RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE CONHECIMENTO SENSORIAL: UMA ABORDAGEM ECOLÓGICA VIA REALISMO INFORMACIONAL Marília 2006 RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE CONHECIMENTO SENSORIAL: UMA ABORDAGEM ECOLÓGICA VIA REALISMO INFORMACIONAL Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília, para obtenção do título de Mestre em Filosofia (Área de Concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica) Orientadora: Profa. Dra. Maria Eunice Quilici Gonzalez. Marília 2006 Andrade, Ramon Souza Capelle A553c Conhecimento sensorial: uma abordagem ecológica via realismo informacional/ Ramon Souza Capelle de Andrade -- Marília, 2006. 133 f.; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2006. Orientadora: Profa. Dra. Maria Eunice Quilici Gonzalez. Bibliografia: 128-133 1. Conhecimento Sensorial. 2. Realismo informacional. 3. Informação ecológica. 4. Affordance. I. Autor. II. Título. CDD: 153 RAMON SOUZA CAPELLE DE ANDRADE CONHECIMENTO SENSORIAL: UMA ABORDAGEM ECOLÓGICA VIA REALISMO INFORMACIONAL DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Maria Eunice Quilici Gonzalez (orientadora) Departamento de Filosofia FFC - UNESP Prof. Dr. Lauro Frederico Barbosa da Silveira Departamento de Filosofia FFC - UNESP e UNIVEM Profa. Dra. Itala Maria Loffredo D’Ottaviano Departamento de Filosofia e CLE - UNICAMP SUPLENTES Prof. Dr. Osvaldo Frota Pessoa Junior Departamento de Filosofia - USP Profa. Dra. Mariana Claudia Broens Departamento de Filosofia FFC - UNESP Maríla, 27 de Setembro de 2006. Dedicamos este trabalho ao querido e inesquecível (amigo e Professor) Renato Schaeffer e à querida e inspiradora (amiga e Professora) Eunice Gonzalez. Agradecimentos Gostaria de agradecer a existência do amor, que nos possibilita amar aquilo que fazemos e aqueles que amamos: meus pais, Antonio e Ziná, gostaria de agradecer-lhes pelo seu amor e proteção. Gostaria de agradecer ao sorriso do meu primeiro sobrinho, o Gabriel, sorriso esse que me dá força para seguir abrindo caminhos (agradeço à Natinha e ao Leonardo por tê-lo concebido). Gostaria de agradecer à Professora Eunice, por sua cuidadosa orientação, por seu entusiasmo cognitivo/filosófico e por contribuir inestimavelmente para a elaboração deste trabalho. Gostaria de agradecer ao Professor Lauro, por participar do meu exame de qualificação e da defesa de dissertação, por suas sugestões e por escrever inspiradores textos, sobretudo, acerca das contribuições filosóficas de Peirce. Gostaria de agradecer à Professora Ítala, por participar do meu exame de qualificação e da defesa de dissertação, por suas sugestões, por seus esclarecedores textos acerca da Teoria Geral dos Sistemas e por sempre me receber de modo alegre nos Seminários CLE. Gostaria de agradecer aos Professores da Pós-Graduação, por suas aulas que muito contribuíram para a elaboração deste trabalho: Adrian Oscar, Alfredo Pereira Junior, Antonio Trajano, Beth Milidoni, Edson Zampronha, Hércules de Araújo, Ivo Ibri, Lauro Frederico Barbosa, Kester Carrara, Lourenço Chacon, Maria Candida Del-Masso, Maria Eunice Gonzalez, Mariana Broens, Ricardo Tassinari, Pim Haselager e Silvana Vidotti. Gostaria de agradecer aos colegas da Pós-Graduação pelas idéias cognitivas compartilhadas e, em especial: (Simone, Luis Henrique, Juliano, Bel, Cristina, Sonia, Daniel, Maria Amélia, Vicente, Mariana, Cézar, Luis Felipe, Andréia, José Carlos, Sinomar, Myrna, Paulo, Maria e João Luis). Pelo mesmo motivo, gostaria de agradecer aos colegas da Graduação em Filosofia da Unesp: João, Gustavo, Fernando, Cristine e à “turma de tutoria da Nice”. Gostaria de agradecer aos membros do GAEC/Unesp e CLE/Unicamp pelos motivadores debates filosóficos. Gostaria de agradecer à CAPES, pela minha “bolsa de estudo”. Gostaria de agradecer às queridas Tininha e Ilma, da biblioteca central, pelo carinho e auxílio. Gostaria de agradecer aos Professores da minha Graduação em Filosofia (UFJF), por suas aulas (em especial: ao amigo Renato Schaeffer, ao Professor Paulo Afonso, Joel Neves e Luis Henrique Dreher) e aos meus amigos da Filosofia: René Armand (por seu valioso apoio e amizade) e ao Leandro Domith (por sua amizade). Gostaria de agradecer à Edna (do Departamento de Filosofia) pelo seu apoio e alegria. Gostaria de agradecer à Aline, à Andréia e à Edna (da seção de Pós-Graduação) pelo auxílio e simpatia. Gostaria de agradecer ao Ricardo Tassinari, pelas conversas e por sua ajuda. Gostaria de agradecer à Mariana Broens, por sua gentil atenção e por seu “espírito colaborador”. Gostaria de agradecer à Candida, por me incentivar a vir estudar em Marília e por sua imensa bondade. Gostaria de agradecer à Margareth Schaeffer, por sua amizade, por seu incentivo e carinho. Gostaria de agradecer ao Renato Schaeffer, querido e saudoso amigo e Professor, por sua – para mim preciosa – amizade e por ter me iniciado no estudo da percepção (você sempre permanecerá vivo em nossos corações). Gostaria de agradecer à Nice, querida amiga e orientadora, por sua – para mim preciosa – amizade, por seu apoio, por seu carinho, por indicar-me caminhos, e por ensinar-me tanto e inspirar-me sempre, no universo filosófico e existencial (lhe sou muito agradecido, do fundo do meu coração). Love is the foundation of everything desirable or good (Peirce, 1982, p. 04) Resumo: Este trabalho tem por objetivo defender a hipótese (H1) de que o conhecimento sensorial manifesta um aspecto complementar interno/externo. Apoiados no realismo ontológico – tal como desenvolvido por Peirce (1958) e Aristóteles (1981) – e no realismo informacional – tal como proposto por Stonier (1997) e Schaeffer (2001) –, caracterizamos a face interna do conhecimento sensorial como uma apresentação mental dos perceptos. No contexto da apresentação mental, sustentamos que os perceptos afetam a consciência sensorial de acordo com a sua (do percepto) matriz informacional de qualidades sensíveis. Apoiados na abordagem ecológica ao conhecimento sensorial, tal como desenvolvida por Gibson (1986) e Gonzalez (2005), caracterizamos a face externa do conhecimento sensorial como uma relação estabelecida entre o percebedor e as oportunidades de ação – informação ecológica – inscritas em seu ambiente. Defendemos, também, a hipótese (H2) de que a informação ecológica pode estar (1) dobrada (enquanto uma affordance) no ambiente e (2) desdobrada (incorporada) na percepção-ação dos agentes. Por fim, concluímos que a ação é o elemento central por trás da unidade ontológica, complementar, agente/ambiente. Palavras-chave: conhecimento sensorial, realismo informacional, informação ecológica, affordance Abstract: This work aims at defending the hypothesis (H1) according to which perceptual knowledge presents an internal/external complementary aspect. Based upon both the ontological realism – developed by Peirce (1958) and Aristotle (1981) – and the informational realism – put forward by Stonier (1997) and Schaeffer (2001) -, we characterize the internal feature of the perceptual knowledge as a mental presentation of percepts. In the context of mental presentations, we argue that percepts affect the perceptual consciousness according to an (ecological) informational matrix of perceptual qualities. Based upon the ecological approach to the perceptual knowledge, developed by Gibson (1986) and Gonzalez (2005), we characterize the external feature of perceptual knowledge as a relation established between agents and opportunities for action present in their environment. We also defend the hypothesis (H2) according to which ecological information can be (1) enfolded (as an affordance) in the environment and (2) unfolded (incorporated) in the agents’ perception- action. Finally, we conclude that action is the central element behind the ontological complementary agent/environment unity. Keywords: perceptual knowledge, informational realism, ecological information, affordance SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................................... DIAGRAMA INFORMACIONAL................................................................................................. 12 18 CAPÍTULO 1 – CIÊNCIA COGNITIVA, FILOSOFIA DA MENTE E REPRESENTAÇÃO MENTAL 1.1 Apresentação................................................................................................................... 20 1.2 A Ciência Cognitiva e o movimento cibernético............................................................ 21 1.3 Filosofia da Mente, Cognitivismo Tradicional e Conexionismo.................................... 30 1.4 Cognição Incorporada e Situada..................................................................................... 40 CAPÍTULO 2 – CRÍTICAS AO REPRESENTACIONISMO INTRACEREBRAL 2.1 Apresentação................................................................................................................... 46 2.2 Criticas ao Representacionismo intracerebral................................................................. 49 2.3 O problema ontológico da relação corpo-cérebro/mente................................................ 55 2.4 Apreensão imaterial de formas....................................................................................... 62 2.5 As categorias da experiência........................................................................................... 66 CAPÍTULO 3 – O REALISMO INFORMACIONAL E A HIPÓTESE NEOARISTOTÉLICA DO CONHECIMENTO SENSORIAL PROPOSTA POR SCHAEFFER 3.1 Apresentação................................................................................................................... 72 3.2 A Informação como uma propriedade fundamental do universo................................... 73 3.3 A informação auto-instanciadora.................................................................................... 82 3.4 Causação Final-Eficiente (informacional)...................................................................... 86 3.5 A hipótese informacional do conhecimento sensorial proposta por Schaeffer............................................................................................................................... 89 CAPÍTULO 4 – A ABORDAGEM ECOLÓGICA DO CONHECIMENTO SENSORIAL 4.1 Apresentação................................................................................................................... 98 4.2 A distinção realidade física versus realidade ecológica.................................................. 100 4.3 Affordances e conhecimento sensorial direto................................................................. 108 4.4 Informação ecológica e gênese auto-organizada de padrões de ação....................................................................................................................................... 116 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................... 123 REFERÊNCIAS......................................................................................................................... 128 Introdução Este trabalho tem como objetivo argumentar em favor da hipótese (H1) de que o conhecimento sensorial apresenta um caráter duplo, complementar, interno e externo. O caráter interno pode ser entendido em termos de uma apresentação mental dos perceptos. A apresentação mental não é aqui compreendida como a fabricação cerebral de uma representação simbólico-imagética (de uma cópia) do mundo, mas, sim, como uma reverberação, no espaço interno que identifica o organismo, dos atributos sensíveis inscritos na matriz informacional de prescrições disposicionais que confere estabilidade ontológica aos perceptos; a reverberação da cor e da forma espacial das coisas que vemos, por exemplo. O caráter externo, por sua vez, faz referência aos potenciais de ação inseridos na realidade ecológica de um organismo, potenciais esses que encapsulam o padrão de comportamentos que um percepto pode ser capaz de instanciar. Este trabalho está enquadrado na moldura teórica e, em particular, filosófica de um programa de pesquisa (que investiga a natureza da percepção, da ação e dos processos mentais) conhecido como Ciências Cognitivas e Filosofia da Mente. Assumindo uma postura interdisciplinar, as Ciências Cognitivas agregam visões acerca do processo de cognição com focos de análise que podem variar no interior das áreas do saber que as constituem, tais como: a Filosofia, a Lógica, a Antropologia, a Psicologia, a Inteligência Artificial, a Neurociência, a Lingüística e a Física. Mais recentemente, contudo, as Ciências Cognitivas formaram uma disciplina autônoma, com a denominação geral de Ciência Cognitiva (no singular). Nesta ciência, é predominante (embora não constitua a sua totalidade) a compreensão do conhecimento sensorial em termos da existência de representações mentais (simbólicas e/ou imagéticas) mecanicamente codificadas na estrutura cerebral do percebedor, além de manipulações computacionais do suposto conteúdo semântico destas representações. Em poucas 13 palavras, uma representação pode ser entendida (1) como uma camada intermediária que se coloca entre o percebedor e o seu mundo e (2) como uma estrutura mental que unifica os atributos sensíveis dos estímulos externos. Neste contexto, nos deparamos com um problema central, assim enunciado: é possível defender a hipótese de uma internalização (incorporação) da informação sensorial sem um compromisso epistemológico com uma concepção de representação entendida em termos de uma unificação interna (mental/cerebral) dos estímulos que povoam o mundo? Acreditamos que sim, e argumentaremos nesse sentido. No primeiro capítulo, esboçaremos um panorama geral das principais vertentes da Ciência Cognitiva – a Tradicional, a Conexionista e a Incorporada e Situada –, com o intuito geral de enquadrar a nossa análise filosófica do conhecimento sensorial no contexto desta ciência. Evidenciaremos que o comportamento inteligente é engendrado, de acordo com os cognitivistas e com os conexionistas, com base na manipulação computacional de representações mentais, manipulação de cadeia de símbolos (no que diz respeito ao cognitivismo) e ativação de padrões de conexões de neurônios artificiais conectados e coordenados entre si (no que diz respeito ao conexionismo). A utilização excessiva das representações mentais no âmbito da ciência cognitiva (tradicional e conexionista) e a crença amplamente difundida na organização do conhecimento sensorial via unificação representacional interna dos atributos sensíveis dos estímulos externos é o que chamamos de Representacionismo intracerebral. Por outro lado, no plano da Cognição Incorporada e Situada (CIS), a atualização de padrões estáveis de ação é o fator talvez predominante no que diz respeito à eficácia adaptativa do organismo ao seu ambiente externo, eficácia que, na maioria das vezes, é alcançada diretamente, sem a prévia elaboração de uma estratégia de conduta calcada na leitura e na interpretação de representações mentais. 14 Para os representacionistas, o conhecimento visual, por exemplo, é explicado por meio da cadeia causal que se segue: (1) transmissão de fótons a partir do estímulo externo (2) transdução fotoquímica na retina (3) nervo óptico (4) corpo geniculado do tálamo (5) neocórtex (6) representação mental do estímulo visual na consciência. Contudo, argumentaremos que um problema central com a concepção representacionista do conhecimento sensorial é que a cadeia causal, acima resumida, termina no interior do cérebro, embora a experiência fenomenológica (visual) nos revele a existência dos perceptos no mundo exterior. Limitações relativas à abordagem computacional do conhecimento sensorial nos levam, na seqüência, a uma reflexão crítica acerca de alguns dos seus pressupostos ontológicos e epistemológicos. No segundo capítulo, apresentaremos as principais criticas de Schaeffer (2001- 2004) à concepção representacionista intracerebral da percepção-ação. Este autor aponta, em poucas palavras, para uma caracterização do conhecimento sensorial em termos de uma apresentação mental dos perceptos: a aparência ou a fenomenalidade que se apresenta ao conhecimento sensorial é concebida como ontologicamente conatural à realidade externa experienciada enquanto tal. Não pressupor uma ruptura qualitativa entre aparência e realidade equivale a assumir uma postura ontológica realista no que concerne à natureza da percepção-ação. O realismo epistemológico não será tratado como um tópico sistemático, mas, antes, aparecerá (implícita ou explicitamente) na teoria da percepção sensorial, tal como desenvolvida por Aristóteles (1981), e na fenomenologia, tal como concebida por Peirce (1958). No que diz respeito a Aristóteles, abordaremos a sua concepção do conhecimento sensorial entendida, em linhas gerais, como uma apreensão imaterial de formas sensíveis. Já no que diz respeito a Peirce, abordaremos a sua faneroscopia, ou doutrina das categorias ontológicas e fenomenológicas. Apoiado na aparência dos 15 existentes, Peirce (1) diferencia o percepto de uma representação mental abstrata e (2) sustenta que o percepto contém um princípio de organização interna, ou regularidade espaço-temporal, que se expressa em termos de uma estrutura sensível experienciada enquanto tal via conhecimento sensorial. A apresentação mental dos perceptos está em consonância ontológica com a maneira de expressão do mundo externo apresentado enquanto tal; e isso pode ser caracterizado como um realismo ontológico. No terceiro capítulo, reforçaremos a argumentação em benefício do realismo ontológico com a introdução daquilo que chamaremos de realismo informacional. Tal realismo é principalmente professado pelo biólogo-filósofo Tom Stonier (1997). Sem negar a existência da matéria e da energia, mas, antes, pressupondo-as, Stonier sugere que a organização presente na natureza – das partículas subatômicas às sociedades humanas – corresponde à manifestação de uma propriedade básica do universo: a informação. Daí que o principal atributo da informação é a capacidade para organizar tudo aquilo que existe no mundo. Nos organismos, a informação auto-instanciadora é responsável pela manutenção temporal de uma identidade biológica específica, de uma espécie. Sob um ponto de vista teórico similar ao de Stonier, Cooney (1991; 2005) utiliza o rótulo informação auto-instanciadora com o intuito de fazer referência à disposição do sistema biológico para conservar, ao longo de sua história de interação com o ambiente, o seu repertório de respostas adaptativas. Procuraremos mostrar que a informação auto- instanciadora corresponde a um princípio bio-organizador que não pode ser reduzido aos componentes materiais, continuamente substituídos, de um organismo. Não obstante, uma vez que queremos defender a hipótese segundo a qual a organização está presente em todo o espectro de seres da natureza, seria necessário estender a continuidade existencial auto-instanciadora para os entes físicos inorgânicos. 16 Sustentaremos que a noção peirceana de semiose corresponde a um modelo geral de continuidade autogerativa: um percepto gera um signo para um percipiente, eis o pressuposto talvez central daquilo que Peirce caracterizou como ação do signo (ou semiose); além do mais, o percepto gera a si mesmo em concordância ontológica com um feixe de hábitos que lhe garante identidade sensível. Com base no realismo informacional esboçado, e apoiados nas idéias de Peirce (1958), apresentaremos o princípio geral orientador da hipótese informacional de Schaeffer (2001, p. 296) acerca da natureza do conhecimento sensorial: “o que passa do mundo sensível para a mente, como percepto, outra coisa não pode ser senão a própria forma ou informação existente nos seres”; o encontro perceptual mente/mundo é uma transação causal-informacional. Ampliando as idéias de Schaeffer acerca da percepção-ação, no quarto capítulo, defenderemos a hipótese (H2) de que a interação sensorial organismo/ambiente se dá no interior de uma “realidade ecológica”, que pressupõe a realidade tal como descrita pela física contemporânea (em termos da existência de matéria e energia), mas, ao mesmo tempo, dela se distingue. Como procuraremos mostrar, um pressuposto central da Abordagem Ecológica do conhecimento sensorial, tal como desenvolvida por Gibson (1986), é que há uma ressonância biológica entre um organismo e seu ambiente que se expressa por meio da identificação direta, não representacional, de potenciais de ação; de affordances. No contexto da realidade ecológica, é como se existisse – recobrindo os estímulos externos – uma “película” indicadora de oportunidades de ação únicas para cada par organismo/ambiente. É na possibilidade de uma ressonância direta com tal película ecológica que entendemos que o conhecimento sensorial é, também, alguma coisa externa ao percebedor. 17 Compartilhando os pressupostos centrais da Abordagem Ecológica, Gonzalez (2005) sustenta que a informação significativa pode ser caracterizada como um processo auto-organizado de geração de padrões que restringe – no sentido positivo de apontar para uma possibilidade – a percepção-ação dos organismos. Evidenciaremos que há o seguinte tronco comum entre a noção de affordance, tal como desenvolvida por Gibson, e a noção de informação ecológica (ou significativa): a informação ecológica pode estar dobrada (enfolded), enquanto uma affordance, no ambiente e (2) desdobrada (unfolded), ou incorporada, na percepção-ação dos organismos; e este é um outro modo de compreensão do caráter duplo, complementar, interno e externo, do conhecimento sensorial que temos dos perceptos (hipótese H2). Só que, em vez de enfatizarmos a internalização dos atributos sensíveis dos perceptos – entendida enquanto uma apresentação mental –, enfatizamos a incorporação de uma possibilidade em um padrão de ação. Na página que se segue, e com o intuito de indicar as relações entre os conceitos de informação apresentados neste trabalho, há um diagrama informacional da interconexão sujeito/ambiente. 18 Diagrama Informacional Informação auto-instanciadora (Cooney): matriz de prescrições bio- organizacionais em atuação no domínio dos seres vivos Realidade Ecológica Dobrada (enfolded) /desdobrada (unfolded) estatuto ontológico disposicional da informação ecológica Forma (Aristóteles): princípio de organização da matéria Terceiridade (Peirce): feixe de hábitos que confere estabilidade ontológica aos existentes (Causa Final) Informação (Stonier): propriedade fundamental do universo irredutível à matéria e/ou energia poder ontológico para organizar todos os existentes: das partículas subatômicas às sociedades humanas Conhecimento sensorial: o que passa do mundo sensível para a mente, como percepto, é a própria informação existente nos seres. (Schaeffer) Informação ecológica (Gonzalez) processo auto-organizador que possibilita a expansão de padrões de ação para organismos situados em seu ambiente natural propriedade emergente do par ecológico organismo/ambiente Dobrada (enfolded) enquanto uma oportunidade de ação inscrita no ambiente, enquanto uma affordance (Gibson) Desdobrada (unfolded): incorporada na percepção- ação do organismo: expressão da atualização de uma oportunidade em um padrão de ação Capítulo 1 – Ciência Cognitiva, Filosofia da Mente e Representação mental “Podem as máquinas pensar?” “Existem computadores digitais ideais capazes de ter um bom desempenho no jogo da imitação?” (Turing, 1950, p. 60). 20 1.1 Apresentação Temos dois objetivos neste capítulo: o primeiro é fazer um resgate histórico das principais vertentes da Ciência Cognitiva (de modo a situar a análise do conhecimento sensorial no âmbito desta ciência) e, a partir deste resgate – o que constitui o segundo objetivo –, explicitar algumas relações entre as concepções computacionais da cognição (cognitivistas/conexionistas) e fisicalistas/reducionistas da mente, tal como propostas por filósofos contemporâneos. Com vistas a isso, na Seção 1.2, discorreremos acerca do movimento cibernético e, em especial, analisaremos a hipótese cibernética de que os sistemas artificiais (como, por exemplo, o termostato) e os organismos podem ser entendidos como sistemas de controle adaptativo responsáveis pela manutenção de uma paisagem estável (homeostase). Na Seção 1.3, dissertaremos acerca do Cognitivismo tradicional e do Conexionismo. Estaremos especialmente interessados em destacar que o comportamento inteligente é, no contexto de ambos, guiado pela manipulação computacional de representações mentais; representações que apresentam formato seqüencial/simbólico declarativo e/ou imagético (no que diz respeito ao cognitivismo) e formato distribuído/subsimbólico (no que diz respeito ao conexionismo). Na Seção 1.4, versaremos sobre a vertente da Ciência Cognitiva conhecida como Cognição Incorporada e Situada [CIS]. No âmbito da CIS, a atualização de padrões estáveis de conduta – e não a representação mental e a interpretação do conhecimento sensorial – parece ser o elemento central quando o que está em jogo é a adaptação do organismo ao ambiente externo. 21 1.2 A Ciência Cognitiva e o movimento cibernético: um breve resgate histórico Os princípios gerais que possibilitaram a emergência do que atualmente conhecemos por Ciência Cognitiva – como o projeto de mecanização e modelagem das habilidades sensoriais dos organismos – já estavam presentes na década de 40, associados a nomes como os de Wiener (1948), McCulloch/Pitts (1943), Von Neumann (1966) entre outros. Nesta época ocorreu, sob o rótulo Cibernética (termo derivado de uma palavra grega que significa “pilotar/dirigir”), uma unificação de diversas idéias conectadas entre si, sobre mecanicismo, comunicação e controle. Para Dupuy (1996, p.43), a Ciência Cognitiva tem sua origem no movimento cibernético. As idéias geradas no âmbito da Cibernética estavam sendo aplicadas na construção de sistemas artificiais que se auto-controlam, bem como na elaboração de mecanismos que visavam maximizar os elementos de transmissão e recepção de mensagens em canais de comunicação (por exemplo). Nesse sentido, podemos evidenciar, de modo explícito, um certo “ideal de predomínio tecnológico” presente no despontar da Ciência Cognitiva. Um tal ideal não parece ser, contudo, reconhecido pelos cognitivistas atuais (em sua grande maioria), o que contribui, por sua vez, para fortalecer as raízes da não aceitação da origem da Ciência Cognitiva a partir da Cibernética1. A utilização bélica dos postulados cibernéticos é realçada por Dupuy (1996) na seguinte passagem: Wiener trabalhava durante a guerra com Bigelow nos problemas teóricos levantados pela defesa antiaérea. Essa pesquisa era dirigida por Warren Weaver, o qual iria co-assinar, com Claude Shannon, sua Mathematical Theory of communication (1949). Bigelow será recomendado, por Wiener, a Jonh Von Neumann e se tornará, em Princeton, o engenheiro chefe na construção do JONIAC, que desempenhará um papel essencial no desenvolvimento da bomba H. (DUPUY, 1996, p. 45-46). A passagem acima evidencia que as pesquisas desenvolvidas pelos “pais da cibernética” visavam à implementação de tecnologia militar. Para além, porém, das 1 Tal como sugere Gonzalez (2004). 22 atividades associadas ao esforço de dominação tecnológica, os cibernéticos perceberam que a dinâmica interna dos organismos apresenta semelhança com a operação de sistemas artificiais dotados da capacidade de auto-ajuste ao ambiente. Assim como os sistemas biológicos [SBs] sincronizam – por meio de parâmetros naturais de controle metabólico e sensorial – as mudanças que ocorrem no ambiente – interno e externo – com ritmos fisiológicos, os sistemas artificiais [SAs], de modo análogo, sincronizam (por meio de parâmetros mecanicamente codificados) as mudanças que ocorrem no ambiente com metas preestabelecidas. Julgamos que o insight acerca da suposta “correspondência estrutural” entre sistemas artificiais e biológicos fomentou a ambição cibernética de edificação das bases gerais de uma ciência da mente. Na perspectiva dos cibernéticos, a lógica interna de operação da mente poderia ser simulada, ou reproduzida, artificialmente por uma máquina. Foi no espírito de uma suposta artificialização legítima das capacidades cognitivas dos sistemas biológicos que apareceu a proposta de McCulloch/Pitts (1943), segundo a qual a atividade neurofisiológica do cérebro poderia ser modelada por meio do cálculo proposicional clássico. Assim, por exemplo, os neurônios e as conexões sinápticas (e as propriedades de limiar do impulso neuronal) foram equiparados a uma cadeia lógica, na qual uma proposição pode assumir o valor verdadeiro ou falso. Assim como um neurônio biológico é capaz de ativar outro neurônio, uma proposição, no contexto de uma cadeia lógica, de modo análogo, poderia implicar outra proposição. A implementação de neurônios lógicos em circuitos elétricos está na base da criação das Redes Neurais Artificiais, que se transformaram, alguns anos mais tarde, no modelo explanatório ideal das capacidades cognitivas dos sistemas inteligentes. 23 A sugestão cibernética de dissolução das fronteiras entre a organização biológica e a organização artificial – acima realçada por McCulloch/Pitts – transparece na seguinte passagem de (e é reforçada por) Wiener (1954, p. 42): [...] o mais recente estudo do autômato, de metal ou orgânico, constitui um braço da engenharia de comunicação; suas principais noções são as de mensagem, quantidade de perturbação ou “ruído”, quantidade de informação, técnicas de codificação e assim por diante 2. Esbocemos o que está em jogo no programa de pesquisa proposto pela cibernética, mencionado por Wiener, por intermédio da exposição do funcionamento do termostato (um mecanismo cibernético tradicional). O termostato corresponde a um sistema de controle de temperatura que tem por função manter, com base em valores mecanicamente codificados, a estabilidade térmica de uma sala, por exemplo. Em relação aos parâmetros de construção do termostato, um arranjo possível pode ser o que se segue: uma faixa bi-metálica fixa, em uma extremidade, e solta, na outra; localizada próxima a um contato elétrico. À medida que, por exemplo, a temperatura ambiental aumenta, a expansão do metal – entendida como detecção de informação sobre a configuração térmica – fecha um circuito elétrico que, por sua vez, aciona um subsistema de resfriamento de ar. Uma vez que a temperatura ambiental alcance um valor ideal preestabelecido (codificado no termostato), o metal inicia a retração – feedback –, o que, por sua vez, desativa o subsistema de resfriamento3. Julgamos que o pressuposto epistemológico que está na base da sugestão cibernética acerca de uma suposta semelhança funcional entre SAs e SBs pode ser assim enunciado: assim como o sistema de controle adaptativo das organizações biológicas, que tende a manter uma paisagem fisiológica estável (homeostase4), o termostato tende, 2 In short, the newer study of automata, whether in the metal or in the flesh, is a branch of communication engineering, and its cardinal notion are those of message, amount of disturbance or “noise” (...), quantity of information, coding technique, and so on (Wiener, 1954, p. 42). 3 Esta breve exposição do funcionamento geral do termostato foi extraída do trabalho de Brian Cooney (1991, p. 06). 4 Termo cunhado, em 1932, pelo fisiologista Walter Cannon. 24 igualmente, a manter a temperatura ambiente constante. Tal pressuposto – que, aliás, constitui uma das pedras basilares do mecanicismo – é notável no seguinte fragmento de Wiener (1996, p.114): Um grande grupo de casos nos quais tipos de feedback são essenciais para a continuidade da vida está no escopo daquilo que é conhecido como homeostase. Quanto à temperatura corporal, uma variação de um grau centígrado e meio geralmente é um sinal de doença, e uma variação permanente de cinco graus raramente é consistente com a vida. As defesas químicas contra infecções precisam ser mantidas em patamares adequados; o nosso batimento cardíaco e a pressão sangüínea não devem ser nem tão alto nem tão baixo; o metabolismo de cálcio deve ser tal que não amoleça os ossos nem calcifique os tecidos. Em síntese, a nossa economia interna precisa conter um conjunto de termostatos. Tudo isso é o que conhecemos coletivamente como os nossos mecanismos homeostáticos5. Tanto no que diz respeito ao termostato quanto aos sistemas de controle adaptativo das organizações biológicas, o objetivo central parece ser a manutenção da estabilidade, enquanto expressão de uma tendência homeostática altamente favorável à vida (em relação aos SBs) e indispensável à execução eficiente de tarefas codificadas, no caso dos SAs que se auto-ajustam ao ambiente. O funcionamento do termostato (assim como o funcionamento dos subsistemas que compõem um organismo) pode ser descrito através das etapas que se seguem, de acordo com Cooney (1991, p. 06): (a) monitoramento do meio, tendo por finalidade a manutenção de uma região de estabilidade, em concordância com prescrições (biológicas ou artificiais) preestabelecidas; (b) detecção de desvios nessas prescrições; (c) correção dos desvios (resposta adaptativa); (d) feedback. No que concerne à organização biológica, os procedimentos requeridos pela manutenção da estabilidade celular (por exemplo) são os que se seguem: (1) 5 A great group of cases in which some sort of feedback is […] essential for the continuation of life is found in what is known as homeostasis. […] A variation of one-half degree centigrade in the body temperature is generally a sign of illness, and a permanent variation of five degrees is scarcely consistent with life. […] our leucocytes and our chemical defenses against infection must be kept at adequate levels; our heart rate and blood pressure must neither be too high nor too low; our calcium metabolism must be such as neither to soften our bones nor to calcify our tissues. In short, our inner economy must contain an assembly of thermostats. These are what we known collectively as our homeostatic mechanism (WIENER, 1996, p. 114). 25 monitoramento do meio intracelular; (2) detecção de desvios (presença ou ausência, em maior ou menor grau, de certos reagentes químicos); (3) correção dos desvios (síntese de enzimas – transcrição do DNA em segmentos de RNA); (4) feedback (COONEY, 1991, p. 43). É nesse sentido que Wiener afirma que tanto SAs quanto SBs podem ser capazes de resistir temporariamente à tendência geral à desorganização entrópica, em virtude da capacidade apresentada por ambos de sincronizar – via recepção de informação – padrões de atividade com variações ambientais. Entendemos que é nesse cenário que cresce o campo de influência da Engenharia da Informação, um crescimento que, por sua vez, favoreceu a edificação do alicerce sob o qual repousa a hipótese principal da Cibernética – futuramente adotada pela Ciência Cognitiva – de que a inteligência pode ser explicada em termos de processamento de informação. Nesse contexto, o conceito de informação, tal como proposto por Wiener (1948, p. 19) – “um nome para o conteúdo do que é permutado com o mundo externo na medida em que nos ajustamos a ele” 6– possui suficiente generalidade teórica para abranger, por exemplo, tanto a expansão do metal, no que diz respeito ao termostato, quanto à sensação de calor, no que diz respeito aos sistemas biológicos; expansão do metal e sensação de calor entendidas como respostas adaptativas via detecção de informação acerca da configuração do ambiente externo. No tocante à atividade de ajuste dos sistemas inteligentes, as mensagens captadas guiam à ação dos mecanismos de controle adaptativo e, ao mesmo tempo, esboçam um espaço possível (ou provável) no interior do qual transcorrerão as ações subseqüentes; ações inscritas em um circuito de feedback. De modo geral, um sistema inteligente, valendo-se de seus mecanismos de feedback, pode receber mensagens 6 A name for the content for what is exchanged with the outer world as we adjust to it, and make our adjustment felt upon it (Wiener, 1948, p. 19). 26 acerca do seu próprio desempenho e, à conta disso, corrigir o seu padrão de atividade à luz de metas codificadas7. Na concepção de Wiener, e no que diz respeito à organização biológica, a noção de feedback possui importância central, quando o que está em jogo é a adaptação ao ambiente. Mais especificamente, em virtude do dinamismo dos nichos ecológicos, os sistemas biológicos solucionam problemas ambientais – contingência, influência e desafios impostos pelo meio – com base em um desempenho real; ou resposta adaptativa direta. Embora estejamos conscientes de que os ciberneticistas não reconhecem a existência de uma linha definida separando a organização biológica da organização artificial, julgamos que Wiener percebe que, em relação à organização biológica, os desafios ecológicos solicitam sempre – dos SBs – uma resposta adaptativa singular, definida no aqui e agora, e que, por isso, reserva espaço para um “desempenho real”. Parece-nos claro que Wiener, de modo particular, e os ciberneticistas, de modo geral, têm em alta conta a importância desempenhada pelo ambiente na seleção das respostas adaptativas, bem como o patamar da ação efetiva, ou material. Esse ponto é ilustrado por Ruyer (1972, p. 03-04) na passagem que se segue: [...] o pragmatismo e o behaviorismo ensinaram aos psicólogos a dar maior ênfase à ação do que à consciência. A cibernética adota rigorosamente este ponto de vista: o sentido, a consciência na informação, nada tem de essencial; o sentido de uma informação não é mais do que o conjunto das ações que ela desencadeia ou controla. Se eu digo a um sujeito que ocupa o mesmo escritório que eu: “Está calor. Vamos abrir a janela?” e este responde: “De fato, que calor, vamos abrir logo”, parece ter havido troca de impressões conscientes [...]. No entanto, a psicologia [...] já reconheceu que uma consciência que não provocasse qualquer reação dificilmente poderia ser chamada de consciência. Eu posso estar de tal forma absorvido em um trabalho que não sinta a temperatura excessiva; é exatamente no momento em que eu reajo que a consciência se manifesta. Meu corpo pode já ter reagido bem antes de minha consciência, por meio dos mecanismos de regulagem térmica, como a transpiração, que funcionam inconscientemente. 7 Tal como aponta Macy (1991, p. 94). 27 No âmbito da cibernética, entendemos que a ação do organismo pode ser considerada direta. Dito de outra forma, a percepção pode deflagrar a ação sem passar pelo plano da consciência, tal como apontou Ruyer. Recapitulemos alguns pontos: até aqui, evidenciamos que os Ciberneticistas estavam principalmente empenhados em entender os mecanismos (de controle, transmissão e recepção de mensagens) a partir dos quais os sistemas inteligentes forjam, na interação dinâmica com o ambiente, a manutenção de um panorama estável. A perspectiva mecanicista está na base das hipóteses cibernéticas, em especial, na base do pressuposto epistemológico de que há uma “correspondência estrutural” entre o repertório sensorial dos organismos e o aparato dos sistemas artificiais capazes de processar informação, como, por exemplo, o termostato. Como vimos, a organização bio-corpóreo-sensorial dos organismos é entendida em termos da existência de sistemas (e de subsistemas) processadores de informação que podem ser modelados artificialmente; “conhecer é modelar”, eis o slogan da cibernética. Aprofundemos esse ponto. De um modo geral, a pressuposição metafísica embutida no “conhecer é modelar” (e no hipotético poder explanatório dos modelos) é assim resumida por Gonzalez (2006): ao modelar, o cientista supostamente explicita o conjunto de leis mecânicas responsáveis pela atividade inteligente exibida pelo seu modelo. Vale a pena resumir também à análise de Ruyer (1972, p.15-16) sobre o papel que o modelo desempenha no saber científico: [...] conhecemos cientificamente à medida que aprendemos a fabricar modelos esquemáticos. A fisiologia e a psicologia muito terão que aprender com o comportamento dos autômatos. As dificuldades de realização com que se defrontam os engenheiros atraem a atenção dos teóricos e dos observadores para o papel e o modo de ação dos órgãos correspondentes. A técnica começa muitas vezes inspirada em certas funções fisiológicas [...]; contudo, logo a seguir, a situação se inverte e são os progressos da técnica que permitem melhor compreender os funcionamentos fisiológicos. [...] Foi a técnica da sondagem por ultra-sons que atraiu a atenção sobre a exploração auditiva dos obstáculos feita pelos morcegos. [...] Mas seria tão perigoso crer 28 cegamente nos modelos oferecidos pela Cibernética quanto desdenhá-los. [...] Eles ensinam, desde que não se decrete de antemão que todo e qualquer fracasso é apenas provisório e aparente. Sem negar a relevância dos modelos, Ruyer afirma, contudo, que não pode deixar de se alinhar com aqueles que, ao adotar uma postura mais epistemologicamente equilibrada do que à postura assumida pelos cibernéticos, reconhecem que o cérebro artificial mais aperfeiçoado: “será sempre, por definição, menos aperfeiçoado do que o cérebro vivo” (RUYER, 1972, p.16). Além disso, Ruyer (1958, p. 219) afirma que, por natureza, (1) “o átomo conhece mais física atômica do que Bohr ou De Broglie”; (2) “o embrião sabe mais (e mais diretamente) embriologia do que o embriologista”; (3) “o fígado conhece melhor o seu papel (e é mais competente em hepatologia) do que Claude Bernard ou Cannon” 8. A rigor, não há, nas passagens supracitadas de Ruyer, um argumento crucial contra o mecanicismo. Ruyer está destacando, a nosso ver, que a condição ontológica de possibilidade da modelagem – ou da formulação de hipóteses científicas – é dada por (digamos livremente) uma organização (física, físico-química ou biológica) que existe independentemente do – ainda que possa ser, ao menos em parte, reproduzida pelo – “poder de modelagem” do cientista. Como nos lembra Ruyer (1958, p. 219): “o coração de Harvey promovia a circulação do sangue antes mesmo de o cérebro de Harvey atentar para o fato de que o sangue circulava”. Poderíamos considerar que o termostato exerce, ao resfriar o ambiente, um papel análogo ao desempenhado, por exemplo, pela “transpiração biológica”; e a cibernética se desenvolve no solo de tal analogia. É inegável, contudo, que a hipótese de que os ritmos de temperatura das organizações vivas são mantidos estáveis por meio de 8 Acceptons donc sans arrière-pensée ce fait que l’embryon sait mieux et plus directement l’embryologie que l’embryologiste, que le foie connît mieux son rôle et qu’il est plus compétent en hépatologie que Claude Bernard ou Cannon, que le coeur de Harvey a su assurer la circulation du sang avant que le cerveau de Harvey se soit avisé que le sang circulait. Acceptons de même le fait qu’un atome sait mieux la physique atomique que Bohr ou de Broglie (RUYER, 1958, p. 219). 29 “termostatos biológicos” tem validade apenas em sentido metafórico. Neste contexto, a diferença entre a organização biológica e a organização artificial deve ser enfatizada, uma vez que os cibernéticos tendem a desconsiderá-la (e também os proponentes das teorias mecanicistas da percepção-ação, de um modo geral). Como quer que seja, na próxima seção, veremos que, no que diz respeito à possibilidade da modelagem da habilidade sensorial dos organismos, a Ciência Cognitiva adota a perspectiva mecanicista posta em jogo pela Cibernética. Contudo, diferentemente dos cibernéticos, que enfatizam os mecanismos de adaptação ao ambiente externo enquanto índice da inteligência, os cognitivistas tradicionais enfatizam uma dimensão abstrata, simbólica, na qual supostamente há manipulações de representações mentais – em concordância lógica com regras preestabelecidas – antes da ação real, ou efetiva, do organismo. Por conseguinte, os cognitivistas deslocam o foco central de análise do patamar da ação para o patamar da representação do conhecimento sensorial. A ação inteligente – entendida como adaptação ao ambiente – não é mais, agora, como no caso dos mecanismos cibernéticos, imediata, mas, ao contrário, o que é radicalmente diferente, mediada – estruturada – por uma camada representacional simbólica; este é justamente o tema central da nossa próxima seção. 30 1.3 Filosofia da Mente, Cognitivismo Tradicional e Conexionismo O trabalho lógico-matemático de Turing (1950) contribuiu para erigir os princípios centrais que sustentam à investigação computacional da mente. De modo geral, e de acordo com Turing, o pensamento pode ser entendido em termos da manipulação de símbolos a partir de regras lógicas. Para explicitar – formalmente – a postura intelectual de Turing, quanto à modelagem do pensamento, julgamos que o seguinte Modus Ponens poder ser capaz de nos ajudar: (1) Se algo é um processo mecânico, então pode ser modelado por um computador digital; (2) o pensamento é um processo mecânico; (3) Logo, o pensamento pode ser modelado por um computador digital. Entendemos por mecânico todos aqueles processos que podem ser especificados por um conjunto finito de regras (regras que podem, por sua vez, ser manipuladas por uma máquina de Turing). É nesse contexto que Turing argumenta que tão logo possamos descrever o comportamento inteligente – raciocínio, aprendizagem, etc. – por meio de regras lógicas, seremos capazes de programar um computador que exiba padrões semelhantes de operação. É o que constatamos na seguinte passagem de Turing (1950, p. 54): A idéia que está por trás de computadores digitais pode ser explicada dizendo-se que essas máquinas são planejadas para realizar quaisquer operações passíveis de serem feitas por um computador humano. O computador humano deve seguir regras fixas; não tem autoridade para se desviar delas em nenhum detalhe. A compreensão do funcionamento da mente está, assim, subordinada ao descobrimento do programa – conjunto de regras – responsável pela geração dos comportamentos inteligentes. Como afirma Turing (1950, p. 56), se alguém deseja construir um computador capaz de imitar “[...] a conduta do computador humano, terá de lhe perguntar como tal operação é feita e, então, traduzir a resposta por meio de uma tabela de instruções”. 31 Do exposto, concluímos que há, segundo Turing, dois requisitos básicos (e que devem ser satisfeitos) quando pretendemos modelar, computacionalmente, as capacidades cognitivas: (1) conhecer as regras lógicas que regem o comportamento do computador humano – uma tarefa assumida (hoje) pela vertente internalista da Ciência Cognitiva – (2) implementá-las em computadores digitais – uma tarefa assumida (hoje) pela Inteligência Artificial (IA). Em linhas gerais, a IA corresponde a um braço da Ciência Cognitiva que se ocupa com o estudo do comportamento inteligente no contexto geral dos aspectos da cognição que podem ser modelados computacionalmente, de modo que a modelagem exiba as principais características encontradas no próprio comportamento inteligente (BRESCIANI & GONZALEZ, 2001, p. 216). De modo a avaliar, no plano formal, as semelhanças e diferenças entre um computador digital (ideal) e um computador humano, Turing propõe um teste, que se desenrola no âmbito da linguagem e por ele chamado de “o jogo da imitação”. Tal teste apresenta a pretensão teórica de servir como critério positivo de avaliação face à questão: “Podem as máquinas pensar?”, questão essa imediatamente substituída por: “Existem computadores digitais ideais capazes de ter um bom desempenho no jogo da imitação?” (TURING, 1950, p. 60). Três jogadores participam do teste em questão: um ser humano (A), um computador digital (B) e um interrogador (C). Sem contato visual/auditivo/tátil com os participantes, o interrogador deverá reunir, a partir das respostas às perguntas por ele formuladas (respostas que lhes serão entregues digitadas em folha de papel), subsídios teóricos para determinar qual dos dois outros participantes corresponde ao ser humano. O interrogador conhece os participantes por: [...] rótulos X e Y e, no final do jogo, irá dizer ou X é A [um computador] e Y é B [um ser humano], ou X é B [um ser humano] e Y é A [um computador]. É permitido ao interrogador fazer perguntas a A e B tais como: P: Por favor, escreva-me um soneto cujo tema seja a “Forth Bridge” R: Poupe-me isso. Nunca consegui escrever poesia 32 P: some 34957 e 70764 R: (pausa de mais ou menos trinta segundos e depois como resposta) 105721 (Turing, 1950, p. 50). Digamos que, cedo ou tarde, haja sistemas artificiais realmente capazes de apresentar um desempenho adequado no jogo da imitação, de modo que um hipotético interrogador não seja capaz de apontar – ou que aponte apenas probabilisticamente – se as respostas às questões por ele elaboradas foram dadas por um ser humano ou (exclusivo) por um computador digital. Neste caso, poderíamos afirmar que o computador “passou” no teste de Turing. Implícita ou explicitamente, o “passar” no jogo da imitação significa que as respostas dadas ao interrogador, quer sejam as respostas do ser humano quer sejam as do computador digital, foram geradas por uma matriz lógica similar. Tal matriz pode: (1) estar, segundo os pesquisadores da IA, biologicamente instanciada no cérebro, bem como (2) ser abstraída e, em seguida, artificialmente instanciada em placas de silício; em computadores digitais. Além disso, o “passar” no teste de Turing significa, como evidenciamos na seção anterior, que o modelo – o computador digital – foi capaz de explicitar e de reproduzir o conjunto de regras responsáveis pela atividade inteligente (lingüística, digamos) exibida pelo ser humano; “conhecer é modelar”, como vimos. Por este viés, uma especial ênfase é dada, pela vertente internalista da Ciência Cognitiva, aos supostos algoritmos mentais geradores de comportamentos inteligentes. Em conseqüência disso, os cognitivistas tradicionais, com sua expressão central na IA, direcionam o foco de investigação para a estrutura lógica interna que supostamente molda a conduta inteligente. No que diz respeito ao estudo da mente, focar – metodologicamente – o interior do sistema cognitivo expressa um particular compromisso teórico com uma estratégia de investigação diferente da estratégia behaviorista. Por essa razão, a Ciência Cognitiva precisou, com vistas a alcançar a sua firmação, ir além do paradigma behaviorista predominante na época. 33 O behaviorismo investiga [Watson, 1913; Skinner, 1957] as condições externas subjacentes à deflagração de respostas adaptativas de organismos inseridos em seus ambientes. Assim, por exemplo, dado um estímulo ambiental – ou conjunto de estímulos ambientais – se segue uma resposta adaptativa – ou um conjunto de respostas adaptativas do organismo. Queremos, contudo, destacar que a proposta behaviorista de analisar a inteligência a partir do comportamento observável traz em si o pressuposto – em nenhum sentido ingênuo – de que a inteligência se expressa na própria ação de um organismo conectado ao seu ambiente (fonte de estímulos). Julgamos que é, também, nesse sentido que a ação inteligente poderia ser, segundo os behavioristas, adequadamente explicada sem referência a estados mentais internos. Isto porque os estados mentais estariam materializados no próprio comportamento inteligente (adaptativo) do organismo. Seja como for, no tocante ao estudo do comportamento inteligente, os processos mentais internos (não-observáveis diretamente) deveriam ser, de acordo com os behavioristas (e principalmente em concordância com um critério rígido de objetividade científica), não tematizados. Há, assim, uma diferença central entre os behavioristas e os cognitivistas: os estados mentais podem ser, para os behavioristas, traduzidos em disposições comportamentais. Em contraste, os cognitivistas tradicionais concebem a mente em termos de um amplo conjunto de estados mentais internos (ou representações). Para esses cognitivistas, as representações internas desempenham um papel causal na gênese do – e, por isso, não podem ser reduzidas ao – comportamento inteligente. A abordagem computacional da mente parece oferecer uma alternativa ao “comportamento observável” enquanto critério de análise científica e base geral de sustentação de uma ciência da mente. Os modelos computacionais – já que podem ser reproduzidos por outros investigadores treinados – estão revestidos de uma certa aura de 34 objetividade científica e, conseqüentemente, desempenham o papel de critério positivo com base no qual a comunidade cognitivista pode testar as suas hipóteses explicativas 9. Seguindo os caminhos abertos por Turing, uma das hipóteses centrais da Ciência Cognitiva Tradicional é a de que os sistemas inteligentes manipulam cadeias de símbolos com base em regras, o que, por sua vez, valida a utilização/elaboração de modelos computacionais na investigação/avaliação de teorias acerca do funcionamento da mente. É neste contexto que surge o funcionalismo computacional, uma concepção filosófica da mente que postula que os estados mentais podem ser caracterizados em termos das relações causais mecânicas que engendram comportamentos inteligentes. Mais especificamente, os estados mentais são definidos com base em relações causais (1) entre os próprios estados mentais e (2) entre os inputs e os outputs. Hilary Putnam (1973, p. 293), um dos pais do funcionalismo, argumenta que: “[...] qualquer que seja o programa do cérebro, deve ser fisicamente possível, embora não necessariamente viável, produzir alguma coisa com o mesmo programa, mas com uma constituição física e química bem diferente” 10. Para este filósofo (e para os funcionalistas computacionais de modo geral), a mente corresponde ao programa, ou a um software, rodado pelo cérebro, ou um hardware. Uma conseqüência direta da pressuposição de que os estados mentais são definíveis como cadeias de relações causais é que sistemas artificiais – e não apenas sistemas biológicos – podem ser capazes de instanciá-los (os estados mentais), desde que exibam uma “organização funcional isomorfa”. Esse ponto é abordado por Button, Coulter, Lee e Sharrock (1997, p. 19) na passagem que se segue: 9 Como sugere Baker (1987, p. 46). 10 [...] whatever the program of the brain may be, it must be physically possible, though not necessarily feasible, to produce something with the same program but a quite different physical and chemical constitution (Putnam, 1973, p. 293). 35 De longe a mais importante idéia em meio aos muitos esforços para reconciliar o mental com o material foi o recurso ao computador. Com base na teoria funcional da mente, (articulada muito convincentemente por Hilary Putnam) e abastecidos com os desenvolvimentos no campo da inteligência artificial, muitos colaboradores da filosofia da mente julgaram ter, finalmente, realizado a tão esperada reconciliação teórica entre a existência da mente e suas convicções materialistas. No computador, o mental e o material iam de par, sem nenhum vestígio de uma substância [...] imaterial, uma alma. De acordo com estes autores, o computador – que é capaz de realizar tarefas que são consideradas, quando realizadas por seres humanos, inteligentes – parecia indicar que os estados mentais podem ser (1) entendidos como estados físicos (cerebrais) e (2) causar outros estados mentais e a própria ação; assim como em um computador um estado físico/eletrônico pode gerar, por meio de um programa (entendido em termos de seqüências causais produzidas via procedimentos lógicos previamente especificados), um outro estado físico/eletrônico. Há, na pressuposição de que os estados mentais podem ser reduzidos a relações causais/cerebrais (pressuposição que está em harmonia com a hipótese fisicalista de que apenas existe, no mundo objetivo, o que é mensurado pela física), uma conexão entre as concepções funcionalista e eliminativista da mente. Paul Churchland (1998, p. 108), expoente do materialismo eliminativista, deixa isso bem claro na seguinte passagem: Ter conteúdo ou significado, ao que parece, é apenas uma questão de desempenhar um papel específico numa complexa economia inferencial/computacional. E não há razão alguma por que os estados internos do cérebro, ou mesmo de um computador, não possam desempenhar esse papel. Se certos estados do cérebro efetivamente desempenham um tal papel, e se nossos estados mentais são, num certo sentido, idênticos a esses estados do cérebro (como o funcionalismo e a teoria da identidade afirmam), então não temos aqui uma refutação do materialismo, mas antes uma explicação plausível de como, afinal, nossas atitudes proposicionais têm conteúdo proposicional. O filósofo Hilary Putnam, um dos pais do funcionalismo (como afirmamos), não subscreve mais o programa computacional/reducionista por ele iniciado e acima celebrado por Churchland 11. Neste contexto, levantemos a seguinte questão: é possível 11 A posição de Churchland nos parece, por vezes, ambígua. Churchland defende, por um lado, o funcionalismo neuro-computacional, ao enfatizar as estruturas representacionais entendidas, por ele, 36 existir uma Ciência Cognitiva ontologicamente descomprometida com a concepção mecanicista computacional/representacional da mente? Do atual ponto de vista de Putnam (1995, p. 18), assumir uma postura cética no que diz respeito ao poder explanatório dos modelos computacionais da cognição em nenhum sentido equivale a negar a possibilidade da própria Ciência Cognitiva. Este filósofo defende, atualmente, a controversa hipótese de que o estudo da mente não exige a redução da cognição a “computações ou a processos cerebrais representacionais”. Os cognitivistas tradicionais (como vimos) sugerem a existência de um plano de análise – o plano representacional – distinto do plano neurofisiológico e do plano sócio- cultural. Embora o patamar representacional apresente um estatuto ontológico próprio, as representações mentais precisam estar possivelmente codificadas em linguagem neurofísico-química, expressão da dinâmica de organização dos neurônios e de suas conexões, as sinapses. Nesse sentido, as representações mentais desempenham um papel causal na geração da ação inteligente, de modo que o conceito de cognição passa a ser definido em termos de computação na base de representações. Uma descrição geral da noção de representação (no âmbito da Ciência Cognitiva Tradicional) transparece na seguinte passagem de Bresciani & Gonzalez (2001, p. 215): Uma representação mental é caracterizada, em geral, como uma estrutura abstrata de símbolos organizada na forma de um padrão informacional declarativo ou imagético. A informação declarativa (também denominada informação explícita) constitui as proposições representadas através da linguagem. As representações não proposicionais são interpretadas às vezes como sendo imagéticas. De acordo com os cognitivistas, o conhecimento (que temos do mundo e as conseqüências reais para ação que este ou aquele objeto pode instanciar) está inteiramente codificado em padrões proposicionais – e em diferentes níveis organizacionais – na mente/cérebro. As representações, tal como os cientistas cognitivos como padrões de conectividade entre unidades neurônio-simíles. Por outro lado, fiel à sua concepção eliminacionista, ele tem esperança de que o desenvolvimento das neurociências nos livre do vocabulário mentalista utilizado pela “Psicologia Popular”, que inclui crenças, desejos e assim por diante. 37 as concebem (como padrões informacionais declarativos/imagéticos), desempenham o papel de controlar a ação com base em planos preestabelecidos. Assim, as representações mentais guiam – via leitura e interpretação de descrições simbólicas do mundo e dos objetos – à transformação dos estímulos físicos – supostamente sem significado – em cognição significativa. No que diz respeito ao controle da ação (ainda que a ação não constitua o foco central de análise dos cognitivistas, que privilegiam a elaboração de modelos abstratos), o papel desempenhado pelas representações mentais é ilustrado, por Haselager (2005, p. 219), na passagem que se segue: A pressuposição da ciência cognitiva tradicional é a de que os seres humanos (e os animais em geral) representam estímulos recebidos, criam modelagens do ambiente, consultam suas crenças e desejos, geram planejamentos e, depois, decidem qual planejamento precisa ser executado, com o intuito de produzir um comportamento apropriado. Por exemplo, se desejamos tomar café, e se temos a crença de que a cafeteira está na cozinha, planejamos ir à cozinha, tomamos uma decisão e, depois, agimos. Supõe-se que estes procedimentos devem ocorrer de maneira rápida e subconsciente. Então, a pressuposição é que estes processos são muito similares ao pensamento consciente explícito. Como destaca Haselager, os cognitivistas tradicionais postulam a existência de uma camada representacional simbólica e/ou imagética que (1) se coloca entre a percepção e a ação, bem como (2) serve de suporte conceitual para a elaboração e interpretação de estratégias de ação inteligente à luz de fins imediatos. O sujeito cognitivo (1) representa e interpreta internamente um panorama mental do mundo externo (2) mentalmente elabora uma seqüência de ação para, em seguida, atuar inteligentemente, com desenvoltura; o seu (do sujeito) comportamento não é, por conseguinte, direto – espontâneo-imediato –, mas, antes, mediado – estruturado- planejado – por (e com base em) representações mentais simbólicas. Com o intuito de responder a críticos como Searle (1997) – que insiste (por exemplo) que a capacidade semântica dos estados mentais não é intrínseca à manipulação sintática de símbolos – e Dreyfus (1972) – que sempre aponta os limites da 38 concepção computacional da mente –, alguns métodos de análise e conceitos da Neurociência e da Física foram (a partir da década de 80) utilizados pelos cientistas cognitivos, dando origem ao Conexionismo; ou processamento em paralelo das representações 12. De simbólico e seqüencial (cognitivismo), o formato das representações passou a ser considerado como sub-simbólico e paralelo (conexionismo). Igualmente – e por isso –, a cognição passou a ser considerada como um estado global que emerge de uma rede de componentes simples – conhecidos como unidades neurônio-símiles – conectados e coordenados entre si. Bresciani & Gonzalez (2001, p. 219) resumem a dinâmica de operação conexionista como se segue: Considera-se a existência de um sistema constituído por componentes (neurônios) conectados entre si. Cada componente é ativo em seu meio ambiente local e está conectado a outros componentes também ativos em seu meio ambiente local. Cada componente opera com as suas regras e se conecta a outro de acordo com algumas regras comuns. Em decorrência da interação entre os componentes em seus ambientes locais, emerge espontaneamente um estado do sistema com propriedades globais. Esse processo de emergência – que é espontâneo, dinâmico e sinergético – é denominado processo de auto- organização. Através dele, o estado global de um sistema emerge sem o controle de um agente central ou de programação de uma unidade que ordene a ativação ou conexão dos componentes. De modo amplamente geral, uma Rede Neural Artificial é constituída por três camadas: (1) de entrada (2) intermediária e (3) de saída. Os neurônios artificiais da camada de entrada têm por função a codificação dos estímulos externos, estímulos esses que serão, em seguida, processados na camada intermediária. Os neurônios da camada de saída especificam a resposta da Rede aos estímulos de entrada, especificação essa que se dá por meio de um vetor de ativação13. O “conhecimento” que uma Rede Neural Artificial possui está inteiramente codificado nos padrões de conectividade (ou peso das conexões) entre os neurônios artificiais das camadas de entrada, intermediária e de saída. A tese representacional do conhecimento, de um ponto de vista conexionista (McCLELLAND & RUMELHART, 1986), se mantém: as representações mentais são 12 Como apontam Bresciani & Gonzalez (2001, p. 219). 13 Tal como sugere Clark (2001, p. 55). 39 concebidas como padrões de conectividade emergentes da ativação das unidades neurônio-símiles que supostamente constituem os pilares da atividade de reconhecimento de padrões presente na percepção que temos do mundo. Além disso, quer seja como regra ou como padrão de conectividade, há uma camada intermediária entre o percebedor e o seu mundo, de modo que a percepção-ação não é direta. Neste contexto geral, cabe destacar, em poucas palavras, a seguinte relação entre a Ciência Cognitiva e a Filosofia da Mente: a concepção funcionalista/fisicalista fornece subsídios para a ontologia mecanicista subjacente à abordagem representacionista/computacional da mente. Uma conseqüência que decorre dessa ontologia é que não apenas organismos em geral, mas, também, artefatos complexos podem, em princípio, apresentar comportamento inteligente. Os cientistas cognitivos – ao atribuir comportamento inteligente a sistemas artificiais processadores de símbolos – desvinculam – o que nos parece positivo – a inteligência do âmbito exclusivamente racional humano: “o ser humano não está mais no centro do universo cognitivo” (Gonzalez, 2005). Contudo, tal descentralização do comportamento inteligente tende – já que está associada a uma ontologia por excelência materialista – a desconsiderar a unidade fenomenológica complementar organismo/ambiente, unidade essa que traz em si uma dimensão qualitativo-ecológica que não pode ser apreendida por intermédio de parâmetros conceituais ontologicamente vinculados a “visões de mundo” fisicalistas (como argumentaremos no quarto capítulo). Problematizaremos – na seção que se segue – alguns dos pressupostos do programa de pesquisa computacional/representacionista e, em especial, (1) a ênfase atribuída às representações mentais e (2) o desprezo pela “corporeidade” no estudo do comportamento inteligente. 40 1.4 Cognição Incorporada e Situada Uma das pressuposições centrais da Cognição Incorporada e Situada (CIS) – com desenvolvimento preponderante a partir da década de 90 – é que o sistema cognitivo pode ser pensado em termos de uma estrutura ampliada, composta por corpo- cérebro-mente-ambiente. No plano da CIS, e de acordo com Haselager (2005), nenhum aspecto do sistema cognitivo desempenha um papel explanatório privilegiado no que diz respeito aos princípios gerais que supostamente dão forma – orientam – à ação inteligente, como, por exemplo, o papel explanatório privilegiado desempenhado pelas representações mentais no âmbito do cognitivismo tradicional e do conexionismo. Ainda segundo o autor (2006), a ação inteligente pode ser considerada como o resultado da interação dinâmica entre corpo/cérebro e ambiente, resultado esse que emerge sob o pano de fundo de respostas adaptativas improvisadas (sem planejamento anterior) a “demandas temporárias” do organismo e/ou do ambiente. Metaforicamente falando, o cérebro – suposto como sede das representações mentais – não parece ser o “regente da orquestra, mas, sim, um músico entre outros em uma banda de Jazz” (HASELAGER, 2005). Em oposição ao papel secundário que os cognitivistas tradicionais atribuem ao corpo, a interação corporal com o ambiente é, de acordo com Haselager (2005, p. 219), de importância central para a cognição (e por um motivo básico): [...] todos os sistemas cognitivos possuem corpo. Se quisermos compreender como a cognição se relaciona à ação, precisamos saber as características do corpo que irá executar tal ação. Em outras palavras, o corpo é importante porque a mente só pode fazer alguma coisa por meio do corpo e, por outro lado, o corpo pode influenciar os processos mentais. Haselager sugere a apreciação do conceito de “dinâmica intrínseca”, proposto por Kelso (1995), como ferramenta conceitual capaz de favorecer o entendimento dos princípios gerais que estruturam a percepção/ação dos organismos. Tal conceito, em poucas palavras, faz referência à tendência natural de sincronização entre a estrutura 41 corporal e os processos cognitivos limitados pela inserção sensório-corporal do organismo ao seu ambiente. Não podemos girar, por exemplo, nossa cabeça 360 graus e, por isso, os nossos processos cognitivos precisam se harmonizar com tal característica específica, da espécie. (HASELAGER, 2005, p. 221). As crianças “gastam muito tempo, nos primeiros anos, aprendendo a lidar com a dinâmica intrínseca de seus corpos”, ressalta Haselager (2005, p. 221). Exemplificando o valor prioritário da noção de dinâmica intrínseca, o autor argumenta que os recém-nascidos exibem: [...] movimentos semelhantes aos do caminhar quando segurados pelos adultos. Com dois meses, estes movimentos desaparecem, mas voltam na segunda parte do primeiro ano. Para explicar este padrão de desenvolvimento, teorias foram formuladas postulando uma causa cognitiva. Contudo, segundo Thelen & Smith, a causa reside em uma mudança rápida na dinâmica intrínseca do corpo das crianças, tal como um rápido aumento no peso das pernas. As pernas ficam pesadas para serem levantadas. Mas a potencialidade para movimentos semelhantes aos passos existe e pode ser observada, se as crianças são colocadas em um ambiente com água. A pressão da água neutraliza o peso das pernas, tendo como resultado o padrão de movimentos semelhantes àqueles do caminhar (HASELAGER, 2005, p. 221). À luz do exposto, parece-nos correto supor que o padrão motor do caminhar está disponível (em potência) para o recém-nascido, em virtude da sua estrutura bio- corporal. Tais padrões podem ser alterados, contudo, em decorrência do ganho de massa corporal – as pernas ficam pesadas para serem levantadas –, e não em virtude, tão- somente, de fatores cognitivos. Há um descompasso na dinâmica entre as disposições sensório-motoras e o sistema muscular que, incipiente, dificulta a atualização do padrão do caminhar. Essa interpretação adquire vigor se levarmos em conta que o padrão do caminhar aparece quando a criança é colocada, digamos, em uma piscina; “a pressão da água neutraliza o peso das pernas”, como mencionado. Como aponta Haselager, muitos casos de comportamento comum (caminhar, por exemplo) correspondem à atualização de padrões disposicionais de conduta via interação corporal com o ambiente. Daí que nossas ações são, em geral, balizadas pelo nosso repertório disposicional de padrões de conduta, e não apenas alcançadas com base 42 em processos lógico-dedutivos interpretados e coordenados à luz de representações mentais simbólicas. Nesse sentido, as representações (em ações quotidianas como, por exemplo, fazer café, conduzir um veículo e abrir a fechadura) estão, em geral, ausentes, uma vez que: “podemos confiar em processos habituais incorporados” (HASELAGER, 2005, p. 228). Os hábitos podem ser caracterizados como disposições para ação esculpidas epigeneticamente e geradoras de padrões inteligentes de conduta revisados/alterados ao longo do tempo, sempre que a experiência assim o exigir. Tendo em conta que a ação comum é, em parte, orquestrada/moldada por hábitos adquiridos/incorporados, a tarefa do sistema cognitivo não consiste apenas em elaborar estratégias de conduta via manipulação computacional de representações, mas, antes, entrar em ritmo com (ou adaptar-se ao) ambiente que nos cerca. Um parêntese: eis aqui um ponto comum entre a Cibernética e a vertente da CIS; ponto esse que se expressa em termos do entendimento de que os mecanismos de adaptação do organismo e, em especial, a ação – e não a representação do conhecimento – corresponde a um índice real da inteligência. Do ponto de vista de Haselager, o estar situado diz respeito à inserção corporal do organismo ao ambiente e, por isso, a idéia de estar situado: [...] enfatiza as possibilidades para um sujeito interagir com o ambiente. A maioria das situações fornece algumas possibilidades específicas para a ação. A idéia de estar situado possui conexões com a noção de affordance proposta por Gibson (Haselager, 2005, p. 222). Já que o conceito de affordance será tematizado no quarto capítulo, é suficiente aqui indicar que as affordances fazem referência às oportunidades de ação disponíveis para – e espontaneamente (sem representações mentais) identificadas pelos – organismos conectados aos seus ambientes. Como argumentaremos, o que caracteriza eventos como affordances é a previsão espontânea/criativa de um espaço favorável a uma margem de ação possível. A principal idéia aqui é que a inteligência não é apenas 43 alguma coisa interna, mas que, ao contrário, pode ser também externa, estar espalhada pelo ambiente na forma de potenciais ecológicos de ação. Referindo-se à condição humana, Andy Clark (2003), expoente da vertente da “Cognição Incorporada e Situada”, ressalta que procuramos, em geral, ajustar o ambiente de modo a reduzir a demanda por processamento cognitivo de representações. Apenas para indicar um exemplo, tal ajuste inteligente do ambiente está presente nas placas de sinalização das rodovias que indicam, em geral, mapas, lugares, direções, distâncias e eventos. Ainda de acordo com Clark, um dos aspectos distintivos da percepção/ação humana corresponde à criatividade e à flexibilidade para estabelecer complexas relações com construtos externos. Por exemplo, “fundimos” processos mentais com próteses não biológicas: caneta, papel e dispositivos eletrônicos. Mais recentemente, estamos imersos em um processo cada vez mais crescente de simbiose cognitiva com próteses eletrônicas e digitais, próteses essas capazes de transformar o nosso horizonte de ação; ampliar: a memória, a comunicação/transmissão/recepção de mensagens e assim por diante. Somos, nós humanos, destaca Clark (2003), Natural- Born Cyborgs. Façamos, então, um resumo geral deste capítulo: iniciamos com um breve resgate histórico da Ciência Cognitiva, ressaltando a contribuição da cibernética e o papel do funcionalismo na elaboração de modelos computacionais do comportamento inteligente. Vimos que os pressupostos centrais sobre os quais se assenta a Ciência Cognitiva – como o projeto de mecanização e modelagem do conhecimento – foram postos em jogo (essencialmente, e pela primeira vez) pelos ciberneticistas. Seguindo os caminhos abertos pelos ciberneticistas, apontamos que o comportamento inteligente é, tanto no âmbito do cognitivismo tradicional quanto no âmbito do conexionismo, controlado via manipulação computacional de representações mentais. Finalmente, 44 enfatizamos o papel central desempenhado pelo corpo e pelo ambiente externo no processo de aquisição do conhecimento. No próximo capítulo, problematizaremos – a partir de um ponto de vista filosófico-realista – o papel unificador do fluxo de eventos externos supostamente desempenhado pelas representações mentais internas, tal como os cientistas cognitivos de inspiração neuro-computacional as concebem. CAPÍTULO 2 – Críticas ao Representacionismo Intracerebral Trata-se, portanto, de explorar o senso comum, no duplo sentido de desvendá-lo e utilizá-lo, sistematizando ou tornando mais complexas suas sugestões – nunca de superá-lo (DEBRUN, 1996, p. 03). 46 2.1 Apresentação Neste capítulo, procuramos problematizar o pressuposto (representacionista intracerebral) de que o conhecimento sensorial se expressa em termos da criação/construção de uma duplicata interna do mundo externo. Na Seção 2.2, argumentaremos que os representacionistas intracerebrais, de forma implícita ou explícita, estão comprometidos com a hipótese de que os perceptos, que, para nós, parecem estar no próprio mundo, não estão no próprio mundo, mas, sim, meramente no interior do cérebro/mente do percebedor: os perceptos seriam produções intracerebrais. Em contraste, para os apresentacionistas, a consciência sensorial entra em ressonância com a matriz de atributos sensíveis dos perceptos (e não os fabrica no interior do cérebro). Um problema (talvez o mais grave) intrínseco à hipótese representacionista intrecerebral do conhecimento sensorial, tal como acima caracterizada, diz respeito ao fato de que experienciamos o mundo e seus perceptos fora do cérebro, quer dizer, no próprio mundo exterior. O problema da “externalidade objetiva” dos perceptos e de sua matriz de atributos sensíveis é, em parte, o problema ontológico da relação corpo[cérebro]- mente. Por isso, na Seção 2.3, esboçaremos uma descrição geral deste problema, que já aparece formulado, embora implicitamente, na obra de René Descartes (1983). Na concepção cartesiana, há dois tipos básicos de existência: mental (imaterial) e corporal (material). Eis, então, o problema corpo-mente: como a mente imaterial pode interagir causalmente com o corpo material? Tal problema, mais recentemente, passou a ser tratado como o problema cérebro-mente: como saltamos de padrões neuronais físico- químicos para estados qualitativos subjetivamente vivenciados? Indicaremos que uma parte significativa do problema cérebro-mente (a do conteúdo qualitativo intrínseco ao 47 conhecimento sensorial que temos do mundo exterior) resulta diretamente daquilo que poderíamos caracterizar como união representacionismo-fisicalismo. Em linhas gerais, na concepção dos fisicalistas, tudo o que realmente existe (no mundo) são as partículas fundamentais que podem ser mensuradas pela física teórica. Assim, por exemplo, existiriam coisas do tipo fótons deste ou daquele comprimento de onda, mas não existiria nada do tipo cor na realidade; a cor seria alguma coisa devida à influência – ao acréscimo fenomenológico – do percebedor à percepção (do mundo). Parece ser neste panorama ontológico e epistemológico que, de acordo com os representacionistas, a realidade experienciada é ontologicamente mais rica que a realidade tal como descrita pelos físicos, uma vez que os atributos sensíveis dos perceptos – a cor, por exemplo – decorrem da produção neurocerebral de fenomenalidade via padrões de conectividade sináptica. Em contraste, para os apresentacionistas extracerebrais, uma postura ontológica realista prevalece quando o que está em jogo é explicitação das condições de possibilidade do conhecimento sensorial, conhecimento esse que nos coloca diretamente em contato com o mundo exterior. Veremos, na Seção 2.4, que o realismo ontológico está na base da hipótese de Aristóteles de que o conhecimento sensorial pode ser definido em termos de uma apreensão imaterial da forma sensível dos perceptos. Veremos, ainda, que uma outra postura ontológica realista, acerca da natureza do conhecimento sensorial, transparece no sistema filosófico de Peirce (1958). Não por outra razão, na Seção 2.5, discorreremos acerca da fenomenologia peirceana. À luz da fenomenologia, Peirce argumenta que os perceptos contêm um princípio de unidade interna – ou identidade sensível – apreendida via conhecimento sensorial. 48 Podemos, agora, explicitar um segundo objetivo a ser alcançado: preparar o terreno para a argumentação em defesa da hipótese de que uma caracterização (talvez) metafisicamente mais econômica do conhecimento sensorial possa ser dada em termos de uma apresentação – e não de uma representação – mental do mundo externo. De um ponto de vista prático, entendemos que a diferença central entre as concepções apresentacionistas e representacionistas do conhecimento sensorial pode ser sintetizada como se segue: os apresentacionistas julgam que os perceptos são capazes de afetar a mente de acordo com a sua (do percepto) matriz disposicional de atributos sensíveis. Os representacionistas, por sua vez, acreditam que os perceptos afetam a mente de acordo com atributos sensíveis internamente produzidos; podemos mesmo dizer: mentalmente representados. 49 2.2 Criticas ao Representacionismo intracerebral De acordo com os representacionistas (incluindo-se entre eles alguns cognitivistas e conexionistas), os conteúdos das experiências sensoriais correspondem a meras duplicatas internas dos objetos externos e, à conta disso, os perceptos visíveis (por exemplo) não seriam nada para além de produtos subjetivos do nosso aparato neurocerebral. Os representacionistas (por exemplo: Churchland, Sejnowsky, 1992) postulam que padrões neurofisiológicos de conectividade sináptica são necessários e suficientes para deflagrar a experiência sensorial que nos coloca em contato ontológico com o mundo exterior. Desse modo, a intencionalidade sensorial (que aponta da mente para o mundo) parece ser simplificada (ontologicamente reduzida) a uma configuração neurofisiológica capaz de traduzir os eventos que transcorrem no mundo externo via – e, ao mesmo tempo, em – representações mentais internas. Nas palavras de Schaeffer (2000, p. 06, grifo do autor): [...] dada a cadeia causal indiscutivelmente esquematizada a seguir: OBJETO REAL FÓTONS RETINA NERVO ÓTICO CÉREBRO PERCEPTO, o representacionismo alega que a história explicativa que ele é capaz de contar, OBJETO REAL FÓTONS RETINA NERVO ÓTICO CÉREBRO REPRESENTAÇÃO, é a única racionalmente aceitável – constituindo a alternativa não representacionista uma impossibilidade, verdadeira barbaridade lógica: OBJETO REAL FÓTONS RETINA NERVO ÓTICO CÉREBRO OBJETO REAL. Segundo Schaeffer, os Representacionistas intracerebrais14 acreditam que a hipótese da produção interna de qualidades fenomenológicas (como, por exemplo, cores, sabores e odores) é a que prevalece se estamos empenhados em buscar uma explicação cientifica dos aspectos qualitativos da experiência subjetiva. È principalmente em decorrência da aceitação da tese da neuro-produção de qualidades sensíveis que julgamos que há uma conexão entre representacionismo e fisicalismo que 14 Por exemplo, CHURCHLAND (2004, p. 74): “Se o materialismo é verdadeiro, então deve existir uma ou outra característica física interna à qual a discriminação que você faz das sensações-de-vermelho está ajustada: esse é o quale de suas sensações-de-vermelho. [...] não há razão por que o quale de uma sensação não possa vir a se revelar como, digamos, uma freqüência de pulsos numa certa rota neural”. 50 vale a pena ser destacada aqui. Em linhas gerais, a tese central do fisicalismo ontológico é a de que somente pertencem ao mundo objetivo as partículas elementares postuladas pela física teórica e os seus (das partículas) múltiplos graus de complexidade organizacional: de uma porção elementar de matéria à organização de um sistema biológico, por exemplo. No mundo objetivo, apenas existe (em sentido ontológico real) o que pode ser mensurado pela física. Fiquemos com o caso especial, embora fenomenologicamente generalizável para os outros sentidos, da percepção das cores à luz da visão de mundo decorrente da aceitação da tese fisicalista: a cor – enquanto qualidade sensível – não pertence ao mundo objetivo; apenas são objetivos – pertencem ao mundo – os comprimentos de onda/fótons associados à cor, que podem ser mensurados pela física. Logo, uma vez que (1) a cor não existe no mundo objetivo e (2) podemos enxergar as cores no próprio mundo, a conclusão que se segue é a de que a cor deve ser produzida pelo (e no interior do) cérebro. É nesse mesmo sentido que Button, Coulter, Lee e Sharrock (1997, p. 68) apontam que: [...] se os átomos, os fótons etc. que estão entre as propriedades primárias que caracterizam os fenômenos naturais visíveis são descritos como carentes intrinsecamente de cor, então, segundo esse esquema, temos de ser nós, como sujeitos da percepção, que doamos à natureza o que ela inerentemente não tem [as cores, por exemplo]. Como expressão epistemológica da tese fisicalista, os representacionistas sustentam que a produção intracerebral de qualidades sensíveis é a única hipótese lógica possível capaz de explicar como percebemos cores em um mundo que, de um ponto de vista objetivo, não tem cor. Contudo, parece que passa a existir um problema quando levamos a tese fisicalista-representacionista ao extremo de suas conseqüências lógicas, mais especificamente: a dificuldade em se compreender que, ao contrário do que os sentidos diretamente nos revelam, o mundo (e suas cores) não estaria no próprio mundo, mas, sim, no interior do cérebro-mente do percipiente. Porém, como declara Schaeffer (2000, p. 06): 51 Se o mundo real – não o dos sonhos, dos devaneios ou da fantasia alucinada – aparece na experiência sensorial exteroceptiva como algo fora da cabeça – bem, neste caso, até que se prove o contrário, é preciso supor que, de fato, é lá fora do crânio que o mundo está. Pelo que sabemos, não há provas conclusivas de que o mundo não esteja onde sempre pareceu estar: fora-do-cérebro-e-no-mundo. Sabemos que os perceptos visíveis enviam sinais centrípetos (fótons) para os órgãos dos sentidos, que enviam, por sua vez, sinais centrípetos para o cérebro. Contudo, os perceptos podem ser vistos no campo visual, a despeito de a cadeia causal deflagradora do conhecimento sensorial terminar no interior do cérebro. Por isso, para conciliar o que os sentidos nos mostram (que os perceptos estão fora do cérebro) com a hipótese representacionista do conhecimento sensorial, teríamos que postular: [...] um verdadeiro “salto ontológico” entre os eventos neurológicos corticais que antecedem direta e imediatamente a experiência perceptual e esta mesma experiência. Uma causa intracerebral produziria um efeito imediato lá fora, sem a intermediação de quaisquer impulsos eferentes, centrífugos, capazes de carregar a experiência de dentro do cérebro lá para fora (SCHAEFFER, 2000, p. 06). Como acima realça Schaeffer, a questão problemática é a de que, segundo os representacionistas, a percepção visual pode ser (como vimos) explicada em termos da produção de uma representação intracerebral que transcorre de acordo com a seguinte cadeia causal: (1) emissão de fótons pelo percepto (2) transdução fotoquímica na retina (3) nervo óptico (4) tálamo (5) neocórtex (6) representação do percepto. Pois bem: a cadeia causal, acima descrita, termina no interior do cérebro. Além disso, as cores (que supostamente não pertencem ao ambiente) são produzidas dentro do cérebro. Como é, então, que vemos as cores no mundo se ao mesmo tempo elas (1) não pertencem ao mundo (2) são produzidas dentro do cérebro (3) e não há, até onde sabemos, uma projeção centrífuga das cores (internamente produzidas) para o mundo exterior (objetivamente desprovido de cor)? Tais questões ainda não foram respondidas pelos atuais neurocientistas, embora a grande maioria pareça endossar a hipótese de que a 52 nossa interação sensorial com o ambiente se dá via criação/produção de imagens intracerebrais. Tal hipótese ofusca o horizonte epistemológico da abordagem ecológica do conhecimento sensorial (como veremos no quarto capítulo), visto que não poderíamos, como destaca Schaeffer (2000, p. 104), conceber como o campo visual – e os seus potenciais ecológicos de ação – circundaria o percebedor se: “a sua causa imediata é um estado intracerebral, e não o próprio ambiente” . O que estamos caracterizando como concepção representacionista intracerebral transparece no seguinte fragmento de Churchland e Sejnowsky (1992, p. 142-143): Os transdutores sensoriais correspondem à interface entre o cérebro e o mundo. Eles correspondem a células especializadas, como cones e bastonetes na retina, células capilares na cóclea, que evoluíram para responder seletivamente a diferentes parâmetros físicos externos, como ondas luminosas, sonoras, estímulos químicos, movimento, campos elétricos, campos magnéticos, temperatura e assim por diante. Limitado pela resposta do transdutor, o cérebro constrói um modelo do mundo em que habita15. Mas como o modelo, construído pelo cérebro, é projetado para o mundo-em- que-realmente-habitamos, de modo que possamos ver os perceptos no mundo? Churchland e Sejnowsky não são capazes de responder tal questão. Todavia, julgamos que o problema central não seja esse. Seria realmente injusto, no atual estágio do saber científico, exigir de Churchland e de Sejnowsky (e da comunidade dos neurocientistas, de um modo geral) uma resposta à questão acima levantada. A nosso ver, o problema central está na pressuposição de que é realmente algo bastante trivial – e em nenhum sentido controverso – assegurar que o cérebro produz, internamente, um modelo-do- mundo-em-que-habitamos. Igualmente problemático parece ser a noção de transdução no contexto da aceitação geral da tese fisicalista, que serve de base ontológica para o 15 Sensory transducers are the interface between the brain and the world. They are specialized cells, such as rods and cones in the retina, hair cells in the cochlea [...].Transducers have evolved to respond selectively to different external physical parameters, such as light waves, sound waves, chemicals, motion, [...] electrical fields, magnetic fields, temperature, and so forth. [...] Constrained by transducer output, the brain builds a model of the world it inhabits. (CHURCHLAND & SEJNOWSKY, 1992, p. 142-143). 53 representacionismo. Isto porque a transdução pressupõe a emergência de novidade qualitativa, a produção, por exemplo, de cores a partir de (1) fase percepto-retina: oscilações fotônicas (2) fase retina-córtex visual: disparos neuronais físico-químicos. Contudo, tal como argumenta Schaeffer (1998b, p. 102), se o cérebro é um sistema físico, são igualmente físicos os seus poderes causais, e maior que o nosso conhecimento “[...] do que um sistema físico pode ser capaz de produzir é o nosso conhecimento do que um sistema físico não pode ser capaz de produzir: fenomenalidade, por exemplo”. Do exposto, concluímos que os representacionistas exageradamente valorizam a possível explicação do conhecimento sensorial em termos da criação intracerebral de imagens mentais, em detrimento da evidência, igualmente sensorial, de que somos nós que estamos no ambiente e não, por conseguinte, que o ambiente esteja inteira e mentalmente representado em nossos córtices cerebrais. Por isso – quer dizer, por dar mais valor a uma possível explicação do conhecimento sensorial do que aquilo que é realmente mostrado pelos sentidos –, o representacionismo parece se afastar dos fatos: “se afastar da realidade imediata para buscar refúgio na teoria” (SCHAEFFER, 2000, p. 07). Bem diferente da perspectiva representacionista, Schaeffer (2000) está comprometido com uma caracterização do conhecimento sensorial em termos de uma apresentação mental: aquilo que o conhecimento sensorial mostra é concebido como de mesma natureza qualitativa que a própria realidade. Uma apresentação mental pode ser, então, concebida como uma reverberação fenomenológica dos perceptos – dada pela sua matriz disposicional de atributos sensíveis – na consciência sensorial do percebedor. 54 Não desconfiando filosoficamente da evidência da existência dos perceptos e de seus atributos sensíveis fora do cérebro, Schaeffer (2000) aceita uma concepção intuitiva acerca da natureza ontológica do conhecimento sensorial. Embora façam referência ao fenômeno da Auto-organização, as palavras de Debrun (1996) podem nos auxiliar na caracterização da perspectiva intuicionista de Schaeffer. Recorramos às palavras de Debrun (1996, p 0.3): “Trata-se, portanto, de explorar o senso comum, no duplo sentido de desvendá-lo e utilizá-lo, sistematizando ou tornando mais complexas suas sugestões – nunca de superá-lo”. Contudo, não é o realismo ingênuo do senso comum que Schaeffer deseja salvaguardar. Schaeffer está atento, por exemplo, à participação desempenhada pelo percebedor na ação sensorial: afinal, julgamos que é sempre um agente – com a sua própria história de interação com o ambiente, expectativas, objetivos e etc. –, e não um mero produtor de representações, que entra em contato ontológico com o mundo exterior. Neste contexto, o nosso problema central passa a ser o que se segue: como acomodar os atributos sensíveis dos perceptos em uma apresentação mental? Do ponto de vista de Schaeffer, é necessário que busquemos uma abordagem alternativa (não intracerebral) das condições de possibilidade explicativas do conhecimento sensorial. Não obstante, caberia perguntar a Schaeffer: que abordagem é esta? Quais são as suas propostas positivas no que concerne ao problema do conhecimento sensorial? Tais questões surgem espontaneamente, visto que recusamos inteiramente a hipótese da produção intracerebral de qualidades sensíveis. Porém, permitamos que, por enquanto, este ponto fique em aberto. O problema do conhecimento sensorial é, em parte, o problema ontológico da relação cérebro-mente. Discorramos acerca de tal problema. 55 2.3 O problema ontológico da relação corpo-cérebro/mente O problema ontológico da relação corpo/mente pode ser encontrado, de modo implícito, na obra de René Descartes (1983), que remonta ao período conhecido como o período da Filosofia Moderna. Na ontologia cartesiana, há dois tipos básicos de substâncias: mental e material. Descartes estabelece uma distinção clara entre a alma (“res cogitans”) – imaterial, incorpórea, imortal – e o corpo (“res extensa”) – material, corpóreo, algo compartilhado, perecível. O principal atributo da substância material é a extensão, ao passo que o principal atributo da substância mental é o pensamento racional. Como afirma Descartes (1983, p. 147): [...] noto aqui, primeiramente, que há grande diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito inteiramente indivisível. [...] quando considero meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira. E, conquanto um espírito todo pareça estar unido ao corpo todo, todavia um pé, um braço ou qualquer outra parte estando separada do meu corpo, é certo que nem por isso haverá aí algo de subtraído a meu espírito. E as faculdades de querer, sentir, conceber e etc., não podem propriamente ser chamadas suas partes: pois o mesmo espírito emprega-se todo em querer e também todo em sentir, em conceber, etc. Podemos acima evidenciar que Descartes explicitamente aponta para um tipo básico de dualismo no que diz respeito à natureza ontológica da constituição humana. Desse modo, uma vez reconhecida a distinção ontológica mente (imaterial)/corpo (material), surge, prontamente, a questão: como substâncias de naturezas tão diferentes podem interagir? Metaforicamente – e fazendo referência ao que Ryle (1949) caracterizou como o dogma do fantasma na máquina –, poderíamos, também, perguntar: como uma mente imaterial pode ser capaz de controlar (racionalmente) um veículo-corpo físico, material? Como se dá o controle racional (causalmente orientado) da mente para o corpo? Segundo Descartes, a interação causal entre o plano mental e o plano corporal é pouco clara para o nosso entendimento. Contudo, ele sugere que tal interação seria 56 possível graças à glândula pineal. Com vistas a resumir os mecanismos de operação da glândula, recorramos às palavras de Gonzalez (1996, p. 56): Nas Paixões da alma, Descartes [...] sugere