UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – CAMPUS MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA WILLIAM ROMUALDO MATERIALISMO E MORAL EM HOLBACH: OS FUNDAMENTOS DA FELICIDADE NO SISTEMA DA NATUREZA Marília, SP 2018 Romualdo, William. R767m Materialismo e moral em Holbach: os fundamentos da felicidade no sistema da natureza / William Romualdo. – Marília, 2018. 103 f. ; 30 cm. Orientador: Ricardo Monteagudo. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, 2018. Bibliografia: f. 97-103 1. Holbach, Paul Henri Thiry – 1723-1789. 2. Iluminismo - França. 3. Materialismo. 4. Ética. 5. Ateísmo. 6. Felicidade. I. Título. CDD 190 WILLIAM ROMUALDO MATERIALISMO E MORAL EM HOLBACH: OS FUNDAMENTOS DA FELICIDADE NO SISTEMA DA NATUREZA Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Filosofia no Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Marília. Linha de pesquisa: História da Filosofia, Ética e Filosofia Política. Orientador: Professor Dr. Ricardo Monteagudo. Agência Financiadora: CAPES Marília, SP 2018 WILLIAM ROMUALDO MATERIALISMO E MORAL EM HOLBACH: OS FUNDAMENTOS DA FELICIDADE NO SISTEMA DA NATUREZA Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Marília. Linha de pesquisa: História da Filosofia, Ética e Filosofia Política. Orientador: Professor Doutor Ricardo Monteagudo Agência Financiadora: CAPES BANCA EXAMINADORA Orientador: Prof. Dr. Ricardo Monteagudo – UNESP 2º Examinador: Profa. Dra. Jacira de Freitas – UNIFESP 3º Examinador: Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva – UFABC Suplentes: 1º Prof. Dr. Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros – USP 2º Profa. Dra. Ana Maria Portich – UNESP Data de defesa e aprovação: 23 de março de 2018. Marília, SP 2018 Para meus pais, seu Zé e dona Valda AGRADECIMENTOS Agradeço a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a elaboração dessa dissertação de mestrado. Em especial, agradeço eternamente ao professor Ricardo Monteagudo, cuja orientação dedicada e gentil sempre me ajudou a amadurecer e a enfrentar os desafios de uma dissertação de mestrado. Agradeço fortemente aos membros da banca de defesa, ao professor Paulo Jonas de Lima Piva (UFABC), que desde a iniciação científica acompanha meu trabalho acadêmico de maneira solícita e generosa, e à professora Jacira de Freitas (UNIFESP), cuja contribuição e análise do texto desde a Banca de Qualificação foi fundamental e imprescindível. Agradeço também à professora Maria das Graças de Souza (USP), ao professor Marcelo de Sant’Anna Alves Primo (UFS) e ao ávido pesquisador holbachiano e amigo Fábio Rodrigues de Ávila (UNIFESP) por todas as valiosas conversas, e-mails e trocas de referências bibliográficas sobre o Iluminismo e o materialismo do Barão de Holbach durante todo o período de pesquisa no mestrado. Agradeço aos professores Ana Maria Portich, Pedro Novelli, Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, Mariana Claudia Broens e Mariana Matulovic da Silva pelas preciosas aulas nas disciplinas obrigatórias. Aos novos amigos e companheiros da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, que me acolheram de maneira amável e inesquecível. A todos os funcionários da Unesp de Marília que em algum momento prestaram ajuda no dia a dia da pós-graduação. Ao meu irmão Wellington e à minha cunhada Sheila, pela morada e guarida durante todo o período de curso do mestrado na cidade de Marília, sem essa fraternidade o caminho poderia ser mais difícil. A todos os meus parentes que moram em Marília e em Lupércio, que me acolheram e me auxiliaram em algum momento nesse período de pesquisa. Aos meus pais por sempre defenderem a qualquer preço o valor da educação e que eu conseguiria conquistar o que quer que tivesse de enfrentar no novo curso e na nova cidade mesmo que a trajetória fosse repleta de obstáculos e desafios. À minha namorada Anna Marcela cuja imensa contribuição afetiva, de confiança e incentivo à vida acadêmica foi de suma necessidade e importância para que eu pudesse viver, sobreviver e concluir o mestrado. Em especial, também agradeço à CAPES pelo indispensável suporte financeiro a esta pesquisa. Quando te angustias com as tuas angústias, te esqueces da natureza: a ti mesmo te impões infinitos desejos e temores. (Epicuro, Antologia de textos) RESUMO Este trabalho tem o objetivo de analisar e demonstrar os princípios morais do Barão de Holbach (1723- 1789), em especial, como ele fundamenta a noção de felicidade em seu materialismo ateu, fatalista e eudemonista. No Sistema da Natureza (ou das leis do mundo físico e do mundo moral), de 1770, Holbach entende que a infelicidade que atormenta grande parte dos seres humanos é causada pela ignorância acerca da natureza da qual fazemos parte, bem como pela ignorância que temos de nossa própria natureza. Por meio da experiência que guia a razão e proporciona o desvelamento da natureza e conhecimento da sua dinâmica, Holbach acredita que o comportamento humano pode ser conduzido na vida em sociedade sem depender dos dogmas teológicos. Segundo o barão, o próprio desejo de ser feliz e de se conservar é uma tendência natural nos seres humanos. E a “verdadeira felicidade” só será possível com uma moral em conformidade com as leis da natureza e as necessidades naturais do homem, as quais exigem dele a prática de uma virtude que considere também a felicidade dos demais seres humanos. PALAVRAS-CHAVE: Iluminismo Francês, materialismo, moral, ateísmo, felicidade, Barão de Holbach. ABSTRACT This work aims to analyze and demonstrate the moral principles of Baron d’Holbach (1723-1789), mainly, how he bases the notion of happiness in his atheistic, fatalistic and eudemonistic materialism. At The System of Nature (or the laws of the physical world and the moral world), 1770, Holbach perceives that the unhappiness that plagues most human beings is caused by ignorance about the nature of which we are part of, as well as by the ignorance we have upon our own nature. By means of the experience that guides reason and provides the unveiling of nature and knowledge of its dynamics, Holbach believes that human behavior can be guided in the society life without dependence on theological dogmas. According to Baron, the very desire to be happy and to preserve oneself is a natural tendency in the human beings. And “the true happiness” will only be possible with a moral in accordance with the laws of nature and the natural needs of man, which require him the practice of a virtue that also considers the happiness of other human beings. KEYWORDS: French Enlightenment, materialism, moral, atheism, happiness, Baron d’Holbach. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11 PARTE I O MATERIALISMO NATURALISTA DE HOLBACH Cap.1. Barão de Holbach e o materialismo das Luzes ........................................ 15 Cap.2. A natureza, a matéria e o movimento ....................................................... 29 Cap.3. O fatalismo de Holbach ............................................................................ 40 PARTE II ATEÍSMO E MORAL NO SISTEMA DA NATUREZA Cap.1. O ateísmo radical de Holbach ................................................................. 51 Cap.2. A moral do ateu ........................................................................................ 58 PARTE III PRINCÍPIOS DA FELICIDADE NO SISTEMA DA NATUREZA Cap.1. A necessidade das paixões ....................................................................... 63 Cap.2. Utilidade e virtude ................................................................................... 72 Cap.3. A felicidade .............................................................................................. 81 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 93 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 97 11 INTRODUÇÃO A primeira parte desse trabalho, de modo geral, é dedicada ao estudo do materialismo naturalista do Barão de Holbach em seu Sistema da Natureza. O primeiro capítulo desta primeira parte apresentará uma breve biografia do barão e pontuará o vínculo existente entre a propaganda enciclopedista e materialista no século XVIII, cujo desenvolvimento se deu muito por conta das reuniões da “coterie holbachique”, núcleo do movimento intelectual na França da segunda metade do século XVIII, que era organizado pelo próprio Barão de Holbach. A grande contribuição de Holbach à Enciclopédia de Diderot e D’Alembert também será ressaltada afim de demonstrar que os seus estudos acerca das ciências da natureza serviram como fundamentos importantes na sua formação filosófica e materialista. A partir dessa contextualização, o capítulo se abre para a análise dos termos “matéria” e “materialismo” no decorrer da história e pretende demonstrar como os pensadores do século XVII e XVIII adotaram e deram continuidade a essa vertente tão importante e, ao mesmo tempo, tão marginalizada da filosofia. Veremos os principais fundamentos e princípios da filosofia materialista no século das Luzes, bem como o papel dos materialistas neste século, além de reconhecer a importância da tradição libertina em forma de filosofia clandestina diante das polêmicas e críticas que foram geradas em relação a esse tipo de filosofia. Ao final do capítulo, será possível reconhecer como o materialismo de Holbach é desenvolvido no decorrer de sua obra filosófica e, em especial, em seu Sistema da Natureza, já que este foi o livro de maior relevância na carreira filosófica do barão. Além de mostrar que o Sistema da Natureza de Holbach foi o livro referência do materialismo no século XVIII, demonstraremos que um dos maiores objetivos do barão neste livro foi o de apresentar um caminho a ser seguido para o alcance da felicidade que é o escopo de nossa pesquisa. Já no segundo capítulo, dedicado aos conceitos natureza, matéria e movimento, iremos apresentar a definição e a maneira como a filosofia holbachiana relaciona cada um deles, ao passo que estes elementos são fundamentais para o entendimento do sistema constituído pela natureza. Para enriquecer a discussão e valorizar a argumentação de Holbach acerca da fundamentação de seu materialismo naturalista, será feita uma análise da definição desses termos em contrapartida à definição da Enciclopédia e de um dicionário da época. 12 De modo mais específico, fecharemos o capítulo com a apresentação da análise que Holbach faz da relação entre o ser humano e a sua própria natureza. Veremos como Holbach fundamenta o seu monismo materialista diante do conhecimento das leis da natureza. O terceiro capítulo encerra a primeira parte desse trabalho ao analisar a fundamentação holbachiana acerca do fatalismo, sistema metafísico desenvolvido por Holbach que afirma que através da experiência que serve de guia para a razão é possível obter uma explicação no mínimo razoável da causalidade natural do mundo. Em outras palavras, como um grande representante do Iluminismo, Holbach quer garantir que a capacidade racional do ser humano pode elucidar a relação entre as causas e os efeitos que estão presentes na natureza como um todo e nas ações humanas, já que o fatalismo holbachiano é decorrente da necessidade da natureza. Por fim, o terceiro capítulo apresentará a maneira como Holbach relaciona o mundo físico e o mundo moral através de sua perspectiva fatalista e determinista, de modo a abrir o debate acerca da possibilidade dos seres humanos serem livres ou não, se as suas ações são todas determinadas pelas leis da natureza ou não e se é possível modificar a moralidade humana em meio a esse sistema fatalista. Já na segunda parte desse trabalho, no primeiro capítulo, diante da leitura de passagens pontuais do Sistema da Natureza, apresentaremos a fundamentação dos princípios do ateísmo radical de Holbach. Começaremos com a elucidação das expressões “Iluminismo” e “século da Luzes” e, a partir dessas definições, distinguiremos Holbach como um dos filósofos mais radicais desse período por conta de sua negação absoluta de Deus. As fortes críticas à religião e a negação de qualquer divindade servirão de base teórica para a moral que o ateu exerce. Holbach afirma o ateísmo para que seja possível reformular e garantir uma nova moralidade. O perfil do ateu virtuoso holbachiano será traçado a partir dos princípios éticos e políticos advindos do conhecimento da natureza, e não da revelação que se baseia em quimeras e fantasias que são ineficazes às necessidades existenciais do indivíduo e da convivência em sociedade. Por fim, na terceira parte deste trabalho, fechamos nosso estudo com os fundamentos da noção holbachiana de felicidade. Os princípios que baseiam a felicidade no Sistema da Natureza serão demonstrados e analisados a partir do primeiro capítulo acerca da necessidade das paixões. Nele, faremos uma análise de como Holbach concebe as paixões e acredita que não devemos nos livrar delas, como afirmavam muitos defensores da moral vinculada à religião, mas sim aprendermos a conviver com os desejos que as acompanham e ter o devido controle diante dessas pulsões, escolhendo aquelas que são mais úteis ao bem estar individual e social. 13 Para Holbach, as paixões, os desejos e os prazeres são definitivamente naturais e necessários aos seres humanos, assim como em todos os outros animais na natureza, uma vez que ela não faz dos homens nem bons e nem maus. Veremos que a constituição fisiológica de cada indivíduo será parte determinante da formação e desenvolvimento do caráter moral do indivíduo, já que cada um tem um tipo de temperamento, sensibilidade e por consequência, praticam determinados tipos de hábitos. E a prática de hábitos virtuosos e a valorização das paixões consideradas mais úteis e necessárias à conservação e bem estar dos indivíduos em sociedade serão fundamentais para a busca da felicidade. No segundo capítulo, dedicado ao estudo específico do utilitarismo e da virtude holbachiana, serão analisadas as noções que os humanos têm acerca dos seus interesses, uma vez que, segundo Holbach, o interesse ou o próprio desejo pela felicidade é o grande motivo pelo qual fazem as pessoas ter suas ações e tomarem suas atitudes. E a experiência exerce papel fundamental na capacidade de determinação daquilo que é realmente útil aos seres humanos, na medida em que a natureza faz deles seres aptos a diferenciar aquilo que pode ser ruim daquilo que pode ser bom a si mesmos ou a outrem. Mais do que isso, veremos que a utilidade está diretamente relacionada à virtude que as pessoas podem desenvolver, uma vez que o próprio indivíduo pode ser útil aos seus semelhantes e contribuir com a felicidade alheia e, segundo Holbach, esse princípio compõe a base da verdadeira moral a ser seguida. Por fim, nosso estudo se encerra com o terceiro capítulo que trata diretamente da noção de felicidade que Holbach constrói no decorrer de seu Sistema da Natureza, cuja fundamentação percorre um caminho peculiar à filosofia materialista do século XVIII – da concepção monista e materialista de mundo e dos seres humanos aos deveres e virtudes baseados na experiência e direcionados pela capacidade racional de não depender dos dogmas teológicos – até de fato alcançar a felicidade real que é vivida neste mundo material e das sensações. Apresentaremos uma breve contextualização da ideia de felicidade entre os séculos XVII e XVIII, na qual será possível reconhecer a importância que os pensadores desse período deram a esta discussão filosófica, já que discutir filosoficamente a felicidade sempre foi, dentre outras coisas, desde os primeiros pensadores gregos, discutir qual a melhor maneia de viver consigo mesmo diante da condição humana e conviver com os nossos semelhantes diante da diversidade natural que há entre nós. Contudo, no século das Luzes, aqueles como o Barão de Holbach que reconheceram e estabeleceram uma felicidade que de fato acontece neste mundo, ou seja, no mundo da natureza, das sensações e das relações humanas guiadas pelas leis naturais, se esforçaram para garantir 14 que este tipo de felicidade fosse real e de fato promovida por hábitos virtuosos e que não ficasse apenas na satisfação individual, mas que alcançasse o âmbito coletivo da sociedade. Portanto, este trabalho busca compreender como Holbach concebe a ideia de felicidade e pretende estabelecê-la a partir de pressupostos de uma filosofia materialista, naturalista, ateia. Para tanto, será preciso percorrer um caminho que se faz necessário o reconhecimento da inexistência de uma entidade criadora e detentora da moralidade humana, além do fato de que a felicidade é algo natural na vida de todos seres e que está diretamente ligado à própria existência de cada ser que, sobretudo, necessita conviver e reconhecer que depende da colaboração de seus semelhantes para conquistar a sua felicidade e poder promover uma felicidade coletiva em sociedade. Além de pretender uma colaboração aos estudos do materialismo das Luzes no espaço acadêmico brasileiro, este trabalho, de maneira geral, também procura ajudar a desfazer a caricatura atribuída ao materialismo de que é uma “filosofia menor” e, portanto, diminuir de algum modo a marginalização desse tipo de pensamento na história da Filosofia. Se no século XVIII os filósofos iluministas fizeram um grande esforço para popularizar a filosofia e torná- la minimamente acessível a maior parte das pessoas, continuemos esse trabalho também com essa tão rica e diversificada corrente filosófica que desde os gregos teve seus indicadores e que se assumiu e militou na época do Iluminismo. 15 PARTE I O MATERIALISMO NATURALISTA DE HOLBACH Mundo: No espírito de um cristão bem devoto, o mundo é a coisa mais odiosa deste mundo. Ele deve desligar-se dele para não pensar senão no outro mundo – [...]. (Holbach, Teologia Portátil) Cap. 1 – Barão de Holbach e o materialismo das Luzes Paul-Henri Thiry D’Holbach, o Barão de Holbach1, nasceu em 1723, em Heidelsheim, no Palatinado alemão. Foi batizado e criado com os ritos de uma tradicional família católica. Desde cedo, sua educação foi confiada ao seu tio, Franciscus Adam d’Holbach, o primeiro barão de Holbach, que fez fortuna em Paris. Franciscus levou seu sobrinho, aos doze anos de idade a Paris e, mais tarde, enviou-o às terras holandesas para fazer seus estudos na Universidade de Leyde. Após a Guerra de Sucessão Austríaca, Paul-Henri se estabeleceu em Paris e recebeu nacionalidade francesa, em 1749. No ano de 1753, Paul-Henri herdou boa parte da fortuna – dentre as riquezas, a grande coleção de livros, uma coleção de quadros notáveis e um escritório de história natural – e o título de barão de seu tio. Naquela época, Paul-Henri trabalhou como advogado no parlamento e pouco tempo depois comprou um cargo de conselheiro secretário do rei. Paul-Henri, o mais novo Barão de Holbach, nessa época, conhece e se vincula a Diderot e à sua equipe de enciclopedistas. O mais novo Barão de Holbach, a partir do começo dos anos 1750, graças uma boa herança, fez de sua casa na Rue Saint-Roch, em Paris, um salão2 que era só seu e ali ele reuniu, regularmente, em seus jantares, a maioria dos filósofos e enciclopedistas: Diderot, d’Alembert, Buffont, Marmontel, Morellet, Saint-Lambert, Grimm, Helvétius, Raynal, dentre outros. E, por algum tempo, até Jean-Jacques Rousseau frequentou esse salão, antes de romper com a afamada 1 Paul-Henri Thiry D’Holbach (1723-1789), o Barão de Holbach, e doravante “Holbach” ou “barão”. 2 Segundo Arthur M. Wilson, em seu grandioso estudo sobre Diderot, “os Salões eram um dos principais eventos da vida parisiense, a tal ponto que comentários relativos a eles vinham aparecendo havia alguns anos em panfletos ou periódicos da época” (WILSON, 2012, p. 415). Wilson, além de apresentar um minucioso estudo acerca dos “salões de Diderot”, ainda dedica um capítulo ao Grandval de Holbach. Cf. Arthur M. Wilson. Diderot. Trad. Bruna Torlay. São Paulo: Editora Perspectiva, 2012, p. 420 - 430). 16 “coterie holbachique”3. Depois de algum tempo, Holbach e sua família adquiriram uma casa de campo, o famoso Château du Grandval, que também serviu de reduto para seus hóspedes ilustres, “uma espécie de capital de veraneio dos philosophes” (WILSON, 2012, p. 420, grifo do autor): É de uma maneira bastante deliberada que d’Holbach abriu as portas de seu hotel. A fortuna lhe facilitou esta tarefa de união, que ele começou a cumprir sem demora. A Rue Saint-Roch e o Grandval rapidamente se tornaram centros de reunião para o elemento ativo da Enciclopédia, e a jovem Madame d'Holbach desempenhou lá muito bem o seu papel de anfitriã. (NAVILLE, 1943, p. 35). 4 Alan Charles Kors faz um minucioso estudo sobre esse “círculo de homens que se encontravam regularmente e frequentemente nas casas de d’Holbach, e que podiam identificar- se como membros de um único grupo” (KORS, 1976, p. 9), e conclui, que “são a esses homens que podemos designar como a coterie holbachique” (KORS, 1976, p. 9). Kors ainda ressalta que “devemos o nome ‘coterie holbachique’ a Rousseau, a quem o termo ‘coterie’ era um pejorativo” (KORS, 1976, p. 9)5. O núcleo da “coterie” de Holbach formou-se e foi erguida a partir desse movimento intelectual “formado por homens cujas ideias comuns eram testadas, e que colaboravam praticamente elaborando, organizando, promovendo a propaganda enciclopedista e materialista e se encarregando de espalhá-la” (NAVILLE, 1943, p. 35-36). Depois de muitos anos de colaboração à Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, de fazer traduções de várias obras e de produzir uma bibliografia que salta aos olhos, Holbach morre pouco antes da Tomada da Bastilha, em 21 de janeiro de 1789, cinco anos depois da morte de seu amigo Diderot (1713 – 1784). O Barão de Holbach, de modo geral, com a sua filosofia radical ateísta, determinista e materialista, travou uma guerra contra a monarquia absoluta, a religião predominante e todos os privilégios e abusos praticados em detrimento da conservação, do bem estar e da felicidade individual e coletiva. 3 Alan Charles Kors, D’Holbach’s coterie: an enlightenment in Paris. New Jersey: Princeton University Press, 1976. 4 Pierre Naville, em seu D’Holbach et la Philosophie Scientifique au XVIIIe siècle. Paris: Gallimard, 1943, nos oferece um estudo minucioso da vida e da obra do Barão de Holbach. Nos guiaremos, principalmente, pelas referências desse raro e grandioso estudo de Naville para bem fundamentar nossa pesquisa, além de contar com as breves referências biográficas de Jean-Claude Bourdin, Georgette e Bernard Cazes, em Les Matérialistes au XVIIIe siècle. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1996, e D´Holbach portatif. Utrecht: Jean-Jacques Pauvert, 1967, respectivamente. 5 Rousseau usa “coterie holbachique” em suas Confissões. Acerca do ressentimento de Rousseau, segundo Alan Charles Kors, ele acreditou que o grupo de Holbach havia inspirado e orquestrado uma “conspiração ciumenta” (Cf. KORS, 1976, p. 9) contra a sua pessoa e reputação. 17 *** Segundo o professor Salinas Fortes, “quando se fala na Filosofia das Luzes pensa-se logo na grande Enciclopédia” (FORTES, 2004, p. 47)6, além considerar que “iluministas e enciclopedistas são termos quase equivalentes” (FORTES, 2004, p. 47). A Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios, que teve sua produção entre 1751 e 1765, por ser uma “obra de Filosofia e testemunho da História das Artes e das Ciências num período em que elas passam por transformações profundas” (PIMENTA, 2015, p. 9)7 foi dedicada, sobretudo, ao dever de “expor, tanto quanto possível, a ordem e o encadeamento dos conhecimentos humanos”, e ao de “conter, sobre cada ciência e cada arte, seja liberal, seja mecânica, os princípios gerais em que se baseia e os detalhes mais essenciais que formam o seu corpo e substância” (DIDEROT; D’ALEMBERT, 2015, p. 47)8. Para René Hubert9, o empreendimento enciclopédico foi elaborado tal como uma contribuição para “revolucionar o século” (HUBERT, 1928, p. 9) das Luzes. A Enciclopédia, constituída por uma conjuração internacional, foi formada para “minar, na França, o trono e o altar” (HUBERT, 1928, p. 10). E o “hotel do Barão de Holbach” foi escolhido como o “centro da conspiração, e o próprio barão como protetor dessa filosofia moderna que ele estava obstinado” (HUBERT, 1928, p. 10), já que ela estava em comum acordo com os seus gostos. O Barão de Holbach, além de estar muito ligado a Diderot e à própria produção da Enciclopédia, exerceu o papel de um mecenas a todos aqueles que foram envolvidos neste grandioso empreendimento. Salinas também ressalta a receptividade e o patrocínio de Holbach aos colaboradores da Enciclopédia (Cf. FORTES, 2004, p. 58). Os jantares que eram oferecidos por Holbach serviam como ocasião de pequenos comitês secretos cujos integrantes preparavam suas manobras contra a religião e o governo. Os conspiradores chamavam essas reuniões clandestinas de “le club d’Holbach” (HUBERT, 1928, p. 10). Mas, como garante Hubert, “é apenas uma lenda que todos os fatos corrompem, tanto a 6 Luiz R. Salinas Fortes. O Iluminismo e os reis filósofos. Col. “Tudo é história”, vol.22. São Paulo: Brasiliense, 2004. 7 Pedro Paulo Pimenta, “Apresentação geral”. In: Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Volume I: Discurso preliminar e outros textos / Denis Diderot, Jean le Rond d’Alembert. São Paulo: Editora Unesp, 2015. 8 As passagens citadas são do próprio D’Alembert no “Discurso Preliminar” da Enciclopédia. 9 René Hubert. D’Holbach et Ses Amis. Paris: André Delpeuch, 1928. 18 história das origens da Enciclopédia quanto a forma como as relações entre os principais colaboradores da empresa foram estabelecidas” (HUBERT, 1928, p. 10-11). “Le club holbachique” deveras foi a agradável casa de Holbach que abrigava as reuniões desses diversos colaboradores que formavam a apelidada “coterie holbachique”. Sobre os integrantes desse grupo de pensadores e colaboradores da Enciclopédia que participavam dos jantares na casa de Holbach, Kors nos mostra três possíveis e surpreendentes conclusões sobre os envolvidos e a própria coterie: (1) que quase ninguém tinha estado perto de estabelecer corretamente a verdadeira associação à coterie; (2) que, apesar da presença de homens individuais dentro da coterie que de fato eram ateus, o ateísmo não era, de modo algum, o vínculo comum ou a ocupação da maioria de seus membros; e (3) que, apesar da apresentação tradicional dos círculos respeitáveis da sociedade parisiense, seus membros formaram, no geral, como um coletivo de filósofos, homens de letras e cientistas de caráter público e contemporâneo, como quase todos os salões ou grupos dentro do Iluminismo Francês. (KORS, 1976, p. ix). É possível definir a “coterie holbachique” como um grupo diferenciado na época das Luzes, como confirma Maria das Graças de Souza: O que realmente diferenciou o salão de Holbach dos outros círculos da época foi sobretudo a liberdade de discussão e a tolerância que parecia ali reinar. Basta lembrar, por exemplo, a discrição dos deístas da “coterie” na ocasião da publicação do Sistema da Natureza, do qual eles conheciam a autoria e guardaram o mais absoluto sigilo. (SOUZA, 1983, p. 68)10 Quando a Enciclopédia se fez notável na cena intelectual europeia, segundo Pedro Paulo Pimenta, tornou-se “uma espécie de lugar-comum desdizer abertamente a religião e sua consorte, a Metafísica” (PIMENTA, 2017, p. 13)11. Mas, o Barão de Holbach não descarregou seu arsenal materialista ateu através dos verbetes da Enciclopédia. Segundo Hubert, “as publicações científicas de d’Holbach preenchem assim um terço de sua atividade literária” (HUBERT, 1928, p. 42). O lugar da ciência na formação intelectual de Holbach, segundo Paulette Charbonnel12, mesmo que seja importante, “não consegue explicar o seu modo de proceder peculiar, sua aspereza polêmica, seu ardor conquistador, sua obstinação em denunciar 10 Maria das Graças de Souza do Nascimento. Voltaire e o Materialismo do Século XVIII. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 1983. 11 Pedro Paulo Pimenta, “O destino da Metafísica na Enciclopédia”. In: Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Volume 6: Metafísica / Denis Diderot, Jean le Rond d’Alembert. São Paulo: Editora Unesp, 2015. 12 Paulette Charbonnel. “Introduction”. In: D’Holbach: Premières Oeuvres. Paris: Les éditions sociales, 1972. 19 primeiro a superstição e depois o sentimento religioso e suas consequências para o indivíduo e a sociedade” (Cf. D’HOLBAH, 1972, p. 54). Os diversos estudos que Holbach fez sobre metalurgia, mineralogia, química e história natural foram muito importantes e renderam uma grande colaboração para o desenvolvimento científico de sua época por meio de artigos publicados na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert – cerca de quatrocentos artigos –, além de proporcionarem embasamento teórico e prático no desenvolvimento de seu materialismo ateu, e também, na elaboração do seu Sistema da Natureza13. *** No decorrer da história da filosofia, foram criadas diversas formas de dar sentido às palavras “matéria” e “materialismo”, é o que relata Olivier Bloch14. O estudioso francês apresenta os problemas que surgem ao tratar do materialismo quanto às definições do conceito e do termo, além de apontar as principais questões e dificuldades encontradas para situar o materialismo e elaborar a sua historiografia (Cf. BLOCH, 1987, p. 11 – 37). Primeiramente, para Bloch, os termos materialistas e materialismo foram indicados por aqueles que queriam deturpar ou refutar esse tipo de pensamento na filosofia, – é possível remontar a tradição desse confronto filosófico desde Platão, mesmo sem os termos devidamente designados – consequentemente, criou-se um confronto entre duas correntes radicalmente opostas, que em meados do final do século XVII, já com os nomes designados, formaram um dos maiores confrontos filosóficos: os embates entre o “materialismo” e o “idealismo”. Segundo Olivier Bloch, considera-se que desde que o filósofo britânico George Berkeley (1685 – 1753), em seu Os Diálogos entre Hilas e Filonous, de 1713, distorceu os termos “materialista” e “materialismo” e atribui-lhes uma insólita significação em oposição ao seu “imaterialismo”, – cujo princípio é a negação da existência da matéria e a afirmação da existência exclusiva das ideias, e com isso, pode-se substituir o termo por “idealismo” – foi preciso esperar pelo menos cinquenta anos para surgir ao menos um pensador que, pela primeira vez, se afirmasse expressamente defensor do materialismo, como fez La Mettrie (1709 – 1751) no meio do século das Luzes. Contudo, a consolidação do materialismo das Luzes se deu por causa da postura ousada e corajosa de seus adeptos: 13 Cf. NAVILLE, 1943, p. 197 – 199. 14 Olivier Bloch, O Materialismo. Trad. Emílio Campos Lima. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1987. 20 “Não é, pois, com Diderot, Helvétius ou d’Holbach que se gera o materialismo francês, [...]. Porém, só realmente na segunda metade dessa centúria se afirma com audácia o materialismo, que passa do circuito clandestino para o domínio público, abandonando o estatuto privado para se apresentar com estatuto nacional que irá conversar e até reforçar no tempo do Diretório e dos Ideólogos” (DESNÉ, 1969, p. 12). É importante ressaltar que, com a obra do filósofo e médico La Mettrie, logo após a sua morte, “culmina toda uma corrente de pensamento materialista” (DESNÉ, 1969, p. 11)15. Mesmo “isolado”, La Mettrie não foi um materialista solitário. Roland Desné relata que, na primeira metade do século das Luzes, “proliferaram os famosos manuscritos clandestinos, que sapam as afirmações religiosas e espiritualistas, propagando ideias retomadas depois por Diderot, d’Holbach e seus amigos” (DESNÉ, 1969, p. 11). Os filósofos que defendiam o materialismo, na época das Luzes, apresentaram sua força crítica contra as obscuras e supersticiosas concepções religiosas e tentaram garantir a defesa de novas ideias e concepções de mundo pela via da clandestinidade. Regina Schöpke e Mauro Baladi16 resumem bem o que foram os subterrâneos da filosofia na época do Iluminismo: Aquilo que chamamos de “filosofia clandestina” constitui, sem dúvida nenhuma, uma das mais fascinantes páginas da história do pensamento e das ideias. O que se entende por isso é um amplo “movimento” filosófico-literário, cuja marca foi a circulação (em geral secreta e anônima) de centenas de obras anticlericais e de crítica política no período compreendido entre os séculos XVI e XVIII. Tais obras (impressas ou manuscritas) refletiam a necessidade comum de expressar ideias pouco ortodoxas numa sociedade ainda refém da religião. Afinal, é preciso lembrar que a Inquisição ainda queimava seus “hereges” e “ímpios” em pleno século do Iluminismo e da Revolução Francesa. (SCHÖPKE, R.; BALADI, M., 2008, p. 9). Esse movimento da filosofia clandestina foi capaz de reunir ateus, panteístas, deísta, teístas, entre outros tipos de pensadores – além de todos aqueles que eram tidos como descontentes, heréticos, livres-pensadores, libertinos, ou, simplesmente, filósofos – cuja unidade de ideias vinha da necessidade de liberdade de crítica e de expressão para denunciar e combater os abusos, as perseguições e repressão advindas da religião e do Antigo Regime. Segundo Schöpke e Baladi, o movimento da filosofia clandestina teve um papel fundamental: Ela não apenas se encarregou da difusão extraoficial das ideias contestadoras, como também foi capaz de criar todo um sistema de comunicação entre insatisfeitos com a humilhante condição do povo, mantido na ignorância pelo 15 Roland Desné. Os Materialistas Franceses De 1750 a 1800. Lisboa: 1969. 16 Regina Schöpke; Mauro Baladi. “Os Subterrâneos da Filosofia”. In: DU MARSAIS, C.C. et al., Filosofia Clandestina: Cinco tratados franceses do século XVIII. São Paulo: Martins, 2008, p. 9 – 21. 21 duplo poder repressor da religião e do Estado. (SCHÖPKE, R.; BALADI, M., 2008, p. 13). As obras clandestinas, no geral, criticavam a Bíblia ao denunciarem as incoerências e os absurdos que foram amplamente espalhados pelas narrativas sagradas ao longo do tempo. Mas, além disso, também foi feita a contestação do caráter divino da Igreja, que eram pretensamente asseguradas pelas narrativas bíblicas, e do direito divino dos reis e nobres, que eram legitimados pela própria Igreja; a denúncia dos abusos da nobreza e do clero; e ainda, a defesa de novas ideias e de novas concepções de mundo. Essas obras foram feitas em forma de tratados, diálogos, novelas e até mesmo como poemas, e as suas ideias eram divulgadas a um público restrito, por meio de seus manuscritos ou impressas publicamente como livros, que muitas vezes foram queimados pela censura junto com seus autores. Muitos dos livros clandestinos de autoria de pensadores franceses foram publicados em outros países – Holanda, Inglaterra e Suíça – já que na França eles foram publicados com falsas indicações e com falta de marcas editoriais, assinados somente com as iniciais do autor, epítetos, nomes alheios ou mesmo pseudônimos. O próprio Barão de Holbach colocou o nome de Jean-Bastiste Mirabaud (1675-1760) – também filósofo e letrado francês, além de ser seu amigo – como o responsável pela autoria do Sistema da Natureza, foi um modo de se salvaguardar da censura da época. *** O materialismo do século XVIII, de fato, “constitui um conjunto complexo, semeado de contradições e portador de conflitos abertos ou latentes” (BLOCH, 1987, p. 70), já que a unidade desse período filosófico esteve justamente fundamentada em suas divergências. A descontinuidade ou o rompimento, que podemos atribuir aos filósofos do século XVII acerca do materialismo é verificada, segundo Bloch, por um “conhecimento indireto e superficial” (BLOCH, 1987, p. 70) que os filósofos do século das Luzes tiveram de pensadores como Gassendi, Hobbes, Descartes e Espinosa17 que passaram a ser menos lidos e, consequentemente, desacreditados de seus dogmatismos, tanto por adversários quanto por aqueles que lhes davam continuidade filosófica. Entretanto, o caráter de continuidade do materialismo das Luzes está de um lado, em “inspirações encontradas na Antiguidade e na Renascença, através das quais se prolonga 17 Cf. BLOCH, 1987, p.70. 22 diretamente a tradição libertina”, e de outro lado, na “continuação e o desenvolvimento de temas lançados pelos grandes filósofos do século anterior” (BLOCH, 1987, p. 70). De modo geral, os pensadores do Iluminismo aproveitaram o que de melhor fizeram os filósofos do século anterior ao das Luzes, sobretudo Descartes, Newton, Locke, Leibniz e Espinosa (Cf. DESNÉ, 1982, p. 74). O gosto pelo raciocínio, a busca da evidência intelectual, persistência em gerar uma unidade da ciência18 e o próprio desenvolvimento do método científico, como a prática da observação, do cálculo, da comparação dos resultados e até mesmo a ponderação em não se deixar construir sistemas de explicação que, por simples dedução, produzam as respostas para todas as coisas, bem como as ousadas concepções metafísicas que fizeram germinar o materialismo iluminista19 e as consequentes noções morais e políticas, constituem as principais colaborações desses pensadores aos filósofos iluministas do século XVIII20. Pode-se considerar que o materialismo francês ocupa um lugar predominante em relação ao materialismo britânico e ao alemão21. Nele, segundo Olivier Bloch, é possível fazer a distinção de dois períodos: o primeiro, que ocupa a primeira metade do século XVIII, apresenta o materialismo, principalmente, na literatura clandestina que teve sua importância aumentada cada vez mais e a tradição libertina prolongada. A tradição libertina, é considerada como “um fenômeno típico do século XVIII” (MONZANI, 1996, p. 193)22, apesar de ter suas origens entre os séculos XVI e XVII, e, em seu discurso, “articulam-se maciçamente, contra as ideias de tradição, crença, convenção social injustificada, as ideias de razão, natureza e liberdade” (PRADO JR, 1996, p. 43)23, consequentemente, “ser libertino é pensar livremente (contra a coerção dos preconceitos e da tradição) segundo os princípios da razão e da natureza. Para 18 Segundo Desné, Descartes insistiu numa unidade da ciência, “unidade que se funda a identidade da força do espírito humano, qualquer que seja o objeto ao qual se aplique, essa convicção sustentará o projeto da Enciclopédia” (DESNÉ, 1982, p. 76). 19 Segundo Desné, para a filosofia do século XVIII, “o alcance das teses de Locke será imenso. Sem dúvida, sua crítica do inatismo poderá ser interpretada num sentido favorável ao materialismo e não faltarão defensores da fé para fazer de Locke o pai dos materialistas modernos” (DESNÉ, 1982, p. 79). 20 Para mais detalhes acerca dessas contribuições, ver (DESNÉ, 1982, p. 74 - 83). 21 Na Grã-Bretanha, o materialismo esteve num contexto mais ou menos religioso; já na Alemanha, o materialismo teve aspectos mais subversivos, mais próximo ao desenvolvido na França. Cf. BLOCH, 1987, p. 71. 22 Luiz Roberto Monzani, “Origens do discurso libertino”. In: NOVAES, A. (org.). Libertinos Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 23 Bento Prado Jr., “A filosofia das Luzes e as metamorfoses do espírito libertino”. In: NOVAES, A. (org.). Libertinos Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 23 Olivier Bloch, a tradição libertina é uma das raízes importantes do materialismo das Luzes24. Do início do século XVIII ao seu fim, é possível reconhecer traços desses dois movimentos, já que há fontes comuns em que ambos estão baseados, seja no vínculo entre autores e textos, ou mesmo na persistência nas formas de escrever e ler os temas e tendências envolvidas nesta literária e erudita preocupação. Mais do que uma simples tradição, a tradição libertina é uma “herança libertina” (BLOCH, 1992, p. 73), cujo legado deixado pelos escritores libertinos dos séculos anteriores ao das Luzes foi continuado e desenvolvido por meio da literatura clandestina até chegar aos materialistas libertinos do século XVIII. O segundo período, a partir da segunda metade do século das Luzes, “é a época de notoriedade dos grandes autores materialistas” (BLOCH, 1987, p. 71), como La Mettrie, Diderot, Helvétius e o próprio Barão de Holbach. Eles se esforçaram, no final do século das Luzes, para conseguir a impressão de seus textos no período precedente. Para Bloch, as divergências entre alguns pontos essenciais da filosofia materialista desses autores “assentam um fundo comum de heranças, temas e fórmulas” (BLOCH, 1987, p. 71). *** De fato, gerou-se muita polêmica em torno da discussão acerca do materialismo, uma vez que o materialismo é “o próprio objeto da polêmica” (BLOCH, 1987, p. 16) e, consequentemente, uma boa parte dos filósofos e muitos que partilhavam da opinião corrente criaram diversas maneiras de depreciar o materialismo e a definição de seus termos em várias esferas da sociedade, como o discurso político e o religioso: O materialismo é uma filosofia escandalosa, com tudo o que o escândalo acarreta: filosofia frequentemente perseguida, foi ainda com maior frequência uma filosofia desacreditada e deformada à vontade, para facilitar a polêmica e alimentar o escândalo. (BLOCH, 1987, p. 16 – 17). Considerado como “o antídoto da Enciclopédia” (DESNÉ, 1969, p. 12) por apresentar certas objeções e críticas à compilação de Diderot e D’Alembert25, o Dicionário de Trévoux também atacou a filosofia do materialismo e seus adeptos, além de ter associado diretamente o 24 Cf. Olivier Bloch, “L'héritage libertin dans le matérialisme des Lumières”. In: Dix-huitième Siècle, n°24, 1992. Le matérialisme des Lumières. p. 73-82. 25 Sobre essas divergências entre o empirismo de Diderot, na Enciclopédia, e as Escrituras Sagradas e a tradição, no Dicionário de Trévoux, sugere-se a leitura do artigo de Robert Morin: “Diderot, l’Encyclopedie et le Dictionnaire de Trévoux”. In: Recherches sur Diderot et sur l’Encyclopedie, nº7, 1989, p. 71 – 122. 24 materialismo com o ateísmo e o deísmo: “dogma muito perigoso, segundo o qual alguns filósofos, indignos de tal nome, pretendem que tudo é matéria, negando a imortalidade da alma” (1752, p. 1616 – 1617)26. Por ter sido difundida clandestinamente, a filosofia materialista constituiu-se como filosofia marginal durante muito tempo, e esse caráter próprio lhe rendeu reações e formas peculiares de expressão. O materialismo, afirma Bloch, “foi uma acusação ou uma injúria, antes de ser nome de uma filosofia...” (BLOCH, 1987, p. 16). As depreciações e polêmicas que envolvem o materialismo geram consequências no seio do próprio materialismo: Filosofia minoritária, dominada, dependente, o materialismo é levado a pensar-se encerrado dentro desta mesma dependência, sob uma ou outra, ou entre uma e outra das duas maneiras que teve de se ver: pólo da submissão, onde o materialismo se pensa e se afirma como modo de negação, justificação e desculpa, nos termos do pensamento dominante e a partir dos seus pressupostos ou preconceitos muitas vezes à custa da contradição ou da confusão; polo da revolta e da provocação que, defendendo o contrário do pensamento dominante, não faz senão inverter as estruturas deste, desenvolvendo-as à maneira de paradoxo e de bravata, à custas do exagero e da caricatura do materialismo, praticados pelos seus próprios adeptos. (BLOCH, 1987, p. 17). *** A maioria dos filósofos iluministas da França do século XVIII, num certo momento, negava a existência de Deus e propunha uma concepção de mundo diferente da tradicional religiosa, além de um novo modo de vida moral que poderia gerar até mesmo, como sugere o estudioso do materialismo das Luzes, Roland Desné, “um programa político com a finalidade de libertar os homens da submissão a uma ordem sobrenatural” (DESNÉ, 1969, p. 9). Desné demonstra como foi a reação e a militância dos filósofos materialistas: Coube aos filósofos materialistas levarem tão longe quanto possível a negação dos valores religiosos tradicionais e a afirmação das virtualidades humanas: graças à ciência, os homens seriam capazes de obterem acerca de si mesmos e do mundo, suficiente conhecimento para criarem condições de vida mais feliz. (DESNÉ, 1969, p. 9). Com o passar do tempo, obras de pensadores radicais do século das Luzes - como Meslier, La Mettrie, Maupertuis, Helvétius, Holbach, Diderot, Sade, etc. – que expressavam, de maneira geral, inconformismo contra a realidade da época, foram vítimas de desinteresses, preconceitos e até mesmo repressões feitas pelas forças dominantes, viam-se em necessidade de publicar 26 Cf. Verbete “Materialisme” In: Suplément au Dictionnaire universel, françois et latin, vulgairement appelé Dictionnaire de Trévoux. Paris, 1752, p.1616 – 1617. 25 seus textos clandestinamente. E, só depois de muito tempo, essas obras foram divulgadas e estudadas por uma parte maior do público. Os materialistas do século XVIII enfrentaram muitas dificuldades para garantir um bom sentido para a afirmação de que “tudo é matéria”. Na visão daqueles defensores do espiritualismo e da metafísica teológica, a matéria sempre esteve associada àquilo que é vil, grosseiro, bruto ou passivo, e não ao que pode ser considerado como algo nobre e uma atividade. Consequentemente, isto gerou concepções radicais acerca do que é a constituição natural do homem e da natureza da qual faz parte: De fato, os materialistas franceses do século XVIII, tiveram de estabelecer a unidade material do mundo e por isso combater sem mercê o dualismo cristão. Na medida em que tal dualismo contradizia a concepção unitária do homem e da Natureza, e levando até às máximas consequências a lógica do seu pensamento, devotaram-se à crítica radical da existência de Deus e do espiritualismo. (DESNÉ, 1969, p. 12- 13). Contudo, se faz válida a conclusão de Roland Desné: “os nossos materialistas ainda não tomaram lugar definitivo nas histórias e antologias de filosofia e literatura” (DESNÉ, 1969, p. 54 – 55), já que tanto uma área quanto a outra devem muito a essa corrente importantíssima do pensamento humano e entendimento do mundo. *** Para uma adequada noção da obra filosófica de Holbach, adotamos a conveniente divisão que Jean-Claude Bourdin elaborou: “podemos distinguir, [...], três etapas, cada uma estando delimitada bem precisamente em torno de um tema dominante” (BOURDIN, 1996, p.273)27. A primeira etapa é anticristã, antirreligiosa e anticlerical, e ocorre nos primeiros anos da filosofia holbachiana, de 1752 a meados de 1770; a segunda etapa corresponde aos anos de 1770 e 1772, que são as respectivas datas da aparição do Sistema da Natureza – que foi escrito nos dois ou três anos antes de sua primeira aparição; “que fez época e marca o ponto culminante da obra do barão” (NAVILLE, 1943, p. 59) – e de sua versão reduzida, o Bom Senso28. Nesta etapa, Holbach afirma de maneira explícita “um materialismo ateu exposto em forma de sistema naturalista” (BOURDIN, 1996, p.273). Por fim, a terceira etapa da filosofia holbachiana é 27 Jean-Claude Bourdin. Les Matérialistes au XVIIIe siècle. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1996. 28 Segundo Bourdin, desde o ano 1791 este livro de Holbach foi atribuído ao cura ateu Jean Meslier (1664 – 1729). Cf. BOURDIN, 1996, p. 269. 26 dedicada à intenção político-moral, que ocorre nos anos finais de sua carreira e vida, de 1773 a 1789. Bourdin ainda apresenta ao leitor toda a amplitude e diversidade da obra holbachiana com uma divisão entre os seus escritos: produção própria, suas traduções, suas contribuições aos coletivos, como a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, e seu trabalho como editor29. De acordo com o esquema que Bourdin considera, as três etapas do sistema materialista naturalista de Holbach estão presentes em forma de momentos ou articulações no próprio Sistema da Natureza, mas expostas em uma ordem diferente. O primeiro momento do Sistema da Natureza é exatamente aquele que expõe os princípios da filosofia geral de Holbach, ou seja, que o materialismo desenvolvido por ele é o fundamento principal desse sistema da natureza. O segundo momento do Sistema da Natureza, que está subordinado ao anterior e que, nos anos 1770 ainda não estava bem desenvolvido, é o político-moral. Segundo Bourdin, “Holbach deduz com efeito de sua antropologia, constituída pela extensão ao homem, as leis do movimento e da matéria, os princípios naturais de ações humanas na sociedade” (BOURDIN, 1996, p. 274). No terceiro momento do Sistema da Natureza, Holbach tem o foco de sua filosofia na crítica da religião e do cristianismo ao mesmo tempo que afirma de maneira radical o seu ateísmo. Roland Desné ressalta que, no século XVIII, aqueles que apelidavam pejorativamente o materialismo “indignidade filosófica” (DESNÉ, 1969, p. 12) o faziam porque eram fiéis à ideia de que existe uma outra ordem no universo, que transcende à natureza e à matéria. Diante dessa condição, Holbach não escreve um “sistema da matéria”, mas um sistema da natureza, visto que a ordem a que se pode tirar a verdade sobre as coisas, de modo racional e empírico, é a da própria natureza, e nas palavras de Desné, “a bíblia do materialismo ostenta o título de O Sistema da Natureza” (DESNÉ, 1969, p. 12, grifo do autor). De acordo com Paul Vernière, o Sistema da Natureza de Holbach está organizado tal como “o velho esquema escolástico: a Natureza, o Homem, Deus” (VERNIÈRE, 1982, p. 637- 638)30, já que o seu primeiro tomo constrói o universo material onde a humanidade se integra, o segundo, puramente crítico, destrói de maneira metódica os vários sistemas teológicos para mostrar no ateísmo a conclusão lógica e desejável do materialismo (VERNIÈRE, 1982, p. 638). E para poder apreender a ideia de felicidade na filosofia de Holbach, trabalharemos com o próprio Sistema da Natureza (ou Das leis do mundo físico e do mundo moral)31, de 1770, que 29 Cf. BOURDIN, 1996, p. 269 – 271. 30 Paul Vernière, Spinoza et la Pensée Française avant la Revolution. Paris: PUF, 1954. 27 nos servirá como eixo principal de análise e reflexão. O Sistema da Natureza está subdividido em dois tomos, cujos capítulos do primeiro tratam da natureza e de suas leis, do homem, da alma e de suas faculdades, do dogma da imortalidade e dos fundamentos da felicidade; e o segundo tomo apresenta as considerações feitas por Holbach acerca da ideia de divindade e das possíveis provas de sua existência e atributos, e também, de como a ideia de divindade interfere na vida dos homens, e assim, na sua felicidade. Segundo René Hubert, o Sistema da Natureza é tal como um compêndio que contém todos os argumentos que a metafísica das ciências naturais recorre em favor das hipóteses materialistas (HUBERT, 1928, p. 74); com essa obra, segundo Pierre Naville, Holbach elaborou uma soma de argumentos que a filosofia materialista se mostrou capaz de agrupar até o século XVIII, portanto, não foi apenas um mero desafio posto por ele, mas também uma ética, uma crítica à religião, e também, uma pedagogia e uma política (NAVILLE, 1943, p. 103). *** Logo no início do “Prefácio” do Sistema da Natureza, Holbach afirma que “o homem só é infeliz porque desconhece a natureza” (HOLBACH, 2010, p. 25). E essa afirmação está diretamente ligada aos objetivos mais sinceros e pretendidos por Holbach em seu Sistema da Natureza: Assim, a finalidade desta obra é reconduzir o homem à natureza, tornar a razão preciosa para ele, fazer que adore a virtude, dissipar as sombras que lhe escondem o único caminho apropriado para conduzi-lo seguramente à felicidade que deseja. (HOLBACH, 2010, p.28). Para Holbach, os seres humanos cometeram uma série de erros e equívocos que comprometeram a compreensão da natureza como um todo e da natureza humana, e com isso, os deixaram infelizes e viciados em maus costumes. Os homens criaram metafísicas absurdas antes mesmo de entender a física, desvalorizaram a realidade para confeccionar quimeras e fantasmas, não ousaram cultivar a razão e negligenciaram a experiência para, inclusive, praticar tirania religiosa e política em muitos lugares no mundo. Os erros consagrados pelas religiões, sobretudo, os de origem judaico-cristã, são considerados por Holbach como os responsáveis 31 Nosso trabalho está baseado no Le Système de la Nature ou Lois du monde physique et du monde moral, da editora parisiense Coda (2008), e para efeito de cotejamento utilizaremos também a edição brasileira da editora Martins Fontes, Sistema da natureza ou Das leis do mundo físico e do mundo moral (2010), traduzida cuidadosamente por Regina Schöpke e Mauro Baladi. 28 pela ignorância e incerteza dos homens acerca dos seus deveres, direitos e verdades mais claros, evidentes e que podem ser melhores demonstrados. Contudo, Holbach quer que a humanidade busque na natureza os antídotos contra os males que foram criados pelos devaneios da imaginação. O barão quer que a humanidade faça com que a razão deixe de ser cúmplice de mentiras e delírios. Enfim, que a razão seja sempre guiada pela experiência e que, consequentemente, possa atacar e destruir as fontes de preconceitos que fizeram dos seres humanos suas vítimas por tanto tempo: Tratemos, portanto, de afastar as nuvens que impedem o homem de caminhar com um passo seguro no caminho da vida. Inspiremos-lhe a coragem e o respeito pela sua razão; que ele aprenda a conhecer sua essência e seus legítimos direitos; que consulte a experiência, e não uma imaginação desvirtuada pela autoridade. Que renuncie aos preconceitos de sua infância; que fundamente a sua moral sobre a sua natureza, sobre as suas necessidades, sobre as vantagens reais que a sociedade lhe proporciona. Que ele ouse amar a si próprio; que trabalhe pela sua própria felicidade fazendo a dos outros. Em poucas palavras, que ele seja racional e virtuoso, para ser feliz aqui embaixo, e que não se ocupe mais com divagações perigosas e inúteis. [...] Que se persuada, enfim, de que é muito importante para os habitantes deste mundo serem justos, benfazejos e pacíficos, e de que nada é mais indiferente do que a sua maneira de pensar acerca dos objetos inacessíveis à razão. (HOLBACH, 2010, p.27-28). Portanto, é possível reconhecer que há uma “profissão de empirismo e legitimação da busca pela verdade por aquela da felicidade” e que a experiência afirma a “inserção absoluta do homem na natureza” ()32, já que, de fato, os seres humanos são uma das obras da natureza. 32 Annie Becq (org), “Tensions textuelles et contradictions idéologiques – Nature et matérialisme” In: Aspects du discours matérialiste em France autor de 1770, Université de Caen, 1981, p. 13-46. 29 Cap. 2 – A natureza, a matéria e o movimento Para uma identificação adequada daqueles que podemos considerar materialistas e, especificamente, do que pode se caracterizar como materialismo holbachiano, é preciso, segundo Jean-Claude Bourdin, “dirigir-se de início à consciência que seus representantes tinham deles mesmos e do tipo de filosofia que eles praticavam. Em particular, seria interessante saber aquilo que eles mesmos entendiam por ‘materialismo’” (BOURDIN, 1996, p.12). Em 1768, dois anos antes do lançamento do Sistema da Natureza, o Barão de Holbach definiu “Materialismo”: Opinião absurda – ou seja, contrária à teologia – que sustentam alguns ímpios que não têm bastante espírito para saber o que é um espírito, ou uma substância que não tem nenhuma das qualidades que nós podemos conhecer. (HOLBACH, 2012, p. 149 – 150). Esta definição está em uma das obras clandestinas de Holbach, a Teologia Portátil ou Dicionário abreviado da religião cristã33 que, de maneira irônica e ousada, denunciou e tentou combater as hipocrisias, os abusos e os preconceitos promovidos pela tirania teológica no século XVIII. Como afirma Pascal Charbonnat34, Holbach em Teologia Portátil “ridiculariza com ironia o clero, reduzindo a religião aos interesses dos padres” (CHARBONNAT, 2007, 351). Entretanto, no Sistema da Natureza, Holbach não recorre frequentemente aos termos “materialismo” e “materialista” para poder qualificar-se como tal ou para identificar sua própria filosofia. Surpreendentemente, em todo o livro, há apenas uma ocorrência da palavra “materialismo”: Em poucas palavras, a moral e a política poderiam tirar do materialismo algumas vantagens que o dogma da espiritualidade jamais lhes fornecerá e com as quais ele as impede até mesmo de sonhar. (HOLBACH, 2010, p.162 – 163, grifo do autor). No livro, O Bom Senso buscado na natureza35, o termo materialismo foi introduzido como objeção, com um sentido pejorativo, tal como os adversários dos materialistas o faziam: “Objetam-nos que o materialismo faz do homem uma máquina pura, o que julgamos bastante 33 Barão de Holbach. Teologia Portátil ou Dicionário Abreviado da Religião Cristã. Trad. Regina Schöpke e Mauro Baladi. São Paulo: Martins Editora, 2012. 34 Pascal Charbonnat, Histoire des philosophies matérialistes. Paris: Syllepse, 2007. 35 Baron D’Holbach. Le Bon Sens puisé dans la Nature. Paris: Coda, 2008. O Bom Senso (1772) de Holbach apresenta-se como uma versão abreviada do Sistema da Natureza (1770), que retoma e desenvolve os pontos centrais de sua filosofia materialista e ateísta. 30 desonroso para toda a espécie humana” (HOLBACH, D’., 2008, p. 67). E, mais adiante, o barão expressa como o materialismo era considerado quando relacionado como influência ao modo de agir das pessoas: O materialismo, [...] é, digamos, um sistema aflitivo feito para degradar o homem, que o coloca na categoria dos brutos, que destrói sua coragem, que não lhe mostra senão sempre uma perspectiva de aniquilação medonha capaz de lhe conduzir ao desespero e de lhe convidar a se matar quando ele sofre neste mundo. (HOLBACH, D’., 2008, p.69).36 No Sistema da Natureza, especificamente, como afirma Jean-Claude Bourdin, os termos e as denominações referentes ao materialismo holbachiano variam: Holbach se utiliza de termos como “naturalismo”, “sistema da necessidade”, “fatalismo” e “ateísmo” (BOURDIN, 1996, p. 14). Bourdin classifica ainda o materialismo de Holbach como um “materialismo naturalista” (1996, p. 271), uma vez que o Sistema da Natureza e o Bom Senso, como afirmado anteriormente, promovem um materialismo ateu em forma de “sistema naturalista” (1996, p. 273). Holbach também usa as expressões “sistema do naturalismo” (HOLBACH, 2010, p. 779) e “princípios do naturalismo” (HOLBACH, 2010, p. 841, grifo do autor), para se referir de modo diferente ao seu próprio sistema da natureza. É importante ressaltar que, na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, o verbete “Naturalista” além de afirmar que aquele que é considerado naturalista “é uma pessoa que estudou a natureza e que é versada no conhecimento das coisas naturais, particularmente, no que concerne aos metais, aos minerais, às pedras, aos vegetais e aos animais”, relaciona os “naturalistas àqueles que não admitem Deus, mas que creem que não há senão uma substância material [...]; naturalista nesse sentido é sinônimo de ateu, espinosista, materialista, etc.” (DIDEROT; D’ALEMBERT, 2013b, p. 155 – 156, grifos do autor)37. Tanto a formação do conhecimento de Holbach quanto o seu materialismo naturalista se enquadram nessa definição do verbete da Enciclopédia, já que o barão foi um grande estudioso de história natural. *** 36 É possível observar que, nestas duas passagens, a discussão que envolve o termo materialismo está ligada ao contexto ético que também investiga a liberdade humana, já que o materialismo holbachiano tem como um de seus princípios o fatalismo, que será trabalhado nesta pesquisa no capítulo acerca do fatalismo de Holbach. 37 Diderot et D’Alembert. Encyclopedie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, T. II – F à O. Canada: Éditions La Bibliotèque Digitale, 2013b. 31 De acordo com Georgette e Bernard Cazes38, é possível ter uma boa noção do materialismo naturalista de Holbach, se começarmos por “examinar o modo como ele explicava a estrutura e o funcionamento do universo e da natureza” (CAZES, G. e B.,1967, p. 19). Nas palavras de Holbach, o universo é “essa vasta reunião de tudo aquilo que existe, não nos oferece em toda parte senão a matéria e o movimento: seu conjunto não nos mostra senão uma cadeia imensa e ininterrupta de causas e efeitos” (HOLBACH, 2010, p.40). E a natureza é definida, de modo geral, como “o grande todo que resulta da reunião das diferentes matérias, de suas diferentes combinações e dos diferentes movimentos que nós vemos no universo” (HOLBACH, 2010, p. 40). Ao final do primeiro capítulo do Sistema da Natureza, Holbach chama a atenção do leitor, por meio de uma Nota Bene (N.B.), para adverti-lo de que sua definição de “natureza” e o sentido que lhe é dado não correspondem em nada a uma personificação da natureza (Cf. HOLBACH, 2010, p. 41). Holbach afirma que “a natureza produz um efeito” (2010, p. 41), esse efeito refere-se ao “resultado necessário das propriedades de alguns dos seres que compõem o grande conjunto que nós vemos” (2010, p. 41), portanto, da própria natureza. Pierre Lurbe, numa análise do materialismo holbachiano, afirma ser possível notar que, em algumas passagens do Sistema da Natureza, Holbach dá certa “equivalência” e “identificação” aos conceitos natureza e matéria (LURBE, 1992, p. 61), quando ele faz a descrição da definição de universo ou quando diz, por exemplo, que “tudo nos prova, portanto, que a natureza ou a matéria existe necessariamente, e não pode se afastar das leis que sua existência lhe impõe” (HOLBACH, 2010, p. 616). Lurbe ainda afirma que a relação entre natureza e matéria parece gerar um sentido de duas “entidades distintas” (LURBE, 1992, p. 60), como nesta passagem de Holbach: “se tivessem observado a natureza sem preconceito, teriam há muito tempo se convencido de que a matéria age pelas suas próprias forças e não tem necessidade de nenhum impulso externo para ser posta em movimento” (HOLBACH, 2010, p. 53). Em outra passagem que é possível encontrar equivalência entre os termos natureza e matéria, Holbach diz: A natureza é um todo agente ou vivente do qual todas as partes colaboram necessária e inconscientemente para manter a ação, a existência e a vida: a natureza existe e age necessariamente, e tudo aquilo que ela contém conspira necessariamente para a perpetuação de seu ser agente. (HOLBACH, 2010, p. 87). 38 Georgette et Bernard Cazes. D’Holbach portatif. 1967. 32 Para complementar essa passagem, Holbach afirma em uma nota que “a matéria age porque ela existe e ela existe para agir” (HOLBACH, 2010, p. 87), assim como a natureza. Lurbe ainda aponta uma outra passagem do Sistema da Natureza que pode provar “a identificação dos dois conceitos” (LURBE, 1992, p. 61): “tudo nos prova, portanto, que a natureza ou a matéria existe necessariamente, e não pode se afastar das leis que a sua existência lhe impõe” (HOLBACH, 2010, p. 616). Portanto, no Sistema da Natureza, quando Holbach refere-se à natureza, também aponta àquilo que é referente à própria matéria, ou seja, seu materialismo é caracterizado como naturalista, ou ainda, o seu naturalismo é materialista. Holbach descreve a estrutura da natureza como um conjunto que apresenta uma dinâmica peculiar acerca da relação entre a matéria e o movimento, visto que esses elementos geram os corpos e os seres do universo e da natureza, além de garantir a esses seres corpóreos características físicas e comportamentais que variam entre eles: Matérias muito variadas, e combinadas de uma infinidade de maneiras, recebem e transmitem incessantemente os diversos movimentos. As diferentes propriedades dessas matérias, suas diferentes combinações e suas maneiras tão variadas de agir – o que são as consequências necessárias disso – constituem para nós as essências dos seres. E é dessas essências diversificadas que resultam as diferentes ordens, posições ou sistemas que esses seres ocupam, cuja soma total constitui aquilo que nós chamamos de natureza. (HOLBACH, 2010, p. 40, grifos do autor). Portanto, o universo que contém a natureza, da qual fazemos parte, é constituído apenas por matéria e movimento. Há um princípio do movimento que é essencial à natureza como um todo. Nas palavras de Holbach: “tudo está em movimento no universo. A essência da natureza é agir e, se nós considerarmos atentamente as suas partes, veremos que não existe nela uma única que desfrute de um repouso absoluto” (HOLBACH, 2010, p. 48). Holbach não admite a perspectiva criacionista da religião revelada quando faz suas observações acerca da natureza material e do seu movimento constituinte: A natureza é a causa de tudo. Ela existe por si mesma, ela existirá sempre, ela agirá sempre. Ela é a sua própria causa, seu movimento é uma consequência necessária da sua existência necessária; sem movimento, nós não podemos conceber a natureza. (HOLBACH, 2010, p. 625). A concepção holbachiana da natureza, afirma Desné, “não manifesta qualquer desígnio providencial” (DESNÉ, 1969, p. 28), ela é tão somente essa unidade móvel que apresenta os mais diversos e opostos fenômenos naturais. Segundo Holbach, diante da natureza, “se ignorarmos os seus pormenores e os princípios secretos que ela emprega em suas obras complicadas” (HOLBACH, 2010, p. 627 – 628), poderemos nos dedicar de maneira exclusiva 33 a essa natureza que podemos ver e sentir, que sempre age sobre nós, e que podemos conhecer ao menos as suas leis gerais: Observemos, portanto, essa natureza. Não saiamos jamais das rotas que ela nos traça, pois seríamos infalivelmente punidos por isso através dos erros inumeráveis que cegariam o nosso espírito, e dos quais males inumeráveis seriam as consequências necessárias. Não adoremos, não busquemos agradar, à maneira dos homens, uma natureza surda que age necessariamente e da qual nada pode atrapalhar o curso. Não imploremos a um todo que só pode ser mantido pela discórdia entre elementos, de onde nasce a harmonia universal e a estabilidade do conjunto. (HOLBACH, 2010, p. 628). O Barão de Holbach nos previne: a natureza é surda. Porém, como afirma Desné, “isto não significa que ela seja muda” (DESNÉ, 1969, p. 30 – 31). A própria natureza nos dá condições de adquirir conhecimento necessário e verdadeiro acerca do que realmente precisamos para nos conservarmos e sermos felizes. Caso o conhecimento não advenha da natureza, será um mero devaneio da nossa imaginação, que pode inclusive gerar infelicidades e conflitos entre as pessoas. Holbach expressa, a partir de uma generalização, qual a origem e o caráter dos equívocos acerca do conhecimento do mundo e de si mesmos feitos pelos seres humanos: Todos os erros dos homens são erros de física. Eles nunca se enganam, a não ser quando deixam de remontar à natureza, de consultar as suas regras, de chamar a experiência em seu socorro. É assim que, pela falta de experiências, eles formaram ideias imperfeitas sobre a matéria, sobre suas propriedades, suas combinações, suas forças, sua maneira de agir ou sobre a energia que resulta de sua essência. A partir daí, todo o universo se tornou para eles apenas um cenário de ilusões. Eles ignoraram a natureza, desconheceram suas leis, não viram os caminhos necessários que ela traçou para tudo aquilo que contém. Que digo eu! Eles desconheceram a si próprios; todos os seus sistemas suas conjecturas e seus raciocínios, dos quais a experiência foi banida, não foram senão um longo tecido de erros e de absurdos. (HOLBACH, 2010, p. 35). Porém, Holbach parece dar um fio de esperança para aquele indivíduo que pretende retomar o estudo da natureza e se basear na experiência que serve de guia à razão para poder efetivamente ser alguém virtuoso: Só aqueles que estudam a natureza tomando a experiência como guia podem adivinhar os seus segredos e deslindar pouco a pouco a trama, quase sempre imperceptível, das causas de que ela se serve para realizar os seus grandes fenômenos. (HOLBACH, 2010, p. 294). Holbach acredita que a adoração e a súplica à natureza se tornam ridículas, já que a natureza merece ser vista “como uma imensa oficina que contém tudo aquilo que é necessário para agir e para produzir todas as obras que vemos” (HOLBACH, 2010, p. 628), ou seja, a 34 natureza, ou, “a matéria é, por si mesma, suficientemente rica para poder dar origem a todas as formas vivas” (DESNÉ, 1969, p. 30) que a constitui. A natureza tem tudo o que precisa para se manter, e manter aqueles processos e transformações de que sempre foi capaz de fazer: matéria e movimento. Denis Diderot, em seu Princípios filosóficos sobre a matéria e o movimento, partilha da mesma concepção e do mesmo fito que seu amigo Holbach39, já que os dois fazem, cada um à sua maneira, uma crítica às concepções metafísicas concernentes à química e à física de alguns filósofos da época: Não sei em que sentido os filósofos supuseram que a matéria era indiferente ao movimento e ao repouso. O que há de bem certo é que todos os corpos gravitam uns sobre os outros, é que todas as partículas dos corpos gravitam umas sobre as outras, é que, neste universo, tudo está em translação ou in nisu ou em translação e em in nisu ao mesmo. (DIDEROT, 2000a, p. 247, grifos do autor).40 Em outro momento de seu texto, Diderot faz referência aos físicos cartesianos que persistem em afirmar que “o corpo, [...], é, por si próprio, despido de ação e de força” (DIDEROT, 2000a, p. 248), e conclui: É uma terrível falsidade, muita contrária a toda boa física, a toda boa química: por si mesma, pela natureza de suas qualidades essenciais, quer o consideremos como moléculas, quer o consideremos como massa, está repleto de ação e de força. (DIDEROT, 2000a, p. 248).41 De modo geral, afirma Desné, “os materialistas franceses concebem o movimento como uma propriedade essencial da matéria” (DESNÉ, 1969, p. 29) e o Barão de Holbach afirma categoricamente que “é apenas ao movimento que são devidas as mudanças, as combinações, as formas – em poucas palavras, todas modificações da matéria” (HOLBACH, 2010, p. 65). Por matéria, especificamente, Holbach afirma que “é tudo aquilo que afeta os nossos sentidos de uma maneira qualquer” (HOLBACH, 2010, p. 63), cujas qualidades atribuídas à diversidade material estão baseadas nas diferentes impressões ou mudanças que são geradas nos indivíduos. E o movimento “é um esforço pelo qual um corpo muda ou tende a mudar de 39 Para uma melhor abordagem acerca da influência que Diderot e Holbach exerceram um sobre a filosofia do outro, bem como a amizade e as possíveis divergências entre eles, sugerimos a leitura do artigo de Roland Mortier, “Holbach et Diderot: Affinités et divergences” In: Revue de L’Université de Bruxelles, 1972/2-3, Bruxelles: Université Libre de Bruxelles, 1972. 40 Em nota: no materialismo determinista de Diderot, “em translação”, como energia cinética; “em in nisus”, como energia potencial. Cf. DIDEROT, 2000a, p. 247. 41 Diderot nos oferece o essencial de sua filosofia da natureza em seu O Sonho de D’Alembert, seguido de Continuação do Diálogo. 35 lugar, ou seja, a corresponder sucessivamente a diferentes partes do espaço, ou então a mudar de distância relativamente a outros corpos” (HOLBACH, 2010, p. 43). As mudanças, as combinações e as formas dos corpos são atribuídas apenas ao movimento, ou seja, toda e qualquer modificação da matéria ocorre por causa do movimento e dos seus efeitos decorrentes, e assim, os corpos são produzidos, alterados ou desenvolvidos para crescer e perecer. O movimento é o encarregado de modificar os aspectos dos seres, quando retira ou acrescenta alguma propriedade a eles e faz com que eles sigam o ciclo eterno e imutável da natureza, na medida em que exerce relação entre si e o resto do mundo: É através do movimento que o todo tem relações com as suas partes, e estas com o todo: é assim que tudo está ligado no universo. Ele próprio nada mais é que uma imensa cadeia de causas e efeitos, que incessantemente decorrem uns dos outros. (HOLBACH, 2010, p. 83). Holbach questiona de onde essa natureza material recebeu o movimento que faz parte de sua essência, e responde: [...] o movimento é uma maneira de ser que decorre necessariamente da essência da matéria, que ela se move pela sua própria energia, que seus movimentos são devidos às forças que lhe são inerentes, que a variedade de seus movimentos e dos fenômenos que resultam deles é proveniente da diversidade das propriedades, das qualidades e das combinações que se encontram originalmente nas diferentes matérias primitivas, das quais a natureza é a reunião. (HOLBACH, 2010, p. 52). Holbach acredita que a existência da matéria e a existência do movimento são dois fatos inegáveis. Se perguntarem de onde veio a matéria, deve-se dizer que ela sempre existiu. E, caso façam a mesma questão sobre o movimento na matéria, deve-se dizer que, pelo mesmo motivo, a matéria está em eterno movimento, já que “o movimento é uma consequência necessária da sua existência, da sua essência e das suas propriedades primitivas” (HOLBACH, 2010, p. 58), como a extensão, o peso, etc. Para Holbach, “tudo está em movimento no universo” e que “a essência da natureza é agir” (HOLBACH, 2010, p.48). Portanto, se observarmos atentamente a natureza, veremos que nada nela desfruta de um repouso absoluto. E conclui: É, portanto, o movimento contínuo, inerente à matéria, que altera e destrói todos os seres, que lhes arrebata a cada instante algumas das suas propriedades para substituí-las por outras: é ele que, cambiando assim suas essências atuais, modifica também as suas ordens, suas direções, suas tendências, as leis que regulam as maneiras deles serem e agirem. (HOLBACH, 2010, p. 71). 36 Uma vez definidos os conceitos de natureza, matéria e movimento, podemos afirmar um rompimento com dualismo metafísico vigente na época de Holbach, tal como demonstra Maria das Graças de Souza: A natureza, objeto da experiência, é, segundo Holbach, o grande todo que contém em si todos os seres, e para além do qual nada existe. [...] A superação de uma metafísica dualista deve passar por uma reviravolta no conceito de natureza. Se concebermos o mundo natural como matéria inerte e passiva, teremos que buscar fora dela a gênese do seu movimento, visto que a observação nos mostra que tudo na natureza está em movimento contínuo. Mas se concebermos o mundo natural como um todo ativo, cujas partes estão em ação e reação perpétuos, não precisaremos recorrer a explicações sobrenaturais. Este postulado é o ponto de partida do materialismo de Holbach. (NASCIMENTO, M. G., 1983, p. 75). Assim, o Barão de Holbach nos demonstra que, sem o reconhecimento adequado da natureza e de suas leis, advindos da experiência e da razão, não se torna possível saber qual é a relação entre o mundo físico e o mundo moral. Especificamente, o homem afastado da natureza não reconhece a si mesmo e nem os seus deveres morais. Dessa maneira, sua conservação e felicidade estão comprometidas. Portanto, Holbach nos alerta do risco de viver uma vida infeliz por não nos aproximarmos do conhecimento da natureza. *** A experiência e a razão, segundo Holbach, são capazes de nos provar “que os fenômenos do mundo moral seguem as mesmas regras que os do mundo físico” (HOLBACH, 2010, p. 295). Na natureza, “tudo está ligado, onde tudo age e reage, onde tudo se move e se altera, se compõe e decompõe, se forma e se destrói, não existe nenhum átomo que não desempenhe um papel importante e necessário” (HOLBACH, 2010, p. 296). Há, na natureza, uma rede de causalidades em que, em muitas situações, não é possível discernir as causas que originam certos efeitos. Porém, caso fosse possível fazer esse discernimento de modo eficaz, afirma Holbach, descobriríamos “as alavancas secretas das quais a natureza se serve para mover o mundo moral” (HOLBACH, 2010, p. 296). A natureza também é considerada de modo específico em cada ser, visto que Holbach a define como “o todo que resulta da essência, ou seja, das propriedades, das combinações ou das maneiras de agir que distinguem um ser dos outros” (HOLBACH, 2010, p. 40 – 41). Dessa maneira, Holbach une as propriedades fisiológicas com os aspectos comportamentais dos seres. 37 De acordo com Holbach, a humanidade criou, por meio da imaginação, “estranhas hipóteses para explicar os funcionamentos ocultos de sua máquina” (HOLBACH, 2010, p. 111). A imaginação humana encarregou-se de criar a ilusão de que o corpo humano continha dentro de si mesmo “um princípio motor, distinto de sua máquina” (HOLBACH, 2010, p. 111) que, secretamente, dava o impulso às engrenagens. E assim, criou-se, consequentemente, as noções de espiritualidade, de imaterialidade, de imortalidade. Segundo Holbach, foi a partir dessas considerações equivocadas que o homem se tornou duplo, ou seja, “distinguiu duas substâncias em si próprio” (HOLBACH, 2010, p. 113): Uma, visivelmente submetida às influências dos seres grosseiros e composta de matérias grosseiras e inertes, foi chamada de corpo. A outra, que se supôs simples, de uma essência mais pura, foi considerada como agindo por si mesma e dando o movimento ao corpo com o qual se achava miraculosamente unida. Esta foi chamada de alma ou espírito; e as funções de uma foram chamadas físicas, corporais, materiais; as funções da outra, de espirituais e intelectuais. O homem, considerado relativamente às primeiras, foi chamado de homem físico; considerado relativamente às últimas, foi designado pelo nome de homem moral. (HOBACH, 2010, p. 113, grifos do autor). Holbach rejeita esses delírios de Descartes e demonstra que a experiência que guia a razão nos prova que “o homem é um todo organizado, composto de diferentes matérias” (HOLBACH, 2010, p.114) ou ainda, “um ser material, organizado ou conformado de maneira a sentir, a pensar, a ser modificado de certas maneiras apropriadas somente a ele, à sua organização, às combinações particulares das matérias que se acham reunidas nele” (HOLBACH, 2010, p.114 – 115). Para Holbach, “nunca existe nada além da matéria dotada de diferentes propriedades, diversamente combinada, diversamente modificada, e que age em razão de suas propriedades”. (HOLBACH, 2010, p. 114). Eis o princípio holbachiano acerca da natureza do ser humano: O homem é um ser puramente físico. O homem moral nada mais é do que esse ser físico considerado sob um certo ponto de vista, ou seja, relativamente a algumas das maneiras de agir decorrentes de sua organização particular (HOLBACH, 2010, p. 32). Diante desse princípio, Pierre Naville revela qual é o foco do materialismo de Holbach: A afirmação central de d’Holbach, portanto, não é somente a unidade da matéria, é com ela a unidade do universo inteiro, é o monismo. E a unidade do mundo é inteiramente referida ao seu aspecto físico (perceptível pelos sentidos). Assim, o dualismo de Descartes é superado, ou logo descartado. As combinações de Leibniz e de Espinosa entre as duas substâncias são também. (NAVILLE, 1943, p. 224). Para Holbach, além de um ser puramente físico, o homem é um ser dotado de ação: 38 O homem físico é o homem agindo pelo impulso de causas que os nossos sentidos nos fazem conhecer; o homem moral é o homem agindo por causas físicas que os nossos preconceitos nos impedem de conhecer (HOLBACH, 2010, p. 34). Portanto, se forem examinadas todas as atividades que são atribuídas à alma do indivíduo, será possível ver que essas atividades, tanto quanto as que são atribuídas ao corpo, ocorrem por conta das causas físicas. Já que, tudo o que acontece com alma é exatamente o que acontece com o corpo, e o que se considera como alma depende diretamente do corpo: Assim, a alma é o homem considerado relativamente à faculdade que ele tem de sentir, de pensar e de agir de uma maneira resultante da sua própria natureza, ou seja, das suas propriedades, da sua organização particular e das modificações duráveis ou transitórias que sua máquina sofre da parte dos seres que agem sobre ela. (HOLBACH, 2010, p.136). Para Holbach, o homem não é separável da grande totalidade que é a natureza, pois é produto inerente dela e está sempre sujeito às leis que ela própria determina: Os homens se enganarão sempre que abandonarem a experiência por sistemas criados pela imaginação. O homem é obra da natureza, existe na natureza, está submetido às suas leis; ele não pode livrar-se dela, não pode, nem mesmo pelo pensamento, sair dela. (HOLBACH, 2010, p.31). Holbach faz suas considerações acerca do conhecimento que pode ser adquirido do próprio homem: Quando quisermos conhecer o homem, tratemos portanto de descobrir as matérias que entram em sua combinação e que constituem o seu temperamento. Essas descobertas servirão para nos fazer adivinhar a natureza e a qualidade de suas paixões e de suas tendências e para pressentir a sua conduta em dadas ocasiões: elas nos indicarão os remédios que poderemos utilizar com sucesso para corrigir os defeitos de uma organização viciosa ou de um temperamento tão nocivo à sociedade quanto a quem o possui. (HOLBACH, 2010, p. 163). Holbach propõe que o homem não procure fora ou além da natureza o que é necessário para ser feliz, pois aquilo que é descoberto por meio do conhecimento da natureza deve se voltar à sua própria felicidade. Para isso, Holbach espera que o homem estude a natureza para poder aprender as suas leis, que a observe atentamente e que aproveite seus recursos. Essa atitude do homem perante a natureza lhe proporcionaria um possível caminho em direção à sua autonomia e bem estar, ou em último caso, à sua felicidade. Tal como todos os outros seres, o homem tenta de diversas maneiras conservar sua existência o máximo que pode. E, por mais ocultas ou complexas que sejam ou pareçam ser 39 essas diversas maneiras de se conservar, visíveis ou não visíveis, o homem tem suas mudanças de estado ou de movimentos constantemente reguladas pelas mesmas leis que são preestabelecidas pela natureza. A natureza é determinante para o nascimento, o desenvolvimento, o enriquecimento de suas faculdades, o seu crescimento, a sua conservação durante um período e a sua destruição ou decomposição quando é determinada alguma mudança na forma material dos corpos. E completa Holbach sobre as impressões em nossos sentidos: Algumas dessas causas nos são conhecidas, porque elas impressionam diretamente os nossos sentidos; outras nos são desconhecidas, porque elas atuam sobre nós apenas por intermédio de efeitos que sempre muito afastados das suas primeiras causas. (HOLBACH, 2010, p. 40). A compreensão racional da relação entre o mundo físico e o mundo moral é uma das maiores intenções de Holbach no Sistema da Natureza, já que ele se esforça para nos proporcionar as melhores condições racionais para o entendimento do mundo moral por meio do “sistema da necessidade” (HOLBACH, 2010, p. 284) e do “fatalismo” (HOLBACH, 2010, p. 269) encontrados na totalidade da natureza e na natureza do ser humano como parte integrante desse todo. É o que podemos considerar como um determinismo moral acerca do comportamento do homem na natureza. Nas palavras de Holbach, “a necessidade que regula os movimentos do mundo físico regula também todos os do mundo moral, onde tudo está, por conseguinte, submetido à fatalidade” (HOLBACH, 2010, p. 265 – 266). 40 Cap. 3 – O fatalismo de Holbach Para que se pudesse realizar o “progresso das Luzes”, Jean Ehrard42 ressalta a exigência de que o real fosse racional e que, ao mesmo tempo, a razão deixasse de atribuir limites tão estreitos à realidade, o que implica também tanto a confiança na razão quanto a consciência dos seus limites. Tal exigência foi peculiar ao período das Luzes, já que a nova ideia de natureza tentou eclipsar as ideias teológicas acerca da realidade e da natureza: O que se procura obscuramente, ao longo de todo século, através de múltiplas tentativas para circunscrever o universo e os meios de compreendê-lo, para construir uma visão de mundo coerente, ao mesmo tempo que um método eficaz, é a definição de um determinismo, bastante rígido para dar ao espírito uma apreensão sobre as coisas, mas bastante flexível para não excluir da realidade uma parte do real. (EHRARD, 1994, p. 247). Há em Holbach uma ideia de que a experiência que se volta à natureza é capaz de demonstrar e explicar racionalmente a totalidade do mundo e a dinâmica que acontece entre os corpos e que é resultado da causalidade natural no mundo, ou seja, das relações de causa e efeito entre os corpos, nas quais estão inseridos a matéria e o movimento. Holbach afirma que no mundo há apenas causas e efeitos naturais, ou seja, há uma causalidade natural no mundo. E as mudanças ocorrem na natureza onde os seres, as substâncias e os diversos corpos são considerados eles mesmos efeitos de determinadas combinações ou causas, dessa maneira tornam-se causas também. Nas palavras de Holbach, “toda causa produz um efeito” e “não pode existir efeito sem causa” (HOLBACH, 2010, p. 82). A “causa”, para Holbach, se dá quando um ser coloca em movimento um outro ser ou produz algum tipo de mudança nele. E o “efeito” é a mudança gerada que um ser produz em um outro com o auxílio do movimento (HOLBACH, 2010, p. 43). Na natureza, só existe causas e efeitos naturais, e “todos os movimentos que nela são provocados seguem leis constantes e necessárias” (HOLBACH, 2010, p. 75). Portanto, para o barão, “a necessidade é a ligação infalível e constante das causas com os seus efeitos” (HOLBACH, 2010, p.82) que existem em toda a natureza. A imaginação não deve ser encarregada do julgamento das causas e dos efeitos, mesmo que os nossos sentidos não sejam capazes de reconhecer todas as causas. Segundo Holbach, não há acasos na natureza, “acaso é uma palavra vazia de sentido, ou ao menos não indica senão a ignorância daqueles que a empregam” (HOLBACH, 2010, p. 597) 42 Jean Ehrard. L’idée de nature en France dans la première moitié du XVIIIe siècle. Paris: Albin Michel, 1994. 41 como fruto da imaginação que muitas vezes é perturbada por temores e passa a criar quimeras ou causas fictícias. Para Holbach, o conhecimento humano só pode conhecer “a natureza e os seus caminhos” (HOLBACH, 2010, p. 627) de modo incompleto, e as ideias que temos da matéria são superficiais e imperfeitas. Porém, diante dessa impotência natural que os seres humanos se encontram, Holbach nos mostra uma alternativa: Se nós não podemos remontar às causas primeiras, contentemo-nos com as causas segundas e com os efeitos que experiência nos mostra. Recolhamos alguns fatos verdadeiros e conhecidos, e eles serão suficientes para nos fazer julgar aquilo que não conhecemos. Limitemo-nos aos débeis clarões de verdade que os nossos sentidos nos fornecem. (HOLBACH, 2010, p. 627). Holbach acredita que nunca podemos pensar que a cadeia de causalidade está quebrada ou que as causas são sobrenaturais e, portanto, não devemos jamais substituir as causas que podemos conhecer por “fantasmas, ficções ou palavras vazias de sentido” (HOLBACH, 2010, p. 76). É do pressuposto da necessidade que decorre o que o barão chama de “dogma do fatalismo” (HOLBACH, 2010, p. 269), já que é dessa ideia essencial que é possível reconhecer que todos os movimentos e modificações do âmbito físico e moral estão submetidos à fatalidade. Sobre o determinismo de Holbach, Jean Ehrard afirma que essa noção positiva de um determinismo “ensaiará a dedução da ideia normativa de uma Ordem, mas sem verdadeiramente evitar, embora ele se defenda, de retornar àquela de uma Potência orgânica” (EHRARD, 1994, p.247). E o barão nos mostra o que entende por fatalidade no Sistema da Natureza: A fatalidade é a ordem eterna, imutável, necessária, estabelecida na natureza, ou a ligação indispensável entre as causas que agem e os efeitos que elas operam. De acordo com essa ordem, os corpos pesados caem, os corpos leves se elevam, as matérias análogas se atraem, as contrárias se repelem. Os homens se associam, modificam-se uns aos outros, tornam-se bons ou maus, tornam-se mutuamente felizes ou infelizes, amam-se ou se odeiam necessariamente de acordo com a maneira como eles agem uns sobre os outros. (HOLBACH, 2010, p. 265). Para Holbach, o fatalismo é tal como um sistema metafísico que nos permite reconhecer as causas e os efeitos que estão relacionados necessariamente, e com isso, podemos saber sob o âmbito moral quais são os motivos que os homens têm e que determinam seus comportamentos e os fazem tomar certas atitudes em sociedade. Holbach afirma que o que chama de “sistema do fatalismo” (HOLBACH, 2010, p. 280) não é feito para confundir ou desapropriar as ideias de vício ou virtude, ou seja, não se perde a 42 capacidade de julgar moralmente as ações humanas mesmo que se reconheça que elas são necessárias e determinadas por causas prévias das quais seus efeitos podem ser perversos. O homem não deixa de poder punir essas ações e buscar algo melhor ao seu bem estar e felicidade, ou seja, conceber a condição determinista e fatalista da natureza e, simultaneamente, deixá-la em harmonia e vinculada à moral de alguém racional e equilibrado, é reconhecer que ele pode ser cada vez mais um ser virtuoso e feliz. Apenas aplicarão essas punições de maneira mais justa e moderada afim de mostrar a necessidade da virtude. Portanto, longe de desencorajar os seres humanos, desanimá-los ou submetê-los à apatia e fazer com que eles até deixem de se comover e de se sociabilizar, o fatalismo holbachiano, cujo dogma da fatalidade é o de que “tudo é necessário” (HOLBACH, 2010, p. 286), não suprime os sentidos naturais e necessários. Pelo contrário, diante dessa fatalidade, o indivíduo que se reconhece nesse sistema é capaz de ter todos os sentimentos vivos e necessários em seu comportamento, já que foi a natureza que o organizou e o determina em tudo o que ele sente e faz de acordo com seu temperamento. Holbach acredita que o sistema da necessidade pode ser útil àqueles seres humanos que são constituídos por uma “enorme sensibilidade” e que ficam infelizes por não se aceitarem no fado da natureza, já que o fatalismo promove a condição de uma “feliz apatia”, “submissão útil”, ou mesmo, “resignação sensata” (HOLBACH, 2010, p. 286). Todas as maneiras de agir dos corpos são determinadas pelas suas próprias naturezas, essências, propriedades e combinações particulares. Com isso, cada corpo tem seu movimento e maneira de agir determinados por algumas causas, e nada pode se desviar dessa determinação natural. Entretanto, Holbach questiona: “qual é a direção ou tendência geral e comum que vemos em todos os seres?”, e ainda, “qual é a finalidade visível e conhecida de todos os seus movimentos?” (HOLBACH, 2010, p. 80). E nos responde: “conservar a sua existência atual, é preservar nela, é fortalecê-la, é atrair aquilo que lhe é favorável, é repelir aquilo que pode lhe causar dano, é resistir aos impulsos contrários à sua maneira de ser e à sua tendência natural” (HOLBACH, 2010, p. 80-81). O ser humano, que está na natureza e é parte constituinte dela, age segundo leis naturais que lhe são próprias, ele recebe ações ou impulsos dos outros seres cujos efeitos o afetam de alguma maneira. A natureza é determinante para o nascimento, desenvolvimento, enriquecimento das faculdades, crescimento, conservação durante um período e até para o perecimento e decomposição do ser humano. O homem é um ser formado e limitado pela 43 natureza, ele sente diretamente as suas influências, ou seja, está fadado às suas leis. Segundo Holbach, “o homem é obra da natureza, existe na natureza, está submetido às suas leis; ele não pode livrar-se dela, não pode, nem mesmo pelo pensamento, sair dela” (HOLBACH, 2010, p. 31). Holbach diz que a liberdade que o homem pretende possuir não é encontrada em suas demonstrações de vontade, deliberações, escolhas e ações. Todas essas atitudes são frutos necessários e determinados das causas que as precedem. O homem nunca é o senhor das suas ações e, portanto, não é livre em nenhum momento de sua duração43: O homem não é, portanto, livre em nenhum instante de sua vida. Ele é necessariamente guiado a cada passo pelas vantagens reais ou fictícias que vincula aos objetos que despertam suas paixões. Essas paixões são necessárias em um ser que tende incessantemente para a felicidade; sua energia é necessária, já que ela depende do seu temperamento. Seu temperamento é necessário, já que ele depende dos elementos físicos que entram em sua composição: as modificações desse temperamento são necessárias, já que elas são consequências infalíveis e inevitáveis da maneira como os seres físicos e morais atuam incessantemente sobre nós. (HOLBACH, 2010, p. 247). Para Holbach, se cada indivíduo examinar racionalmente as suas próprias ações para obter os verdadeiros motivos e causas de seus atos e, consequentemente, entender ao máximo o encadeamento de toda essa dinâmica, então, será capaz de se convencer de que “essa sensação que tem da sua própria liberdade é uma quimera” (HOLBACH, 2010, p. 253), e que a experiência e a razão podem destruir. Os homens tentam provar em vão que são livres e que a liberdade pode ser atestada de maneira simples, por exemplo, quando propomos a alguém que mova ou não mova a mão. Quem defende a ideia de liberdade, vê nesse exemplo uma demonstração evidente de liberdade, já que a capacidade de escolher garante essa constatação. Entretanto, para Holbach, isso não prova em nada que o indivíduo é livre e que a liberdade existe, porque o desejo de demonstrar sua liberdade foi exclusivamente provocado pela disputa ou desafio de mexer ou não mexer a mão, ou seja, foi apenas um motivo necessário e determinante para decidir a vontade do indivíduo. O indivíduo deixa enganar-se ou persuadir-se de que é realmente livre porque não sabe distinguir o verdadeiro motivo ou causa que o fez agir de um modo ou de outro, ou seja, o desejo de convencer quem propôs o desafio. 43 Holbach aproxima sua concepção fatalista da filosofia de Sêneca: “o destino conduz aqueles que o aceitam e arrasta aqueles que resistem a ele” – Cf. Carta a Lucílio, CVII. 44 Tanto Barão de Holbach quanto Denis Diderot (1713 – 1784), seu amigo, utilizam um outro exemplo para demonstrar que o defensor da ideia de liberdade se engana quando se pretende livre: Se no calor da disputa, ele insiste e pergunta: “será que eu não tenho o poder de me atirar pela janela?”, eu lhe direi que não e que, enquanto ele conservar a razão, não há aparência de que o desejo de me provar a sua liberdade se torne um motivo bastante forte para fazer que ele sacrifique a sua própria vida. Se meu adversário, apesar disso, se atirar pela janela para me provar que é livre, nem por isso concluirei que ele agia livremente ao fazer isso, mas que foi a violência do seu temperamento que o levou a essa loucura. (HOLBACH, 2010, p. 248). Holbach, ao conc