquivos passam a constituir assim uma urdidura de mecanismos políticos e de efeitos de discurso (FOUCAULT, 2002, P.211) com o fito de produzir uma tecnologia que permita não apenas desmontar as estratégias do agir, mas a própria subjetividade do indivíduo, não como forma de manipular e controlar, mas de transformar e, se necessário, destruir a própria estrutura egóica e/ou física do sujeito. Desse modo, nesse primeiro capítulo, aborda-se alguns elementos pertencentes ao plano do primeiro “acontecimento”, de práticas cujos desdobramentos produziram a quebra da lei e da norma que deram origem ao segundo acontecimento, a instauração dos processos. A constatação inicial informa a existência de uma “economia da dominação” disposta de modo diverso nos dois períodos referidos nessa pesquisa, mas que não estão em relação de oposição e também não estão vinculadas diretamente ao tipo de regime político comumente denominado e periodizado pela historiografia como democrático (1945-1964) e autoritário (1964-1985). Cabe esclarecer que a conceitualização e problematização desses regimes fogem ao escopo deste trabalho, na medida em que seu objetivo, mais restrito, foi realizar uma análise qualitativa dos processos crimes, visando precipuamente o confronto no plano jurídico entre forças políticas distintas, a partir dos campos discursivos atinentes aos processos. Com efeito, o governo Juscelino Kubitschek foi caracterizado, senão por práticas repressivas dotadas do mesmo modus operandi utilizado durante o período dos governos autoritários, por diversas práticas normalizadoras pulverizadas 34 na imprensa, no judiciário, na polícia, cada qual a seu modo, operacionalizando seus processos de estabilização das contradições sociais decorrentes do modelo do liberalismo econômico vigente. Este modelo fora seriamente posto em questão pelo crack de 1929, onde a crença na economia política liberal, através de sua expressão retórica da auto-regulação de mercado, alçada à condição de “natural”, como algo que possui uma homeostase própria, fracassara estrondorosamente, dando ensejo durante o Estado Novo, a reforçar as práticas e representações daquilo que Otávio Velho denominou “capitalismo autoritário”53, vindo a transformar-se no saber que regulou o repertório político dos anos cinqüenta: “segurança e desenvolvimento”. A noção de segurança neste momento refere-se, sobretudo à segurança do processo produtivo, a salvo tanto das ameaças dos abusos econômicos cometidos pelos detentores do capital (em tese) e das turbulências ocasionadas por males de qualquer ordem, sejam econômicos, políticos, biológicos, climáticos, etc. Contudo, o peso da herança negativa do liberalismo econômico após 1929, refletiu-se no descrédito ao jurisdicismo liberal, reforçando as interpretações autoritárias sobre o tipo de regime mais adequado às particularidades brasileiras. De acordo com Luzia H. Herrmann, que estudou o problema da democracia e da institucionalização partidária em Londrina, Azevedo Amaral postulava que o surgimento do Estado Novo era uma necessidade, de modo que “um governo liberal no Brasil seria, fatalmente, o governo dos proprietários de terra”54: Para Amaral, “a classe dos proprietários rurais, tanto nas zonas da lavoura como nas regiões da pecuária, constituía o único grupo em condições de assumir a direção da sociedade”.55 Ainda que em uma perspectiva diferente, Sérgio Buarque de Holanda expressara de modo sintomático a descrença no discurso sobre o regime democrático: “a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semi-feudal importou-a e tratou-a de acomodá-la , onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios [...]”.56 53 VELHO, Otávio G. Capitalismo autoritário e campesinato. 2.ed. São Paulo: DIFEL, 1977. 54 OLIVEIRA, Luzia H. Hermmann. Democratização e Institucionalização Partidária: o processo político- partidário no Paraná 1979-1990. Londrina, Pr: Ed. UEL, 1998. p.13. 55 AMARAL, Azevedo. O estado autoritário e a realidade nacional. Brasília: UNB, 1981. p.29. apud OLIVEIRA, op cit., p.13. 56 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p.160. apud OLIVEIRA, op cit, p.13. 35 Por fim, mesmo Gilberto Amado, democrata convicto, assinalava o espírito de rebanho que perpassava a política nacional no princípio do Estado Novo: “à extrema uniformidade de opiniões de políticas de massa, corresponde à extrema uniformidade de opiniões da elite e mostra que ainda somos um corpo amorfo onde o processo de diferenciação política ainda não começou”. 57 Fora esta fraca legitimidade democrática que atravessara os quinze anos do primeiro governo de Getúlio, desaguando no período conhecido como “interregno democrático”. 1.2 O processo-crime como fonte histórica Do ponto de vista heurístico, os autos criminais e dossiês relacionados à criminalidade política constituem uma rica fonte histórica, pois ajudam a dimensionar o alcance efetivo do dito autoritarismo anticomunista na vida da cidade de Londrina; por eles pode-se vislumbrar um elemento fundamental nas estratégias de preservação da ordem estabelecida: a tentativa de domínio das representações discursivas sobre o mundo social e seus desdobramentos nas práticas políticas e coercitivas. Contudo, conforme frisou Règine Robin 58, não se trata de conceber, na relação do historiador com a linguagem, o discurso como elemento indiciário do comportamento político, como se houvesse uma relação de transparência entre o sujeito e a palavra e a cada grupo político correspondesse um léxico específico e estanque, desconsiderando as estratégias de conformação a determinadas contingências que estão atravessando determinados atos de enunciação; situação tanto mais específica na hermenêutica de processos-crime. Nesse sentido, não podemos deduzir o comportamento político diretamente das palavras utilizadas pelos interlocutores, com o que redundaríamos em uma dupla ingenuidade, lingüística e política, pressupondo um isomorfismo entre os conteúdos do discurso e do vivido59. No que tange ao alcance e utilidade dos estudos da linguagem na análise histórica, R. Robin informa que “A lingüística permite substituir o dado do texto por uma lógica 57 AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica, 1931.p.210. apud OLIVEIRA, 1998, p.13. 58 ROBIN, Régine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977. pp.44-46. 59 Ibid. 36 do texto. Serve apenas para revelar a economia interna de uma ideologia, em caso algum para estabelecer sua função social”, devendo esta estar articulada às suas condições sociais de produção. Partimos da noção de que o teatro jurídico pressupõe um jogo de interpretações no plano da apropriação simbólica dos acontecimentos, ou como diria Michel de Certeau em “A invenção do Cotidiano” 60, uma ‘estética de lances’, uma ‘ética da tenacidade’, em certo paralelismo com a concepção de habitus discutida por Pierre Bourdieu61, a que Certeau propõe em um diapasão que capte os fluxos contraditórios e fragmentários dos acontecimentos abordados em um processo criminal. O fio condutor desta análise segue a proposição de que, conforme Mariza Corrêa62, há necessidade de um maior detalhamento da relação entre as estratégias e interesses dos atores envolvidos nas situações de prisão, inquérito policial e eventual abertura de processo, distinguindo os níveis de atuação da esfera policial e judiciária, e o seu comprometimento direto com a aplicação estrita ou dilatada de um código que servia de parâmetro para incluir ou excluir determinados sujeitos em certas categorias jurídicas. Nesse sentido, os autos constituem conjuntos documentais importantes quanto ao desvelamento das práticas jurídicas e de resistência em face das contingências sócio-políticas do período proposto para análise, conforme sugerido no início deste capítulo e constatado por Bóris Fausto, em sua obra “Crimes e cotidiano: a criminalidade na cidade de São Paulo (1880-1924)“, verificando que, [...] na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito a dois ‘acontecimentos’ diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se instaura a partir da atuação do aparelho repressivo. Este último tem como móvel aparente reconstituir um acontecimento originário, com o objetivo de estabelecer a ‘verdade’ da qual resultará a punição ou absolvição de alguém [...] os autos traduzem a seu modo dois fatos: o crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou absolver63. 60 CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano. Artes de Fazer. Petrópolis:Vozes, 1994. 61 BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. Perspectiva, 1974. 62 CORRÊA, Marisa, In: PINHEIRO, Paulo Sérgio (Org). Crime, Violência e Poder. São Paulo: Brasiliense, 1983. p.216. 63 FAUSTO, Bóris. Crimes e cotidiano: a criminalidade na cidade de São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984, p.21. 37 Também Sidney Chalhoub, utilizando os processos-crime como fonte para apreensão das ações da polícia e do judiciário, e dos modos cotidianos de seus atores, entende que “o controle social [...] procura abarcar todas as esferas da vida, todas as situações possíveis do cotidiano: este controle se exerce desde a tentativa de normatizar ou regular as relações de amor e de família, passando, nos interstícios, pela vigilância e repressão contínuas dos aparatos jurídico e policial [...] O empreendimento do controle social no mundo capitalista, portanto, diz respeito à totalidade das relações sociais por definição”.64 No plano das possibilidades estratégicas do réu e da defesa ante ao aparato repressivo, o caminho da absolvição remetia a determinado ritual de assujeitamento, onde, nas palavras de Fausto [...] é preciso, pois, falar, mas falar de modo conveniente, o que não significa apenas expressar verbalmente. O acusado deve construir uma imagem que se ajuste ao modelo de sua identidade social, ao temor reverencial devido à justiça. Isto se traduz não só pelas palavras, mas pelo gesto, pelo modo de sentar-se, de responder às perguntas, de colocar-se diante do corpo de jurados.65 No que tange à formação discursiva predominante no processo- crime, deve-se considerar que a presença do Estado enquanto entidade se estende para além dos procedimentos estruturantes do processo, e intervém de modo direto na produção da maior parte dos textos através dos agentes da justiça como os escrivões, peritos, delegados, promotores, advogados, juízes, procuradores e desembargadores, cujos papéis na dinâmica jurídica pressupõem uma competência social, enquanto representantes das instituições judiciárias, e técnica na medida em que são investidos da autoridade para interpretar e reconstruir textos. 66 Além da dessimetria entre a entidade estatal, detentora legal do monopólio da violência frente aos cidadãos desarmados, o estamento reveste-se das prerrogativas dos interesses e objetivos da Nação, enquanto o Uno simbólico que remete a sentimentos comunitários buscando produzir um apagamento do diferente, sobretudo em períodos de crises sistêmicas de amplo espectro, como verificamos no conturbado ano de 1956 e após, em abril de 1964, quando ocorreram 64 CHALHOUB, Sydnei. Trabalho, Lar e Botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.101. 65 FAUSTO, 1984, p.25. 66 ROMUALDO, Edson Carlos. A Construção Polifônica das falas na Justiça: As vozes de um processo crime. 2002. Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2002. p.17. 38 os eventos que motivaram a abertura dos processos que constituem o nosso corpus documental. Nesse sentido, considera-se que o uso do processo-crime como fonte histórica implica em reconhecer o caráter polifônico da sua composição. Devido à pluralidade de procedimentos, pessoas e até áreas do saber envolvidas em sua elaboração, o processo caracteriza-se por ser polifônico. Tomando a narrativa processo como ponto de partida, consideramos que esta polifonia manifesta-se em dois níveis: o externo e o interno. O primeiro diz respeito à diversidade de peças juntadas durante a constituição do processo. Essas peças provêm de fontes diversas (médicas, policiais, jornalísticas, econômicas), o que colabora para a multiplicidade de vozes da narrativa processual. O segundo, refere-a a polifonia interna, própria da construção do processo e da elaboração de seus textos. Este segundo nível está imbricado com o primeiro, pois a organização do processo, devido ao axioma que o regula, supõe a juntada de peças diversas que, uma vez inseridas no corpo processual, passam a fazer parte do discurso jurídico. 67 Devemos também diferenciar a natureza inquisitorial do inquérito policial, onde não vigora o princípio do contraditório, desde que, juridicamente, não haja acusação, supostamente preservando a igualdade entre as partes no tocante aos direitos e obrigações 68 até a fase de instauração do processo, quando se objetiva produzir uma versão conclusiva dos fatos através da explicitação das contradições entre as partes litigantes, proferida pelo juiz, que é quem detém as prerrogativas para fazê-lo, mediante o cumprimento de todas as etapas presumidas do processo. Tecnicamente, o inquérito policial é uma investigação sumária do fato, tendo o caráter de instrução provisória, servindo apenas para o Ministério Público apresentar a denúncia e iniciar a ação penal. 69 Em obediência ao princípio do contraditório, a prova obtida em inquérito é excluída do conjunto de elementos de convicção sobre o qual o juiz fundamenta-se para produzir o seu convencimento e é 67 ROMUALDO, 2002, p.16. 68 "O contraditório se efetiva assegurando-se os seguintes elementos: a) o conhecimento da demanda por meio de ato formal de citação; b) a oportunidade, em prazo razoável, de se contrariar o pedido inicial; c) a oportunidade de produzir prova e se manifestar sobre a prova produzida pelo adversário; d) a oportunidade de estar presente a todos os atos processuais orais, fazendo consignar as observações que desejar; e) a oportunidade de recorrer da decisão desfavorável." Conforme GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 1996. v.2, p.90. Outra definição sucinta nos dá Giacolli “Tese e antítese, voz ativa e voz passiva, pedido e contrapedido, ataque e defesa, culpado ou inocente, igualdade de meios de acusar e de se defender. Isso é a essência do contraditório, cujo equilíbrio deve ser garantido pelo juiz”. GIACOLOLI. José Nereu. Juizados especiais criminais: Lei nº9.099/95. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p.48. 69 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da liberdade: a defesa nos processos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p.150. 39 por essa razão que sempre se exige a confirmação em juízo das declarações feitas no inquérito policial. 70 Esta divisão dos procedimentos dentro do processo criminal busca ensejar condições de verificação da lógica argumentativa das partes e sua sustentação em dois momentos distintos; por outro lado, permitem da parte do pesquisador verificar o viés interpretativo que os agentes da justiça imprimem aos textos: Em obediência ao princípio constitucional do contraditório, as provas colhidas no inquérito policial devem ser renovadas no decorrer da instrução criminal. Este é o motivo pelo qual, para Aranha (1983), as testemunhas e vítimas novamente são ouvidas. [...] Assim, os depoentes falam em dois momentos distintos, o que permite ao promotor e aos advogados cotejar as declarações para produzirem seus textos. A tomada de depoimentos em contextos institucionais diferenciados causa uma multiplicação de textos e efeitos de sentidos no processo. A dupla tomada de depoimentos – na delegacia e no judiciário – traz à tona, entre outras questões, as interferências dos agentes da justiça nos depoimentos e as diferenças lingüístico-discursivas dos depoimentos, causadas pelos dois contextos enunciativos. 71 A transcrição nas tomadas de depoimentos orais constitui um outro momento de reconstrução dos sentidos expressos pelo depoente. Quando são reduzidos a termo pelo escrivão ou consignados pelo juiz, passando a integrar o processo sob o modo escrito, os depoimentos manifestam seu caráter eminentemente polifônico, na medida em que sofrem diversas interferências interpretativas e seletivas por parte dos agentes da justiça, dando lugar a uma outra situação enunciativa. 72 De acordo com os princípios jurídicos que norteam a formalização do inquérito, a tomada de depoimento não possuiria um caráter inquisitório, sendo um testemunho espontâneo, contudo, deve-se observar que o questionário tem um papel fundamental na construção da lógica implícita à produção dos depoimentos, precisamente por ser apagado. Nesse sentido, as perguntas são um fator decisivo no caráter intertextual e polifônico das narrativas no contexto processual. Segundo ALVES, A tomada de depoimento é um tipo especial de inquérito, pois no termo das audiências não aparecem as perguntas feitas. Embora as perguntas orientem a construção tópica dos enunciados produzidos, somente as 70 FRAGOSO, 1984, p.151. 71 ROMUALDO, 2002, p.57-58. 72 Ibid., p.71 40 respostas são registradas no termo. Visto que a pergunta é um dos elementos concretos explicitadores das condições de enunciação, apagar a pergunta implica descaracterizar o evento como inquérito e omitir uma das condições de enunciação. 73 Com efeito, no âmbito da justiça, as prerrogativas de transposição da fala dos depoimentos para o texto são do juiz, que ordena seu escrito eliminando possíveis descontinuidades que apareçam eventualmente nos depoimentos feitos na delegacia e atuando diretamente na seleção e organização do que considere pertinente. Segundo Alves, no judiciário brasileiro, o procedimento de produção da prova testemunhal, diferentemente da maioria dos países, não admite o “registro literal do depoimento prestado”, ocorrendo no seu entendimento, “um complexo processo comunicativo”. 74 Desse modo, A totalidade do depoimento prestado registra apenas o ‘essencial’ e tem por lei o dever de ser ‘fiel’ a tudo o que foi dito. Como autoridade principal, o juiz pode considerar uma inserção feita pela testemunha não essencial para o direcionamento dado ao depoimento e desprezá-la, o que contribui para a inexistência de inserções. 75 O ponto nodal da análise de Alves76 é precisamente que, no processo de transformação do depoimento oral em texto escrito, ocorre uma alteração não apenas quantitativa, mas qualitativa, ressignificando as falas na medida em que substitui o encadeamento descontínuo e menos elaborado, típico da oralidade, pelo léxico classificatório do sistema jurídico, dando lugar ao que Marisa Corrêa denominou “manipulação técnica”. O depoimento transcrito adquire também a propriedade de durabilidade e instrumento legal, para o qual retornam constantemente os agentes do processo, pelo recurso da paráfrase ou da citação. A citação por seu turno tenciona pelo recurso à utilização das aspas, estabelecer o “interior” e o “exterior” de uma formação discursiva, produzindo o que Authier-Revuz 77 denominou de “ilusão do sujeito”, quando, através do ato de “mostrar” o discurso do outro, induz à subsunção de que todo o restante parte de si próprio: 73 ALVES,V.C.S.F. A decisão interpretativa da fala em depoimentos judiciais. 1992. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1992, apud ROMUALDO, 2002, p.75. 74 ALVES, apud ROMUALDO, op cit., p.104-105. 75 Ibid. 76 Ibid., p.105, nota 18. 77 REVUZ, Authier, apud ROMUALDO, op cit., p.147. 41 Nessa perspectiva, o escrivão, ao delimitar, pelo uso das aspas, determinadas palavras e expressões próprias da testemunha como exteriores ao resto do discurso, demonstra as interferências dos agentes da justiça nos depoimentos. As palavras aspeadas agem contra a ilusão da fidelidade pretendida pela justiça, pois a delimitação da voz da testemunha denuncia, também por denegação, que o restante do discurso não foi produzido somente por ela. 78 Esta constatação põe em xeque a perspectiva de “verdade” isenta e definitiva sobre os fatos na acepção positivista em que o discurso jurídico se sustenta para aplicar a lei. Há que se considerar assim que, na composição da narrativa, interagem vozes diversas, as quais sofrem, por sua vez, as injunções do contexto policial e judiciário e, ipso facto, do próprio historiador que as aborda e as traduz dentro da perspectiva subjetiva que adota quando assume a condição de narrador em um relato. 1.3 Aspectos da ocupação do Norte do Paraná O Estado do Paraná, emancipado em 1854, tivera sua ocupação limitada à região leste, sobretudo a região litorânea, no denominado planalto curitibano e ao Centro-Sul do Estado, permanecendo o norte do estado isolado de movimentos internos de expansão e ocupação sistemática pelo governo estadual até a década de trinta do século XX. Esta região foi conceituada geograficamente como possuindo três sub-regiões: o chamado Norte Pioneiro, Norte Novo e Norte Novíssimo, sendo que, para a nossa abordagem, consideraremos a delimitação espacial do Norte Novo, o qual, doravante, denominaremos genericamente “Norte do Paraná”.79 78 REVUZ, Authier, apud, ROMUALDO, 2002, p.147. 79 Sem entrar no mérito do conceito de região, basta, para os nossos propósitos, lembrar a sua etimologia que remete a régio, palavra de ordem sócio-política e econômica que quer dizer reger, reinar e que denota um componente importante na análise da questão regional para além da classificação geo-climática. Trata-se de um conceito que expressa de modo paradigmático um produto do saber, articulado com uma relação de poder. É essa também a perspectiva de ARIAS NETO, quando afirma que a região do Norte do Paraná nos anos trinta correspondia ao reino da CTNP e ao município de Londrina, e que, posteriormente, “uma caracterização do norte do Paraná enquanto região só ocorreu quando se encontravam consolidados a cultura cafeeira e, conseqüentemente, o poder dos cafeicultores”. Cf. ARIAS NETO, 1998, p. 46;126. Nelson Tomazi, questionando o discurso de poder dos cafeicultores, implícito no conceito “Norte do Paraná”, prefere utilizar a subdivisão que faz o IBGE, implicando em 4 Meso-regiões e 18 Micro-regiões. As Meso-regiões abrangidas pelo conceito tradicional de Norte do Paraná seriam Noroeste-paranaense, Centro-ocidental paranaense, Norte central paranaense, e Norte pioneiro. TOMAZI, Nelson. Norte do Paraná; História e Fantasmagorias. 1997. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1997. p.129. 42 Em um segundo fluxo de povoamento, grandes concessões de terras devolutas a particulares com vistas ao seu parcelamento em lotes menores para venda a pequenos proprietários, foram realizadas pelo governo do Paraná, na década de 1920, sobretudo no governo de Affonso Alves de Camargo, após 1928, e que foram, em sua maioria, anuladas com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, uma vez que as terras permaneciam indivisas e improdutivas, com o fim conspícuo de aguardar sua valorização para fins especulativos. Em 1924, durante o governo do presidente Arthur Bernardes, veio ao Brasil uma missão econômica inglesa, chefiada por Lord Edwin Samuel Montagu, que fora secretário de Estado para as Índias e do Tesouro da Inglaterra. Essa missão, segundo Joffily, estaria associada a dívidas do governo brasileiro com credores britânicos, no intuito de oferecer a estes uma oportunidade lucrativa de extração de capital, 80 colocando o Norte do Paraná no circuito da circulação econômica do imperialismo inglês. Após visitação e contatos com fazendeiros da região, surgiria a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), subsidiária da Paraná Plantations Limited, com sede na cidade de Londres, que adquiriu do governo, a baixo custo, uma extensa parcela de terras, com cerca de 515.000 alqueires, situada no denominado “Norte Novo”, que se inicia na margem esquerda do rio Tibagi e vai até as barrancas do rio Ivaí, tendo, ao norte, o rio Paranapanema; área na qual pretendia impor uma maior racionalidade e planejamento do ponto de vista do seu loteamento e comercialização, consoante à lógica capitalizante do uso da terra. Adquiriu também, em 1928, a Companhia Ferroviária São Paulo - Paraná, cujos trilhos ligavam Ourinhos, em São Paulo, à Cambará, no Norte Velho. O processo de colonização do Norte do Paraná fora tributário do deslocamento da marcha pioneira paulista 81 que se estendera ao território do Paraná através da ação planificadora das Companhias de Colonização. Através do olhar de engenheiros, arquitetos e imobiliaristas, seu projeto previa a fração racionalizada do território urbano e rural, definindo os contornos da cidade e do meio 80 JOFFILY, José. Londres, Londrina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p.41-45. 81 Sobre o Paraná estar inserido num movimento de expansão da cafeicultura paulista, Nelson Tomazi defende que tal “(re) ocupação” se dá de modo concomitante às áreas para exploração agropecuária nas regiões consideradas vazias pelo capital no estado de São Paulo, considerando a “expansão da cafeicultura” no norte do estado do Paraná como um elemento de propaganda modernizadora que a cafeicultura representava, tornando-se um discurso produzido com o fim de atender interesses em torno da região. TOMAZI, 1997, p.166. 43 rural. Em 1940, com o programa da Marcha para o Oeste, 82 Getúlio Vargas reitera o processo civilizatório dos sertões do Brasil Central legitimando a perspectiva autoritária do Estado ante a questão da unificação e ocupação dos territórios interiores da nação. Em um duplo movimento, canalizava as tensões fundiárias para longe dos focos de conflito ao mesmo tempo em que reforçava o modelo da pequena propriedade nas regiões da fronteira colonizatória a partir da sua apropriação como mercadoria. 83 Entretanto, essas terras, durante séculos habitadas por indígenas, sobretudo dos grupos Xetá e kaingang, da família lingüística Jê, violentamente expropriados pelo bandeirantismo e pela marcha colonizatória mais recente 84, já vinham sendo disputadas por antigos concessionários e posseiros, contra quem a CTNP passou a atuar 85, para proceder à sua demarcação e lograr alguma estabilidade na posse frente aos constantes conflitos nessa região do Estado: 82 O Estado Novo pretendeu construir uma nova sociedade e fortalecer um sentimento de nacionalidade para o Brasil. Uma dimensão-chave desse projeto era a geopolítica, que tinha no território seu foco principal. Foram criadas várias agências para formular e implementar políticas destinadas a vencer os "vazios" territoriais, noção que atualizava o conceito de "sertão", entendido como espaço abandonado desde as denúncias de Euclides da Cunha. Essa política ganhou visibilidade com um programa específico que anunciava uma "marcha para o Oeste". Na formulação desse programa, foi importante a presença de Cassiano Ricardo, poeta modernista que propugnava a valorização do meio, do território, como base de constituição da nacionalidade. Para esse autor, era preciso que no século XX realizássemos a "posse efetiva das zonas já conquistadas pelos bandeirantes históricos", como expõe em seu livro A marcha para o Oeste: a influência do bandeirante na formação social e política do Brasil (1940). A "marcha para o Oeste", programa que Getúlio Vargas lançou em 1940, durante os festejos de inauguração da cidade de Goiânia, pretendia ser uma diretriz de integração territorial para o Brasil. OLIVEIRA, Lucia Lippi. Visões do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2006. 83 VELHO, 1977, p.128,150 apud ARIAS NETO, 1998, 87. 84 Os primeiros a abordar os aspectos fundamentais da cultura Kaingang foram Kurt Nimuendaju, Herbert Baldus e Egon Schaden, revelando uma preocupação com o processo de mudança cultural das sociedades indígenas em franca aculturação em contato permanente com a sociedade nacional, antecipando o seu desaparecimento enquanto especificidade cultural. Já a maioria dos historiadores adotaram apenas a perspectiva da história recente a partir da inexistência de populações indígenas na região Sul e Sudeste do país, criando a falsa noção de “vazio demográfico” nas terras do interior depois colonizadas, sobretudo por imigrantes europeus. Os historiadores Lúcio Tadeu Mota (1994;1998) e Kimiye Tommasino, entre outros, têm resgatado a memória dos Kaingang, Guarani e Xetá, desde os primeiros contatos no séc. XVIII até 1924, contestando a história consagrada nos livros didáticos e acadêmicos onde as sociedades indígenas ou estão ausentes ou aparecem apenas no período do descobrimento e colônia de forma etnocêntrica. Cf. Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 12 set.2006; MOTA, Lúcio Tadeu. As Guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná: 1769-1924. Maringá: EDUEM, 1994. 275 p. ; MOTA, Lúcio Tadeu. Novas contribuições aos estudos disciplinares dos Kaingang. Londrina: Ed. da UEL, 2004. 413 p. 85 LOPES verificou que a CTNP possuía uma força policial própria no intuito de manter os posseiros longe de suas terras. LOPES, Ana Yara D. Paulino. Pioneiros do Capital: a colonização do Norte Novo do Paraná. 1982. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1982. p.117. TOMAZI, por sua vez, contesta algumas versões sobre a compra e recompra de títulos de posse de procedência duvidosa pela CTNP como forma de obter garantia de jurisdição sobre suas terras, frisando a dificuldade de obtenção de títulos de posse pelos posseiros no período, impossibilitando, portanto, a sua negociação. TOMAZI , 1997, p.224. 44 Naquele tempo, toda a parte norte do Estado do Paraná constituía praticamente um campo de batalha e competição entre um grupo de pessoas possuidoras de ‘títulos’ de propriedade dúbios e desonrosos, e o governo, que, por sua vez, dera direitos ‘concessionários’ sobre as mesmas terras, a um grupo de amigos. O litígio continuava há anos seja entre um ‘proprietário’ e outro, como entre estes e o governo. 86 O objetivo da companhia, em princípio, seria desmatar a terra visando formar uma plantation de algodão. Contudo, tal projeto não prosperara e, com a descapitalização sofrida pela CTNP 87, decidiu-se dividir a terra em grandes lotes para a venda. Como não obtivera êxito em função das turbulências econômicas e políticas da recessão econômica mundial pós-1929, seguida da Revolução Constitucionalista de 1932 e da beligerância européia ao término da década de trinta, entre outros fatores, seus administradores resolveram adotar o parcelamento em pequenos e médios lotes, conforme sabido de experiências da colonização holandesa, o que resultara em um maior giro e lucrativid