UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Julio de Mesquita Filho” Instituto de Artes - Campus São Paulo LALI GUINSBURG IZUNO TATUAGENS ORNAMENTAIS PARA PELES ARTIFICIAIS São Paulo 2023 3 LALI GUINSBURG IZUNO TATUAGENS ORNAMENTAIS PARA PELES ARTIFICIAIS Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Orientadora: Profa. Dra. Renata Pedrosa Romeiro São Paulo 2023 4 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. I99t Izuno, Lali Guinsburg, 1999- Tatuagens ornamentais para peles artificiais / Lali Guinsburg Izuno. -- São Paulo, 2023. 70 f. : il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Renata Pedrosa Romeiro. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Artes. 2. Arte moderna - Séc. XXI. 3. Criação (Literária, artística, etc.). I. Pedrosa, Renata (Renata Pedrosa Romeiro). II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 709.05 Bibliotecária responsável: Luciana Corts Mendes - CRB/8 10531 5 LALI GUINSBURG IZUNO TATUAGENS ORNAMENTAIS PARA PELES ARTIFICIAIS Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Dissertação aprovada em __/__/__ Banca Examinadora ____________________________________________________ Profa. Dra. Renata Pedrosa Romeiro UNESP- Orientadora ______________________________________________________ Prof. Dr. José Paiani Spaniol São Paulo 2023 6 AGRADECIMENTOS A Renata Pedrosa, pela orientação, e atenção dedicada, e por me dar o norte do caminho da escrita. Ao meu pai, Shiyozi Izuno, e minha mãe, Suzana Saldanha, pelo incentivo, e por terem me ensinado tanto desde sempre e por terem me mostrado as possibilidades de produção com látex. A minha companheira, Theo Charbel, pelo apoio, pelas revisões e conversas e por ter me ajudado em tantos momentos difíceis, e compartilhado tantos momentos felizes. A Leo Carvalho, Lari Thomas, Chimera Volpato, Bruno Moutinho, Antônio Pedro Ayd, Lia Morena, Marina Woisky e Mari Ra pelas opiniões, referências, trocas e amizade. E ao Vicente Tassara pela ajuda com a tradução. A André Barion, pelos conselhos, conversas, e pelo registro dos trabalhos. Aos meus companheiros de casa durante esse processo, Max Huszar, Marco Antonio Benvegnu, Theo Ceccato e Ananda Maranhão pelo acolhimento, companhia e incentivo. Aos meus professores da graduação, especialmente Mônica Tinoco, Juliana dos Santos, Thiago Mesquita, Sérgio Romagnolo e Agnus Valente (in memorian) pelos ensinamentos, e em especial ao professor José Paiani Spaniol por ter aceitado fazer parte da minha banca. E a todos meus professores do Cursinho Prévia, e todos que continuam mantendo esse projeto em pé. 7 RESUMO Neste trabalho é apresentado um conjunto de 5 obras, juntamente com uma série de desenhos, registros de processos e procedimentos, além de reflexões que surgiram ao longo das produções. O texto traz, paralelamente, referências visuais e materiais que são relevantes para as produções aqui apresentadas, tais como as obras dos artistas Christo e Jeanne-Claude, Max Ernst, Eva Hesse e Flávio Império, uma reflexão sobre a ornamentação na contemporaneidade, assim como encontrando cruzamentos conceituais em produções de filósofos e teóricos como Rosalind Krauss e Michael Foucault. Palavras-Chave: Arte-contemporânea, escultura, látex, ornamento, paisagem, artes visuais 8 ABSTRACT In the following paper five art pieces made by the author are presented, along with a series of drawings, procedures and considerations that originated during the process of production of the artwork. In parallel, visual and material references to the works of artists Christo and Jeanne-Claude, Max Ernst, Eva Hesse and Flávio Império are put forward, as well as a discussion on the role of ornamentation in contemporary art. Doing so, in a way to examine possible affinities between the work and certain aspects of the work of these artists, all the while deploying concepts and ideas taken from philosophers and theorists such as Rosalind Krauss and Michel Foucault. Palavras-Chave: Contemporary art, sculpture, latex, ornament, landscape, visual arts 9 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO………………………………………………………………………………10 2 TATUAGENS ORNAMENTAIS PARA PELES ARTIFICIAIS - TRABALHOS……….11 3 PROCESSOS E PROCEDIMENTOS: PESQUISA MATERIAL DO LÁTEX………….24 4 DESENHOS…………………………………………………………………………………...33 5 REFERÊNCIAS………………………………………………………………………………47 5.1 PAISAGENS E ADORNOS………………………………………………………..47 5.2 EVA HESSE E FLÁVIO IMPÉRIO………………………………………………60 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………………………...68 REFERÊNCIAS………………………………………………………………………………..69 10 1 INTRODUÇÃO Este trabalho, intitulado “Tatuagens Ornamentais para peles artificiais”, tem como objetivo apresentar os processos e procedimentos, reflexões e referências que acumulei, principalmente, durante a graduação no Instituto de Artes da UNESP, tendo como objeto central da pesquisa o conjunto de cinco trabalhos, . Busco entender, não só na visualidade, mas também nos processos materiais, conceituais e referências, o como e o porquê do que realizo em minha pesquisa poética. Começo trazendo um breve relato da minha produção e uma reflexão sobre o sentido geral e a forma como me relaciono com meu corpo e com tatuagens, e como isso está presente no processo de trabalho, que dá o título dessa dissertação. Inicio apresentando os trabalhos e, logo depois, dedico um capítulo aos processos e procedimentos que aprendi e desenvolvi com o uso do látex, o sentido da escolha do material e as formas como ele é manipulado. Exponho a coleção de desenhos onde surgem as primeiras imagens, que depois são transpostas para os trabalhos tridimensionais e que constituem uma forma de projeto e de espaço de elaboração. Em seguida, trago algumas referências visuais, começando com as paisagens dos trabalhos de Max Ernst, Christo e Jeanne-Claude, e os cenários das animações Looney Tune. Em seguida, parto para uma reflexão sobre adornos e sua potência política, a partir da análise de textos de Michel Foucault, Adolf Loos e uma publicação recente do coletivo Arquitetura Bixa. Por fim, trago alguns aspectos da formalidade e operações no trabalho de Flávio Império e Eva Hesse como referências de visualidade e materialidade. 11 2 TATUAGENS ORNAMENTAIS PARA PELES ARTIFICIAIS - TRABALHOS O desenho no papel sempre foi uma linguagem natural para mim, desde que tive acesso à lápis e1 papel, o desenho me veio como forma de criação, expressão e elaboração, e foi o primeiro, não o mais importante, motivo pelo qual prestei o curso de artes visuais. Por um outro lado as questões do corpo sempre me foram muito intensas, por mais que às vezes não consciente, tudo que me interessava atravessava essa dimensão. A confecção de objetos que se relacionam com o espaço é para mim uma forma de investigação do meu corpo, em relação ao que ele pode criar. Essa pesquisa acontece atravessada pela minha vivência como uma pessoa não-binária, e busca operações e formas de pensar o corpo dissidente, de reapropriação, na contramão dos significados que nos são impostos. O conjunto de trabalhos que trago como objeto central desta pesquisa partem do pensamento através do desenho e aterrisam na existência e pertencimento de um corpo. Explicar ou descrever meu processo em palavras, em texto, é uma tarefa muito complicada, um caminho cheio de armadilhas e tortuosidades. Não é de meu interesse expor um processo de causa e consequência, muito menos um processo que separe as coisas binariamente entre o bidimensional e o tridimensional, ou entre o desenho e a escultura. Entendo que todo desenho pode ser entendido como um objeto tridimensional, Nos anos 50, Barnett Newman disse: “Escultura é aquilo com que você se depara quando se afasta para ver uma pintura.” A respeito dos trabalhos encontrados no início dos anos 60, seria mais apropriado dizer que a escultura estava na categoria de terra-de-ninguém: era tudo aquilo que estava sobre ou em frente a um prédio que não era prédio, ou estava na paisagem que não era paisagem. (Krauss, 1984, p.132) e toda escultura pode ser entendida como um desenho Uma ocasião, perguntamos a um caipira da cidade de Jambeiro(Estado - de São Paulo), com quem ele aprendera a fazer figurinhas de barro para presépios? Quem lhe dera os modelos? Quem lhe ensinara? Respondeu, diante de uma pequena escultura; o desenho é meu mesmo. (Motta, 1967, p.4 .) Porém, não encontrei outra forma de apresentar meus trabalhos, se não divididos entre desenhos e esculturas. 1Aqui considero desenho tudo que produzo com guache, nanquim, lápis de cor e canetas 12 Os desenhos que apresento são fruto de uma colagem mental de diversas referências, algumas com nome, endereço e data, e algumas que são tão anônimas quanto familiares. Todas se juntam pelo meu gosto e apreço por aquilo que acho bonito, e a vontade de criar coisas tão bonitas quanto as que eu vejo. Posso dar nome às paisagens e aos adornos, que são tão específicos quanto universais; paisagens de fotos, paisagens surrealistas, paisagens naturalistas, paisagens de arte condominial, paisagens de gravuras japonesas do período Edo, adornos do rococó, arabescos, padronagens dos tecidos Adires da nigéria e dos Batiks da indonésia, os filetados das carrocerias dos caminhões, os azulejos árabes. Tudo aquilo que é natureza e é retratado ou observado pelo humano é paisagem, e tudo aquilo que o humano coloca com a finalidade de embelezar é adorno. Combinar esses dois elementos parece ser meu esforço nestes desenhos; não simplesmente colocá-los lado a lado, mas entender o que faz diferentes conjuntos de linhas ou manchas se diferenciarem ou se confundirem entre adorno e paisagem. O resultado desse esforço em forma de prática de desenho é um conjunto de imagens que se tornou um universo particular onde, através da sensação daquilo que ficou na minha memória, fui capaz de me perceber. Esse processo através do desenho nunca foi planejado, ou racionalizado, e sempre me pareceu uma forma natural de se pensar: diante de um papel, com um lápis na mão. Muito diferente do processo de confecção de esculturas tridimensionais, do conjunto principal de trabalhos que são o centro dessa pesquisa, criar corpos que habitam o mesmo espaço que o meu foi um caminho de trabalho, de tentativa e erro, onde busquei pela inquietação de trazer à minha similaridade o universo que criei no papel. Talvez minha escolha de material tenha sido justamente por essa vontade de me referenciar no meu corpo. A primeira vez que usei látex, foi produzindo próteses de maquiagem de efeitos especiais; um material que imita a pele. A ideia de colocar desenhos na pele, independente do que trago nessa pesquisa, me instigou muito desde que entendi o que era uma tatuagem. Não por coincidência, a tatuagem foi uma prática que cultivei muito durante minha graduação e minha vida adulta. Nela encontrei um meio de reapropriação do meu corpo, pela intencionalidade e possibilidade de agenciamento, a adição de significados e sinergia que os desenhos possuem com a pele. A criação de objetos que partem de um material semelhante à pele, não poderia ser de outro jeito que não passando por algum procedimento semelhante à tatuagem. A semelhança que traço com a tatuagem não diz sobre o ato de utilizar agulhas para injetar tinta sobre a pele e as técnicas de fazê-lo, mas sim sobre ato de através do desenho, do símbolo, “lançar o corpo à outro espaço”, como diz Michel Foucault: 13 A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço. (Foucault, 1966.) Apresento então, o conjunto principal de trabalhos que são o centro desta pesquisa, cinco mantas de látex, de dimensões variadas, que misturam técnicas pesquisadas de diferentes lugares na busca de tatuar de forma artificial uma pele artificial. 14 Figura 1 - “Paisagem sob janela” Paisagem sob janela, 2023, látex, linha de costura, algodão e papel vegetal, 65 x 109 cm Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 15 Figura 2 - Detalhe de “Paisagem sob janela Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 16 Figura 3 -Mosaico n°1 Mosaico n°2, 2023, látex, 30 x 30 cm Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 17 Figura 4 - detalhe de “Mosaico n°1” Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 18 Figura 5 - Mosaico n° 2 Mosaico n°2, 2023, látex, 30 x 30 cm Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 19 Figura 6 - Detalhe de “Mosaico n° 2” Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 20 Figura 7 - 6 dunas 6 dunas, 2023, látex, 79 x 65 cm Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 21 Figura 8 - Detalhe de “6 dunas” Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 22 Figura 9 - 2 sóis 2 sóis, 2023, látex e linha de costura, 64 x 61 cm Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 23 Figura 10 - Detalhe de “2 sóis” Fotografia de André Barion; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 24 3 PROCESSOS E PROCEDIMENTOS - PESQUISA MATERIAL DO LÁTEX O primeiro contato que tive com o látex como material plástico foi no contexto de produções para cenografia e efeitos especiais, que me proporcionaram uma experiência diferente da produção de obras de arte, dado que buscam um efeito momentâneo, em detrimento da duração e da resistência do material, já que os objetos precisam durar apenas algumas diárias de filmagem, ou, no máximo,a temporada de uma peça teatral. O modus operandi desse tipo de produção, de certa forma, vai na contra-mão daquele que encontramos na produção de obras de arte autorais; sabe-se o efeito a ser atingido com aquele objeto, como deve se configurar ao final do processo, por isso, escolhemos e trabalhamos os materiais de forma a obter o máximo que eles podem nos oferecer; são feitos diversos testes e mockups, para entendermos o comportamento dos materiais e formas que precisamos confeccionar para atender as demandas dos contratantes (outra diferença crucial, uma vez que produzimos sob demanda). O látex é um material não muito comum na produção de trabalhos de arte, apesar de ser possível identificá-lo na produção de algumas artistas, como Eva Hesse, Lynda Benglis e Flávia Ribeiro. As técnicas conhecidas e registradas de manuseio e utilização têm um espectro muito amplo, desde a produção industrial de luvas e preservativos, até a confecção de máscaras de fantasias e figurinos. Em todos esses casos, a característica do látex de se moldar em qualquer forma, ser um material primariamente líquido, e secundariamente uma borracha, e quando borracha, possuir resistência e elasticidade são as mais exploradas e que elegem o material para usos específicos. Figura 11 - Reliquiae Rerum Figura 12 - Contraband Flávia Ribeiro, Reliquiae Rerum, 1993, látex Capela do Morumbi, SP (foto Rômulo Fialdini) Fonte:https://galeriamarceloguarnieri.com.br/flavia-rib eiro/ Lynda Benglis, Contraband, 1969. Látex despeja pigmentado com DayGlo Fonte:https://www.phaidon.com/agenda/art/2022/Octo ber/02/the-dangerous-chemicals-that-could-have-killed -lynda-benglis/ https://galeriamarceloguarnieri.com.br/flavia-ribeiro/ https://galeriamarceloguarnieri.com.br/flavia-ribeiro/ https://www.phaidon.com/agenda/art/2022/October/02/the-dangerous-chemicals-that-could-have-killed-lynda-benglis/ https://www.phaidon.com/agenda/art/2022/October/02/the-dangerous-chemicals-that-could-have-killed-lynda-benglis/ https://www.phaidon.com/agenda/art/2022/October/02/the-dangerous-chemicals-that-could-have-killed-lynda-benglis/ 25 Figura 13 - Contingent Contingent, Eva Hesse, 1969, fibra de vidro, látex e gaze Fonte:https://deidreadams.com/eva-hesse-contingent/ O primeiro trabalho que realizei com látex foi a prótese de maquiagem para um cena de escarificação em uma série da Netflix, e uma película que parecesse um saco amniótico para2 uma cena onde o personagem da série saía de um casulo. Em ambos o látex foi usado para chegar em um efeito de pele; a característica aproveitada nesse caso é o nível de opacidade que a manta de látex possui, e sua maleabilidade e elasticidade.. As mantas possuem em alguma medida características de tecido, tirando a parte da tecelagem em si, visualmente, principalmente quando o látex é colorido e as mantas são produzidas em uma escala grande, possuem um panejamento muito similar a o de um tecido pesado. Já tendo familiaridade com esse tipo de processo com látex, foi a partir da prática de criar próteses que partiu o primeiro ímpeto de explorar essa semelhança, trazer para esse tipo de materialidade meus desenhos, criar objetos que exploram as possibilidades do material entre a pele e o tecido. Neste capítulo trago mais dois trabalhos; “me dê a mão” de 2020, e “mosaico n° 0” de 2019, que antecedem o grupo principal, para ilustrar alguns processos que foram inaugurados neles, e depois utilizados nos demais. 2 Escarificação é um tipo de tatuagem onde a partir de cortes, raspagens e queimaduras na pele é feito o desenho https://deidreadams.com/eva-hesse-contingent/ 26 Figura 14 - Sem título (me dê a mão) Sem título (me de a mão), 2020, látex, 276 x 207 cm Fotografia de Rafaella Rosset; Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 27 Figura 15 - Mosaico n° 0 Mosaico n° 0, 2019, látex, dimensão desconhecida Obra nossa. Fonte: arquivo pessoal 28 As partes lisas sem relevo dos trabalhos foram feitas com o auxílio de um vidro. O procedimento básico foi espalhar o látex com um pincel (nota de rodapé com as especificações do látex)3 formando uma camada fina sob o vidro, em média quatro ou cinco, e repetir até que as camadas se somam em uma espessura similar à de uma luva de procedimento, , e a peça tenha resistência para se manter na vertical como um todo. Esse processo é ideal para produzir mantas grandes com um acabamento liso e brilhante, já que o latex funciona como um reprodutor fiel de texturas, uma vez que o lado da manta que fica em contato com o vidro copia exatamente sua polidez e brilho. Também possibilita a produção de trabalhos em escalas grandes, dentro da limitação de espaço de atelier pequeno, como foi feito em “me dê a mão”, que consiste em 12 mantas (3 unidades por 4) produzidas separadamente, cada uma com 69 cm x 69 cm, e 4 luvas feitas a partir da cópia de gesso feita com molde de alginato da minha própria mão, resultando em um trabalho com a dimensão de 276 cm x 207 cm. Esse trabalho de 2020 foi o primeiro confeccionado com a técnica de produção de mantas sob vidro e foi feito como um site specific para a lareira da casa da fazenda Capuava em Valinhos, projetada por Flávio de Carvalho .4 Tanto a bola central, quanto o quadrado vazado dos trabalhos “2 sóis” e “6 dunas” são feitos de linhas de costura que foram dispostas previamente sob o vidro e fixadas nas laterais do mesmo com fita dupla-face, que depois receberam cerca de 5 camadas de látex, formando uma manta de onde tirei as formas para os dois trabalhos. Já o trabalho “Paisagem sob janela” foi produzido a partir da adição de linha de costura, pedaços recortados de algodão branco e pedaços recortados de papel vegetal colorido com lápis de cor, entre as camadas de látex. Cada pedaço foi unido à camada já seca no vidro com látex líquido, por baixo e por cima. Após todas as peças de tecido adicionadas e devidamente cobertas, foram todas delineadas com linha de costura vermelha, usando apenas um pouco de látex aplicado com um pincel fino para colar. Os desenhos das três janelas de cima foram feitos com papel vegetal recortado e colorido com lápis de cor, e foram aplicados da mesma forma que as peças de tecido, com linhas de costura complementando essas formas. A água da paisagem foi criada com látex colorido com corante universal líquido azul e amarelo, e pincelado diretamente sob a peça, como última etapa da paisagem a “paisagem sob moldura” foi feita em 2 módulos de 69 cm x 69 cm (assim como “me de a mão”) unidos pela peça de algodão branco do meio do trabalho. 4 A exposição em questão foi organizada pelo coletivo “A Grande Escola de Arte do Brasil”, uma coletiva híbrida que mistura trabalhos registrados na casa de Flávio de Carvalho com trabalhos digitais renderizados e editados nos registros, o projeto não chegou a ser finalizado nem exposto ao público até a publicação desse trabalho. 3 O látex bicentrifugado, usado em todos os trabalhos, é adquirido em forma líquida, com a amônia como um anticoagulante; em contato com o ar a amônia evapora e o látex seca, tomando sua forma sólida de borracha 29 Esse processo cria mantas que acabam com um caimento e uma visualidade muito semelhante à do tecido, apesar de manter a tatilidade e a translucidez do látex . No trabalho “me dê a mão”a ideia de pele se configura através de uma cortina. Já os relevos dos trabalhos partiram de uma técnica comumente usada para fazer máscaras e próteses de efeitos especiais; a cura do látex em cima de moldes de gesso, de forma que este endureça e copie seu formato. O primeiro molde, foi esculpido direto no gesso, que se tornou a unidade modular no trabalho “Mosaico n° 0”, assim como o molde da unidade do trabalho “Mosaico n° 2”, que foi feito em um momento de retomada de produção em 2022. Essa técnica de esculpir as formas diretamente no gesso durante seu processo de cura resulta em relevos com menos detalhes, e são moldes positivos, isto é, o molde possui a mesma forma final da peça de látex, por tanto o lado que replica o desenho é o de cima. Já nos outros relevos, dos trabalhos “Mosaico n°1” , “2 sóis” e “6 dunas”, na intenção de poder detalhar mais os desenhos, comecei modelando em plastilina o baixo relevo que queria, utilizando um mdf ou papelão como apoio, que depois se tornou o fundo de uma caixa para despejar o gesso e criar o contra molde do desenho, um negativo. Além de possuir mais detalhes, fazer os moldes em negativo garante mais fidelidade na transferência do gesso para o látex, já que o lado que replica o desenho é de baixo, que fica em contato com o gesso. Ambas as técnicas de produção que desenvolvi foram no sentido de utilizar o latex para aproximar meus desenhos da ideia de um corpo tridimensional , e investigar como se dá a transferência destes em diferentes meios, o que fica e o que os acompanha ao longo do processo. Tanto de utilizar um desenho como referência para uma modelagem, que se transfere como um negativo para o gesso, e volta para o positivo no latex, quanto de recortar e compor o desenho em materiais diversos que se somam entre camadas. Um segundo processo, já tendo as peças retiradas dos moldes, e as mantas produzidas em vidros, foi efetivamente tornar essa coleção de pedaços de pele em um trabalho. Combinar os pedaços para que se tornassem um corpo. Esse momento foi de composição, combinação de formas e criação de padrões. Em alguns casos as peças feitas a partir do molde foram pensadas com a finalidade de serem a unidade de um grid, como um azulejo, como é o caso de “Mosaico n°1”, um trabalho que traz para a materialidade sintética da pele a lógica de mosaico, em que a repetição cria novas formas no encontro de uma peça com a outra. No caso de “Mosaico n°2” o desenho do molde não foi pensado com a mesma finalidade, mas a operação da repetição se mantém. A repetição nesses dois casos, parte também da necessidade de trabalhos que possuam um formato que se relacione 30 com a escala humana, e tenham a possibilidade de serem observados tanto de perto quanto de longe .Já os trabalhos “2 sóis” e “6 dunas” foram feitos em um processo de composição de paisagem ladeada por adornos. A escolha de repetir e combinar peças de látex em formatos pequenos não pode ser isolada da materialidade da junção de um com seu semelhante. A produção dos moldes foi feita levando em consideração a necessidade de sobras em volta das figuras para refilar, ou sobrepor com fim de juntar, assim todos possuem uma margem de cerca de 1 ou 2 cm, ou molduras em relevo, que delimitam seu tamanho. A junção de uma peça a outra, em todos os trabalhos, foi feita com o mesmo látex utilizado nas peças, como uma cola de solda, adicionando uma camada entre a superfície de cima de uma peça e a de baixo de outra. A operação de juntar duas peças já lubrificadas com talco sobrepondo suas bordas cria um5 rejunte onde é possível enxergar as sobras de cada uma, que se fundem uma a outra de maneira não homogênea, amassada e enrugada, criando uma sobressalência entre as peças, mais espessa que outras partes. Esse fator da junção das peças cria uma visualidade mais visceral no trabalho como um todo, e faz um contraponto importante a organização geométrica do grid, trazendo um aspecto de cicatriz que atravessa o trabalho. O látex não é um material de alta durabilidade. Esse fator foi algo que não considerei nos primeiros trabalhos. “Mosaico n° 0”, que foi feito em 2019, é um trabalho que já não existe mais, que se deteriorou, ressecou, rachou e em alguns lugares se fundiu com ele mesmo por ser guardado dobrado.O aspecto da durabilidade do material é um questão que pode ser discutida, já que em uma concepção mais conservadora, a obra de arte deve ser um marco no tempo, um objeto elevado, que perdure na história e viva mais que o artista, e carregue seu legado para o futuro. Porém, escolhendo o látex como um material para criar peles artificiais, e entendendo que esses trabalhos dialogam diretamente com o meu corpo, e talvez justamente pelo latéx ser tão semelhante à pele humana, eles acabaram adquirindo também a dimensão temporal do corpo, que envelhece, resseca e enruga. Assim como eu, meus trabalhos são muito jovens, e não tem como saber como vão envelhecer, ou quanto tempo vão durar, mas é certo que não vão durar muito. 5 No processo de manuseio do látex, após sua cura, com a finalidade de tornar sua superfície menos pegajosa e manter a integridade da manta, os dois lados são lubrificados com talco comum, ou talco industrial. Depois de finalizado o trabalho, para voltar o brilho e tirar a aparência opaca que o talco dá, as peças são limpas com um pano úmido, e lubrificadas com lubrificante íntimo neutro a base de água, para manter o látex hidratado, ou óleo vegetal para manter um aspecto molhado. 31 Na história da arte há, porém,o registro do envelhecimento de um trabalho muito emblemático da artista norte-americana Eva Hesse. “Expanded Expansion”1969 foi um dos últimos trabalhos da artista. Nesse caso, a artista viveu menos que seus trabalhos, teve uma morte precoce com 34 anos. O trabalho usa da maleabilidade do látex pincelado sobre grandes pedaços de gaze como possibilidade de se expandir e caber em diferentes lugares. Em 2022 o Solomon R. Guggenheim Museum trouxe “expanded expansion” de volta ao público em uma exposição póstuma da artista , após dois anos de restauração do trabalho, e diversas discussões sobre a necessidade e validade6 de restauração de um trabalho que foi feito com a consciência de sua deterioração. Figura 16 - “Expanded expansion” em 1969 Eva Hesse na frente de seu trabalho "Expanded Expansion." Vista da instalação "Anti-Illusion: Procedures/Materials," Whitney Museum of American Art, Nova York, 19 de maio 19 – 6 de julho, 1969. Fonte: https://www.villagevoice.com/eva-hesses-expanded-expansion-has-aged-at-human-scale/ 6 "Eva Hesse: Expanded Expansion," Solomon R. Guggenheim Museum, 8 de julho, 2022–16 de outubro, 2022. https://www.villagevoice.com/eva-hesses-expanded-expansion-has-aged-at-human-scale/ 32 Figura 17: “Expanded expansion” em 2022 Vista da instalação "Eva Hesse: Expanded Expansion," Museu Solomon R. Guggenheim, 8 de julho de 2022–16 de outubro de 2022. Fonte: https://www.villagevoice.com/eva-hesses-expanded-expansion-has-aged-at-human-scale/ Dessa discussão o que ficou foi a vontade de Hesse de utilizar as características do látex, e como isso importava mais que sua durabilidade, já que seus trabalhos partiam de uma pesquisa ampla e profunda de materiais, e do que eles podiam oferecer. O trabalho de Hesse sempre foi uma grande referência para mim, acredito que parte do que ela discutia e buscava, e sua relação com os materiais se aproxima muito do meu processo , como ainda direi aqui. Deixo então uma frase da própria Eva Hesse sobre a questão da durabilidade do material. Nessa altura, eu me sinto um pouco culpada quando as pessoas querem comprar (os trabalhos de látex). Eu acho que eles sabem, mas tenho vontade de escrever uma carta para eles e dizer que não vão durar… a vida não dura, a arte não dura, isso não importa (Hesse, 1970, apud Larkin, 2008, tradução nossa )7 7 “At this point I feel a little guilty when people want to buy [latex works]. I think they know but I want to write them a letter and say it is not going to last … life doesn’t last, art doesn’t last, it doesn’t matter.” https://www.villagevoice.com/eva-hesses-expanded-expansion-has-aged-at-human-scale/ 33 4 DESENHOS Figura 18 2019, Caneta sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 34 Figura 19 2021, Nanquim vermelho e tinta guache sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 35 Figura 20 2020,Guache sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 36 Figura 21 2021, Caneta hidrocor e lápis sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 37 Figura 22 2020,Caneta hidrocor e lápis sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 38 Figura 23 2019,Caneta sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 39 Figura 24 2020, Guache sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 40 Figura 25 2020, guache sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 41 Figura 26 2020, Caneta Hidrocor e lápis sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 42 Figura 27 2022, Tinta acrílica e nanquim sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 43 Figura 28 2023,Tinta guache sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 44 Figura 29 2023, Guache sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 45 Figura 30 Guache e nanquim sobre papel Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 46 Figura 31 2022, Nanquim sobre papel, autoria própria Obra nossa. Fonte: Arquivo pessoal 47 5 REFERÊNCIAS 5.1 Paisagens e Adornos Durante 2 anos do ensino médio tive a oportunidade de ter a matéria de história da arte no currículo, e ter um contato crítico com diversos artistas modernos e contemporâneos, e foi durante essas aulas que conheci o trabalho, dentre outros que citarei aqui, de Christo e Jeanne-Claude. Em especial os trabalhos “Valley curtain”, “Running fence” e “Surrounded Islands” (figuras 27, 28 e 29) me fascinaram desde o primeiro contato. A ideia de trabalhos tão monumentais em seu tamanho, e tão simples em sua forma, que possuem a paisagem como tema e suporte ao mesmo tempo, me pareciam extremamente surreais. Tão surreais quanto os próprios surrealistas, e os cenários absurdos de desenhos animados, que já eram de meu interesse, mas com a diferença crucial de habitarem o mesmo plano que meu corpo. Em especial a presença dos tecidos com seus caimentos foi algo que me marcou muito, que se repetiu por muito tempo tanto em meus desenhos (o molde da unidade do trabalho drape, e em alguns dos desenhos) quanto em meus trabalhos tridimensionais, onde encontrei no látex, além da forma similar à pele, um caimento similar ao do tecido. Apesar de existirem factualmente, esses trabalhos de Christo e Jeanne Claude possuem uma especificidade; por uma questão de distância, e de tempo a única possibilidade de contato com eles é por fotos. Figura 32 - “Running Fence” Running Fence, Christo e Jeanne-Claude,Sonoma and Marin Counties, California, 1972-76 Fonte:https://www.archdaily.com.br/br/01-35977/arte-e-arquitetura-christo-and-jeanne-claude https://www.archdaily.com.br/br/01-35977/arte-e-arquitetura-christo-and-jeanne-claude 48 Figura 33 - “Surrounded Islands” Surrounded Islands, Christo e Jeanne-Claude, Biscayne Bay, Greater Miami, Florida, 1980-83 Fonte:https://www.artequeacontece.com.br/5-obras-inesqueciveis-de-christo/ Figura 34 - “Valley Curtain” Valley Curtain, Christo e Jeanne-Claude, Rifle, Colorado, 1970-72 https://www.artequeacontece.com.br/5-obras-inesqueciveis-de-christo/ https://www.artequeacontece.com.br/5-obras-inesqueciveis-de-christo/ https://www.artequeacontece.com.br/5-obras-inesqueciveis-de-christo/ 49 O que ficou para mim, e para a história da arte, portanto, foram imagens de paisagens como as de cartão postal e a informação de aquilo é um registro fidedigno. Isso criou, um novo espaço na ideia de paisagens, muito mais interessante que as paisagens expressionistas ou realistas, e muito semelhante às paisagens de desenhos animados, e feitas por pintores surrealistas, porém com um formato de enquadramento próprio do registro fotográfico desses trabalhos. Figura 35 - Fundo da animação Looney-Tunes Figura 36 - Fundo da animação Looney-Tunes Fonte: https://www.instagram.com/looneytunes_backgrounds/ Fonte: https://www.instagram.com/looneytunes_backgrounds/ Figura 37 - Fundo da animação Looney-Tunes Figura 38 - Fundo da animação Looney-Tunes Fonte: https://www.instagram.com/looneytunes_backgrounds/ Fonte: https://www.instagram.com/looneytunes_backgrounds/ https://www.instagram.com/looneytunes_backgrounds/ https://www.instagram.com/looneytunes_backgrounds/ https://www.instagram.com/looneytunes_backgrounds/ https://www.instagram.com/looneytunes_backgrounds/ 50 Figura 39 - “Mer et soleil” Figura 40 - “Nada va más alla” Mer et soleil (sol e mar), Max Ernst, 1925, óleo sobre tela, 54 x 37 cm Fonte: https://www.nationalgalleries.org/art-and-artists/497 “Nada va más allá”, Max Ernst, data desconhecida, óleo sobre tela, dimensões desconhecidas Fonte: https://pt.wahooart.com/@@/8EWLLZ-Max-Ernst-Na da-va-m%C3%A1s-all%C3%A1 Os desenhos e pinturas guache, pegando emprestado a vastidão das paisagens surrealistas, os astros celestes de Max Ernst, os tecidos atravessados em paisagens de Christo e jeanne-claude, os desfiladeiros, margens, rios mares e montanhas, formam uma coleção de paisagens, que articulam entre si um mundo próprio. Nesses desenhos encontrei as primeiras possibilidades de uma criação autoral, mesmo utilizando referências diretas, quase como uma colagem. Esse mundo novo, um quebra cabeça de imagens que recolhi na memória, foi um lugar onde me identifiquei, que me intrigou. Seguindo a lógica do formato dos retratos de paisagens, outro elemento que não posso deixar de mencionar é o adorno. Levade pela afeição que criei pelo mundo que estava projetando, passei a adornar os desenhos com molduras que se integram na paisagem, fundindo o elemento https://www.nationalgalleries.org/art-and-artists/497 https://pt.wahooart.com/@@/8EWLLZ-Max-Ernst-Nada-va-m%C3%A1s-all%C3%A1 https://pt.wahooart.com/@@/8EWLLZ-Max-Ernst-Nada-va-m%C3%A1s-all%C3%A1 51 arquitetônico com o orgânico “natural”. Surge disso um outro conjunto de desenhos, onde acho em uma linguagem mais cenográfica um lugar de elaboração e possibilidade de projeção de um mundo. Nesses desenhos trago uma outra coleção de referências, essas de adornos e elementos arquitetônicos O adorno, além da questão das imagens e de gosto se relaciona diretamente com a ideia que trouxe no começo do texto da tatuagem como forma de auto agenciamento do corpo. Durante a formação da modernidade, com o advento da industrialização, produção padronizada em massa de bens , é possível observar as paisagens e os objetos se tornando cada vez mais assépticos, lisos, e sem qualquer tipo de adorno ou ornamento; tanto no âmbito urbanístico e de construção civil quanto no âmbito do design de objetos do dia a dia, até na produção artística de pinturas e esculturas . É possível traçar um paralelo dessa mudança estética, com uma mudança de regime de poder descrita por Foucault de direito de morte ao poder sobre vida (Foucault, 2019, p.145 ). No século XIX com a formação das nações, como descrito por Foucault, o poder soberano que antes era exercido através do direito de morte dos senhores feudais sob seus súditos, passa a ser exercido por uma lógica capitalista de produção que se apresenta como poder sobre vida. A organização e o controle dos corpos é essencial à modernidade industrial, portanto toda a lógica arquitetônica, desde a urbanização até as roupas, passa a servir a uma seriação e introdução da população a um padrão de vida do ideal moderno positivista. O ideal racional moderno, desprovido de adornos, ou de qualquer coisa que distraia da estrutura e real propósito das coisa, trabalha na criação de um universalismo do homem ocidental (branco, cisgenero, heterossexual), onde a forma explicita a função, que sustenta a normativização da sociedade. A criação desse ideal, que começou a germinar no século XVI e se instalou no século XIX foi influenciada por diversos pensamentos estilísticos, médicos, filosóficos e sociais. Em 1910 Adolf Loos publica seu ensaio “Ornamento e crime”, um manifesto onde a utilização de ornamentos e adornos é julgada como um resquício de modos antigos, por tanto um atraso à nova sociedade que busca por objetos práticos, que não tenham sua função “ocultada” por firulas. Esse ensaio é muito significativo da posição que o ornamento adquiriu na modernidade. Loos traz o conceito de “objeto amoral” (Loos, 1910,) como produto de uma utopia dessa sociedade ultra pratica, ultra evoluída e ultra industrializada. O objeto amoral seria o ápice da praticidade e objetividade, pois não carregaria em si nenhum significante moral de nenhuma cultura, ou época, seria identificado apenas por sua funcionalidade. Em ornamento e crime Loos fala sobre a prática da tatuagem A criança é amoral. Para nós, o Papua também o é. O Papua mata os seus inimigos e devora-os. Ele não é nenhum criminoso. Mas se o homem moderno matar e devorar alguém, é de imediato considerado um criminoso e um degenerado. O Papua faz 52 tatuagens na sua pele, na canoa, no seu remo - enfim, em tudo o que puder alcançar. Ele não é nenhum criminoso. O homem moderno que faça tatuagens, ou é criminoso, ou é degenerado. Há prisões em que 80% dos reclusos apresentam tatuagens. Os tatuados que não estão presos ou são potenciais ladrões ou aristocratas degenerados. (Loos, 2014, apud Foster, 2016) Em contraposição às considerações de Loos, trago aqui, de novo o trecho da conferência “O corpo utópico” de foucault, dessa completo: O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço. (Foucault, 1966) Mesmo sendo dois trabalhos de momentos e contextos diferentes, ambos se encontram no que diz respeito à construção do sujeito moderno. O meu contato com adornos não pode ser mencionado sem a contextualização de como os adornos de diversas culturas foram apropriados e assimilados pela arquitetura europeia nos processos colonizadores. Uma publicação emblemática que resume bem a situação é o livro “A gramática do ornamento” (The Grammar of ornament”) publicado por Owen Jones em 1856, onde o autor traz um compilado de linguagens e ornamentos de diversas culturas de forma extremamente simplista e esvaziada. Priya Khanchandani, curadora da exposição Padrão como política que participou da Trienal de Arquitetura de Lisboa - O que é o Ornamento? de 2019 diz8 que “o livro de padrões de Jones traz uma leitura de perspectiva eurocêntrica em muitas das culturas e nações sobre as quais ele reflete, sendo que durante este processo elas foram reduzidas a categorias rígidas que lhes negavam sua própria subjetividade”. O livro influenciou diversos arquitetos, como William Morris, Louis Sullivan e Frank Lloyd Wright (DELAQUA, 2019) e mostra muito bem a forma como esses elementos chegam no ocidente. Trago aqui algumas 8 Na exposição “Padrão como política” (tradução livre de Pattern as politics) Priya Khanchandani e Sam Jacob convidam 15 artistas de diferentes lugares do mundo para produzir trabalhos que proponham uma nova perspectiva, decolonial, de ornamentos, em contraposição à publicação “A gramática do ornamento” de Jones, que teve algumas de suas páginas expostas lado a lado das demais obras. 53 imagens do livro de Jones como referências visuais, e deixo aqui também essa autocrítica do acesso a esses elementos sob essa ótica colonialista. Figura 41 - Página de “A Gramática do Ornamento” Reprodução de página de “A Gramática do Ornamento”, publicado em 1856 por Owen Jones Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a -contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open 54 Figura 42 - Página de “A Gramática do Ornamento” Reprodução de página de “A Gramática do Ornamento”, publicado em 1856 por Owen Jones Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a -contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open 55 Figura 43 - Página de “A Gramática do Ornamento” Reprodução de página de “A Gramática do Ornamento”, publicado em 1856 por Owen Jones Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-con tempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open 56 Trago tudo isso até aqui, pois acredito no potencial do adorno como um símbolo e uma mentalidade de resistência de grupos dissidentes, uma prática anticolonialista, e identifico nos desenhos e na forma de meus trabalhos essa operação de adornar, tanto as paisagens, quantos os desenhos/trabalhos em si, e identifico nessa operação a mesma intenção de reapropriação do corpo através da tatuagem. Figura 44 - Obra de Lubna Chowdhary Obra de Lubna Chowdhary para a exposição Pattern as Politics (Padrão como política) Trienal de Arquitetura de Lisboa - O que é o Ornamento?, Culturgest - Fundação CGD Sábado 5 de outubro - domingo 1 de dezembro de 2019 Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-con tempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open 57 Figura 45 - Obra de Marina Tabassum Architects Obra de Marina Tabassum Architecs para a exposição Pattern as Politics (Padrão como política) Trienal de Arquitetura de Lisboa - O que é o Ornamento?, Culturgest - Fundação CGD Sábado 5 de outubro - domingo 1 de dezembro de 2019 Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-con tempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open https://www.archdaily.com.br/br/927144/padrao-como-politica-decolonizar-os-antigos-padroes-para-revelar-a-contempaneidade?ad_source=myad_bookmarks&ad_medium=bookmark-open 58 Jacob afirma que o projeto tenta casar novamente os elementos decorativos e simbólicos. E, ao fazer isso, pretende revelar que a política, tanto quanto o prazer, é central para o design de padrões", revelando a importância da encomenda de novos trabalhos que desafiam artisticamente o cânone existente. [ … ]As gramáticas dos ornamentos cumprem diversas funções sociais e de significado que permitem distinguir civilizações e subjetividades, estabelecer atravessamentos culturais e compor distintas narrativas espaciais. A utilização da ornamentação sugere uma conexão com outros territórios e tempos, e permite que diferentes expressões sejam reconhecidas em contextos sociais cada vez mais diversos e complexos.(Delaqua, 2019.) Figura 46 - Fachada de casa do Jardim Miriam Figura 47 - Fachada de casa do Jardim Miriam Fachada de casa do Jardim Miriam com intervenções feitas pelo coletivo JAMAC - Jardim Miriam Arte Clube Fonte: https://afonsopost.blogspot.com/2010/06/monica-nador -e-o-jamac.html Fachada de casa do Jardim Miriam com intervenções feitas pelo coletivo JAMAC - Jardim Miriam Arte Clube Fonte: https://afonsopost.blogspot.com/2010/06/monica-nador -e-o-jamac.html Entre esses dois trechos que discutem o adorno, e o ato de adornar, trago mais uma referência de experiência de adoração, ou decoração como política de disputa de territórios; as fotos das casas com os muros decorados por stencils criados no projeto JAMAC, uma proposta da artista Mônica Nador que envolve jovens e adultos do Jardim Miriam, bairro da zona sul de São Paulo, em experimentações de criação de stencils a partir de formas do cotidiano, que depois se espalham pelo bairro. https://afonsopost.blogspot.com/2010/06/monica-nador-e-o-jamac.html https://afonsopost.blogspot.com/2010/06/monica-nador-e-o-jamac.html https://afonsopost.blogspot.com/2010/06/monica-nador-e-o-jamac.html https://afonsopost.blogspot.com/2010/06/monica-nador-e-o-jamac.html 59 A proposta de reposicionar o lugar do ornamento não pretende retomar o ornamento do passado. Afinal, a ornamentação já era parte de um sistema das Belas Artes, uma linguagem codificada e baseada num idealismo da antiguidade. O ornamento - e a forma como ele foi representado ou invisibilizado na história da arquitetura - nos permite cruzar diferentes pensamentos e práticas para gerar metáforas que desafiam o modo como o cânone arquitetônico tem pensado o espaço. A aplicação destes elementos virtuosos pode desafiar o significado e papel social de um edifício na sociedade contemporânea, se aliando às discussões de gênero, classe, raça, colonialidade e sexualidade. A partir de uma contribuição eminentemente dissidente, o ornamento pode ocupar um lugar híbrido e de disputa, como elemento arquitetônico que carrega diferentes significados em si. Num mundo cada vez mais vacilante e fragmentado, o ornamento pode ser um convite à celebração do diverso: uma festa. [...] Os elementos arquitetônicos relacionados com a estrutura foram privilegiados pelo ideal funcionalista e considerados mais relevantes, assumindo características ditas masculinas que ganharam protagonismo em detrimento dos revestimentos ou da “mera decoração”, considerados supérfluos e não autênticos - portanto, femininos. Os ecos dessa prática persistem até hoje. Enquanto os espaços são concebidos de acordo com essa polarização de gênero, eles passam a funcionar como dispositivos disciplinares, na concepção de Foucault, que são fruto e, ao mesmo tempo, informam uma prática de projeto baseada na negação do ornamento. (Bicha, 2023). A tendência minimalista inaugurada por Adolf Loos, como vemos na citação, se perpetua na história em diferentes âmbitos. Pensando na história da arte moderna e contemporânea um grupo que se relaciona praticamente de forma direta com a filosofia de loos são os minimalistas norte-americanos que começam a produzir nos anos 1960 Posto isso, trago no próximo capítulo uma reflexão sobre a relação de Eva Hesse com o minimalismo, onde enxergo uma operação de subversão que se aproxima ao pensamento do adorno que trago aqui, principalmente por ser uma oposição a uma forma de pensar os objetos em que identifico a herança da ideia do objeto amoral, de Loos. 60 5.2 Eva Hesse e Flávio Império Hesse é comumente classificada como artista pós-minimalista, pelo fato de seu trabalho ser apresentado como uma resposta ao minimalismo, e tendo forte influência formal desse movimento, principalmente pelo uso de cubos, caixas e grids, que fazem parte dos trabalhos de Donald Judd e Carl Andre, dois nomes de grande destaque da época. Hesse, porém, compõem essas formas em seu trabalho de maneiras muito diferentes: em “Acessions” os cubos tem todas suas faces penetradas por mangueiras de borracha, criando assim algumas dualidades no objeto que propõe uma relação completamente diferente daquela proposta pelos cubos lisos de Donald Judd. A dualidade do dentro x fora, criada pela abertura dos cubos na face superior, revela outra dualidade das mangueiras de borracha enfiadas em toda sua superfície que, por fora, são organizadas por furos posicionados serialmente e, por dentro, criam um buraco cheio de espetos, um interior emaranhado. O trabalho de Hesse opera na dualidade do interior x exterior, do liso x textura, do masculino x feminino, sensual x asséptico. Em sua materialidade propõe um léxico muito menos estéril do que o proposto pelos minimalistas, criando, a partir de suas referências, um imaginário visual que passa pelo gesto e pela materialidade orgânica em oposição às estruturas rígidas. A repetição é um elemento muito importante em seu trabalho, tanto em seus desenhos quanto em suas esculturas, e está sempre ligada a um padrão e, ao mesmo tempo, na quebra dele. Hesse foi uma artista que conscientemente buscou produzir seu próprio léxico de símbolos ao mesmo tempo que estava diretamente empenhada na negação da estética proposta pelos minimalistas. É nesse tipo de contradição que encontramos seu caráter subversivo Eu me lembro de querer chegar na não arte, não conotativo, não antropomórfico, não geométrico, não nada, tudo, mas de outro tipo, visão, jeito, de uma outra perspectiva. É possível? (HESSE, 1969 apud VARIAN,1969. Tradução nossa )9 Hesse se apropria de elementos do minimalismo utilizados como emblema da universalidade sintética da forma como cubos, grids e repetições e, através da materialidade sugestiva e dúbia que encontrava nos materiais, criava uma linguagem própria, a partir de sua vivência, inaugurando seu próprio ponto de referência. 9 “I remember I wanted to get to non art, non connotive, non anthropomorphic, non geometric, non, nothing, everything, but of another kind, vision, sort. from a total other reference point. is it possible? 61 Figura 48 - “Acessions II” Acession II, Eva Hesse, 1968-1969, aço e plastico, 75 cm x 75 cm x 75 cm Fonte: https://www.wikiart.org/en/eva-hesse/accession-ii-1968 Figura 49 - Sem título, 1968 Sem titulo, Donald Judd, 83.3 cm x 172.7 cm x 121.9 cm, Aço inoxidável e acrílico Fonte: https://whitney.org/collection/works/619 Trago aqui o trabalho de Hesse como referência de materialidade e repetição como forma de subversão. Sua relação com os materiais era muito mais permissiva e experimentativa do que a relação que os minimalistas propunham. Hesse explora as tatilidades e visualidades de maneira que o assunto de seu trabalho se encontrava na superfície do objeto, que muitas vezes só tem https://www.wikiart.org/en/eva-hesse/accession-ii-1968 https://whitney.org/collection/works/619 62 espessura suficiente para ser uma superfície, como em expanded expansion (ou então tinha seu interior ocultado, como em accessions). Essa superfície densa de sentido, que sugere algo por de baixo, e as vezes é exposta aberta é muito bem colocada pelo artista e crítico Mel Bochner “Eu escolhi a palavra 'embrulho/embrulhar porque é ao mesmo tempo um substantivo e um verbo, um objeto e um processo. Essa contradição, ou coincidência, parecia para mim estar no centro do trabalho de Eva” (BOCHNER, 1992 apud SWARTZ, 1997,10 tradução nossa) o que remete aos trabalhos que exploram a materialidade de similaridade de pele, membrana e a elasticidade do látex, e o jeito como Hesse se utiliza de formas como caixas. Encontramos em seus desenhos uma operação com o mesmo sentido. Partindo de folhas quadriculadas, e criando um padrão que segue seu ritmo, cria pequenos círculos, alguns atravessados por traços que vão do centro de um ao outro. O tipo de visualidade da repetição do gesto, e do padrão imperfeito é o que me interessa e identifico na série de Mosaicos, e principalmente na manta confeccionada com linhas de costura que integram “2 sóis” e “6 dunas”. A inconsistência da manualidade transparece em um objeto que à primeira vista traz uma geometria, mas que aos poucos se revela torto e irregular. Figura 50 - Desenho de Eva Hesse Figura 51 - Desenho de Eva Hesse Fonte: Edward Hallam Tuck Publication Program. Eva Hesse Drawing. Fonte: Edward Hallam Tuck Publication Program. Eva Hesse Drawing. 10 "I selected the word wrap' because it is both a noun and a verb,an object and a process. That contradiction, or coincidence, seemed to me to be at the 'center' of Eva's work.”(na tradução uso embrulho/embrulhar porque em inglês wrap tem o sentido de ambos) 63 Figura 52 - desenho de Eva Hesse Fonte: Edward Hallam Tuck Publication Program. Eva Hesse Drawing. Flávio Império foi um arquiteto, artista, cenógrafo e arquiteto que teve muita relevância na cenografia teatral brasileira, participou de montagens no teatro arena, teatro oficina, dentre outros. Trago aqui duas referências de seus trabalhos; uma série de trabalhos plásticos: “buxinhos” de 1974, e a cenografia da montagem da peça “Othello” de William Shakespeare, realizada por Juca de Oliveira e Sérgio Famá D´Antino que estreou em 27 de janeiro de 1982 no Teatro Cultura Artística São Paulo - SP. 64 Figura 53 - Espetáculo “Othello” montagem de 1982 Cena de montagem da peça “Othello”, com cenografia de Flávio Imperio, Foto de Gualter Limongi Batista Fonte: http://www.flavioimperio.com.br/projeto/508495 Figura 54 - Projeto de cenário:Ilha de Chipre Projeto de cenário:Ilha de Chipre para montagem da peça “Othello” de 1982, Perspectiva do palco,Hidrográfica sobre papel manteiga Acervo Flávio Império Fonte: http://www.flavioimperio.com.br/projeto/508495 http://www.flavioimperio.com.br/projeto/508495 http://www.flavioimperio.com.br/projeto/508495 65 O projeto de cenografia da peça Othello serve aqui de exemplo literal de uma de uma forma de, nas palavras de Foucault, retirar o corpo de um espaço e projetá-lo em outro. Foucault cita junto com a tatuagem a máscara, que no teatro opera de forma a atribuir o corpo do ator a outra corporificação, um personagem. Seu corpo é então projetado para outro espaço, virtual, da história sendo contada ali. Figura 55 - “Buxinhos” “Buxinhos”, 1974, Flávio Império, instalação no quintal da Casa da Aclimação, tecidos, madeira, arame, dimensões variáveis Fonte: http://www.flavioimperio.com.br/galeria/507573/507577 http://www.flavioimperio.com.br/galeria/507573/507577 66 Figura 56 - “Buxinhos” “Buxinhos”, 1974, Flávio Império, instalação no quintal da Casa da Aclimação, tecidos, madeira, arame, dimensões variáveis Fonte: http://www.flavioimperio.com.br/galeria/507573/507577 http://www.flavioimperio.com.br/galeria/507573/507577 67 A série Buxinhos traz da linguagem cenográfica seu suporte, são objetos que estavam presentes em suas instalações e happenings. Possuem arquitetura e simetria de brasões e ornamentos ao mesmo tempo que são feitos de forma inflada, zoomórfica. As curvas do tecido que se formam entre as pontas que sobressaltam e marcam sua estrutura arquitetônica de madeira, também indicam o peso gravitacional de um órgão interno, como uma pele sob o esqueleto. No texto do programa do espetáculo “Pano de Boca” de 1976, vemos a aproximação de seu trabalho visual e sua produção cenográfica, e a relação que a visualidade da membrana tem com a operação de envolver os corpos presentes, tanto dos atores quanto do público, na história que está sendo contada. Material que se tornaria quase uma marca do artista, a malha, dessa vez trabalhada como membrana envelhecida - manchada, desgastada, rasgada - avançou sobre o palco e a platéia, envolvendo o espaço como se fora as camadas da mente tortuosa do diretor imobilizado. Objetos de toda ordem, recolhidos em depósitos de teatro e centros beneficientes de móveis usados, organizaram o espaço da ação ao mesmo tempo que provocavam a sensação de plena desordem ao olhar do espectador. Sobre o pano, jogos de luz e sombra traziam à cena a figura ausente do diretor aguardado pelo grupo. (Pano, 1976) Assim como no trabalho de Eva Hesse, a dualidade criada pela insinuação do interior traz, em sua superfície, a questão de sua forma. Como um cenário, projetam diversos significados conforme a luz que se lança neles, transitando entre o arquitetônico e o orgânico antropomorfo. 68 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O esforço de falar sobre o próprio trabalho e de organizá-lo para compor um texto de trabalho de conclusão de curso , foi muito importante para mim. A graduação em Artes Visuais tem diversas peculiaridades, e traz o pensamento artístico e plástico para o meio acadêmico de diversas formas. Acredito que tenha abordado alguns aspectos relevantes para a minha produção , mas há muito mais a se aprofundar, em relação a cada referência e cada tema trabalhado. De qualquer forma, o exercício de organizar a própria produção , e o desafio de escrever sobre ela foram muito frutíferos para o presente momento; me possibilitaram ter uma perspectiva ampla sobre o que já foi feito até aqui (tanto por mim, quanto por outros artistas), o que considero essencial para seguir em frente, entender os caminhos possíveis da minha produção, depois de finalizar a graduação.. Em especial a reflexão que trago sobre adornos tem muito mais a se aprofundar. A partir dela também visualizo os caminhos que essa temática pode levar, e as ferramentas que aproveito dela na disputa territorial sobre o meu corpo. 69 REFERÊNCIAS AGBO, Mathias. Ornamento, crime e preconceito: como o manifesto de Loos fracassou em compreender as sociedades [Ornament, Crime & Prejudice: Where Loos' Manifesto Fails to Understand People] 08 Jan 2019. ArchDaily Brasil. (Trad. 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