UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro Legitimidades possíveis para a formação matemática de professores de matemática (Ou: Assim falaram Zaratustras: uma tese para todos e para ninguém) JOÃO RICARDO VIOLA DOS SANTOS Orientador: Romulo Campos Lins Tese de Doutorado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Área de Ensino Aprendizagem de Matemática e seus Fundamentos Filosóficos Científicos, para obtenção do Título de Doutor em Educação Matemática. Rio Claro (SP) 2012 370.71 Viola dos Santos, João Ricardo S237l Legitimidades possíveis para a formação matemática de professores de matemática (ou: assim falaram Zaratustras: uma tese para todos e para ninguém). / João Ricardo Viola dos Santos. - Rio Claro : [s.n.], 2012 355 f. : il. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Romulo Campos Lins 1. Professores – Formação. 2. Modelo dos campos semânticos. 3. História oral. 4. Movimentos de teorizações. I. Título. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP JOÃO RICARDO VIOLA DOS SANTOS Legitimidades possíveis para a formação matemática de professores de matemática (Ou: Assim falaram Zaratustras: uma tese para todos e para ninguém) Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Educação Matemática. Comissão Examinadora Romulo Campos Lins (orientador) Antonio Vicente Marafioti Garnica Carlos Roberto Vianna João Frederico da Costa Azevedo Meyer Miriam Godoy Penteado Resultado: Aprovado Rio Claro – SP, 10 de abril de 2012. Dedico esse trabalho a meus pais, por sempre acreditarem em mim; a minha irmã, por ‘brigar’ comigo e me fazer sorrir; e a minha vida, minha linda, gentil, delicada e amada Luzia. Agradeço ao Romulo por me oportunizar ampliar meus modos legítimos de produzir significados. Agradecimentos Agradeço meus amigos Bruno e Kentyan por me ajudarem nos momentos em que mais precisei para sonhar com esse trabalho. Agradeço a todos meus colegas e amigos da PGEM, entre alguns, Ana Paula, Anderson, Carlos Eduardo, Dea, Fernando, Gustavo, Inajara, Jamur, Juliana, Keyla, Luciano, Lucieli, Marco, Mirian, Rodrigo, Roger, Sinval, Washington. Agradeço meus entrevistados pela atenção, disponibilidade e cuidado em construir as textualizações. Agradeço a Regina por sempre me oportunizar conhecer palavras e estar ao meu lado nesta caminhada. Agradeço ao Thiago e a Carla por serem meus amigos ‘do para sempre’ e também ‘do todo dia’. Agradeço aos meus amigos interlocutores ‘Zé-Ruelas’: Júlio e Sérgio, simplesmente por tudo. Agradeço a todos meus colegas e amigos da Coordenadoria de Educação a Distância da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em especial a Magda, Rafa, Sonia, Heloisa, Adriana, Larissa. Agradeço aos membros do Sigma-t, em especial ao Carlos, Laus, Viviane, Edson pelas conversas valiosas e pelas boas risadas via skype. Agradeço meus colegas e amigos do GEPEMA, por torcer e estarem comigo nessa batalha, em especial a Pâmela. Agradeço a banca pelas oportunidades de reflexão, pelo cuidado na leitura e por fazerem parte desse processo de formação. Agradeço a Heloisa e Maria Laura pelas leituras do trabalho, pela torcida e acolhida. Agradeço minha prima Diamila pelas discussões e leituras dos contos que ficaram para uma próxima. Agradeço a CAPES pela bolsa de estudo nos primeiros anos do doutorado. Agradeço a todos que direta ou indiretamente participaram desse trabalho. Resumo O objetivo desse trabalho é o de buscar produzir possíveis legitimidades para a formação matemática de professores de matemática, em cursos de Licenciatura em Matemática. Por meio de uma abordagem qualitativa de pesquisa, tomando como fundamentações teórico-metodológicas o Modelo dos Campos Semânticos e a História Oral, foram realizados movimentos de teorizações a respeito da formação matemática de professores de matemática. Esses movimentos foram realizados nas textualizações de entrevistas realizadas com educadores matemáticos e matemáticos, e na produção de textos que apresentam considerações a respeito da problemática investigada. Um processo de teorização, tomado aqui como a intenção de produzir conhecimento por meio de um relato sistematizado de experiências, foi mobilizado para construir os movimentos e apresentar possíveis legitimidades. Nenhum dos textos e textualizações se constituem como os "verdadeiros" parâmetros para a estruturação da formação matemática nos cursos de Licenciatura. Cada um deles tenta produzir sentidos, olhares, espaços e possibilidades para possíveis transformações nos cursos. Palavras chaves: Formação de Professores. Formação Matemática de Professores. Modelo dos Campos Semânticos. História Oral. Movimentos de Teorizações. Abstract The purpose of this work is to produce possible legitimacy to initial mathematical preparation of mathematics teachers. The Model of Semantic Fields and Oral History are the bases for the qualitative research. The movements of theorizing, i. e., the process to produce knowledge by systematized relates of experiences, were carried out by texts produced in interviews, with mathematics educators and mathematicians, and by texts produced with considerations about the problem investigated. No one of the texts itself constitute the “true” parameters to a structure of initial mathematical preparation of mathematics teachers. Each one tries to produce meanings, views, spaces and opportunities to possible changes in the courses. Key words: Teacher Education. Mathematical Preparation of Teacher. Model of Semantic Fields. Oral History. Movements of Theorizing. Sumário Texto 1 - Ideias, Lugares e Direções --------------------------------------------------------------------10 Texto 2 - Um curso de Licenciatura em matemática teria as disciplinas de Matemática (Cálculo, Álgebra, entre outras), partindo sempre de problemas, fazendo relações com a matemática escolar -------------------------------------------------------------------------------------------------------28 Texto 3 - Eu acho que o curso de Licenciatura teria essas disciplinas com uma discussão da História da Matemática e muitas aplicações------------------------------------------------------------44 Texto 4 - Eu acho que é importante estudar matemática acadêmica, mas de uma outra maneira. Eu penso que para ser professor de matemática é preciso saber outras coisas além da matemática. Eu penso que... ------------------------------------------------------------------------------63 Texto 5 - Para uma outra Formação Matemática na Licenciatura -----------------------------------85 Texto 6 - Sobre a Matemática do Professor de Matemática e a Matemática do Matemático -100 Texto 7 - Eu acho que a gente dá muito conteúdo na Licenciatura, muitas disciplinas, muitas aulas. Não dá tempo para o aluno pensar, refletir, criar, desenvolver um raciocínio matemático-- ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------119 Texto 8 - O professor da educação básica precisa fazer um curso em que ele desenvolva uma autonomia intelectual ------------------------------------------------------------------------------------138 Texto 9 - Minha ideia para a formação de professores é mais pragmática. É preciso trabalhar matemática na perspectiva das experimentações com projetos nas escolas ---------------------167 Texto 10 - Entrevista com o Romulo: Talvez isto devesse acontecer numa tese ---------------182 Texto 11 - A experiência como oportunidade de formação-----------------------------------------209 Texto 12 - Sobre a Formação de Professores de Matemática ---------------------------------------220 Texto 13 - Sobre a Complexidade de Formar Professores ------------------------------------------227 Texto 14 - Sobre a Formação Matemática de Professores de Matemática------------------------241 Texto 15 - A prática profissional do professor deveria ser o centro de gravidade dos cursos de Licenciatura. Nestes é preciso fazer escolhas ---------------------------------------------------------251 Texto 16 - Os futuros professores precisam ter um amplo conhecimento da matemática escolar e algumas idéias de onde essa matemática se encontra no ensino superior -------------------------283 Texto 17 - Licenciatura em Educação Matemática --------------------------------------------------304 Texto 18 - Uma História da Tese -----------------------------------------------------------------------323 Referências Bibliográficas ------------------------------------------------------------------------------340 Apêndices -------------------------------------------------------------------------------------------------347 10� � Texto 1 Lugares, Ideias e Direções , assim consegui pensar em outras coisas, escrever outros textos diferentes daqueles que lia e escutar outras ideias que eu mesmo repetia. Nesses movimentos pelos labirintos de minha investigação caminhei, me perdi, me encontrei, embora possa dizer que continuo perdido. Sufoquei, sofri, me angustiei; sorri, contemplei. Também fracassei, me entristeci, fugi, fugi muitas vezes, voltei. Em meio a uma multiplicidades de verbos e fases, estou aqui, em alinhavos de meus textos, em uma tentativa de escrever uma tese em Educação Matemática. Este texto se constitui com propósito de demarcar uma direção para guiar o leitor em suas incursões pelos outros textos que apresentarei. Nele esboço ideias importantes para o trabalho e pontuo algumas características de como encaro o processo de produção de conhecimento. Falo de lugares, para explicitar minhas fundamentações teórico-metodológicas, de ideias e direções para apresentar meus propósitos, vontades, textos... Perguntaram-me se esse texto seria uma introdução. Penso que não. Não conto sobre os textos que seguirão essa tese dizendo o que fiz em cada um deles, de maneira resumida para dar, aos possíveis leitores, uma ideia do trabalho. Penso que esse texto anuncia uma maneira de produção de conhecimento, uma que eu escolhi, ou mesmo uma a que fui escolhido. Ela me permitiu produzir algumas possíveis legitimidades para a formação matemática de professores de matemática. Nele também há algumas teses desse trabalho, talvez algumas teorizações centrais de todo o trabalho. Penso que esse texto responde a outra pergunta que acredito algum dia, alguém ainda fará: Como você fez, qual foi sua atitude, como imaginou a elaboração dos textos? Quais foram seus princípios, suas crenças, suas direções e fundamentações teórico-metodológicas? Para essas perguntas, uma resposta é esse texto. 11� � Lugares Os lugares de onde falo são os terrenos da Educação Matemática, que se constitui como uma área em construção, nos mais variados aspectos políticos, epistemológicos, sociais. Entretanto, uma área que me permite falar em lugares, pois há algumas fronteiras, caracterizações que me permitem diferenciá-la de outras áreas do conhecimento. Uma situação (que acredito já foi de vários educadores matemáticos em formação ou em serviço) que vivi por diversas vezes é a de tentar explicar minha área de atuação. Várias pessoas me perguntaram qual era o meu trabalho, ou mesmo o que fazia da minha vida. A resposta que eu geralmente apresentava era de que fazia pós- graduação em Educação Matemática. Imediatamente as pessoas me olhavam com uma cara de desconfiadas e diziam: deve ser muito difícil fazer Pós-Graduação em Matemática, pois se já na escola básica a matemática era difícil, imaginem na Pós- Graduação. Dependendo da direção da conversa, me alongava tentando esclarecer que eu não fazia pós-graduação em Matemática, mas sim em Educação Matemática. Por diversas vezes ao final da conversa ainda sentia que as pessoas não entendiam muito bem como se caracterizava essa área de conhecimento científico. Nessas situações era comum as pessoas falarem: ah, certo você trabalha com a parte de ensino e de aprendizagem da matemática; outros ainda diziam: acho que entendi, você estuda e trabalha mais com essas coisas da pedagogia, da didática, mas ligadas à matemática. Muitas dessas conversas mostravam um olhar restrito para Educação Matemática apenas ligado ao ensino e aprendizagem, ou a ideia de Pedagogia mais Matemática. Acredito que muitas dessas conversas podem ser imaginadas também em congressos de Educação Matemática, onde circulam professores, pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação. Ubiratan D’Ambrosio, no artigo “A educação matemática: breve histórico, ações implementadas e questões sobre sua disciplinarização”, afirma que /.../ apenas a partir das três grandes revoluções – a Revolução Industrial (1767), a revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789) – que as preocupações com a educação matemática da juventude começam a tomar corpo (p.71, 2004). 12� � Embora desde a antiguidade se tenha registros de preocupações com o ensino de matemática, ainda segundo D’Ambrosio, /.../ o passo mais importante no estabelecimento da educação matemática como uma disciplina é devida contribuição do eminente matemático alemão Felix Klein (1849-1925), que publicou em 1908, um livro seminal, Matemática Elementar de um Ponto de Vista Avançado (p. 71, 2004). Nesses breves recortes noto que a Educação Matemática, enquanto área de conhecimento, ainda é muito nova comparada a outras áreas como a própria Matemática. Nesse sentido, muitas demarcações epistemológicas, políticas e sociais ainda estão em processos de implementação. Estes não são menos que difusos, complexos e de grandes impasses. Não é à toa, e isso já se caracteriza como uma exemplificação desse fato, que mesmo tendo clara a profissão do professor de matemática, ainda é preciso pesquisas que caracterizem a formação inicial desse profissional, tomando como referência sua prática em serviço. Para pensar a formação de um profissional é interessante primeiramente olhar para como é o seu dia a dia, quais suas demandas, necessidades, para, a partir disso, elaborar um curso. Entretanto, essa profissão ainda está extremamente relacionada com a formação de outro profissional, o matemático, que tem sua prática, suas demandas e seu dia a dia, totalmente diferentes dos do professor de matemática. No artigo citado anteriormente, Antonio Miguel apresenta uma discussão sobre o processo de disciplinarização da prática social em educação matemática e inicia sua discussão assinalando que a educação matemática é uma prática social que não está ainda nem topologicamente diferenciada das demais no interior do espaço acadêmico, nem juridicamente estabelecida como campo profissional autônomo, nem, portanto, institucionalmente reconhecida como campo disciplinar (p. 81, 2004). Nessa direção, Miguel caracteriza quais são os sujeitos que fazem parte da comunidade emergente de educação matemática, sendo eles, professores de matemática que não pesquisam suas práticas e que não vêem com bons olhos os pesquisadores acadêmicos em educação matemática; pesquisadores acadêmicos em matemática e em educação que participam da formação desses professores mas que não gostam muito de fazer isso e, se pudessem, não o fariam; de matemáticos que não pesquisam nem matemática e nem educação, mas que formam, a gosto ou contragosto, professores de matemática, mas que se acham impedidos e que desejariam fazer; pedagogos e psicólogos, por alguns considerados matematicamente incultos, mas que realizam pesquisas em educação matemática; matemáticos conteudistas de última hora, moralizadores, arrogantes e inflexíveis, que se imaginam 13� � salvadores da pátria e legítimos proprietários e defensores do nível de rigor da educação matemática da população; mas também por professores de matemática, pesquisadores em matemática, pesquisadores em educação matemática e outros profissionais que fazem e acreditam na educação matemática e tentam, de fato, levar a sério o que fazem (p. 89, 2004). Seria mesmo ingênuo acreditar que uma prática social na qual convivem tantos profissionais de diferentes contextos de atuação, pudesse, em um tão curto espaço de tempo, constituir regulações e princípios norteadores de práticas que nela são mobilizadas. Ainda mais se tratando de uma prática social indissociável de outra, a educação, que traz todo um imaginário da sociedade como o caminho para a solução de o todos os problemas. Não soam estranhas e nem inabituais frases como: Enquanto não melhorar a educação, esse país não tem jeito; O caminho para resolver os problemas do país, é a educação. Penso que os terrenos, fronteiras, lugares da Educação Matemática se institucionalizam de maneira complexa e que talvez, não se ajustem aos critérios clássicos de demarcações de ciência ou campo de conhecimento científico. Qual seria o objeto de estudo da Educação Matemática? Seria ela capaz de formular uma teoria? Talvez, essas perguntas, mesmo que possíveis de serem feitas, não façam sentido tratando-se da Educação Matemática. Em número temático da revista Temas e Debates publicado em 1991 o tema “O que é a Educação Matemática” foi discutido. Em um artigo dessa revista, João Bosco Pitombeira de Carvalho caracteriza Educação Matemática dizendo que “/.../ ela é o estudo de todos os fatores que influem, direta ou indiretamente, sobre os processos de ensino-aprendizagem em matemática e atuação sobre esses fatores (p. 18, 1991)”. Como o próprio autor assinala, essa é uma definição muito ampla para identificar algumas características da Educação Matemática, mas ele propõe a discussão de alguns fios condutores. Um primeiro seria a preocupação com o ensino- aprendizagem e um segundo seria o reconhecimento da individualidade, do valor e das especificidades da matemática. Nessa discussão vejo uma clara identificação da Educação Matemática ligada às práticas educativas que envolvem a matemática e aos fatores que circunscrevem essas práticas. Ao fim do artigo, o autor declara que um problema básico da Educação Matemática no Brasil é a formação do professor. A formação do professor deve levar em conta que ele se move em uma trama complexa de relações humanas e sociais, de regulamentos e normas, de tradições. O simples domínio do conteúdo, adicionado algumas disciplinas 14� � didático-pedagógicas, simplesmente não prepara para enfrentar a realidade complexa da escola (p. 25, 1991). Uma importante discussão sobre caracterizações para educação matemática é o artigo “O desenvolvimento da Educação Matemática como um campo acadêmico” de Jeremy Kilpatrick, que apresenta uma discussão sobre o primeiro centenário da Comissão Internacional sobre Instrução Matemática. Segundo Kilpatrick (2008) a “/.../ educação matemática não é, ela mesma, uma ciência, mas pelo menos algumas de suas pesquisas se encaixam em critérios das ciências sociais (p. 33-34, minha tradução)”. Para Kilpatrick a Educação Matemática está intimamente relacionada à Matemática, mas há diferenças entre o que é matemática para o matemático e para o educador matemático. Para o matemático ela é uma ciência que possibilita desenvolver teorias que podem ou não ser aplicadas. Para os educadores matemáticos ela é um meio pelo qual se pode educar os alunos da Educação Básica e do Ensino Superior. Matemática para os matemáticos é singular, enquanto para os educadores matemáticos é plural (KILPATRICK, 2008). Para exemplificar as relações entre matemática e educação matemática, Kilpatrick afirma que ambas têm “/.../ uma relação sinergética, na qual uma não pode existir sem a outra (p. 36, minha tradução)”. Um símbolo que para ele representa essas relações é o do conceito chinês de yin e yang: Figura 1 - Símbolo do yin yang Em meio a essas discussões, para mim, Educação Matemática é uma área de investigação que permite problematizar práticas de educação em aspectos epistemológicos, políticos, sociais, culturais. Geralmente nessas problematizações, práticas matemáticas estão envolvidas, mesmo que isso não seja regra. Em algumas problematizações é necessário focar outros aspectos que não estejam deliberadamente relacionados com a matemática para que se possa propiciar algumas compreensões. Em outras, o foco é totalmente relacionado à matemática, como é o caso das problematizações que envolvem o ensino e a aprendizagem de algum tópico matemático. É uma área que se constitui em diversos e diferentes diálogos com a 15� � filosofia, antropologia, sociologia, história, psicologia e, talvez, com qualquer outra área do conhecimento que educadores matemáticos possam e queriam dialogar. Para mim, ela não se caracteriza como multidisciplinar, interdisciplinar, ou mesmo, transdisciplinar. Ao contrário, ela é a-disciplinar (LINS, 2008). Uma direção que busco para construir um projeto político de minha atuação profissional, tanto em práticas de investigação como de educação, é a de: educar por meio da matemática. Que tipos de problemas surgem quando mobilizo ações para buscar essa meta? Que outros modos legítimos de produzir significados posso elaborar? O que preciso entender, construir, lutar para que eu possa seguir essa direção e não apenas anunciá-la? Essa direção permite pensar em características e particularidades no que se refere a educar matematicamente os alunos da educação básica, a formar o profissional que forma os educadores matemáticos, a problematizar a formação inicial do educador matemático da educação básica. Compartilho a ideia de se pensar em Educação Matemática ao invés de Ensino de Matemática para educar nossos alunos pela matemática. Qualquer caminho que se desdobre para completar essa frase, como por exemplo, educar nossos alunos pela matemática para tomar as discussões matemáticas como um meio para construir cidadania e repertórios para que eles possam lidar com o mundo em que vivem, ou mesmo, educar nossos alunos pela matemática para construir uma postura crítica frente à realidade que eles vivem, ou, para construírem um mundo melhor e a construção de uma sociedade justa e igualitária, não me cabe anunciar, pois esses já seriam caminhos constituintes de projetos políticos elaborados, estruturados e colocados por outros sem a participação dos alunos. Isso eu não quero fazer. É preciso construir em conjunto e depois pensar em estratégias e, por isso, não me cabe anunciar um propósito de educar nossos alunos pela matemática. Paro no para e, apenas em relação a um contexto em que atuo junto com meus pares anuncio metas e propósitos. Corroboro os escritos de Romulo Lins quando afirma que Na educação matemática que proponho, os conteúdos que vão aparecer na sala de aula só vão ser escolhidos depois que o projeto político for defendido, o que determina os objetivos desta educação. E vão estar presentes como material através do qual se propõe que os alunos tenham oportunidade de se apropriar de certos modos de produção de significados, entendidos como legítimos em relação ao projeto político e a cultura em que se apresenta (p. 547, 2008). 16� � Nos terrenos da Educação Matemática são muitas as posturas teórico- metodológicas utilizadas na produção de conhecimento. Muitas delas já se assentam em princípios e processos de regulação estáveis, outras apenas se anunciam, outras já estão superadas. Um primeiro posicionamento teórico-metodológico que escolho, ou pelo qual fui escolhido, que demarca e fundamenta meu trabalho, é o Modelo dos Campos Semânticos (LINS e GIMENEZ; 1997; LINS, 1999, 2001, 2008) e a História Oral (GARNICA, 2005, 2007, 2008, 2010). Meus conceitos, posturas, atitudes em relação ao processo de investigação foram balizados por essas ideias. Constituo-me, pelo menos em parte, nessas fundamentações e produzo conhecimento enviesado, circunstanciado, intrincado em meio a essas direções. Modelo dos Campos Semânticos O Modelo dos Campos Semânticos (MCS) foi (e continua sendo) elaborado pelo professor e pesquisador Romulo Campos Lins, a partir de seu estudo de doutorado (LINS, 1992) em relação aos modos de produção de significados de alunos da educação básica para a álgebra escolar. Ao longo desses anos esse modelo vem sendo ampliado, sistematizado e utilizado em várias pesquisas em Educação Matemática1. O aspecto central do MCS, do qual todos os outros conceitos se derivam, é a caracterização de conhecimento. Lins (2001) apresenta três aspectos chaves para sua caracterização de conhecimento, /.../ primeiro, é que a pessoa deve acreditar em algo que constitui parte do conhecimento que produz, o que implica estar consciente dessa crença; segundo, a única maneira que podemos estar seguros e conscientes é se a pessoa declara (e aqui utilizo declara de maneira livre) significado em alguma forma de comunicação aceita por um interlocutor; e, terceiro, não é suficiente considerar o que a pessoa acredita e declara, pois diferentes justificações para uma mesma crença-afirmação corresponde a diferentes conhecimentos (p. 42). Em meio a isso, o conhecimento, segundo o MCS, é “uma crença afirmação junto com uma justificação que me autoriza a produzir aquela enunciação (Lins, 1999, p 88)”. Não é uma justificativa que dá sentido ou mesmo justifica a crença afirmação, como também não é uma justificativa que tem o papel de explicitar a crença afirmação, ������������������������������������������������������������ 1 Silva (2003); Linardi (2006); Oliveira (2002, 2011); Julio (2008); Silva (2006), para citar algumas. 17� � pensando de maneira separada da crença afirmação. A justificação é constituinte do conhecimento. Segundo Lins (2001) elas [as justificações] têm um duplo papel em relação ao conhecimento. Primeiro, elas estão relacionadas a conceder o direito de conhecer, e esta concessão é sempre feita na direção de um interlocutor para quem o conhecimento está sendo enunciado. Segundo, elas estão relacionadas à constituição de objetos (p. 42, minha tradução). Ao conhecer, constituo ações enunciativas em uma direção que, acredito, o outro legitimaria, produzindo significados por acreditar que pertenço a algum espaço comunicativo. A justificação é a legitimidade de minha enunciação e o que me autoriza acreditar que pertenço a um espaço comunicativo. Como afirmam Lins e Gimenez, Todo conhecimento é produzido na direção do outro, o que quer dizer que o sujeito que o produz deve acreditar que alguém compartilha com ele aquela justificação (1997, p. 142). Em princípio alguém pode considerar que essa caracterização de conhecimento estabelece um relativismo total, um vale tudo, no qual tudo pode ser caracterizado como conhecimento, pois se conhecimento é uma crença-afirmação junto com uma justificação, a todo momento posso me colocar a construir crenças afirmações apresentando justificações. Lins e Gimenez (1997) afirmam que essa ideia não é válida e apresentam dois argumentos para isso. Primeiro, porque não é tudo que pode ser dito, já que qualquer dada cultura aceita alguns, mas nunca todos os modos possíveis de produzir significados. [Segundo] o próprio processo de produzir significados estabelece limites “internos” (p. 143). Os exemplos são vários e apresento dois que acredito exemplificar esses argumentos. Se eu declarar que voarei pelo céu de Campo Grande porque transformei meu esqueleto, por meio de contatos com extraterrestres, em uma máquina mecânica voadora, penso que grande parte de meus interlocutores não iria legitimar essa declaração. Eles até entenderiam essas frases. Talvez até me imaginariam voando. Porém não acreditariam que isso pudesse ocorrer. Essa crença-afirmação junto com essa justificação não é aceita, pelo menos em relação aos interlocutores com que compartilho. Se eu ficar repetindo isso para meus interlocutores, eles chegariam à conclusão que estou louco o que, segundo o MCS, nada mais é do que a pessoa que produz significados legítimos para alguns interlocutores, mas que muitos outros, ou a grande maioria, não legitimam. Esse seria um exemplo que mostra que não é qualquer 18� � modo de produzir significado que é aceito em uma determinada cultura. Um segundo exemplo seria em relação aos limites de produzir significados no interior de uma atividade. Lins e Gimenez (1997) afirmam que não é possível produzir significados para resolver a equação 3x + 100 = 10, por meio da produção de significados legítimos na direção da metáfora da balança de dois pratos. Como é possível, pensando a equação como uma balança, retirar 100 kilos de cada membro da equação, se no segundo membro tenho apenas 10 kilos? Esses são dois exemplos que mostram que essa caracterização não cai no relativismo total. Penso que essa caracterização apresenta possibilidades para sair de ideias que ainda se apresentam enraizadas, percebidas em pequenas deixas, nas falas de muitos educadores matemáticos (por mais que muitos afirmem que elas já estão superadas). Uma primeira é um objetivismo, pensado aqui como a ideia de que existe de fato a verdade e que queremos alcançá-la. Se eu utilizar essas estratégias no momento certo e da maneira correta, tenho certeza que irei ensinar meus alunos equação do primeiro grau. Uma segunda seria a de um absolutismo, pensado aqui como a ideia de que existe UM único significado para A matemática. Função é a relação entre dois conjuntos...... Eu tenho sempre que começar pelas definições e os alunos precisam aprendê-las. Uma terceira ideia é que essa caracterização apresenta possibilidades de olhar para o outro não o caracterizando pela falta. Você não sabe isso; você não fez aquilo; infelizmente não posso considerar suas ideias, pois nelas faltam muitas considerações. Esse aluno errou essa questão pois faltou ele entender essa segunda frase no problema. E os exemplos são muitos... Outra problemática superada por essa caracterização de conhecimento é a de que “não se pode conhecer o que não é verdadeiro (LINS, 1999, p. 89)”. A caracterização de conhecimento, por meio do MCS, coloca essa questão sob outro ponto de vista que nos possibilita sair de questionamentos sobre o que é verdadeiro ou como se pode dizer que algo é, ou não verdadeiro. Segundo Lins “a própria enunciação que faz [o conhecimento] existir garante que ele é verdadeiro para alguém [esse alguém tomado como ser cognitivo] (p. 89)”. Aventurando-me por essas considerações, quero destacar a ideia de legitimidades em meio a de justificação, pois neste trabalho se anuncia, pelo menos até agora, como movimentos de elaborações de legitimidades para a formação matemática do professor de matemática. 19� � Um ponto chave, e já alinhavado nos parágrafos anteriores, é de que produzo conhecimento na direção de um interlocutor, o qual, acredito, legitimaria as coisas que eu digo. A legitimidade de minha crença-afirmação não é estabelecida por uma verdade (pelo que pode ou não ser dito), nem mesmo por critérios lógicos deduzidos axiomaticamente, nem por empíricos observados em determinadas situações. Minha legitimidade é estabelecida por acreditar que pertenço a algum espaço comunicativo (Lins, 1999). Colocar-me em movimentos de produção de legitimidades é constituir crenças-afirmações junto com justificações na direção de interlocutores que acredito autorizariam (legitimariam) essas produções. É compartilhar interlocutores e construir um espaço comunicativo no qual seria possível produzir outros modos legítimos de produção de significados para a formação matemática de professores. Abordando a problemática de que diferentes justificações para uma mesma crença-afirmação estabelecem diferentes conhecimentos, apresento um exemplo do trabalho de mestrado de Viviane Oliveira. Consideramos que tanto um aluno por volta dos quatorze anos quanto um matemático, acreditam e afirmam que 2 x (-3) = (-3) x 2. Ao justificar sua crença afirmação o aluno poderia dizer ‘Se fizermos as contas, vamos ver que 2 x (-3) é igual a (-6) e que (-3) x 2 é igual a (-6); tanto 2 x (-3) como (-3) x 2 são igual a (-6). Por isso é que eu digo que 2 x (-3) = (-3) x 2.’ Já o matemático, talvez dissesse ‘Sabemos que 2 e (-3) são números inteiros. Como para o conjunto dos números inteiros, munidos das operações usuais da adição e da multiplicação, vale a propriedade comutativa da multiplicação, digo que 2 x (-3) = (-3) x 2’ (p. 24, 2002). A crença afirmação tanto do matemático quanto do aluno são as mesmas. Entretanto, a justificação do aluno e do matemático são diferentes. Assim, os conhecimentos produzidos pelo aluno e pelo matemático são diferentes. Como explicitado anteriormente, conhecimento é uma crença-afirmação e uma justificação, as duas ideias juntas e constitutivas da caracterização de conhecimento. Lins (1999) destaca que o conhecimento não se encontra nos livros, sítios da internet, ou qualquer outra mídia e afirma que /.../ dado que conhecimento é do domínio da enunciação, esclarece-se suficientemente que não há conhecimento em livros enquanto objetos, pois ali há apenas enunciados. É preciso a enunciação efetiva daqueles enunciados para que eles tomem parte na produção de conhecimentos. (p. 89). Utilizei muitos conceitos sem tê-los definido. Começo essa empreitada por significado, outro conceito do MCS: significado é aquilo que o sujeito pode e 20� � efetivamente diz sobre um objeto no interior de uma atividade (LINS, 1999, 2001). Silva (2003) exemplifica /.../ “poder dizer”, presente na formulação de significado, está intimamente relacionado à questão da legitimidade. Como conseqüência, dizer que o sujeito produziu significado é dizer que ele produziu ações enunciativas a respeito de um objeto no interior de uma atividade (p.21) A produção de significado não se restringe apenas à fala e também engloba a escrita, os gestos. Um ponto importante a ser destacado é que o significado de algo não é produzido em relação ao que alguém poderia dizer em algum contexto ou mesmo em relação ao que alguém não disse. O sujeito produz significados em relação a algo que ele pode e efetivamente diz no interior de uma atividade. Para esse algo que o sujeito produz significado, Lins elabora a ideia de objeto. Assim, objeto é “algo a respeito de que se pode dizer algo (2004, p. 114)”. Dessa maneira, à medida que produzimos significados, constituímos objetos. Os alunos produzem significados e constituem objetos quando lidam com um problema. Quando me deparo com um livro produzo significado e constituo objetos. Vale lembrar que a produção de significados e a constituição de objetos não se dão de maneira separada. Muito pelo contrário, pois os objetos são constituídos à medida que produzo significados para eles. Segundo Lins, /.../ eu me constituo enquanto ser cognitivo através da produção de significados que realizo, ao mesmo tempo em que constituo objetos através destas enunciações (1999, p. 86)”, ou seja, “é na produção de significados que se constituem objetos (1999, p. 88). Um sujeito produz significados e constitui objetos em uma direção que acredita ser legítima. Essa direção à qual me coloco a falar é chamada por Lins de interlocutor. Segundo o autor, /.../ ao produzir significado, minha enunciação é feita na direção de um interlocutor que, acredito, diria o que estou dizendo com a justificação que estou produzindo. /.../ Toda produção de conhecimento é feita na direção de um interlocutor que, acredito, produziria a mesma enunciação com a mesma justificação (p. 88). Esse interlocutor não corresponde a um ser biológico, mas sim a um ser cognitivo. Quando produzo significados constituindo objetos em uma direção, acredito que esses significados são legítimos, ou seja, que podem ser enunciados no interior de uma atividade e que meus interlocutores os aceitariam e legitimariam. Por exemplo, ao 21� � escrever essas palavras que formam frases e constroem parágrafos acredito que meus interlocutores (um tal José, mestrando em educação matemática que estuda formação matemática de professores, ou, um tal Antônio, doutorando em educação, que estuda dinâmicas de sala de aula, um tal Pedro, um tal...) aceitariam como legítimos, os significados que produzo e os objetos que constituo2. Quando falo em uma direção acredito que pertenço a um espaço comunicativo, ou seja, a uma atividade em que existe “compartilhamento de interlocutores (LINS, p.88)”. Essas ideias estão relacionadas a uma perspectiva de oferecer uma possibilidade de ler a atividade de alguém ou de lidar com algo. Não se busca uma permanência, uma essência, ou algo que foi dito por aquele sujeito. Busca-se uma possibilidade de interação e a constituição de espaços comunicativos. Quando leio um livro, produzo significados e constituo objetos naquele momento, naquela situação. Leio acreditando que aquilo que “estou entendendo” seria o que o autor diria, coloco-me a compartilhar interlocutores que acredito que o autor compartilharia. Entretanto, posso pensar direções totalmente diferentes daquela que o autor pensou e isso para mim, na minha atividade de ler o livro, é legítimo. Pontuando minha fala. O autor do livro que leio sou eu. Eu sou o autor de todos os livros que já li e de todos aqueles que ainda lerei. Mesmo que esteja escrito na capa o nome do autor (José da Silva), a data de publicação do livro (12/10/ 1971), os dizeres sobre direitos autorais que ele tem sobre sua obra, quando eu leio o livro, produzo significados e constituo objetos e me constituo como autor naquela atividade. Assim, os livros, as definições matemáticas, as obras de arte, os sons das músicas que tocam no rádio, as propagandas nas fachadas dos prédios, são todos textos que, segundo Lins (1999), “/.../ são resíduos de enunciações para os quais eu produzo significado (p. 88)”. Apenas existe texto quando temos autor. Não faz sentido, dentro do modelo, pensar em um texto sem pensar em um autor que lê o texto. Nesse esforço de escrita linear de uma ideia, penso que alinhavei alguns de meus princípios teórico-metodológicos. Falar em conhecimento implica falar em interlocutor, o que me obriga a falar de produção de significado e assim por diante. Passo agora a ������������������������������������������������������������ 2 Penso e acredito que aqui a ideia de interlocutor como ser cognitivo e não como um ser biológico fica explícito, pois José, Antônio, Pedro existem para mim apenas como ideias de possíveis sujeitos que um dia poderão ler minha tese. Eu não escrevo em relação ao Pedro, ao José, ao Antonío (seres biológicos), mas em relação a um José, a um Pedro, a um Antonio (seres cognitivos). 22� � outras crenças-afirmações junto a justificações que regulam e constituem a produção desse trabalho. História Oral Ao lado (ou em cima, embaixo, no meio, misturado) do Modelo dos Campos Semânticos, outra fundamentação teórico-metodológica deste trabalho é a História Oral. Dentre os diversos vieses de se caracterizar história oral, pratico um modo particular que se fundamenta em trabalhos do Grupo de História Oral e Educação Matemática (GHOEM)3. Alongar-me-ei em algumas páginas para apresentar algumas características que me interessam nesse trabalho4. Pode parecer um pouco estranho (e pelo menos para mim não seria se não escrevesse esse parágrafo) um trabalho que não tem por objetivo estudar algum tema relacionado à história da educação matemática, tomar como fundamentação a história oral. Essa é, ainda, uma sensação recorrente de muitos que se limitam a pensar que para utilizar a metodologia de história oral é necessariamente necessário fazer pesquisa em história da educação matemática. Outro aspecto que também pode levar a essa sensação é que grande parte dos trabalhos do GHOEM, que utilizam história oral como metodologia, tem por objetivos estudar aspectos da história da educação matemática5. Entretanto, essa é apenas uma sensação, uma estranheza que se desmistifica ao se estudar características dessa postura teórico-metodológica de pesquisa qualitativa. ������������������������������������������������������������ 3 Para mais informações sobre o GHOEM acesse o site www.ghoem.com 4 Não é de meu interesse, neste trabalho, tecer considerações sobre pressupostos de como entender história ou mesmo praticar uma historiografia. Entretanto, apresento algumas ideias sobre práticas historiográficas do GHOEM que compartilho para dar uma direção, mesmo que primeira. Uma maneira de se pensar a história, é a ideia de que precisamos estudar o passado para entender o presente e prever o futuro (lembro-me de minha professora de História do Colégio, dizendo estas palavras). Este modo de pensar a história como progresso não é a perspectiva adotada. A ideia adotada é a de que: a partir do presente construo histórias. Este, significa, elabora, presentifica um passado, em meio a subjetividades e parcialidades naturais desse processo. Um passado, pois em um futuro pode-se construir outros. Não reconstruo, não resgato, nem mesmo me disponho a construir a história tendo como objetivo dizer como ela aconteceu. Segundo Garnica, Fernandes, Silva (2011) “cabe ao historiador presentificar ausências, trazendo para uma discussão do presente, no presente e sobre o presente, toda uma sorte de descortinamentos criados a partir do diálogo com o passado. O passado é a ausência, o passado é a inexistência que nos assombra, o passado é uma criação do presente, ou de outro modo, o passado é o que dele se diz no presente. O passado é uma composição à qual, no presente, eu procuro atribuir significados para o presente”. Essas são algumas características que circunscrevem as práticas de pesquisa do GHOEM, nas quais acredito e das compartilho. 5 Vale ressaltar que existem trabalhos que não têm essa intenção e que utilizam história oral como metodologia de pesquisa, como os de Souza (2006), Rolkouski (2006), Garnica (2005, 2008). 23� � A história oral como método de pesquisa qualitativa em educação matemática se configura como uma possibilidade para realizar trabalhos no qual envolvem, intencionalmente, a produção de fontes por meio de entrevistas. Segundo Garnica (2010) /.../ um trabalho – em Educação Matemática ou em qualquer área que seja – produz irremediavelmente uma fonte histórica. A diferença é que os que usam a História Oral intencionalmente as produzem (p. 31). Assim, posso produzir fontes históricas e investigar aspectos da formação matemática de professores de matemática, sem realizar um trabalho na área de história da educação matemática. Ainda segundo Garnica, /.../ a História Oral em Educação Matemática é um “método-em-trajetória” de natureza qualitativa, o qual pressupõe que um método configura-se dinamicamente, de forma processual, e não pode ser estabelecido aprioristicamente, sem que haja um objeto específico para ser investigado, uma vez que nas pesquisas de natureza qualitativa são os objetos que exigem procedimentos específicos para compreendê-los (p. 32, 2010). A história oral é um método de pesquisa qualitativa em Educação Matemática, e não (apenas) um método de pesquisa qualitativa em Educação Matemática para realizar pesquisa em história da educação matemática. É um método sobre o qual cada trabalho realizado exercita possibilidades e regulações, testa seus limites e possibilitam outros caminhos para investigar aspectos da complexidade das instâncias da Educação Matemática. Como Garnica (2010) afirma /.../ cada pesquisa realizada no GHOEM serve – serviu e continua servindo – para uma análise metodológica que dá parâmetros para avaliar os sucessos e as limitações do método (p. 32). Um fator significativo dessa metodologia são as textualizações. Os pesquisadores, por meio de entrevistas gravadas e/ou filmadas, elaboram textualizações que são apresentadas integralmente no corpo da tese. Entretanto, essas textualizações não se constituem como uma apresentação dos dados, para que depois o pesquisador teça suas análises, ou como um exercício analítico em si, mas são narrativas apresentadas frente à intenção de oportunizar acesso aos leitores e pesquisadores que possam tomá-las para outras pesquisas. As textualizações constituem-se como movimentos de análises, teorizações, construção de narrativas que possibilitam compreensões do tema pesquisado. Elas se constituem dessa maneira pois a ação de textualizar carrega em si vieses teóricos do pesquisador que se manifestam na escolha 24� � dos depoentes, na elaboração dos roteiros das entrevistas, nas dinâmicas que elas são realizadas. A postura qualitativa do pesquisador nesse processo se inscreve em seus desejos, crenças, concepções, subjetividades, ou seja, todo um amálgama político cultural que circunscreve sua prática de pesquisa, que se constitui em produzir narrativas de momentos de entrevistas, e também outras narrativas de análises, teorizações, alinhavos, sistematizações. Textualizar se aproxima do movimento de escrever o que acredito que você escreveria, constituindo um texto que acredito que você diria que é seu. Assim, não busco apenas tirar os vícios de linguagem, reescrever as frases truncadas (que no momento de entrevista são naturais), reorganizar o texto de uma maneira que ele fique mais corrente, “palpável” para leituras. Coloco-me a escrever outro texto que é constituído a partir da gravação (áudio ou áudio-visual) e armazenamento em mídia, da entrevista realizada, como também de minhas lembranças daquele momento. Eu não escrevo as mesmas coisas que você disse, mesmo se utilizar as mesmas palavras. Coloco-me em um movimento de instituir palavras, plausivelmente, de uma maneira que acredito que você diria. Não há pretensão de escrever o que de fato você falou. Para mim está claro que o que você disse morreu, não existe mais. O que tenho é apenas uma mídia que reproduz, por meio de um aparelho, falas de duas pessoas; uma que reconheço como sendo minha e outra, a sua. Acredito que quando escuto essa gravação, tenho algumas direções de como construir um texto da nossa conversa (entrevista). Como já não tenho a esperança de escrever o que nós dois conversamos, me coloco em um movimento de produzir significados e constituir objetos que, acredito, você legitimaria. Insiro-me em um movimento de textualizar, produzir narrativas em um esforço conjunto entre pesquisador e entrevistado, cada um operando a cada momento. Como afirma Silva (2006), /.../ praticar a textualização em história oral é um exercício de amalgamar a ficção que o outro é à ficção que somos nós, ou seja, é uma tentativa de nós, pesquisadores, nos aproximarmos dos significados que o depoente produz para as suas experiências (p.423-424). Nos terrenos da história oral, uma seara de grande importância é a das narrativas. Ao textualizar as entrevistas são constituídas narrativas e estas são a “matéria-prima dos que trabalham com História Oral (GARNICA, 2010)”. 25� � Em um trabalho recente, Souza, Guedes e Silva (2011) discutem os usos e possibilidades de análises de narrativas. Os autores abordam o tema mostrando como a narrativa era utilizada em rituais de tribos e etnias, e como esse modo de produzir conhecimento foi deixado de lado na modernidade, posto que esta buscou uma institucionalização do conhecimento histórico. Silva (2006) citando Lyotard (1986) afirma que /.../ diferentemente do discurso científico caracterizado por enunciados denotativos, o discurso narrativo admite uma pluralidade de jogos de linguagem (enunciados denotativos, deônticos, interrogativos, avaliativos, etc.), cujas competências encontram-se misturadas umas às outras num tecido cerrado, o do relato, e ordenadas numa perspectiva de conjunto, que caracteriza este gênero de saber (409, 410). Bolívar (2002) também contribui nessa direção afirmando que El ideal positivista fue establecer una distancia entre investigador y objeto investigado, correlacionando mayor despersonalización con incremento de objetividad. La investigación narrativa viene justo a negar dicho supuesto, pues los informantes hablan de ellos mismos, sin silenciar su subjetividad (p. 2). Partindo do pressuposto que não existe uma verdade lógica, imutável, intrínseca a um objeto e que, são nas circunstâncias da linguagem, nas relações culturais, políticas, sociais que os significados são produzidos e são constituídos objetos na direção de um interlocutor que legitimaria esses modos de produção, as narrativas, constituídas em experiências idiossincráticas, num determinado momento e contexto cultural, permitem olhares singulares sobre a complexidade de um tema. Não narramos apenas os fatos que vivemos, nem mesmo relatamos nossas opiniões sobre algo. Quando narramos nos constituímos. Narrar é constituir-se nas possibilidades da experiência, nos labirintos da linguagem, nos posicionamentos frente aos desejos do outro. Assim, as narrativas construídas a partir de momentos de entrevistas não se constituem presas a certas categorizações, tabelas, ou recortes que o pesquisador possa fazer. Ela é integral em seus detalhes e particularidades, idiossincrática no corpo do texto e se apresenta em direções para que outras narrativas possam ser elaboradas. Souza, Guedes e Silva (2011) apresentam uma direção legítima para essa argumentação, afirmando que Sobre o modo narrativo, Bruner (1997) afirma que este parte do princípio de que as ações humanas são únicas e irrepetíveis. Sua riqueza de matizes não pode, então, ser exibida em direções, categorias ou proposições abertas (p. 7). 26� � Ainda sobre narrativa, Garnica (2011) assinala que ela expressa o que é possível dizer, num mundo onde esses ditos ressoam. As narrativas, registros da ação, permitem compreender algumas das crenças segundo as quais as pessoas agem. Permitem compreender que não há manutenção eterna nem alteração frequente: mostram que mantemos hábitos no esforço de rompê-los, que afirmamos querer romper hábitos para que possamos mantê-los. Ao fim e ao cabo, mostram que vivemos num mundo no qual esses discursos têm lugar e, de um modo ou outro, fazem sentido (p. 7). A produção de conhecimento por meio de narrativas apresenta-se como uma possibilidade dado a complexidade do mundo de hoje. Os homens alinhavam alguns aspectos no momento em que eles se constituem por meio de narrativas. Ao se constituírem instauram lugares, ideias, direções. Entendo por narrativas, seguindo a direção de Bolívar (2002) la cualidad estructurada de la experiencia entendida y vista como un relato; por otro (como enfoque de investigación), las pautas y formas de construir sentido, a partir de acciones temporales personales, por medio de la descripción y análisis de los datos biográficos (p.5). A história oral, segundo alguns aspectos que apresentei, se constitui como uma fundamentação teórico-metodológica desse trabalho e chamamos atenção para essas três características que anunciamos anteriormente: a intenção de produzir fontes históricas, a elaboração de textualizações a partir de situações de entrevistas, que se caracterizam como narrativas; e a construção de outras narrativas. Esses são aspectos de meu interesse nesse trabalho e penso que agora posso apresentar minhas ideias e direções, visto que os lugares de onde falo, pelo menos por enquanto, estão delineados. Ideias e Direções Em meio a essas considerações expostas anteriormente, tenho o propósito de produzir possíveis legitimidades para a formação matemática de professores de matemática em cursos de Licenciatura em Matemática. Ao me colocar a produzir possíveis legitimidades, construo crenças-afirmações junto com justificações na direção de um interlocutor que acredito compartilharia as coisas que falo. Nessa produção não quero dizer que os argumentos que construí são os verdadeiros argumentos que devem ser os balizadores da estrutura dos cursos de Licenciatura em Matemática, nem mesmo são os únicos para se pensar uma formação 27� � matemática na Licenciatura. As legitimidades, os modos legítimos de produzir significado desse trabalho são os que consegui elaborar nessa investigação. São alguns, e poderiam ser outros também. Não estou analisando o que educadores matemáticos e matemáticos dizem, no sentido de apresentar um conjunto de categorias, construídas em um processo recursivo a partes de unidades, que apresentam um olhar sobre essas falas. Também não estou primeiramente me fundamentando em teorias para, a partir delas, analisar como se configura o que meus entrevistados dizem. Estou produzindo textos que produzem possíveis legitimidades. Falo em direções nas quais parece ser plausível produzir discursos sobre a formação matemática de professores de matemática. Essa produção se faz a partir de alguns movimentos de teorização e estes constituem o trabalho. Eu constituo meu mundo repetindo, copiando, plagiando todos os livros, artigos, teses e dissertações que li. Meu mundo real é tão ficcional quanto se queira, meu mundo ficcional é tão real quanto se possa imaginar. Minha experiência institui palavras e meus textos constituem lugares, ideias e direções para possíveis formações matemáticas de professores de matemática. Como disse o psicanalista Contardo Calligaris6, /.../ nossa arte narrativa se confunde com nossa capacidade de viver. Nossa identidade é narrativa, ou seja, nossa experiência não descreve, não reflete, mas institui, cria os lugares de quem dança conosco e nosso lugar na dança. ������������������������������������������������������������ 6 Palestra realizada nos Seminários Fronteiras do pensamento. Acesso em 27/02/2011. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=_pQMAjULcTc 28� � Texto 2 Um curso de Licenciatura em Matemática teria as disciplinas de Matemática (Cálculo, Álgebra, entre outras), partindo sempre de problemas, fazendo relações com a matemática escolar A primeira pergunta, Dona Lourdes, é que em muitos artigos, livros temos que o professor de matemática deve ter uma formação sólida em matemática. Como a senhora caracterizaria essa formação sólida? Ou seja, o que é para a senhora ter uma formação sólida em matemática? Para começar a responder a essa sua pergunta posso dar um exemplo? Vamos pegar um professor que trabalhou, com crianças de 5° ano, os processos de adicionar, subtrair, multiplicar e dividir, com números naturais e um pouquinho com números racionais. No entanto, foi difícil para a criança entender o processo de divisão da maneira como o professor ensinou. Por esse motivo, a grande queixa dos professores do 5º ano é que os alunos chegam até eles sem saber dividir. Mas se os alunos não sabem, que os professores parem quinze minutos e os ensinem. Não adianta se queixar, pois se eles vieram sem saber, vão continuar não sabendo, então a única alternativa seria ensinar. Mas como ensinar? Outro dia no GTERP – Grupo de Trabalho e Estudos em Resolução de Problemas - aconteceu uma coisa interessante. Um aluno da graduação veio até nós para saber sobre a Resolução de Problemas. No decorrer do encontro, eu pedi que ele fosse à lousa e disse o seguinte: Uma empresa faz balas e doces. Pediram a essa empresa que desse balas para 5 instituições de crianças carentes. Deram 7548 balas para serem divididas entre 5 instituições, que podemos chamar de A, B, C, D, E. Pergunto: Quantas balas cada instituição ganharia? Vamos dizer que você tivesse posto esse problema para as crianças que já soubessem dividir. Então o rapaz imediatamente e fez: 29� � Mas o que significa isso? Perguntei a ele. Você está dividindo um número por um número. Não. Isso aqui são balas, disse o aluno. Então escreva que são balas. Aqui o que são? São instituições. Não, mas a gente nunca faz divisão assim, disse o aluno. Então vamos fazer assim. Vamos dizer que você tivesse algum lugar amplo e jogasse essas balas todas no chão e que as crianças começassem a repartir as balar as para A, B, C, D, E, uma a uma, uma, uma, e, uma. Daí um mais espertinho vai dizer: nossa, mas dando de uma em uma, quando vamos acabar? Outro diz: então dá 10 para cada um. Dez, Dez, Dez, Dez, e, Dez. Em vez de cinco cada vez, tira cinquenta. Mas um outro que já sabe contar melhor, que é aluno do 5º ano diz: você vai dar 100 para cada um: 100, 100, 100, 100, 100. Você esta dando 500 balas em cada rodada. E pode dar mais? Pode. Tem 7000. Vamos dar 1000, 1000, 1000, 1000, 1000. Então eles fizeram assim. Eles iriam ver em milhares, em centenas, dezenas e unidades. No instante que eles dessem 1000 para cada, um ele já teria gasto 5000, pois com 2000 que sobraram não dá mais para dar milhar, então vão ficar ainda 2548 balas e você trabalha com a criança que já sabe contar quantas centenas tem-se aqui. Em cada milhar, quantas centenas temos? Vai perguntando e ele vai ver que ele pode dar 500 para cada um, 5 centenas. Gastou 2500, então sobraram 48 unidades. Logo, não dá para dar uma dezena para cada um. Então vai dar 0, 0, 0, 0 dezenas, sobraram 48 unidades. Dessas 48 unidades dá para dar quanto a cada instituição? Uma, duas, três, nove para cada um, pois 9x5=45 e sobraram ainda três balas. Deixe que a criança faça. Ela perceberia que, na hora que for fazer essa conta, vai ter unidade, dezena, centena e milhar. Então o maior número que se pode ter aqui nesse quociente é milhar e se der, para cada uma das instituições, um milhar gastaria 5 milhares e sobrariam 2548 balas, como se pode ver na ilustração abaixo.Outra dificuldade é discutir o zero intercalado. 30� � Diante do resultado obtido pode-se perguntar, mas o que significa isso? 1509 é um número puro? Não, a resposta é 1509 balas por instituição. Essa é uma grandeza mais do que extensiva, ela é intensiva. Então, pode-se trabalhar com medida, com ideias novas, com a operação da divisão. Não é preciso que no problema se mostre. Não precisa ser um problema complicado quando o conceito importante que se pretende construir é o da divisão. Será que é muito difícil, para um pedagogo, entender isso? Como diz o Pólya1: pessoas que odeiam matemática passam para as crianças um ódio ainda maior por essa matéria. No fim do século XIX, começo do século XX, começou-se a falar sobre Educação Matemática e Felix Klein foi reconhecido como o “Pai da Educação Matemática”. Olhando para seu questionamento, a respeito da formação sólida que um professor de matemática deve ter em matemática, sou suspeita. Sou matemática por formação e somente nos últimos anos me dediquei exclusivamente à Educação Matemática. Assim, que discurso posso ter a esse respeito? Quando eu falo de um conhecimento sólido, não estou dizendo que ele precise dominar Geometria Diferencial ou Álgebra Multilinear2, mas seria bom se ele aprendesse um “pouquinho” de Cálculo Diferencial Integral, porque, na hora em que se está falando dos números, especialmente na hora de falar sobre os racionais, em que momento o professor foi levado a perceber a diferença entre frações e razões? Ao pretender trabalhar com números, desde os naturais até os complexos, na escolaridade básica do professor, o que é que se exige dele? ������������������������������������������������������������ 1 George Polya foi um matemático húngaro (1887 – 1985). Escreveu o livro A arte de resolver problemas que é conhecido em todo mundo. É considerado um dos precursores dessa metodologia para o ensino de matemática. 2 Tomadas como Áreas da Matemática.�� 31� � Trabalham-se os naturais, apresentam-se suas propriedades estruturais e nelas são destacadas as operações de adição e multiplicação sempre válidas. A subtração, numa primeira fase, é apresentada se o minuendo for maior ou igual ao subtraendo e a divisão somente se o dividendo for múltiplo do divisor. Para tornar a subtração sempre válida é preciso que se defina o negativo de um número. Dessa forma amplia-se o conjunto numérico N,dos naturais, para o conjunto numérico Z, dos números inteiros. Para tornar a divisão sempre válida passa-se para o conjunto Q dos números racionais e a reta numérica fica densa, desde que entre dois racionais sempre existe uma infinidade de racionais. Ao longo de sua escolaridade, os alunos devem aprender sobre o conjunto numérico dos irracionais (I) que, juntamente com os racionais, definem o conjunto dos números reais, RIQ �� , o que torna a reta numérica completa. Num lance mais avançado os alunos devem trabalhar o conjunto dos números complexos, C. E os professores de matemática como se comportam diante da necessidade de trabalhar ...QZN �� Assim, acredito que, definindo aritmética como o ramo da matemática que trabalha sobre números, relacionando-os, diferenciando operações e estabelecendo propriedades sobre eles, fazendo aplicações, é muito importante que os professores de matemática tenham em sua formação inicial e continuada, um forte domínio do padrão de conteúdos: números e operações, de modo a permitir que seus alunos entendam como são definidas essas operações e como as técnicas operatórias, correspondentes a elas, variam de conjunto para conjunto. Eu acho que isso é ter uma formação sólida em matemática, trabalhando matematicamente. O professor precisa entender o que esta fazendo. Precisa não só saber, não só ter destreza nas técnicas operatórias, precisa saber justificar o que faz e mostrar a seus alunos a beleza existente na matemática. Para uma disciplina de um programa de Pós-Graduação, pediram-me que trabalhasse sobre dificuldades encontradas por professores de matemática em suas salas de aula. Tópicos regulares do currículo de matemática ao longo do desenvolvimento da matemática no Ensino Básico como, por exemplo, divisibilidade, diferentes personalidades do número racional, fatoração numérica e algébrica, trigonometria, noções de matemática discreta e suas aplicações e mais outras. 32� � Então, considero que ter uma formação sólida em matemática é importante para o professor de matemática, tanto para ele como professor quanto para seu aluno que, como co-construtor de seu próprio conhecimento, sob a guia e direção de um professor bem formado, aprecie o novo conhecimento matemático que está sendo construído, em novos conceitos e novos conteúdos. O que nos interessa é ensinar, aprender, avaliar matemática, através da resolução de problemas. Esse, através, sendo entendido ao longo da resolução de um problema. Há três maneiras de ver a Resolução de Problemas: sobre: é o Polya, é teorizar sobre Resolução de Problemas; para: é ensinar matemática para depois resolver problemas. (essa é a forma mais usual, é como você e eu aprendemos). O professor ensina, dá uma definição, dá um exemplo, quando muito um contra exemplo, define propriedades depois pede para aplicar esse conhecimento construído pelo professor de um problema; através: ensinar matemática enquanto você está resolvendo um problema, ao longo da resolução, através da resolução. Dona Lourdes, vamos supor que a senhora seja escalada para contratar um professor que tenha essa formação sólida em matemática. Que características a senhora buscaria nesse profissional? “Segundo Van de Walle (2001), professores de matemática verdadeiramente eficientes, devem envolver, em seu trabalho, quatro componentes básicos: (1) a valorização da disciplina Matemática em si mesma – o que significa “fazer matemática”; (2) a compreensão de como os estudantes aprendem e constroem idéias; (3) a habilidade em planejar e selecionar tarefas de modo que os estudantes aprendam matemática num ambiente de resolução de problemas; (4) a habilidade em integrar a avaliação ao processo para aumentar a aprendizagem e aprimorar, no dia-a-dia, o ensino”3. Que características então deve ter um professor que possui essa formação sólida em matemática? Que saiba trabalhar com resolução de problemas. Eu não posso admitir que um professor tenha uma formação sólida e não saiba trabalhar com resolução de problemas. ������������������������������������������������������������ 3�Citação do artigo Ensinando Matemática na aula através da resolução de problemas de autoria de Norma S. G. Allevato e Lourdes R. Onuchic, publicado no Boletim GEPEM nº 55, Jul-Dez, 2009, p. 139. 33� � Há com frequencia professores que se sentem tentados a dizer as respostas para os alunos. Durante a década de 80 do século XX, muitos recursos em resolução de problemas foram desenvolvidos, visando ao trabalho de sala de aula, na forma de coleções de problemas, listas de estratégias, sugestões de atividades e orientações para avaliar o desempenho em resolução de problemas. Muito desse material passou a ajudar os professores a fazer da resolução de problemas o ponto central de seu trabalho. Entretanto, devido à discordância entre as diferentes concepções que pessoas e grupos tinham sobre o significado de resolução de problemas, o trabalho da década de 80 não chegou a bom termo. Schroeder e Lester (1989)4 apresentam três caminhos diferentes de abordar resolução de problemas que ajudam a refletir sobre essas diferenças: teorizar sobre resolução de problemas; ensinar a resolver problemas; e ensinar matemática através da resolução de problemas. O professor que ensina sobre resolução de problemas procura ressaltar o modelo de Pólya ou alguma variação dele. Ao ensinar para resolver problemas, o professor se concentra na maneira como a matemática é ensinada e o quê dela pode ser aplicado na resolução de problemas rotineiros e não rotineiros. Nessa visão, a proposta essencial para aprender matemática era a de ser capaz de usá-la. Acabando a década de 80 com todas essas recomendações de ação, os pesquisadores passaram a questionar o ensino e o efeito de estratégias e modelos, e a discutir as perspectivas didático-pedagógicas da resolução de problemas. Ela passa a ser pensada como uma metodologia de ensino, como um ponto de partida e um meio de se ensinar matemática. “O Ensino-Aprendizagem-Avaliação de Matemática através da Resolução de Problemas é diferente daquele em que regras de “como fazer” são privilegiadas. Ele “reflete uma tendência de reação a caracterizações passadas como um conjunto de fatos, domínio de procedimentos algorítmicos ou um conhecimento a ser obtido por rotina ou por exercício mental (ONUCHIC, 1999, p. 203). Trata-se de um trabalho onde um problema é ponto de partida e orientação para a aprendizagem, e a construção do conhecimento far-se-á através de sua resolução. Professor e alunos, juntos, desenvolvem esse trabalho e a aprendizagem se realiza de ������������������������������������������������������������ 4� SCHOOEDER, T. L.; LESTER, J. F. K. Developing Understanding in Mathematics via Problem Solving. In: TRAFTON, P. R.; SHULTE, A.P. (eds).New Directions for Elementary School Mathematics. Reston, VA: NCTM, 1989. p. 31-42.� 34� � modo colaborativo em sala de aula (ALLEVATO, ONUCHIC, 2007; ONUCHIC; ALLEVATO, 2005)5”. “Não há formas rígidas para colocar em prática essa metodologia (SHIMIZU, 2003; KRULIK; RUDNICK, 2005; ONUCHIC; ALLEVATO, 2005; VAN DE WALLE; LOVIN, 2006). Uma nossa proposta atual consiste em organizar as atividades seguindo as seguintes etapas: 1) Preparação do problema - Selecionar um problema visando à construção de um novo conceito, princípio ou procedimento. Esse problema será chamado problema gerador. É bom ressaltar que o conteúdo matemático necessário para a resolução do problema não tenha ainda sido trabalhado em sala de aula 2) Leitura individual - Entregar uma cópia do problema para cada aluno e solicitar que seja feita sua leitura. 3) Leitura em conjunto - Formar grupos e solicitar nova leitura do problema, agora nos grupos. - Se houver dificuldade na leitura do texto, o próprio professor pode auxiliar os alunos, lendo-lhes o problema. - Se houver, no texto do problema, palavras desconhecidas para os alunos, surge um problema secundário. Busca-se uma forma de poder esclarecer as dúvidas e, se necessário, pode-se, com os alunos, consultar um dicionário. 4) Resolução do problema - De posse do problema, sem dúvidas quanto ao enunciado, os alunos, em seus grupos, num trabalho cooperativo e colaborativo, buscam resolvê-lo. Considerando os alunos como co-construtores da “matemática nova” que se quer abordar, o problema gerador é aquele que, ao longo de sua resolução, conduzirá os alunos para a construção do conteúdo planejado pelo professor para aquela aula. 5) Observar e incentivar – Nessa etapa o professor não tem mais o papel de transmissor do conhecimento. Enquanto os alunos, em grupo, buscam resolver o problema, o professor observa, analisa o comportamento dos alunos e estimula o trabalho colaborativo. Ainda, o professor como mediador leva os alunos a pensar, dando-lhes tempo e incentivando a troca de idéias entre eles. ������������������������������������������������������������ 5�(ALLEVATO, ONUCHIC, 2009, p. 139) � 35� � - O professor incentiva os alunos a utilizarem seus conhecimentos prévios e técnicas operatórias já conhecidas necessárias à resolução do problema proposto. Estimula-os a escolher diferentes caminhos (métodos) a partir dos próprios recursos de que dispõem. Entretanto, é necessário que o professor atenda os alunos em suas dificuldades, colocando-se como interventor e questionador. Acompanha suas explorações e ajuda-os, quando necessário, a resolver problemas secundários que podem surgir no decurso da resolução: notação; passagem da linguagem vernácula para a linguagem matemática; conceitos relacionados e técnicas operatórias; a fim de possibilitar a continuação do trabalho. 6) Registro das resoluções na lousa – Representantes dos grupos são convidados a registrar, na lousa, suas resoluções. Resoluções certas, erradas ou feitas por diferentes processos devem ser apresentadas para que todos os alunos as analisem e discutam. 7) Plenária – Para esta etapa são convidados todos os alunos para discutirem as diferentes resoluções registradas na lousa pelos colegas, para defenderem seus pontos de vista e esclarecerem suas dúvidas. O professor se coloca como guia e mediador das discussões, incentivando a participação ativa e efetiva de todos os alunos. Este é um momento bastante rico para a aprendizagem. 8) Busca do consenso – Após serem sanadas as dúvidas e analisadas as resoluções e soluções obtidas para o problema, o professor tenta, com toda a classe, chegar a um consenso sobre o resultado correto. 9) Formalização do conteúdo – Neste momento, denominado “formalização”, o professor registra na lousa uma apresentação “formal” – organizada e estruturada em linguagem matemática – padronizando os conceitos, os princípios e os procedimentos construídos através da resolução do problema, destacando as diferentes técnicas operatórias e as demonstrações das propriedades qualificadas sobre o assunto”6. Dona Lourdes, que matemática os professores de matemática da educação básica precisam saber? ������������������������������������������������������������ 6 ALLEVATO, ONUCHIC (2009, p. 140-141) � 36� � Eles precisam saber muito bem a matemática que eles vão ensinar. E como é que eles devem saber isso? Esse como é na Licenciatura. Agora, dizer que eles não precisam nada do que aprenderam de novo de matemática avançada, é estúpido. Porque eu preciso do Cálculo para falar da sequências, preciso saber se é um corpo, se é um anel, se é um ideal, na Álgebra. Preciso entender porque aquelas propriedades que eu uso devem ser válidas sempre, quando aquelas propriedades são demonstráveis e como são demonstradas, preciso até saber um pouco de topologia, sem dar essa palavra. A Licenciatura deveria fazer, na formação inicial do professores uma coisa que é diferente do que se faz no bacharelado. Ela teria que fazer ligação de cada disciplina da graduação com aquilo que o futuro professor vai ensinar na escola básica. A Licenciatura precisa dar capacidade de pensar e chegar a entender o que você não havia entendido antes. Dona Lourdes, na licenciatura em Matemática, os licenciandos cursam disciplinas como Cálculo Diferencial Integral, Geometria, Álgebra Linear, Estruturas Algébricas, Análise Real, entre outras, para terem uma formação matemática. Quais são as justificativas para esses cursos comporem a grade curricular do futuro professor de matemática que atuará na Educação Básica? Às vezes, o aluno apenas decora o que foi “ensinado” e não consegue ver ligação entre a matemática universitária e a matemática escolar, do Ensino Básico, que ele deverá trabalhar. Por exemplo, em Estruturas Algébricas que justificativas dar-se-ia para que elas serem trabalhadas na Licenciatura? Você pega o professor que vai falar sobre funções e ele não sabe que o conceito de função é o mesmo para todos os seus diferentes tipos, não sabe que dependendo de onde a variável se encontra, teríamos ora funções polinomiais, ora funções modulares, ora exponenciais ou logarítmicas, ou integráveis... Por que e para que eu aprendo polinômios? Porque as funções polinomiais são de melhor ajuste, porque elas têm todas as boas características, é limitada, tem limite, é diferenciável, contínua e integrável em todos os pontos. O que defendo é que se deve trabalhar, na graduação, a matemática avançada embora na Licenciatura em especial, o professor fosse um educador capaz de fazer a ligação de sua disciplina com ideias existentes na educação básica. Isso tornaria mais fácil aos estudantes da Licenciatura, futuros professores do Ensino Fundamental e Médio, justificar inúmeras situações vividas em sala de aula. 37� � Disciplinas como Álgebra Linear, Cálculo Diferencial e Integral, Estruturas Algébricas, eu as acho fundamentais. Se acompanhar na história encontra assim. Até bem pouco tempo atrás para se fazer matemática, tinha-se que se conhecer Aritmética, trabalhar com números, depois a associaram à Geometria. Aritmética evoluiu para a Álgebra. A Álgebra ligada a Geometria levou à criação da Geometria Analítica. A partir dessas áreas integrou-se ao Cálculo, que está mantendo até como Matemática Avançada. Com a tecnologia entrando começou-se a mostrar algo recente para nós, pois nos formamos dentro da matemática contínua, que é altamente demonstrativa, e que existe o conhecimento acumulativo. Essa é a matemática dos conjuntos contínuos. Hoje se fala bastante da Matemática Discreta como a Matemática do nosso tempo. O ramo da Matemática conhecido como Matemática Discreta tem crescido rapidamente em proeminência nas últimas décadas. Esse crescimento é devido à grande parte as muitas aplicações de seus princípios em negócios e suas ligações com as ciências computacionais. Os teoremas e as estratégias de resoluções de problemas centrais da matemática discreta combinadas com o crescimento do poder computacional dos computadores têm aberto novas áreas de investigação e de aplicação. Entretanto, os cidadãos e também muitos professores de matemática nunca ouviram falar em matemática discreta. A matemática contínua é bem ligada a situações cujo objetivo principal é a medida de uma quantidade. Nas situações de matemática discreta o foco esta em determinar uma conta. Embora, se possa colocar os dois ramos da matemática (continua e discreta) em competição face a face, a realidade mostra que as duas abordagens se complementam nas aplicações do mundo real. Portanto, considero uma falha na Licenciatura não abordarem o trabalho com Matemática Discreta, uma vez que análise combinatória, estatística, probabilidade, contagem, teoria dos grafos, jogos envolvem situações problemas da vida real. Esse trabalho deveria ser feito não só na universidade, mas em todos os níveis de escolaridade. Dona Lourdes, vou ler para senhora um texto aqui: Vou apresentar um exemplo de um cara que, seguramente, não sabia nada de estruturas algébricas, de análise com épsilons e deltas, não sabia nada de conjuntos. Quando digo nada, quero dizer que ele seria reprovado em qualquer primeira prova de teoria dos conjuntos, qualquer primeira prova de estruturas, qualquer primeira prova de calculo. Entretanto, ele era um excelente resolvedor de problemas, excelente formulador de problemas, hábil e 38� � fluente em aplicações da Matemática em várias áreas e com certo domínio da Matemática. Eu falo do Euler. O que a senhora acha disso? Como você justifica essa formação sólida e essas disciplinas de conteúdo matemático nas licenciaturas? Euler existiu antes de fazer todas essas sistematizações. Se ele soubesse, tudo poderia ser diferente. Assim não dá. Ele conseguiu fazer essas coisas porque ele é um dos 5% diferentes da população. Agora, tem-se a tecnologia a dispor de todos e digo que muitas vezes ela não me serve. Quando eu preciso fazer uma coisa mais elaborada peço a um aluno para me ajudar e, por isso, não me preocupo em adquirir ter esse conhecimento. Mas seria bom se eu soubesse trabalhar com a tecnologia. Então se Euler não sabia alguma coisa, deve-se pensar na época dele, ver o que ele fez, a que ele se dedicou, em que área ele trabalhava. A ideia aqui, Dona Lourdes, é fazer um contraponto para colocar em suspensão a formação matemática que se tem hoje. Porque assim, como se diz: Euler era um excelente resolvedor de problemas, que é uma primeira qualidade para ser um bom professor, um excelente formulador. Veja ele era um excelente formulador de problemas. Ele sabia descobrir e criar problemas. Agora você vê que para a formação de professores, é preciso que se tenha uma formação matemática acadêmica. O professor precisa saber o porquê das ideias introdutórias do Cálculo quando vai ensinar o conjunto dos números reais. Esse conjunto que é dado pelos números racionais e irracionais. Você deve ter percebido que determinados conceitos de Teoria dos Números têm relações com a matemática escolar se os professores tiverem aprendido em um curso bem estruturado na faculdade. Por exemplo, logaritmos no Ensino Médio, como função inversa da função exponencial, é diferente do que se aprende na graduação quando o logaritmo é trabalhado como uma integral. Esse tipo de formação seria trabalhada com os professores, acredito, deveria ser diferente. Dona Lourdes, eu vou colocar duas afirmações para senhora, uma do Felix Klein, de 1908, e outra da Anne Watson, de 2008. Ele fala assim: [...] Por muito tempo [...] os homens da universidade preocuparam-se exclusivamente com as suas ciências, sem considerarem as necessidades das escolas, nem mesmo se preocupando em estabelecer uma conexão com a Matemática escolar. Qual foi o resultado desta prática? O jovem universitário se encontrava, no início, confrontado com problemas que não 39� � sugeriam, de maneira nenhuma, as coisas com as quais ele tinha se ocupado na escola. Naturalmente, ele esquecia estas coisas rápida e completamente. Quando, ao fim de seus estudos, ele se tornava um professor, encontrava-se repentinamente na posição de ter que ensinar a tradicional matemática elementar da antiga e pedante maneira; e, uma vez que ele praticamente não era capaz, sem ajuda, de distinguir qualquer conexão entre esta tarefa e sua Matemática universitária, logo se acomodava ao que a tradição honrava, e seus estudos universitários permaneciam apenas uma lembrança mais ou menos agradável, que não tinha nenhuma influência sobre seu ensinar. Isso é o Felix Klein em 1908. Depois temos a Anne Watson, 2008, que ela vai dizer Matemática escolar como um tipo especial da matemática acadêmica. Ela afirma... Eu afirmo que a matemática escolar não é, e talvez nunca será, um subconjunto da reconhecida matemática acadêmica, pois ela tem diferentes justificativas, autoridades, formas de raciocínio, atividades centrais, propósitos e conceitos unificadores e, necessariamente que os recortes da atividade matemática se dão em diferentes maneiras daquelas da matemática acadêmica. Daí ela vai dizer: Eu entendo a matemática acadêmica por atividades que avançam o conhecimento matemático: as formas de engajamento, tipos de questões, padrões de argumentos que são aceitos como contribuinte para o cânone convencional da matemática pura e aplicada. Por matemática escolar, eu entendo as formas de engajamento na matemática em contextos formais de ensino para o iniciante, incluindo os graduandos, ou por aqueles que não se vêem como iniciantes, mas que tem a matemática impelida sobre eles. O que a senhora me diz sobre essas duas afirmações? A Afirmação da Anne Watson foi feita 100 anos depois da do Klein, então eu não posso comparar as duas coisas dizendo que esse falou menos e aquele falou mais. Felix Klein foi o primeiro que enfrentou banca de concurso, defendendo o ensino que os professores deveriam fazer. Nós não teremos bons investigadores, pesquisadores enquanto nós não fizermos os professores abrirem a cabeça dos alunos, já prevendo que a coisa ia crescer. Ele já dizia, como ele fala, na introdução do livro. Ele fala da aritmética, do cálculo com números naturais, uma extensão, a preocupação com as propriedades dos inteiros, números complexos, álgebra e análise. Então que vejo, é que para a época dele, 1908, ele foi um revolucionário que falava sobre o que os professores precisavam saber dizendo: Não vou lhes dar receitas, vocês vão usar suas cabeças para sentir como devem trabalhar com seus alunos. A outra colocação é de 2008. Sua cabeça é totalmente diferente. 40� � A intenção disso, Dona Lourdes, é explicitar uma possível diferença entre o que a gente estuda na universidade e o contexto escolar. Coloco essas duas afirmações para poder conversar sobre essa diferença. Anne Watson afirma que a matemática escolar não é, e talvez nunca será, um subconjunto da reconhecida matemática acadêmica. Ela diz porque ela tem diferentes justificativas, autoridades, formas de raciocínio, atividades centrais, propósitos e conceitos unificadores e, necessariamente que os recortes da atividade matemática se dão em diferentes maneiras daquelas da matemática acadêmica. Na matemática escolar uma atividade é a de resolver problemas, problemas ligados ao cotidiano e, na matemática acadêmica, o objetivo é produzir conhecimento matemático. De fato, para o professor em sala de aula, o objetivo da matemática acadêmica não é o de produzir conhecimento matemático. Na Lei de Diretrizes e Bases7 isso fica muito bem colocado. O curso de graduação em matemática apresenta duas vertentes: Bacharelado e a Licenciatura. O Bacharelado tem por função formar aqueles que deverão criar uma matemática nova. Já os egressos da Licenciatura, deverão ser professores da Educação Básica. Acredito que esses professores em formação não devem saber menos matemática do que o bacharel mas, como uma população diferente de estudantes, devem trabalhá-la de outra forma. Eles precisam trabalhá-la em um nível que vá formá-los professores, uma vez que estes se apresentarão como um guia condutor do conhecimento do aluno. Para mim, matemática escolar e matemática acadêmica não são coisas diferentes e o que diferencia é a forma de trabalhá-la. Quando, na sala de aula, desde o pré até o terceiro ano do Ensino Médio, é trabalhada a matemática escolar e o produto final é o mesmo, a aprendizagem dos alunos. Todos devem aprender números, começando com os naturais ampliando esses conjuntos numéricos até chegar, no terceiro ano do Ensino Médio, aos números complexos. Com a Álgebra e a Geometria, acontece a mesma coisa. Assim, para cada disciplina, os propósitos são os mesmos. Vejo que, na faculdade, é que aprendo a ler cientificamente, a ser reflexivo e, portanto, pesquisador. Na faculdade, vejo de uma maneira mais madura as coisas que deverão ser trabalhadas nas bases. Ela me dá um amadurecimento... Deveria dar. Entretanto, a mim me parece que nos faltam respeito, cultura, conhecimento, autoestima. Deveríamos pensar, sou professor e tenho orgulho de ser professor. Acredito, que muitas vezes, isso nos falta. ������������������������������������������������������������ 7�Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Matemática, Bacharelado e Licenciatura, 2002� 41� � Assim, um professor que vai dar Cálculo na Licenciatura e ensina esse tópico da mesma maneira que trabalha com o aluno da engenharia está errando. Da mesma forma, se o professor de matemática for para uma aula de oitava série “ensinar” equações do segundo grau e trabalhar apenas no nível de técnicas operatórias necessárias para levar adiante esse tópico erra também, pois falta com respeito daqueles alunos melhor preparados, para enfrentar a construção desse tema. Isso ocorre com uma certa frequencia em sala de aulas em nossas escolas.� Dona Lourdes, vamos para outro lado da pesquisa, a Inglaterra. Na Inglaterra, para ser professor, você precisa ter uma graduação (em qualquer área). É interessante, Dona Lourdes, que você entra no site e tem algumas chamadas: se você é um Economista, por exemplo, e quer ser professor de Matemática, olhe sua chance. Você faz um ano de um curso (Postgraduate Certification in Education, PGCE) e com isso você está apto a ser professor de matemática. Com isso, aparentemente, eles não têm problemas com esse tipo de formação (que não chega a ser o famoso 3 + 1). Até mesmo o Romulo conversou com uma amiga dele e ela disse: como assim a gente não tem problemas?! A gente tem sim. Mas aparentemente não é tão problemático quanto aqui. Por que essa formação lá funciona? Ou, aparentemente, funciona? O que a senhora pensa sobre isso? Isso funcionaria, mas nossa realidade é outra. Por exemplo, outro dia alguém me disse que estava passando na frente de um colégio em São Paulo e havia alguém na esquina dizendo: Quer dar aula de matemática? Quer dar aula de matemática? na rua. Há uma grande escassez de professor de matemática. Nossa realidade é estúpida, porque nem maus professores de matemática nós temos. Para física e matemática não há professores. Também outro dia estive com uma criança que me disse: agora já é o quarto professor de matemática que a gente está tendo neste ano, sai um entra outro. Os professores não aguentam os alunos e pedem, com frequencia, um atestado médico para tratamento. Saem esses professores de matemática e, na falta de outro, colocam o de história, de geografia, de artes, qualquer um para tapar o vazio da sala de aula, pois a criança não pode ficar sem aula. Então não se ensina. Nesse modelo de formação na Inglaterra, acho que se a pessoa está capacitada, ela pode dar aula. Não vejo problema. Eu acho que para a profissão de professor é nocivo, porque não vale a recíproca: um professor de matemática trabalhar em Economia. Além disso, é humilhante para um professor de matemática aceitar e trabalhar com outro profissional que não tem formação matemática. Então é diferente, porque nós, como já disse, o licenciado é diferente do bacharel, mas em meu ponto de 42� � vista, o licenciado tem objetivos até mais fortes do que o bacharel, porque ele precisa além de dominar as disciplinas da graduação, ele deve saber, de uma maneira diferenciada, a parte pedagógica, porque ele responde a duas perguntas: o que devo ensinar? E, como devo ensinar? Dona Lourdes, para fechar, se a senhora fosse uma ministra da educação ou se tivesse a oportunidade de montar uma estrutura de um curso de matemática, como seria ela? Qual seria, na sua opinião, a formação matemática do futuro professor de matemática? Daria todas as disciplinas da graduação, mas comum enfoque de um formador de professores de matemática, relacionando, sempre que possível, todas àquelas que são trabalhadas durante a escolaridade básica. Isso eu digo porque, como já disse, o professor deve saber como fazer os alunos construírem os conceitos, conteúdos e técnicas operatórias constituintes de um programa escolar. Para isso, é preciso que ele não só saiba desenvolver essa matemática, mas que saiba, com firmeza, justificar o que faz. Para isso ele deve se apoiar no quê de matemática ele “aprendeu” na graduação para, com garantias, justificar os passos dados. A partir disso, ele poderia responder à pergunta dos alunos: Professor, para que eu preciso saber disso? Partiria sempre de problemas. Seria uma estrutura colocando todas as disciplinas a partir de tipificações de problemas. Acredito que um curso estruturado dessa forma seria uma revolução que espero e desejo que seja feito há muito tempo. Este texto foi elaborado a partir de uma entrevista realizada com Dona Lourdes. Lourdes de la Rosa Onuchic possui graduação em Bacharelado e Licenciatura em Matemática pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras 43� � (1954), mestrado em Matemática pela Escola de Engenharia de São Carlos- USP (1971) e doutorado em Matemática pelo Instituto de Ciências Matemáticas de São Carlos-USP (1978). Nos últimos anos tem se dedicado ao trabalho de pesquisa em Educação Matemática atuando no programa de Pos Graduação de Educação Matemática da Unesp de Rio Claro. Grande parte de seus trabalhos são na de Resolução de Problemas. É líder do GETERP (Grupo de Estudos e Trabalhos em Resolução de Problemas). Faz parte do Grupo de Trabalho do Ensino Superior da Sociedade Brasileira de Educação Matemática. 44� � Texto 3 Eu acho que o curso de Licenciatura teria essas disciplinas com uma discussão da História da Matemática e muitas aplicações Eu não tenho me envolvido muito com o ensino da Matemática nos níveis Fundamental e Médio. Minha formação inicial foi em Engenharia Civil. Talvez por isso sempre me interessei muito pelas aplicações da Matemática. Quando fui fazer meu doutoramento na Universidade de New York, tive a sorte de ir para um lugar onde se fazia muita Matemática Aplicada. Isso se devia ao matemático alemão Richard Courant, que pertenceu, até a década de 1930, a um dos departamentos de matemática mais famosos da Alemanha, na universidade de Göttingen. Na década de 1930, Courant emigrou para os Estados Unidos e começou a estimular a vinda de matemáticos da Alemanha para lá, principalmente motivado pelas perseguições nazistas a cientistas de origem judaica. Contratado pela Universidade de New York ele criou o Institute of Mathematical Sciences (hoje chamado Courant Institute of Mathematical Sciences, em sua honra). Ele tinha uma orientação muito grande para as aplicações da matemática. No meu doutoramento, no final da década de 50, tive como professores muitos matemáticos alemães. Como eu já tinha estudado engenharia e gostava muito de aplicações de matemática, eu estava no lugar correto. Depois que voltei para o Brasil, fui o primeiro professor de matemática da Universidade de Brasília (UnB) que em 1962 estava sendo criada por Darcy Ribeiro. Nesse ano, eu estava no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) no Rio de Janeiro. Contactado por Mauricio Matos Peixoto e Leite Lopes, que então era responsável pela implantação dos cursos de Física na UnB, fui estimulado a ir a Brasília conversar com Darcy sobre a Matemática na UnB. Encontrei o Darcy Ribeiro numa sala do Ministério da Educação na Esplanada dos Ministérios, onde estava temporariamente 45� � a reitoria da UnB. Minha impressão de Darcy foi marcante... Ele foi uns dos grandes intelectuais brasileiros, tinha uma visão de universidade muito diferente da época, que ainda tinha uma tradição de catedrático e assistente. Às vezes um bom cientista, matemático, não podia fazer uma carreira dentro da universidade da época, porque tinha um catedrático, proprietário da cadeira para a vida toda. O Darcy, em 62, criou uma universidade em outros padrões, na qual não tinha catedrático. É um modelo de universidade como hoje. Eu acho que a reforma de 1967 foi na direção da concepção da Universidade de Brasília de 1962. Infelizmente, o projeto de UnB não durou muito, pois com o golpe militar de 64 e a universidade foi muito visada. A UnB foi uma universidade criada no governo de João Goulart com um pessoal de esquerda como o próprio Darcy Ribeiro. Uns dos mais proeminentes professores, na área de arquitetura, quando eu estive lá, era Oscar Niemeyer. Daí, em 1965, ganhei uma bolsa do Guggenheim, fui para os Estados Unidos e fiquei lá até 1971. Depois voltei novamente para a Universidade de Brasília. Talvez, por minha formação no curso de graduação em Engenharia e posterior pós-graduação com bastante exposição as aplicações de matemática, eu sempre olhei a matemática como uma área na qual é muito importante suas inter-relações com outras áreas do conhecimento humano, as outras ciências como Física, Biologia, Química, etc.. Você olha meu livro de equações diferenciais aplicadas e lá tem um monte de aplicações à mecânica, e outras ciências. Eu acho que isso dá mais vida ao ensino e motiva mais os estudantes. A pesquisa em matemática é infinita. Você lê um artigo e pode-se perguntar: e se eu modificar essa hipótese aqui, o que acontece? Então começa um desenvolvimento da matemática que não é muito salutar, que é o daquela matemática que generaliza por generalizar, para tirar algumas hipóteses, demonstrar mais alguma coisa. Eu acho que não seja por ai. Eu acho que quando você pega um problema e diz: essa equação resolve o problema de uma membrana vibrante ou de uma placa, isso dá muita vida para a matemática. Eu tenho me envolvido muito no ensino da matemática visando sua inter-relação com as outras áreas. Em nível universitário isso é muito importante. Eu sempre batalho em nível de departamento por isso, até porque muitos dizem: essa aplicação deixa para lá, deixa para o departamento de física. Eu acho que não. Eu acho que no curso de matemática é preciso dar aplicações, mostrar a riqueza da matemática, misturar a estrutura matemática com suas aplicações. Claro que tem um limite também, pois não vai ad infinitum. Eu acho 46� � importante que o professor no curso da licenciatura seja exposto a essa matemática com relações com outras áreas. Professor Djairo, do que estudamos, principalmente para a minha tese, lemos que em muitos artigos, livros, que o professor de matemática deve ter uma formação sólida em matemática. Como você caracterizaria essa formação sólida? Ou seja, o que é para você ter uma formação sólida em matemática, pensando no professor que vai atuar no Ensino Fundamental e Médio? Olha, eu acho que uma das principais áreas nesse nível é a Geometria. Eu acho que ela é muito rica porque tem uma visualização. Para o menino que está no Ensino Fundamental, tem muito mais apelo você traçar uma figura, discutir propriedades do triângulo, do que discutir uma equação. É claro que a equação é extremamente importante para ele resolver os problemas, mas eu acho que, nesse nível, eu daria muita ênfase à parte de Geometria e à Algébrica que vem junto, mas sempre com apelo à visualização. Mas, como eu digo, eu não tenho muita experiência! Você falou em uma formação sólida, e eu acho essencial, muito mais importante do que a pedagogia. Tem havido muito debate entre conteúdo, didática e pedagogia. Claro que didática é importante, mas eu acho mais importante que o professor tenha uma formação sólida, que seja seguro no que está falando. Agora, não pode ser antipático quando fala. O problema é que quando a gente conversa com uma pessoa de uma certa idade e essa lhe pergunta: O que você faz? e respondemos: Eu sou matemático, a pessoa diz: Ah, de matemática eu nunca gostei, eu nunca entendi. Eu acho que isso é, em muito, uma conseqüência do ensino. Os professores não têm um conhecimento muito firme e às vezes querem impressionar os alunos e, com isso, criam certa antipatia pela matemática. Eu acho que esse é um problema muito sério do ensino, e nessa parte básica, deficiência do professor. O que eu entendo por didática e pedagogia é simpatia. O professor tem que ser simpático. Claro que ele tem que cobrar dos alunos, mas ele não pode ser um chato. Se isso não acontece o aluno associa a matemática à chatice, por causa do professor. Nesse sentido, é que eu acho muito importante que o professor tenha uma formação muito sólida. Quando o senhor fala em formação sólida seria em Geometria ou também em outras áreas? 47� � Seria em Geometria e toda essa parte algébrica. É muito importante, pois muita parte dos problemas de Geometria nos leva para a Álgebra, para problemas de Álgebra. Então tem que estar acoplado. Agora, o apelo geométrico é muito bom, você dá o apelo geométrico e, depois, uma equação bem associada: perfeito. O senhor acha que num curso de licenciatura, trabalhando essas duas grandes áreas, o futuro professor teria uma formação sólida em matemática? O que poderia ser mais? É claro que tem a trigonometria, que é uma ferramenta extremamente importante para você resolver problemas e tudo. Eu acho que isso é importante. Tem uma coisa que eu gosto muito, a história da matemática. Mas não uma história de boatos. Por exemplo, pode-se falar em Arquimedes e perguntar: O que Arquimedes fez? A ênfase não está no fato de ele ter saído nu gritando “Eureka, Eureka!” [risos]. Pode-se até falar disso para chamar atenção, mas deve-se fazer um pouco das coisas que ele fez, o Método, por exemplo. Eu creio que a história é uma coisa interessante, pois é suave: você mostra que existiram pessoas no passado que trabalharam esses problemas. E ai você explica os problemas. Eu acho que associar muito o ensino com história é bom e que se o professor soubesse bastante história, em relação ao que um fulano fez, não à sua vida particular, seria interessante. Por exemplo, pega o Método, um dos trabalhos do Arquimedes, e vê ali o que ele fez. Tem umas coisas bacanas. Então você pode misturar isso no ensino e assim prender o aluno, porque há muitas coisas interessantes feitas por matemáticos do passado que às vezes despertam interesse. Por exemplo, eu estudei o meu Fundamental no interior do Ceará e não era um grande colégio. Mas o que eu agradeço muito é que lá em casa tinha uns livros do Malba Tahan. Então, antes dos meus 14 anos, eu já tinha lido O Homem que Calculava, a Matemática Pitoresca. São essas coisas que tornam a matemática agradável e que deveriam ser misturadas, e que o professor deveria saber para pod