UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO ANDRÉ LUIZ VALIM VIEIRA PACIFISMO E NÃO-VIOLÊNCIA: PENSAMENTO POLÍTICO E HUMANITÁRIO EM GENE SHARP MARÍLIA 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO ANDRÉ LUIZ VALIM VIEIRA PACIFISMO E NÃO-VIOLÊNCIA: PENSAMENTO POLÍTICO E HUMANITÁRIO EM GENE SHARP Tese apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Campus de Marília) como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de Pesquisa: Relações Internacionais e Desenvolvimento. Orientação: Prof. Dr. Rafael Salatini de Almeida. MARÍLIA 2020 FOLHA DE AVALIAÇÂO ANDRÉ LUIZ VALIM VIEIRA PACIFISMO E NÃO-VIOLÊNCIA: PENSAMENTO POLÍTICO E HUMANITÁRIO EM GENE SHARP Tese apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de Pesquisa: Relações Internacionais e Desenvolvimento. BANCA DE EXAME DE DEFESA Presidente: _________________________________________________________ Prof. Dr. Rafael Salatini de Almeida – UNESP/FFC (Orientador) 1° Examinador(a):____________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Cordeiro Pires – UNESP/FFC 2° Examinador(a):____________________________________________________ Prof. Dr. Tiago Vinícius André dos Santos – UEMS/Paranaíba 3° Examinador(a):____________________________________________________ Prof. Dr. Teófilo Marcelo de Ârea Leão Júnior – UNIVEM 4ºExaminador:_______________________________________________________ Prof. Dr. Roberto da Freiria Estevão – UNIVEM Suplente:___________________________________________________________ Prof. Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker – UNESP/FFC Suplente:___________________________________________________________ Prof. Dr.Gabriel Cunha Salum – (Faculdade da Alta Paulista) Suplente:___________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Gustavo Boiam Pancotti – Centro Universitário Toledo Marília /SP, 28 de fevereiro de 2020. AGRADECIMENTOS Primeiramente, ao Universo. À toda inteligência que rege a vida como um maestro comanda uma orquestra. Na figura de Deus, este ser ou entidade, a que não ousamos ainda entender, compreender, senão... apenas, agradecer! A todas as entidades espirituais, elementais da natureza, seres dimensionais, orixás e guias, anjos e protetores. Gratidão à vida, a todos os trabalhadores da luz, guias e mestres, responsáveis pela nossa encarnação e fontes de infindável amor e proteção! Ao grande oceano Mahatma Gandhi pelo acompanhando destes humildes passos... A todos, eterna GRATIDÃO! Às minhas filhas: Lavínia Silva Vieira; e, Anahí Silva Vieira, minhas fontes de PAZ e do verdadeiro AMOR. Com vocês – todos os dias – eu (re)aprendo o sentido da vida e da existência. Como o sorriso e a alegria são necessários todos os dias para nós enquanto seres afetivos: como ar e a água para todos os seres vivos. Entendi o significado de intensidade e de SAUDADE e como as lágrimas reavivam a ALMA e possibilitam FORÇA e CORAGEM para continuar. Aos meus pais: Nerli e Maria Inês. A todos os meus avós e avôs, em representação de todos os nossos antepassados crísticos e luminares. Reconheço em vocês a semente da ESPERANÇA e do ciclo da VIDA. Dou graças aos céus por serem / estarem presentes – fisicamente ou espiritualmente – em minha vida. Muitas vezes tivemos lutas e conflitos, todavia, a verdade e o carinho sempre prevaleceram. À Livia, Eduardo, Laura e demais familiares... Meus agradecimentos ao Prof. Dr. Rafael Salatini: pela orientação, pela amizade, pelo respeito e por confiar em nosso projeto e em nossa capacidade. Durante estes anos de discussões e conversas sobre a vida, o DIREITO, a POLÍTICA, o país, a academia e a universidade pública; pude reconhecer sua humildade e brilhantismo, sabedoria e amor pela docência que abraço como lição e meta. O resultado desse trabalho não seria possível sem a gratificante liberdade intelectual oportunizada pelo nobre orientador. Muito obrigado! Aos Professores Doutores Teófilo Marcelo de Ârea Leão Junior e José Geraldo Alberto Bertoncini Poker pelas generosas contribuições quando da banca de qualificação. Ao Professor Doutor Tiago Vinícius dos Santos pela amizade desde nosso início como docentes e nas lutas diárias; sempre trazendo luz, inspiração e muito aprendizado. Ao Prof. Dr. Marcos Cordeiro Pires e Prof. Dr. Roberto da Freiria Estevão aceitarem a tarefa de participar da banca de defesa e contribuir com nosso aprendizado, que nunca cessa. Aos amigos do “Beer Group” por serem nossa família rio-pretense. Fomos acolhidos, cuidados, amados. Proporcionam-nos a alegria, as RISADAS e a LEVEZA para as tarefas do dia-a-dia e para os momentos de maior felicidade e descontração. À Mariana Giaretta Mathias pela sua amizade, pelo seu AMOR, pelos seus carinhos e cuidados. Por representar sempre minha melhor e mais “perfect” companhia e afeto. Por me proporcionar a paz necessária e suficiente para cumprir nossos propósitos, construir projetos e planejamentos, realizar nossos SONHOS e do mais simples, sincero e bonito mostrar o que é a FELICIDADE! “Te amarei de janeiro a janeiro, até o mundo acabar...” “Resistência pacífica, mas não passiva contra as injustiças” “A não-violência é a mais poderosa que todos os armamentos no mundo. É a mais forte que a mais forte arma destruidora inventada pela ingenuidade do Homem” “A não-violência nunca deve ser usada como um escudo para a covardia. Ela é uma arma para os bravos” MOHANDAS KARAMCHAND GANDHI RESUMO O presente projeto procura estudar e debater o tema relacionado à antinomia permanente entre, de um lado, a paz e pacifismo, e, de outro, a guerra e a violência. Assim, partir da doutrina da não-violência em face do conflito político permeado pelos Estados contra seus cidadãos, mesmo perante organizações ditas democráticas, procuraremos compreender os temas da paz e da não violência e sua conformação nos escritos de Gene Sharp. Assim, levantando-se a discussão acerca de um direito humano de resistência não-violenta, tomando por referência a doutrina da desobediência civil e culminando em um direito humano de todos os povos de revolução, todavia, realizável por meios pacíficos. As práticas filosóficas da não- violência, propostas por Gandhi e outros pacifistas, se transformam em teoria política de resistência e em ação coletiva de confrontação e de lutas. Porém, enquanto toda revolução pressupõe violência e uso da força, a prática da não-violência como referencial de um agir político, na esfera nacional e internacional, se mostra como grande potencial de adesões e de conquistas, obtendo cada vez mais o apoio social. Somente se entendendo os estudos políticos e humanitários relacionados à paz e ao pacifismo, conseguiremos mensurar o alcance das teorias e doutrinas de não-violência. Estes se mostram fundamentais para a discussão e análise dos métodos de luta e revolução não-violentos propostos por Gene Sharp. O estudo e a proposta tomam por ponto de convergência desses institutos do pacifismo e da não-violência como meio de ação social na esfera geopolítica internacional, demonstrado nas obras e nos escritos de Immanel Kant, Norberto Bobbio, Rafael Salatini, Hannah Arendt, Johan Galtung, Jean-Marie Muller, entre outros, para, finalmente, compreender o pensamento de Gene Sharp e seus métodos políticos e de ação não-violentos. Palavras-chave: paz; pacifismo; direito de resistência; desobediência civil; não-violência; Gene Sharp. ABSTRACT This project seeks to study and debate the theme related to the permanent antinomy between peace and pacifism, and on the other hand war and violence. Thus, from the doctrine of nonviolence in the face of political conflict permeated by states against their citizens, even before so-called democratic organizations, we will seek to understand the themes of peace and nonviolence and their conformation to the writings of Gene Sharp. Thus, raising the discussion about a human right of nonviolent resistance by reference to the doctrine of civil disobedience and culminating in a human right of all peoples of revolution, yet achievable by peaceful means. The philosophical practices of nonviolence proposed by Gandhi and other pacifists become political theory of resistance and collective action of confrontation and struggle. However, while every revolution presupposes violence and the use of force, the practice of nonviolence as a reference for political action and at the national and international levels is shown to be a great potential for adhesions and achievements, increasingly obtaining social support. Only by understanding the political and humanitarian studies related to peace and pacifism can we measure the extent of nonviolence theories and doctrines. These are fundamental for the discussion and analysis of the methods of nonviolent struggle and revolution proposed by Gene Sharp. The study and proposal take as a point of convergence of these institutes of pacifism and nonviolence as a means of social action in the international geopolitical sphere demonstrated in the works and writings of Immanuel Kant, Norberto Bobbio, Rafael Salatini, Hannah Arendt, Johan Galtung, Jean-Marie Muller, among others; to finally understand Gene Sharp's thinking and his nonviolent political and action methods. Keys-word: peace; pacifism; right of resistance; civil desobedience; nonviolent; Gene Sharp. RIASUNTO Questo progetto mira a studiare e discutere il tema relativo all'antinomia permanente tra pace e pacifismo, e d'altra parte guerra e violenza. Quindi, dalla dottrina della nonviolenza di fronte al conflitto politico permeato dagli stati contro i loro cittadini, anche prima delle cosiddette organizzazioni democratiche, cercheremo di comprendere i temi della pace e della nonviolenza e della loro conformazione agli scritti di Gene Sharp. Quindi, sollevando la discussione su un diritto umano di resistenza non violenta facendo riferimento alla dottrina della disobbedienza civile e culminando in un diritto umano di tutti i popoli della rivoluzione, eppure raggiungibile con mezzi pacifici. Le pratiche filosofiche di nonviolenza proposte da Gandhi e altri pacifisti diventano teoria politica di resistenza e azione collettiva di confronto e lotta. Tuttavia, mentre ogni rivoluzione presuppone la violenza e l'uso della forza, la pratica della nonviolenza come riferimento per l'azione politica e a livello nazionale e internazionale ha dimostrato di essere un grande potenziale per adesioni e risultati, ottenendo sempre più supporto sociale. Solo comprendendo gli studi politici e umanitari relativi alla pace e al pacifismo possiamo misurare l'estensione delle teorie e delle dottrine della non violenza. Questi sono fondamentali per la discussione e l'analisi dei metodi di lotta e violenza nonviolenta proposti da Gene Sharp. Lo studio e la proposta prendono come punto di convergenza questi istituti di pacifismo e nonviolenza come mezzo di azione sociale nella sfera geopolitica internazionale dimostrata nelle opere e negli scritti di Immanuel Kant, Norberto Bobbio, Rafael Salatini, Hannah Arendt, Johan Galtung, Jean-Marie Muller, tra gli altri; per capire finalmente il pensiero di Gene Sharp e i suoi metodi politici e di azione non violenti. Parolechiave: pace; pacifismo; diritto di resistenza; disobbedienza civile; nonviolenza; Gene Sharp. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14 CAPÍTULO 1: PACIFISMO ................................................................................................. 22 1.1 Sobre a paz e o pacifismo ................................................................................................... 22 1.2 A guerra e a paz .................................................................................................................. 31 1.3 O direito humano e fundamental à paz .............................................................................. 38 1.4 Conceito e formas de Pacifismo ........................................................................................ 46 1.5 A paz perpétua de Kant ...................................................................................................... 52 1.6 Pacifismo jurídico e político ............................................................................................... 58 CAPÍTULO 2: NÃO-VIOLÊNCIA ...................................................................................... 64 2.1 Sobre a violência ............................................................................................................... 64 2.2 A Violência do Estado ou institucionalizada ..................................................................... 70 2.3 Existe alternativa à violência? ........................................................................................... 76 2.4 Os fundamentos da não-violência ...................................................................................... 80 2.5 O direito de resistência ...................................................................................................... 84 2.6 A desobediência civil ......................................................................................................... 92 CAPÍTULO 3: PACIFISMO E NÃO-VIOLÊNCIA EM GENE SHARP ..................... 102 3.1. Doutrina e teoria da ação não-violenta ........................................................................... 102 3.1.1 Gene Sharp entre outros pensadores ........................................................................ 102 3.1.2 Não-violência para Sharp ........................................................................................ 106 3.2 O poder político da luta não-violenta ............................................................................... 108 3.2.1 Poder monolítico ou pluralístico .............................................................................. 110 3.2.2 Fontes do poder político ........................................................................................... 112 3.2.3 Obediência e Cooperação ........................................................................................ 117 3.2.4 Obediência e Consentimento ................................................................................... 120 3.3 A Libertação pela Não-violência ...................................................................................... 123 3.3.1 Libertação nas Democracias .................................................................................... 123 3.3.2 Libertação das Ditaduras ........................................................................................ 129 3.4 Pensamento Político e Humanitário ................................................................................. 131 3.4.1 Não-violência em luta política ................................................................................. 131 3.4.2 Os loci de poder e a atomização social ................................................................... 133 3.4.3 O jiu-jitsu Político ................................................................................................... 137 3.5 Os Métodos não-violentos ................................................................................................ 140 3.5.1 Lutas Não-violentas: da Teoria à Prática ............................................................ 140 3.5.2 Métodos de Protesto e Persuasão ........................................................................ 142 3.5.3 Métodos de Não-cooperação ................................................................................. 144 3.5.4 Intervenções Não-violentas ................................................................................... 148 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 150 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 164 14 INTRODUÇÃO O presente trabalho como tese de doutoramento tem por objetivos gerais: o estudo das doutrinas e fundamentos do pacifismo e das teorias políticas acerca da não-violência. Dessa forma, imprescindível a estruturação de conceitos e teorias sobre a paz, a desobediência civil, o direito de resistência e a objeção de consciência, assim como as ações de reivindicação de direitos que se utilizam de formas pacíficas ou não-violentas de ação. Como objetivo específico, procuraremos compreender a natureza e a origem da luta não-violenta e seu potencial como poder legítimo para resistências e revoluções, tendo por referencial metodológico e objeto de pesquisa as teses e justificações divulgadas pelo cientista político estadunidense Gene Sharp (1928-2018). O uso da palavra “revolução” não significa, contudo, filiar-nos a uma outra das várias concepções de “revolução”. Ao contrário, ficaremos restritos à ideia de “revolução” tão-somente como a modificação dos regimes políticos e ditaduras visando à conquista da democracia. Considerando, todavia, a existência de mais de dez obras, textos, artigos, etc. sharpeanos, sendo muitos deles não publicadas, nem traduzidos nem disponibilizados ao público e aos acadêmicos brasileiros, precisamos delimitar nossa pesquisa a apenas a algumas obras, classificadas como mais relevantes para entender o pensamento e as ideias de Sharp. Não que as demais não sejam importantes ou não acrescentem contribuições ao debate e ao conhecimento da teoria e das ações não-violentas. Ocorre apenas que essas obras selecionadas por nós como objeto de análise possibilitam um conhecimento geral e primário dos elementos identificados por Sharp como importantes para a não-violência política. Dessa forma, realizaremos um recorte metodológico na obra sharpeana e nos dedicaremos a estudar, compreender e estabelecer os temas sobre pacifismo e não-violência contidos em: (1) From dictatorship to democracy: A conceptual framework for liberation [Da ditadura à democracia: Uma estrutura conceitual para libertação], cuja primeira publicação ocorrera em Bankik, na Tailândia, pelo Committee for the Restoration of Democracy in Burma, e posteriormente em diversos idiomas. Porém, nossos estudos seguem a obra com disponibilização ao público em 2002, na versão da língua inglesa, e publicado no Brasil em primeira edição em 2002; (2) Power, struggle and defense [Poder, luta e defesa: Teoria e prática da ação não-violenta], publicado originalmente em inglês em 1973 e em português em 1983; e, por fim, (3) There are realistic alternatives [Existem alternativas realísticas], com o 15 original em inglês publicado em 2003 e sua respectiva tradução para o português no ano de 2005. De um modo geral, em todas as suas obras, Sharp procura identificar os parâmetros e condições para o exercício de ações e práticas políticas não-violentas. Nossa escolha, contudo, por restringir a aplicabilidade dessas teorias e a profundidade dos temas do pacifismo e da não-violência somente às três obras acima referidas, oportunizar-nos-á melhores resultados quanto aos critérios de objetividade e focado nas ideias centrais do autor analisado, que se apenas se repetem de forma mais matizadas em obras menores (às quais recorreremos apenas excepcionalmente). Não pretendemos assim esgotar o tema da paz e da não-violência em Gene Sharp em toda sua produção acadêmica e intelectual, que perdurou até seu falecimento, recentemente, em janeiro de 2018. Nosso foco, portanto, são as três obras que, ao nosso entender, possibilitam um conhecimento indutivo das principais teses e preceitos do pensamento sharpeano dispersas e difusas também em outras obras e publicações. Antes, contudo, da explicação sobre como foi estruturado o presente trabalho, e sua divisão capitular, imperioso se faz ainda o esclarecimento sobre três aspectos proemiais necessários para o estudo aqui pretendido: (1) a hipótese; (2) a metodologia utilizada para a realização da pesquisa e desenvolvimento da tese; e, por fim, (3) os referências teóricos e metodológicos que subsidiaram a confirmação ou não da hipótese e da tese. Primeiramente, a hipótese: propomos discutir o pacifismo e a teoria da não-violência como pressupostos lógicos para conquista de direitos. O exercício do pacifismo e da não- violência podem se desenvolver através da desobediência civil, do direito de resistência, da objeção de consciência ou de outras formas de manifestação coletiva de reivindicações. As teorias sobre a paz e o pacifismo já há alguns séculos permeiam as discussões no âmbito do Direito, Filosofia, Ciência Política, Relações Internacionais, e outras áreas do conhecimento; porém, na maioria das vezes, integrada ao fenômeno da guerra. O exercício do pacifismo e dos temas da paz, juntamente com teorias e práticas de ações não-violentas, consubstanciam, ao nosso entender, o instrumental mais eficaz para a conquista de direitos. Subjacente a isso, então, procuraremos entender em que medida as teorias do pacifismo e da não-violência se apresentam germinadas e espraiadas nas obras de Gene Sharp, considerado o maior teórico político da luta não-violenta no século XX. 16 Sua atuação acadêmica e teórica na luta não-violenta e de incentivo à transformação das ditaduras em democracias, renderam-lhe as indicações ao Prêmio Nobel da Paz de 2009, 2012 e 2013, tendo sido agraciado ainda com os prêmios El-Hibri Peace Education Prize, Right Livelihood (conhecido como “Prêmio da Sustentabilidade” ou “Prêmio Nobel Alternativo”) e o Distinguished Lifetime Democracy Award. A metodologia: precisamos mencionar que, entre as três grandes correntes metodológicas utilizadas modernamente para o estudo do pensamento político (a dialética, a analítica e a hermenêutica), este trabalho foi desenvolvido sob a opção metodológica da dialética, com acréscimos proporcionados pelos métodos analíticos. A pesquisa ora desenvolvida se caracteriza por ser uma pesquisa teórico-científica (ao estudar teorias e conceitos), na mesma medida em que nos propomos a realizar uma pesquisa metodológica porque pretendemos estudar os caminhos, os instrumentos e a “produzir técnicas de tratamento da realidade, ou a discutir abordagens teórico-práticas” (DEMO, 1995, p. 13) do problema e das hipóteses destacados. O tipo de pesquisa utilizado na elaboração da presente tese é, portanto, predominantemente, formado pela pesquisa bibliográfica, tendo por “finalidade conhecer as diferentes formas de contribuição científica que se realizaram sobre diversos assunto ou fenômeno (OLIVEIRA, 2002, p. 119). Para isso, utilizaremos como métodos científicos principais o dialético, mediante enfrentamento discursivo frente à processualidade das estruturas históricas de conflitos sociais, juntamente com o método analítico. Embora, para um desenvolvimento equilibrado da pesquisa, utilizaremos também de métodos auxiliares, de caráter instrumental secundário, quais sejam: o histórico, por meio na análise do contexto histórico investigado; o analítico; e o comparativo, que vai nos possibilitar o confronto e análise de institutos e conceitos diversos. Para Demo, a dialética é a metodologia mais conveniente para a realidade social, objeto de nosso estudo, e não a realidade natural carente do fenômeno histórico subjetivo das relações sociais (DEMO, 1995, p. 88). Os referenciais teóricos e metodológicos: o estado da arte ou estado do conhecimento na presente pesquisa bibliográfica se estrutura sob as construções teóricas realizadas por Norberto Bobbio e seu estudioso brasileiro Rafael Salatini, quando tratam sobre o tema da paz e do pacifismo, em confronto com o tema da guerra na teoria política, passando pela paz perpétua de Kant. Sobre a estrutura conceitual da não-violência e da resistência pacífica, propostas por Johan Galtung; da desobediência civil de David Thoreau; da objeção de 17 consciência e do direito de resistência de direitos humanos, como propostos por Hannah Arendt e seu discípulo brasileiro Celso Lafer, entre os principais autores do nosso estudo preambular. Por fim, seguindo esse caminho epistêmico, chegaremos a Gene Sharp e seus métodos e teorias para as ações não-violentas. Para melhor compreensão dos temas tratados neste trabalho, propomo-nos uma divisão em três capítulos. No primeiro deles, analisaremos os temas relativos ao pacifismo. A relação entre os temas de paz e a teoria do pacifismo envolve, necessariamente, perpassar pelo tema da guerra nas teorias políticas e nas relações internacionais. Para muitos teóricos, a paz nada mais significa que a ausência de guerra; todavia, procuraremos demonstrar os escritos sobre a paz e seus diversos conceitos e tipos. Não somente a paz como ausência de guerra, mas a paz ativa, enquanto possibilidade de construção e manutenção. Com isso, ao finalizar do primeiro capítulo, pretendemos aclarar as teorias sobre o pacifismo, destacando o pacifismo político e o pacifismo jurídico enquanto doutrinas do tema da paz. Para essa primeira tarefa de desenvolvimento dos temas inerentes ao tema da paz e dos pensamentos pacifistas, utilizaremos como eixo teórico, como dito, os trabalhos de Norberto Bobbio e de Rafael Salatini. A dedicação de Bobbio ao estudo dos temas da paz em inúmeras obras compõe todo um cenário de propostas e teorias que procuram sustentar o caminho da paz como uma alternativa aos inúmeros conflitos existentes mundialmente e capazes de ameaças conjuntamente os direitos humanos, a vida das pessoas e a existência das nações perante diversos riscos de conflitos globais e com armas de extermínios totais. Para a sistematização desse primeiro capítulo, a disciplina cursada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp (campus de Marília) “Pensamento Político Internacional”, ministrada pelo professor Rafael Salatini, foi de fundamental importância – assim como seus textos sobre pacifismo e o pensamento bobbiano – para consolidação dos temas da paz como a melhor opção no cenário internacional para décadas e séculos de guerras e violência. No segundo capítulo deste trabalho, nossa atenção gravita no em torno do tema da não-violência. Para isso, iniciamos a compreensão do tema da violência e como esta é apropriada pelo Estado institucionalizado, seja ele autocrático ou democrático, como ferramenta de controle social e de imposição das vontades políticas dos dominantes: tanto internamente, na existência de uma nação, como no sistema internacional. Em meio a essa 18 tormenta da violência, surge então a proposta da não-violência como uma alternativa possível e real, defendida por vários autores. Ainda com fundamento em Bobbio, e somando-se ainda o pensamento de Hannah Arendt, Celso Lafer, Johan Galtung, Jean-Marie Muller, entre outros, procuraremos apresentar a não-violência como uma teorização política e humanitária que, no cenário atual, melhor consegue proteger os direitos humanos e fundamentais dos sujeitos em conflito, especialmente quando os confrontos são contra o Estado e a violência é utilizada como meio por seus agentes. Não-violência, portanto, concebe inúmeras ações possíveis, como direito de resistência, desobediência civil e outras formas de manifestação e oposição ao Estado, às leis, aos governantes e seus representantes, sem, todavia, a utilização da violência como peça no xadrez das forças políticas e de poder. Logo, a não-violência se revela uma via de paz e de exercício do pacifismo, ao mesmo tempo em que se consubstancia em uma realidade jurídica e internacional de proteção necessária e de realização efetiva de direitos fundamentais. O direito de resistência e a desobediência civil, a objeção de consciência e resistência à opressão, servem de ferramentas políticas de organização e manifestação que podem ao mesmo tempo enfrentar a legalidade de governantes e suas atitudes ilegítimas, manifestando- se publicamente sobre esse enfretamento. E, na mesma medida, demonstrar aos seguidores e representantes dos governantes que a luta não-violenta visa à conquista e exercício de direitos humanos, visa a enfrentar ditaduras e valorizar a liberdade e a democracia, visa sempre ao bem-estar coletivo e à capacidade da pessoa e das organizações de construir sua própria realidade, com alternativas realistas e humanitárias aos conflitos violentos e opressivos. Por fim, no terceiro capítulo, será aventar os temas do pacifismo e da não-violência, perpassando e analisando centralmente as obras citadas de Gene Sharp. O autor estadunidense, falecido recentemente, em 18 de janeiro de 2018, procura em suas obras explicar a natureza e o potencial de formas das lutas não-violentas. Sua teorização trata de destacar o poder e a força que atitudes sociais e coletivas de não-violência se mostram como instrumentos capazes de derrubar ditaduras. Ou, quando em Estados onde prevalece a democracia, enfrentar medidas ilegítimas e que não atendem ao anseio e à vontade da população, senão a interesses particulares de governantes ou dos detentores do poder do poder político. 19 Ao elencar diversas formas de protestos, de persuasão, de confrontos não-físicos e não-violentos, de métodos econômicos e sociais de não-cooperação e por utilização de técnicas de combates, o professor da Universidade de Massachussetts e fundador do Instituto Albert Einstein sintetiza seus fundamentos teóricos e políticos com base no pacifismo e por meios não-violentos, capazes de conquistar e garantir os direitos fundamentais. Inclusive com a transformação de governos ditatoriais em regimes democráticos pela derrubada de seus ditadores a partir da prática das ações descritas. Propõe, portanto, Gene Sharp meios não-violentos, que, em seu entender, são capazes e suficientes para promover revoluções. Porém, não revolução armadas ou guerras civis e internas, senão revoluções não-violentas, que melhor equacionam o respeito à paz e à não-violência como uma alternativa política e social para os Estados e os cidadãos na contemporaneidade. As ideias e as obras de Gene Sharp têm sido muito utilizados nas últimas décadas para fundamentar as ações de grupos e políticos e sociais de resistência não-violenta. Constatamos isso no Oriente Médio, em países da África, em algumas nações da América Central e do Sul. Além do mais, as propostas de Sharp, como pensador político dos direitos humanos e das relações internacionais, se equacionam com o estado da arte das relações internacionais em que a soberania é uma medida de restrição de atuação das organizações internacionais e de interferências de uma nação sobre a outra. Nesse sentido, não seria necessário um movimento de força externa para possibilitar o enfrentamento das opressões praticadas por qualquer tipo de Estado ou governo. Isso é até repudiado e não permitido no universo das relações internacionais, em que a força política para essas modificações estão internamente dispersas, porém, podem ser concentradas e organizadas pela própria sociedade. O conhecimento das lutas não-violentas, sua natureza e condições outorgariam aos cidadãos o potencial para modificação de sua própria realidade e mudança de seus futuros. No terceiro capítulo, verificaremos, dessarte, como as ideias e o pensamento de Sharp se adequam às propostas de pacifismo e não-violência. Ao identificar as fontes do poder político e da força de um governo na legitimidade, no apoio popular, e no apoio institucional, o pensamento de Sharp conclui o universo da luta não-violenta como composto por medidas capazes de diminuir o apoio ao governante e sua exigência de obediência e cooperação. 20 Com fundamento em um poder pluralístico de reconhecimento pelo Estado e pelo governante de que a base de sustentação de seu poder é o reconhecimento das pessoas e aceitação sobre suas ações, Sharp procura relacionar as fontes do poder político. Quando o soberano não encontra a obediência e a cooperação das pessoas e das instituições, o poder político, mesmo quando utilizado por meio coerção, sanções e da violência, tende a se desintegrar e enfraquecer. Sistematizando o atributo do direito de resistência e da desobediência civil com o pensamento de Sharp, pretendemos, assim, demonstrar uma teoria do poder da ação não- violenta, identificando sua origem na história e fundamentando-a na teoria política e nas doutrinas e jus cogens [direito cogente] das relações internacionais. Tendo claramente a formação não-violência de suas características, seus métodos de ação e a dinâmica da luta como resistência capaz de enfrentar desde regimes ditatoriais até regimes democráticos onde a violência institucionalizada estatalmente reprime manifestações legítimas contrárias à ordem vigente. Na finalização do terceiro capítulo, analisaremos alguns dos 198 métodos não- violentos de protesto, oposição e não-cooperação desenvolvidos por Sharp. Juntamente com os métodos econômicos de não-cooperação, o autor antevê a possibilidade de derrubada de ditaduras e de alcance da democracia pela luta não-violenta. Isso, pois, aplicar-se-ia a ditaduras e a todo Estado que dito ou formal e juridicamente construído como democrático acaba por restringir de forma desproporcional e irrazoável os direitos civis, políticos e de liberdade existentes em suas constituições. Por fim, aplicamos na construção desta tese histórica e teórica o princípio da “humildade científica” (ECO, 2016, p. 137), ou seja, com a ideia de que todos podem nos ensinar alguma coisa e contribuir para nossas ideias, até mesmo àqueles teoricamente e ideologicamente distante de nós. Propomo-nos então a discorrer sobre as teorias e fundamentos da paz e do pacifismo nas Relações, Internacionais, na Ciência Política e no Direito. Assim, conseguiremos compreender como as teorias da desobediência e do direito à resistência têm contribuído para a conquista de formas e métodos de enfretamento à violência e a opressão do Estado – algumas vezes utilizaremos o termo governantes e outras vezes a palavra soberano, como faz Gene Sharp em suas obras – para tratar daqueles que detém o poder político e poder jurídico do monopólio da violência e da coerção. Identificando assim 21 os direitos humanos de resistência e de desobediência, ainda que jurídico-constitucionalmente não expressos, contribuem para a construção de uma teoria política de legitimação da não- violência. Enfim, analisando as obras de Gene Sharp entendermos em que medida as doutrinas do pacifismo e da não-violência fornecem substrato às hipóteses sharpena de construção de um manancial teórico-político e de métodos não violentos construídos sob as bases da obediência, cooperação e consentimento da sociedade para com o governante e representantes institucionais do Estado. 22 CAPÍTULO 1: PACIFISMO 1.1 Sobre a paz e o pacifismo “Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão habitação saúde, educação Só há liberdade a sério quando houver Liberdade de mudar e decidir” (Música: Liberdade, Sérgio Godinho) Considerar o século XXI como o período da história, nesses quase dois decênios, como o de maior velocidade, dinamismo e acúmulo de informações se mostra inegável. Enquanto a interação e a comunicação aproximam tecnológica e virtualmente as pessoas, ao mesmo tempo proporciona o distanciamento vazio e antissinestésico em que o diálogo e a conversa, se não realizada por meio de programas, softwares, aplicativos ou outras ferramentas, se mostra quase que uma tarefa árdua e difícil. Nesse presente hi-tech (ou high- tech), a comunicação se torna um fim em si mesmo e não um meio para maior aproximação entre pessoas, grupos e nações. Pensar as relações humanas e as relações internacionais na modernidade, nesse ínterim, consiste em considerar o abrandamento das fronteiras e da ideia máxima de soberania enquanto limites absolutos de atuação do Estado. O fluxo constante de informação e de comunicação, a migração contínua de pessoas e as relações econômicas de ordem global são várias faces da realidade de um mundo atual que diariamente se modifica e se reinventa. As normas jurídicas internas e as normas internacionais procuram acompanhar esse avançar da sociedade, com legislações e preceitos jurídicos que regulam as relações entre indivíduos, entre estes e os Estados e mesmo entre as nações na sociedade internacional. O Direito, portanto, apresenta-se em sua visão clássica de resolução de conflitos e de pacificação por desideratos. As relações internacionais procuram equacionar os temas de interesses e mais relevantes entre as nações. E a Ciência Política, enquanto uma ciência em constante aperfeiçoamento, procura teorizar e criar meios de entendimento sobre a sociedade, o Estado e as normas jurídicas. Dessarte, o fenômeno da normatividade jurídica se encontra de modo perceptível tanto no pretérito como no presente do conjunto coletivo de indivíduos socialmente 23 vinculados pelo contrato social. Dessa forma, as civilizações são caracterizadas pelos ordenamentos de regras nas quais as ações dos homens que a criaram estão contidas (BOBBIO, 2008, p. 25). Poderíamos constatar, assim, que a sucessão de fatos e acontecimentos ao longo da história se apresenta como um complexo de ordenamentos normativos que se sucedem. Contudo, as normas jurídicas para o filósofo político italiano Norberto Bobbio não passam de uma parte da experiência normativa. Isso porque há no mundo ainda inúmeros preceitos – morais, religiosos, sociais, costumes, etc. – não previstos pelas normas jurídicas, mas nem por isso descaracterizam uma ordem de preceitos cogentes e ordenativos. Todas elas têm em comum o fato de se apresentarem como proposições cuja finalidade é a de influenciar o comportamento de indivíduos e dos grupos, dirigir ações a certos objetivos, tanto do ponto de vista dos indivíduos quanto na ordem do Estado. Constroem-se assim leis e regras de convivência, algumas apresentando preceitos autorizadores e regradores dos negócios e do comportamento, outras trazendo princípios proibitivos e penalizadores, estruturando-se assim o ordenamento jurídico. Bobbio esclarece essa questão do conflito permanente e da relação da pessoa com seus direitos e proibições quando explana: Encontrando-se num mundo hostil, tanto em face da natureza quanto em relação a seus semelhantes, segundo a hipótese hobbesiana do homo homini lupus [homem lobo do homem], o homem buscou reagir a essa dupla hostilidade inventando técnicas de sobrevivência com relação à primeira, e de defesa com relação à segunda. Estas últimas são representadas pelos sistemas de regras que reduzem os impulsos agressivos mediante penas, ou estimulam os impulsos de colaboração e de solidariedade através de prêmios. (BOBBIO, 2004, p. 28) O conjunto de preceitos normativos de ordem geral e que obrigam a toda a coletividade compõem o ordenamento jurídico de tal comunidade. Na teoria política clássica, o Estado, enquanto ser potencializador da atividade centralizadora, com maior ou menor controle sobre a vida dos indivíduos enquanto em sociedade, é o único ser criador das regras de obediência. Logo, não se concebe norma jurídica que não seja emanada do Estado. Exceção feita, contudo, aos defensores da tese do pluralismo jurídico (WOLKMER, 2009), entre outros. O Estado, enquanto ente político que se materializa em uma pessoa jurídica de direito público, interno ou internacional, representa a concentração de poder e direito. O Poder Legislativo, enquanto função estatal representante da sociedade e de sua democracia, teria a legitimidade para a construção das normas com fins a evitar ou diminuir 24 os conflitos. Para Poker, “a Paz é apresentada simultaneamente como condição, contingência e decorrênciade qualquer prática democrática” (POKER, 2018, p. 222). Democracias mais estáveis e historicamente mais consolidadas possuem maiores condições de proporcionar a manutenção da paz aos seus cidadãos. Isso não significa necessariamente, de modo algum, a ausência total de conflitos. Ao tratar do conflito e formulando uma teoria social crítica, Axel Honneth, por exemplo, propõe a construção social da identidade (pessoal e coletiva) como uma gramática do processo de luta, isto é, a luta pelo reconhecimento. Divergindo de Habermas, para ele a base da interação é o conflito, e sua gramática a luta pelo reconhecimento (HONNETH, 2009). Ao Poder Judiciário restaria a tarefa precípua de resolver as lides mediante processos judiciais (consensuais ou contenciosos) frente ao julgamento pelo juiz togado. Juntamente com a capacidade executiva e coercitiva, far-se-ia, assim, a realização da decisão judicial, extinguindo os conflitos de interesses. Alcançando seu intento por meio do Estado-juiz, seriam a paz e a pacificação social realizadas. Assim, “a vontade popular, expressada por meio dos demais poderes, deve se fazer valer pelo Judiciário, portanto, há limites a serem respeitados, e assim sendo, a sociedade ganha como um todo” (LEÃO Jr., 2019, p. 206). O Estado político e legislativo é a fonte primária das leis e atos ao qual devem todos observar, como preceitos permissivos ou enquanto normas proibitivas, sob pena de sofrer a punição provinda do mesmo ente estatal, o qual muitas vezes se utiliza da violência para o alcance dessa finalidade. Entretanto, imaginando-se o conjunto de pessoas como entidade legitimadora socialmente do poder outorgado ao Estado, é de se imaginar que a aparente perfeição e o equilíbrio entre as relações nem sempre se apresentem harmônicas como nas teorias e regras previstas pelo Direito. Para Kant, a autonomia individual do indivíduo consistia em mera exigência do dever-ser, enquanto, na teoria de Hegel, consistia em elemento da realidade social. A autonomia individual nas sociedades modernas, entretanto, apresenta-se limitada pela previsão normativa. Sob o argumento de regulação da vida social e resolução de conflitos, ou seja, quando o confronto entre indivíduos se apresenta na esfera das relações de vida em sociedade, o Estado procura se apresentar como o ente juiz para resolver o conflito. Quando, porém, apercebe-se um iminente conflito entre as pessoas e o Estado pelo desequilíbrio de 25 avaliações e interesses, a desconsideração dos anseios sociais é sempre a saída utilizada, desde nos governos autoritários até mesmo nas democracias abertas. A mais utilizada forma de resistência sempre foi a da violência, do conflito e do confronto, resultando em guerras civis ou confrontos armados com inúmeras mortes. Por essa razão, para muitos ainda, falar em paz representa nada menos que mero recurso teórico e argumentativo. “A paz ainda é considerada como uma realidade longínqua e aguardada”, sendo “os seus propagadores estão mais perto do visionário do que o teórico respeitado” (SALA, 2014, p. 126), pois representa uma realidade ainda inexistente e muito distante. Ainda assim, tomamos partido na perspectiva jurídica e política de valorização da paz, considerando que, “ainda que tenha sido um século marcado por incríveis guerras, o século passado permitiu o avanço tanto da teoria da paz quanto do direito da paz, os quais permanecem vivos até os dias atuais” (SALATINI, 2016, p. 35). Nesse sentido, estudar as teorias da paz é a tarefa desta primeira parte de nosso trabalho. Norberto Bobbio explica que compreender o conceito e o valor da paz passa, necessariamente, antes, por conceituar o que é paz, identificar o valor da paz, para então se entender o conceito e as formas de seu exercício: o pacifismo. Por isso, afirma que, “quando alguém me pergunta quais são, na minha opinião, os problemas fundamentais do nosso tempo, não tenho qualquer hesitação em responder: o problema dos direitos do homem e o problema da paz” (BOBBIO, 2000, p. 497). Pensar, portanto, o pacifismo enquanto teoria e prática envolve estabelecer suas origens e pressupostos. Dessa forma, conhecendo-se seu surgimento no pensamento político internacional e suas condições de exercício e formas de realização prática, é possível demonstrar a existência de fundamentos teóricos e bases históricas de aplicação nos dias atuais e vindouros. Dessarte tenha sido o século XX um período em que houve a maior valorização e discussão sobre os direitos humanos, há também e diametralmente a época em que a mortandade dos conflitos e guerras alcançaram a marca de milhões de pessoas. O extermínio e as máquinas de combate tomaram proporções e quantidades capazes e suficientes de causar a destruição global. Dessa forma, nunca antes o tema da paz se mostrou tão urgente, sensível e necessário como nos tempos atuais. O pacifismo e seu exercício são formas legítimas sobre as quais é 26 possível se garantir demais direitos humanos e fundamentais, como a vida, a liberdade, a propriedade, a segurança, entre outros. Contemporaneamente, tanto em âmbito interno das nações quanto para as discussões das relações internacionais, o assunto acerca dos direitos humanos representa a pedra filosofal em torno da qual gravitam os temas e problemas. Assim, direitos fundamentais ou direitos humanos são, sem dúvida, temas ainda constantes e que muito se mostram ainda a avançar como formas de proteção e como forma de realização e efetivação. Por isso que, para Bobbio: Além das dificuldades jurídico-políticas, a tutela dos direitos do homem vai de encontro a dificuldades inerentes ao próprio conteúdo desses direitos. Causa espanto que, de modo geral, haja pouca preocupação com esse tipo de dificuldade. Dado que a maior parte desses direitos são agora aceitos pelo senso moral comum, crê-se que o seu exercício seja igualmente simples. Mas, ao contrário, é terrivelmente complicado. Por um lado, o consenso quanto a eles induz a crer que tenham um valor absoluto; por outro, a expressão genérica e única “direitos do homem” faz pensar numa categoria homogênea. Mas, ao contrário, os direitos do homem, em sua maioria, não são absolutos, nem constituem de modo algum uma categoria homogênea. (BOBBIO, 2004, p. 24) Esse mesmo diagnóstico é o tema da paz. Imprescindível a teorização e o esforço por meios políticos, jurídicos e sociais de normatização e garantia da paz como primado inescusável da existência de direitos e da própria existência do ser humano. Ainda hoje, a fragilidade dos direitos humanos se mostra não somente na sua desobrigação no âmbito do direito internacional – com a prisão indevida, restrição à liberdade de circulação, julgamentos sem o devido processo legal, não respeito às normas de proteção internacional dos direitos humanos –, senão também nos atos interna corporis [dentro do corpo] dos Estados. Mesmo aqueles Estados centrados em organização sociais democráticas, sob o imperativo da lei, o uso da violência, a injustiça e a brutalidade são muitas vezes ferramentas nas mãos do Estado e dos representantes das chamadas forças pública: polícia e exército. Entidades estas que, sob o atributo de defesa da legalidade e da ordem, muitas vezes não medem esforços em se valer da violência como válvula de controle e repressão. Justamente contra toda forma de violência e opressão que afete os direitos humanos e ameaçe a existência dos sujeitos que a retomada do tema da paz e as teorias sobre o pacifismo são um alento. A palavra “paz” é um polimorfo, podendo apresentar diversas conotações e sentidos. Tem sua origem do latim pax enquanto estado de tranquilidade, e pace, cujo significado é a abstenção de conflito, ausência de belicidade. A paz pode se manifestar enquanto um estado 27 de ser e existir. Consiste na paz interna enquanto consciência e tem por fundamento a moral do sujeito. Seus valores e concepções, quando se coadunam com suas atitudes, produzem a sensação interna e íntima de bem-estar. Muitas vezes entendida como paz de consciência, a paz, quando estável, é um consentimento geral, um equilíbrio e uma cooperação espontâneos (BOUTHOUL, 1968, p. 210). A paz interna é aquela que importa ao sujeito e reside em uma situação de existência e harmonia íntima e pessoal. Outra concepção, agora sob o prisma externo, é a paz entre pessoas ou Estados. Quando não há conflitos, ou estes se restringem ao campo político e diplomático, sem que essas tensões possam promover situações de animosidade ou confrontos que possam resultar em violência. Para Raymond Aron, “a diplomacia pode ser definida como a arte de convencer sem usar a força, e a estratégia como a arte de vencer de um modo mais direto” (ARON, 1986, p. 73). Mesmo nos limites das relações internacionais, a paz pode resultar de medidas diplomáticas surgidas a partir da pactuação de regras e contrabalanceamento de forças entre os divergentes. É a paz por meio das normas internacionais, dos acordos, dos tratados e das negociações. Pode, outrossim, surgir a paz como instrumento final de uma guerra anteriormente travada. Em havendo a perpetuação do conflito, seu resultado, ao findar da guerra, traz aos litigantes a sensação da paz. Guerra e paz, portanto, nas relações entre os Estados, identificam caminhos possíveis a qualquer nação cuja existência é colocada à prova. Não que a intenção do conflito seja a conquista da paz; ao contrário, há diversos interesses geopolíticos, territoriais, econômicos entre outros a justificar o combate. Todavia, chegando-se ao fim, a guerra, com qualquer de seus desfechos, traz entre as nações guerreantes a sensação de paz. Mas, seria mesmo a paz somente alcançável após as guerras e conflitos? Não pode a paz ser um instrumento por si próprio independente da guerra? Ser, portanto, uma ideia inata e propulsora das atividades humanas e da política internacional? Quando se cogita da existência da paz, pensa-se em um primeiro momento em uma ausência de conflitos ou de guerras. Seria, portanto, a paz não caracterizada por uma razão de existência própria e autônoma, perceptível e reconhecível, mas sim, por uma lacuna, uma ausência um determinado espaço ou período temporal de confrontos. Porém, não é essa a concepção correta que pretendemos apresentar neste trabalho. Na filosofia política dos séculos passados, os assuntos da guerra foram entendidos como fenômenos positivos. Não há grandes quantitativos de escritos, obras, tratados e 28 manuais sobre a filosofia da paz. Para as relações internacionais, a paz é o período mais ou menos duradouro em que há a ausências de guerras. Essa concepção, contudo, mostra-se carente e ultrapassada. Como demonstraremos, a partir de Bobbio e outros, a paz passou ser pensada não mais como ausência de guerras, mas sim como um estado de equilíbrio e de satisfação, em que o conflito, o sofrimento e violência são abandonados como ferramentas diárias. A paz, por si própria, tem existência e vida. Nesse sentido que: Todas as aspirações pacifistas, todas as esperanças de criar um mundo polemófugo, isto é, donde a guerra seria banida, fundam-se implicitamente num postulado: o que se assimila a guerra a um estado patológico, ao equivalente sociológico duma doença, quando a paz seria o estado normal, isto é, a boa saúde. (BOUTHOUL, 1968, p. 208) Falar sobre paz, portanto, ainda é um assunto que causa estranheza no universo da Ciência Política e das Relações Internacionais. Esse tema, ainda, infelizmente, é muito pouco ou quase nada estudado pelo Direito e pelas demais Ciências Humanas e sociais. As pesquisas sobre a paz – ou peace research, como ficou denominada – se debruçaram sobre a questão da paz e da guerra. Por alguns anos, foi também denominada de polemologia o estudo direcionado às questões da paz (PONTARA, 1992, p. 916). Permitindo-nos uma licença poética, mesmo nos dias de hoje, a paz ainda é objeto de muitas guerras, ou seja, assusta a muitas pessoas, seja na realidade da vida, seja nas pesquisas acadêmicas. As pesquisas sobre a paz, como um campo de investigação acadêmica e científica, se pronunciaram nos anos de 1950 e 1960, quando veio a surgir nos Estados Unidos, na Universidade de Michigan, o Centrer for Research on Conflict Resolution (Centro de Pesquisas para Resolução de Conflitos), que originou o periódico Journal of Conflict Resolution. Outro importante núcleo de pesquisas sobre a paz teve a iniciativa de Johan Galtung, com a criação do Internacional Peace Research Institute of Oslo (Instituto Internacional de Pesquisas de Oslo para a Paz) e sua publicação, até hoje referência na área: o Journal of Peace Research. Ainda no tema dos centros universitários criados para a peace research, poderíamos citar o Peace Research: The Canadian Journal of Peace and Conlficts Studies, nascido em 1969, e hoje localizado em seu centro de pesquisas sobre a paz da Univesidade de Winnipeg. E não podemos deixar de fazer referência ao Albert Einstein Institute, fundado por Gene 29 Sharp, em 1983, como uma organização destinada ao avanço dos estudos e usos das estratégias e ações não violentas em conflito. Conforme Vanessa Matijascic, “os professores e pesquisadores para a paz formados nesse ambiente universitário são conhecidos pela perspectiva crítica das atuais estruturas de poder, a dinâmica da política internacional e da conjuntura da segurança internacional” (2018, p. 38). E, com Johan Galtun, a peace research ganha novos modelos de pesquisa sobre a paz (GALTUNG, 1964), passando a considerar a violência como uma inimiga a ser evitada para o alcance da paz. A paz, considerada até então entendida como ausência de guerra (a paz negativa), passa a ser pensada como paz positiva: a paz pela paz, ou, em outras palavras, a paz como proposta de pesquisa e como esforço conjunto e contínuo para sua realização e manutenção. A partir de suas obras e de seu trabalho, Johan Galtung convoca os pensadores do mundo a buscar soluções e alternativas que promovam a redução da violência e tenham por objetivo a promoção da paz. Nas palavras de Bouthoul, admitir a existência de uma polemologia, mesmo imperfeita e ainda hesitante, constitui no entanto uma esperança gigantesca (BOUTHOUL, 1968, p. 224). As pesquisas sobre a paz ganham então estímulo e mais impulso e fôlego no século XXI, quando a sociedade internacional, de um modo geral, não mais se coaduna nem aceita os conflitos e as guerras como soluções para resolução de problemas. A paz precisa ser estudada, entendida, praticada, pois guerras e conflitos bélicos ou armados apenas trazem sofrimento, violência e prejuízos, sejam estes sociais, econômicos, humanos, ambientais, etc. Os estudos direcionados ao entendimento da paz se propõem a ser a melhor alternativa contra toda e qualquer guerra ou conflito. Se, durante muitos decênios, a polemologia esteve adstrita ao estudo da guerra e sua ocorrência a partir de fenômenos sociais, psicológicos e políticos, em tempos modernos ou pós-modernos, os esforços que antes se dedicavam a teorizar e criar argumentos e hipóteses para justificar o fenômeno da guerra devem agora fazê-lo em prol dos estudos sobre a paz. A polemologia representa “o estímulo cientificamente mais válido para dessacralizar o fenômeno da guerra, desmascarando-o sob os disfarces ideológicos e políticos geralmente invocados” (FOTIA, 1980, p. 123). A polemologia permite dessacralizar e despoliticizar as tensões, considerar estas como as resultantes dos desequilíbrios sociológicos, e não como fatalidades, predestinações ou simples caprichos (BOUTHOUL, 1968, p. 225). 30 A guerra com isso deixa de ser um fenômeno sagrado, como historicamente tem se afirmado. Abandona-se a fala da guerra como vontade divina ou sob imperativo do governante em prol do povo e de seu bem-estar, para melhor compreender o pacifismo e paz como via alternativa e mais segura. Para Rafael Salatini, podemos dividir o pensamento pacifista moderno, aquele do século XVI ao XIX, em três grandes correntes: (a) a teoria do irenismo cristão, (b) a teoria da cidade pacífica ideal, e (c) a teoria do federalismo internacional. A primeira busca a paz com fundamento nos ensinamentos cristãos e religiosos, herdados do período medieval. A segunda é aquela que considera que uma cidade perfeita não possui motivos para atacar outra (mas apenas para se defender). E, por terceira, a teoria de que a paz nasce de um acordo internacional entre as nações. Essa terceira via se ancoraria profundamente nas ideias de paz perpétua de autores como Saint-Pierre e Kant (SALATINI, 2013a). A primeira corrente tem por base a teoria da paz em pensamentos cristãos e religiosos. A paz seria uma consequência das tarefas de unificação da religião e aproximação dos homens entre si. São representantes desse primeiro movimento, nos séculos XV e XVI, as obras de Nicolau de Cusa (De pace et concordantia fidei, de 1453) e Erasmo de Rotterdã (Guerra, de 1515, e Querela da paz, de 1517). De pace et concordantia fidei, de Nicolau de Cusa (denominação de Nicolau Krebs, acrescido do seu local de nascimento Kues), obra produzida no contexto histórico do XV, envolve uma narrativa religiosa de caráter teatral. Por fim, entende que o conhecimento da verdade a todas as nações deveria chegar em comunhão, a uma só fé, com o intuito de edificar uma paz perpétua entre os homens, como representação da paz do criador (CUSA, 2002, p. 82). As guerras movidas e que resultaram na queda de Constantinopla são o marco para a construção dessa narrativa de diálogo entre a representação divina e a representação dos homens de diversas nações. Seguidamente, temos a teoria da cidade pacífica ideal, em que o tema da paz passa a ser uma questão da política e da forma pela qual as instituições devem buscá-la. São representantes desse período Thomas More (Utopia, de 1516), Émeric Cruc (Novo Cirineu, de 1623) e Willian Penn (Ensaio para chegar à paz presente e futura da Europa, de 1693), profundamente influenciados pelo pensamento idealista de Platão em busca da “república perfeita”. 31 Na terceira corrente de pensamento sobre a paz, encontramos o tema da paz como federalismo internacional, no qual a paz somente pode nascer de um acordo internacional de defesa mútua entre as nações (SALATINI, 2013a, p. 142). Dessa filosofia, centrada nos séculos XVII e XVIII, encontramos as obras de Hugo Grócio (Direito de Guerra e da Paz, de 1625), Saint-Pierre (Projeto para tornar perpétua a paz na Europa, de 1713), Jeremy Benthan (Um plano para uma paz universal e perpétua, de 1789) e, finalmente, a obra mais conhecida, de Kant (Sobre a paz perpétua, de 1795-1796). Desse terceiro período, destacam-se a obra de Hugo Grócio e os escritos do Abbé de Saint-Pierre (nome de Charles Irénée Castel de Saint-Pierre) e sua grande e vastíssima obra (originalmente publicada em três volumes) sobre as vantagens de adesão a um sistema de paz perpétua ou inalterável contra um sistema de guerra na Europa (SAINT-PIERRE, 2003, p. 101). Sendo esta a tradição de pensamento pacifista que mais se adensaria ao longo dos séculos posteriores, ora com maior realismo (como em Rousseau) ora com maior idealismo (como em Kant). Falar sobre a paz, ainda que não se mostre impossível, mesmo nos escritos anteriores do século XV ao século XIX, apresenta-se como uma tarefa hercúlea, para desmistificação de seu conceito apenas como a ausência de guerra. Exemplo disso encontramos em Raymond Aron, ao considerar a paz como “a suspensão, mais ou menos durável, das modalidades violentas da rivalidade entre os Estados” (ARON, 1986, p. 220). A paz, assim, durante grande parte do pensamento político internacionalista, tem se sustentado enquanto uma definição negativa, razão pela qual, para se compreender as teorias sobre a paz, ainda é imperioso passar pelo tema da guerra. 1.2 A guerra e a paz “Existe alguém esperando por você Que vai comprar a sua juventude E convencê-lo a vencer Mais uma guerra sem razão Já são tantas as crianças Com armas na mão Mas explicam novamente que a guerra Gera empregos, aumenta a produção Uma guerra sempre avança a tecnologia Mesmo sendo guerra santa Quente, morna ou fria 32 Pra que exportar comida se as armas Dão mais lucros na exportação? Existe alguém que está contando com você Pra lutar em seu lugar já que nessa guerra Não é ele quem vai morrer E quando longe de casa Ferido e com frio O inimigo você espera Ele estará com outros velhos Inventando novos jogos de guerra Que belíssimas cenas de destruição Não teremos mais problemas Com a superpopulação Veja que uniforme lindo fizemos pra você E lembre-se sempre que: Deus está do lado de quem vai vencer O senhor da guerra não gosta de crianças” (Música: A canção do senhor da guerra, Renato Russo) O conceito de paz está intimamente ligado ao conceito de guerra (BOBBIO, 2000, p. 509), sendo termos em permanente confronto e contraposição, como antítese um do outro, de modo que onde existe um se mostra impossível a existência concomitante do outro. A guerra é a situação ou estado onde o conflito e a violência se apresentam como métodos rotineiros e necessários. A paz, outrossim, seria então a ausência de conflitos ou de guerras. Durante séculos esse foi o pensamento dominante no pensamento político ocidental, mormente na Ciência Política e nas Relações Internacionais, razão pela qual ainda muitos afirmam que a história escrita do mundo é uma história de guerras (KEEGAN, 2006, p. 492). Norberto Bobbio, quando se depara com o tema guerra versus paz, parte do pressuposto de que, para se entender o estado de paz, é preciso primeiro compreender o estado de guerra. Por isso, afirma que “pode-se dizer que existe um estado de guerra quando dois ou mais grupos políticos encontram-se entre si um uma relação de conflito cuja solução é confiada ao uso da força” (BOBBIO, 2000, p. 513). O professor de Turim em seus escritos sobre a paz é capaz de trabalhar os conceitos de guerra e paz realizando a inversão do adágio romano se vis paces, para bellum [se quer paz, prepare-se para a guerra] para a máxima de se vis pacis, para pacem [se quer paz, prepare-se para a paz] (SALATINI, 2011, p. 334). Se a literatura da Ciências Política antes considerava que o caminho para a paz era a guerra, Bobbio avança no imperativo moral de que o caminho para a paz é a própria paz. 33 Bobbio então expressa seu entendimento da guerra como um conflito entre grupos políticos independentes cuja solução é confiada à violência organizada. Esses grupos em conflito detentores do poder jurídico se utilizam do monopólio da força, seja física ou institucional, para submeter seus confrontantes à sua dominação, concluindo, por esse ínterim que “a guerra, enquanto solução de um conflito entre grupos políticos através do uso da força, é um dos modos de solucionar um conflito, à qual geralmente se recorre quando os modos pacíficos não surtiram efeito” (BOBBIO, 2000, p. 514). Considerar essa a ordem natural das relações, todavia, reduz o tema da paz unicamente como o momento em que a força, a violência e a guerra enquanto ferramentas de poder e de dominação, não são utilizadas. De tal forma que o tema paz não importaria em existência autônoma e relevante, senão como períodos determinados e esporádicos sem a guerra. Essa visão, predominante em muitas teorias políticas internacionais, encontra resistência no pensamento do jusfilósofo italiano na medida em que: Para Bobbio a guerra é a expressão conclamada da irracionalidade anárquica em que se encontram as relações entre Estados soberanos. O grande perigo presente no equilíbrio terrorístico entre as grandes potências militares marca a fragilidade das teorias tradicionais do equilíbrio internacional. E mostra, ao mesmo tempo, a impotência das instituições internacionais. (ZOLO, 2013, p. 323) A cogitação da guerra como o estado natural da sociedade em conflito, considerando o ser humano em o estado de permanente de confrontação com seu semelhante, encontra guarida nas ideais e nos escritos de Thomas Hobbes. Ou, em outra medida, o pensamento de Rousseau e da inocência do ser vivente, segundo o qual a guerra é a escolha dos poderes constituídos e cabe ao ser social o enfretamento com seu semelhante com imposição do Estado soberano. Nesses termos, pode-se afirmar sobre o pensamento internacionalista rousseauneano: Como o estado de natureza no qual nascem os indivíduos é distinto daquele em que surge o sistema internacional, o primeiro sendo pacífico e o segundo, belicoso, não se pode considerar como guerra a relação de inimizade entre os indivíduos, o que é contra sua natureza, mas apenas aquela entre Estados, onde a mesma é natural (e, portanto, legítima), sendo que os homens somente se tornam soldados depois de se tornarem cidadãos – duas dimensões que não se confundem em absoluto – do que segue a distinção corriqueira até os dias atuais entre civis e militares (existem, inclusive, os alvos civis, como hospitais e escolas, e os alvos militares, como quartéis e bases). Dessa forma, para Rousseau, apenas os Estados podem fazer guerra entre si, não o podendo nem os indivíduos entre si (o que não é senão uma guerra civil, que Hobbes erroneamente confunde com a guerra propriamente dita) nem os Estados contra os indivíduos (o que pode ser chamado de 34 terrorismo de Estado) nem os indivíduos contra o Estado (o que deve ser chamado, segundo cada caso, de conjuração, sublevação, revolta, revolução, etc.). Isso porque a guerra consiste numa relação pública entre dois corpos públicos, que demanda, antes de qualquer coisa, uma declaração, seja explícita ou implícita, para se iniciar, assim como um documento de rendição para se findar, sem os quais as agressões, assim como o seu fim, não podem ser consideradas senão como agressões privadas e, enquanto tais, inferiores à instituição da guerra enquanto fenômeno público (como são os fenômenos que envolvem, via de regra, o Estado), que não gera direitos privados (como são tipicamente os direitos individuais).(SALATINI, 2013b, p. 30) O Direito Internacional e os escritos de Ciência Política, quando tratam do tema da guerra, utilizam as expressões jus ad bellum [direito da guerra] e jus in bello [direito na guerra]. O primeiro – jus ad bellum – fala do direito de um Estado político independente de se utilizar da força quando assim se mostra necessário, especialmente em resposta a agressões ou como última medida para qualquer outros meios diplomáticos de ameaças. O jus in bello, por outro lado, visa a regular as normas e limites quanto à utilização do uso da força. Dessa forma, mesmo perante um conflito bélico, são necessários estabelecer regras para o uso da força: onde, por qual meios, contra quem, àqueles que devem ser protegidos e formas de tratamento de prisioneiros. Nesse sentido, afirma o pensador de Turim: Infelizmente, o estado de guerra não desconsidera apenas o direito à vida, mas suspende a proteção de outros direitos fundamentais do homem, tais como o direito de liberdade. Com isso quero dizer que o estado de guerra pode ser justificação válida para induzir um governo, mesmo que não- autocrático, a comportar-se de modo autocrático. Continua válido o velho ditado: inter arma silente legis [entre armas a lei silencia]. E de qualquer modo continua válido também o princípio de que a necessidade não tem lei, e a guerra aciona um estado de necessidade que, como tal, sendo lei em si mesma está acima de qualquer lei (natura ou positiva). (BOBBIO, 2000, p. 449) Em tempos em que as armas de guerra não são mais capazes de distinguir os soldados em campo de batalha e os civis carentes de proteção, em que os instrumentais de destruição são capazes de dizimar uma quantidade inumerável de sujeitos alcançando o inimigo e ao mesmo tempo àqueles que nada têm a ver com o conflito, a discernibilidade da guerra, enquanto justa ou injusta, põe em dúvida sua capacidade de proteção aos direitos fundamentais e de imposição de limites a si mesma. Toda e qualquer guerra, desde os tempos medievais até as guerras modernas e tecnológicas em que drones ou aviões e caças são utilizados para assassinar inimigos e intimidar nações, não é possível se eliminar baixas que não sejam militares. Toda guerra traz 35 consigo a atingimento de alvos civis, casas, escolas, hospitais, campos de refugiados e diversos outros locais que não participam do conflito, porém sofrem a consequência das loucuras de seus governantes e dirigentes políticos. Nesse sentido, o pensamento do professor de ciência política da Universidade de Roma, quando critica a guerra, fazendo referência ao seu significado simbólico e psicanalítico: Guerra como orgia da dissipação, na qual os velhos sepultam os jovens, e os jovens se sacrificam para fazerem sobreviver as ilusões dos velhos. Orgia sustentada pelo esforço prolífico das mães, que concebem, criam os filhos com desvelo, incutindo-lhes respeito e dedicação a fim de que sejam mais corajosos para receber e infligir martírio. Desde as preleções escolares, às paradas, aos rituais nos locais das recordações, tudo parece ser predisposto a permitir que cada geração viva paradoxalmente como necessidade ética normal a máxima e insensata criminalidade da guerra. Violência institucionalizada que encontra a sua sanção legitimadora naquelas leis morais que deveriam condená-la. (FOTIA, 1980, p. 123) A guerra enquanto fenômeno político social longínquo na existência humana acaba por se renovar constantemente, desde a definição de Hugo Grócio, segundo quem a guerra “[é o estado de indivíduos, considerados como tais, que resolvem suas controvérsias pela força” (GROTIUS, 2015, p. 72). A própria guerra ganha novos adjetivos e novas formas de intimidação e confrontação. A guerra surge como um medo, um temor, uma ameaça cuja realidade fria pode se tornar quente e efetiva a qualquer tempo, trazendo consigo a ausência de limites e regras. O mesmo Grócio ainda afirmava: Não é nem mesmo necessário o estado de guerra efetivo: é suficiente o estado de guerra potencial, a guerra fria, para fazer prevalecer, em determinados casos, a razão de Estado sobre a razão humana, que desejaria ver garantidos os direitos do homem. (GROTIUS, 2015, p. 72) Segundo o conceito de Carl von Clausewitz, fungido no século XIX, a guerra nada mais é que um duelo em uma escala mais vasta, ou, em seus termos, “a guerra é pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade” (1996, p. 07). O adversário, portanto, é sempre o outro e pode ser qualquer um dos outros e demais. Na ciência da guerra, os avanços e descobertas servem como elemento de vantagem perante o inimigo. Na economia da guerra, as teorias e temas se submetem à vontade estatal em que o conflito bélico se tornam a principal atividade e mais relevante objetivo do governante. Sendo que a questão da guerra nas Relações Internacionais e na Ciência Política transforma esse fenômeno histórico e social de conflito em uma ciência. O esforço da ciência 36 da guerra é para causar morte e sofrimento da forma mais devastadora e metódica possível (BONANATE, 2001, p. 22). O Direito Internacional Público trata do assunto da guerra quando se propõe a ser um instrumental para estudos e entendimentos ao Direito e às Relações Internacionais. De um modo amplamente aceito na atualidade, a guerra é um ato de violência atualmente inadmitido em Direito Internacional Público. Para Mazzuolli, a guerra é conceituada como: [...] todo conflito armado entre dois ou mais Estados, durante um certo período de tempo e sob a direção dos seus respectivos governos, com a finalidade de forçar um dos adversários a satisfazer a(s) vontade(s) do(s) outro(s). Ela normalmente se inicia com uma declaração formal de guerra e termina com a conclusão de um Tratado de Paz, ou outro ato capaz de pôr termo às hostilidades e findá-la por completo. (MAZZUOLI, 2015, p. 1.189) Ainda assim, esse fenômeno pode ser considerando sob diversas vertentes. Uma guerra além da motivação jurídica, pode ser estabelecida a partir de propósitos políticos, econômicos, intervencionistas, entre outros. O direito de guerra ou o direito aplicável na guerra (jus in bello) representava o conjunto de normas aplicáveis durante as guerras. Diferenciava-se do jus ad bellum como direito à guerra, ou uma opção lícita para resolver conflitos entre Estados (REZEK, 2014, p. 421). Para o maior filósofo da guerra, qualquer guerra será considerada como um ato político, ou, novamente em suas palavras, “a guerra não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas uma realização destas por outros meios” (CLAUSEWITZ, 1996, p. 27). A guerra foi o meio pelo qual obteve-se consenso no passado. A paz decide questões que a guerra definiu, joeirou e apresentou de uma forma pronta para resolução. As grandes conferências de paz que encerraram guerras momentosas serviram de convenções constitucionais para a sociedade de Estados, convocadas para responder a questões postas à prova pela violência do Estado. (apud BOBBIT, 2003, p. 746) O fim da guerra é a paz, à qual todos devem aspirar (GENTILI, 2006, p. 435), prisma sob o qual a paz somente seria alcançável por meio da guerra. O objetivo de toda guerra seria então a pactuação e perpetuação da paz. A guerra seria o instrumento pelo qual se alcançaria a paz. Mas seria isso verdade? O único caminho possível? Ultrapassar o pensamento pacifista 37 da guerra como único meio é necessário para a construção de um pensamento genuinamente pacifista. A paz não é apenas o fim, senão o meio para as contendas e conflitos. Embora a guerra ainda tenha seus adeptos e defensores – como aqueles que dizem que a longo prazo a guerra tem tornado o mundo mais seguro e mais rico (MORRIS, 2015, p. 07) –, propor o pacifismo como alternativa à guerra não tem por objetivo julgar os fatos pretéritos, mas propor que eventuais conflitos, presentes e futuros, não comportam mais medidas que tenham sustentação nos argumentos da legítima defesa ou mesmo de contramedidas, isto é, represálias ou ataques em respostas a uma primeira agressão internacional. Eduardo Mei nos diz ainda que, após a Guerra Fria, temos o surgimento de “novas guerras” (2013, pp. 44-45), que seriam os conflitos que não têm por objetivo a paz, ou seja, a paz negociada ou a paz imposta, e nos quais não se procura alcançar a paz ou uma ordem política qualquer. Tais guerras não seriam nem mesmo protagonizadas por Estados, como é o caso do terrorismo e das ações de grupos armados. Alguns teóricos argumentam ainda da guerra como uma necessidade e uma saída para situações em que não se encontra outras soluções: aquilo que se denomina como teoria da guerra justa. A qual surge como uma proposta filosófica com argumentos que procuram apontar justas causas para a guerra, ou seja, condições necessárias em que se pode se valer da declaração de guerra e do conflito armado como pretexto e justificadora de determinados fins. A teoria da guerra justa defende a existência de cinco causas justas para a legitimação de uma ação armada, quais sejam: (1) a autodefesa da agressão prévia, (2) a guerra indireta como autodefesa, (3) a guerra punitiva por agressões não reparadas na época, (4) a guerra preventiva a um ataque iminente, e (5) guerra por razões humanitárias (ANABITARTE, 2013, p. 179). Os defensores da teoria da guerra justa, em geral, argumentam que o conflito nem sempre pode ser evitado, posto que, em algumas circunstâncias, a guerra será uma necessidade em proteção a um mal maior. Como afirma Keegan (2006, p. 499), a política deve continuar; a guerra, não. Höffe nos diz que “a Paz é a tendência predominante em todas as situações de convivência humana, seja no âmbito da ordem externa ou da ordem interna, por mais que as evidências provenientes da vida prática indiquem o contrário” (apud POKER, 2018, p. 219). 38 A paz, portanto, é o caminho presente e futuro, em nível nacional ou na relação entre os Estados soberanos, para a convivência entre as pessoas. A guerra impinge sofrimento, morte, destruição, prejuízos de toda monta. Se o conflito é inerente à própria existência humana e da dinâmica da convivência social, não sendo possível sua eliminação total, melhor saída é a resolução de contendas por meio da paz, que serve a contento como ferramenta interna e externa, da mesma forma que constitui norma jurídica de direito humano já reconhecida (como veremos). 1.3 O direito humano e fundamental à paz “Pois paz sem voz Não é paz é medo (Medo! Medo! Medo! Medo!)” (música: Minha Alma, O Rappa) Para Bobbio, pensar na paz envolve pensar na guerra; afinal, comporiam ambos os termos um par. Tanto é assim que, segundo o autor, na literatura sobre o tema da guerra e da paz, encontram-se infinitas definições de guerra, enquanto seria a paz a cessão ou conclusão ou ausência de guerra (BOBBIO, 2000, p. 510). Pensar a paz como sendo a ausência de guerra ou de conflitos importaria em um conceito negativo, ou seja, “um estado nas relações internacionais antitético ao estado de guerra” (BOBBIO, 2000, p. 516). Porém, nas ideias do filósofo italiano, há ainda o sentido positivo e específico de paz, qual seja, o de peace research. Segundo afirma: Insatisfeito com a definição puramente negativa de paz, sobrepõe a ela uma definição positiva, que deriva de entender extensivamente “paz” como negação não tanto de guerra quanto de violência. Diferenciando portanto duas formas de violência, a violência pessoal, na qual está incluída a forma específica de violência que é a guerra, e a violência estrutural ou institucional, distingue duas formas de paz, a negativa, que consiste na ausência de violência pessoal, e a positivam que consiste na ausência de violência estrutural. Enquanto ausência de violência estrutural – que é a violência que as instituições de domínio exercem sobre os sujeitos ao domínio, e em cujo conceito se incluem a injustiça social, a desigualdade entre ricos e pobres, entre poderosos e não-poderosos, a exploração capitalista, o imperialismo, o despotismo, etc. – a paz positiva é aquela que pode ser instaurada somente através de uma radical mudança social e que, pelo menos, deve avançar lado a lado com a promoção da justiça social, com o desenvolvimento político e econômico dos países subdesenvolvidos, com a eliminação das desigualdades. (BOBBIO, 2000, p. 517) 39 Pensar sobre a paz pode parecer, inclusive pensando sobre o seu conceito, como o estado ou situação de ausência de conflito. Ocorre que para se pensar um estado de paz há algo contraditório com a própria natureza humana e seu estado de conflito, uma vez que “existe situação de conflito sempre que as necessidades ou os interesses de um indivíduo ou de um grupo não podem ser satisfeitos senão com dano de outro indivíduo ou grupo” (BOBBIO, 1992, pp. 911-912). Ao analisar a questão da paz e sua antinomia com a teoria hobbesiana que pressupõe o conflito como algo permanente e inerente, Salatini nos chama a atenção de que: Bobbio analisou, concentrada e sistematicamente, os seguintes problemas relacionados ao tema da paz: (a) o problema da definição, (b) o problema da classificação, (c) o problema da valoração, (d) o problema do estado intermediário, (e) o problema do pacifismo, e (f) o problema do federalismo. Pode-se mesmo dizer que, nesses textos, Bobbio tentou apresentar (embora não expresse com esses termos) uma teoria geral da paz. (SALATINI, 2017, p. 56) Norberto Bobbio nos diz que a paz é um dos objetivos possíveis, mas não o único. Esclarece ainda que “a paz é um fim altamente desejável para o homem, mas não é dito que seja, em sentido absoluto, o último objetivo”, ou seja, “é o último objetivo apenas para quem considera que a vida seja o bem supremo” (BOBBIO, 2015, p. 137). A paz, embora possa se apresentar como o objetivo final que deve ser alcançado, não significa a negação de outros objetivos e metas da convivência social. Segundo Bobbio, “a paz não é o fim por excelência, mas um dos fins possíveis”, pois “o meu comportamento diante dos que sustentam a paz depende do lugar que atribuo à paz na minha hierarquia de valores” (BOBBIO, 2015, p. 137). A paz não se mostra, então, como atributo negativo, como a mera ausência de guerra. Seria, ao contrário, a paz um elemento de direito humano e fundamental, imperativo e imprescindível à toda existência com dignidade – atendendo ao comando presente em diversas constituições contemporâneas (inclusive a Constituição Federal brasileira de 1988) – bem como um pré-requisito para o exercício dos demais direitos individuais, sociais e coletivos. Poker menciona que os direitos humanos possuem uma condição histórica e por essa razão não podem se restringir somente à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Os direitos humanos, sendo assim, “devem ser tratados como uma peça normativa que continua em processo de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que experimenta a efetivação, como qualquer peça do direito racional” (POKER, 2018, p. 217). 40 O uso indiscriminado do termo “direitos humanos” para tratar de direitos conseguidos a partir das lutas históricas no decorrer dos tempos nem sempre encontra ressonância na significação exata da expressão com sua essencialidade. Redundou em um termo genérico e plástico, facilmente maleável para que possa se encaixar a uma gama de direitos referentes ao aspecto da vida, da liberdade, e dos direitos de convivência e de sociedade, como uma fórmula pronta, porém libertina, na qual se podem incluir vários tipos de pretensões sem uma identificação clara e precisa de seu conteúdo. Todavia, por sua significação heterogênea, em grande parte suscitada por esse uso indiscriminado, utilizada tanto no âmbito da teoria quanto na práxis, a expressão “direitos humanos” tem se apresentado como um paradigma de equivocidade (PEREZ LUÑO, 2005, p. 24). Segundo o professor espanhol Peces-Barba Martinez, a expressão “direitos fundamentais” é mais adequada para se referir à categoria de direitos expressos no texto constitucional, exatamente porque a expressão “direitos fundamentais” apresenta uma menor quantidade de ambiguidades que a expressão direitos humanos (2004, p. 28). Quando a linguagem jurídica procura se referir aos direitos em suas dimensões atuais, muitos se utilizam de termos como “direitos naturais” ou “direitos morais”, retirando-se desses direitos sua faceta jurídico-positiva. Mas principalmente porque a designação “direitos fundamentais” integra em seu conceito e conteúdo as duas dimensões essenciais, não reducionistas do jusnaturalismo ou do positivismo, ou seja, a de que dos direitos fundamentais expressam uma moralidade básica e uma juridicidade básica. Principalmente pela razão moderna de vinculação de seu reconhecimento jurídico, em nível nacional ou internacional, em um texto de natureza fundamental como a Constituição ou em outro texto positivo legal. Para Peces-Barba Martinez, quando nos referimos a direitos fundamentais, estamos ao mesmo tempo falando de uma pretensão moral justificadora e sua recepção no direito positivo (2004, p. 29). Desse modo, para alcançar a compreensão dos direitos fundamentais, deve-se abarcar ambas as características, a primeira consistindo em uma justificação de uma determinada pretensão moral em que consistem tais direitos a partir da ideia da dignidade da pessoa humana como pressuposto para o desenvolvimento integral do ser humano. Os direitos fundamentais, em nível nacional, e os direitos humanos, no campo internacional, representam um espaço de proteção dos indivíduos sob os quais não é permitido ao Estado ultrapassar. Segundo Poker, “o que vai conferir aos Direitos Humanos essas 41 característica de direitos morais é que sua validade suplanta as estrutura jurídica dos Estados nacionais” (2016, p. 37). E, em segundo lugar, a consignação desse direito em direito positivado como condição essencial para que se possa eficazmente realizar sua finalidade: os direitos humanos, quando integrantes de um determinado sistema normativo, segundo as consequências lógicas de vigência e obrigatoriedade no meio social. A distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais foi elaborada pela doutrina jurídica alemã. Os direitos fundamentais (Grundrechte) seriam os direitos humanos assim reconhecidos pelas autoridades detentoras do poder político de editar normas para regulação unicamente no interior de um Estado. Seriam, por conseguinte, direitos fundamentais aqueles direitos humanos positivados nas leis, nas constituições e inclusive reconhecidos no plano internacional pelos tratados e demais documentos de direito supranacionais (COMPARATO, 2007, pp. 58-59). O magistério de Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins nos relata a opção pelo termo “direitos fundamentais”, em um sentido estritamente jurídico, em preferência a “direitos humanos” ou “direitos naturais”, pelo fato de revelarem direitos positivados constitucionalmente, ao contrário de direitos considerados pré-positivos (naturais) ou supra- positivos (humanos) (DIMOULIS, 2008, p. 53). Para estes autores, os direitos fundamentais são conceituados como “direitos público- subjetivos de pessoas (física ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual” (DIMOULIS, 2008, p. 54). Além do que seria aquele o termo empregado no vocábulo constitucional, pois são aqueles direitos encontrados no texto regulamentador dos fundamentos da organização política e social, e, ainda, por indicar que nem todos os direitos reconhecidos no sistema jurídico brasileiro são referidos no âmbito do direito constitucional. Seriam, portanto, direitos possuidores de proteção constitucional, logo, uma força jurídica superior às outras normas e por isso constituindo um mínimo de direitos insuscetíveis de abolição quando já previstos ou passíveis de acréscimos segundo a vontade legislativa. As normas jurídicas brasileiras não mencionam a palavra paz ou fazem qualquer referência ao direito fundamental à paz na Constituição Federal de 1988 ou demais leis 42 nacionais. Apenas o artigo 136 da Constituição Federal menciona a possibilidade do Presidente da República decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a “paz social”. Para a Constituição Federal brasileira de 1988, a paz é a regra do sistema de direitos e garantias. Quando a paz se mostra ameaçada ou afetada, entra em vigência a suspensão de específicos direitos individuais e sociais, além de garantias constitucionais: é o sistema constitucional de crises. Em situações em que não há paz, alguns direitos fundamentais sofrem restrições; em situações de normalidade, esses direitos encontram plena efetividade. Na situação de estado de defesa, torna-se possível a suspensão dos direitos de reunião, do sigilo da correspondência e do sigilo das comunicações telefônicas e telegráficas. O controle político dessa decretação – de competência exclusiva do Presidente da República – é posterior, o que significa da sua necessidade de aprovação a posteriori [posteriormente] pelo Congresso Nacional. Outra situação de exceção em que se define a suspensão da paz em âmbito interno brasileiro é a decretação do estado de sítio (artigo 137 da Constituição Federal de 1988), em caso de declaração de estado de guerra ou em resposta a agressão armada estrangeira. A declaração de guerra, ao ocasionar a suspensão do estado de paz social, possibilita ainda a aplicação de medidas de exceção, como a pena de morte. Em períodos de paz, é vedada a pena de morte no Brasil (artigo 5º, XLVII, “a” da Constituição Federal de 1988), mas excetuada em caso de declaração de guerra. Nessas hipóteses, torna-se vigente e aplicável os tipos penais incriminadores do Livro II do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21/10/1969), cujas penas preveem inclusive a morte. A paz para o ordenamento jurídico brasileiro segue a visão dos pensadores que consideram a paz a ausência de guerra. Logo, não havendo uma situação constitucional de crise em que se faz necessária a declaração de guerra e imposição do estado de defesa (artigo 137 da carta constitucional de 1988), impõem-se a vigência de um estado de paz social. Poder-se-ia igualmente deduzir um direito à paz a partir do conjunto normativo de direitos previstos na Constituição Federal. Afinal, em acontecimentos que demandem estado de defesa ou de sítio, determinados direitos fundamentais são suspensos (inclusive o próprio direito à vida). De onde se conclui que somente em tempos de paz é possível o exercício pleno e irrestrito dos direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição Federal brasileira. 43 Voltando nossos olhos agora para o sistema internacional de direitos e garantias, podemos destacar a Declaração de Luarca surgida a partir do I Congresso Internacional pelo Direito Humano à Paz, realizado em San Sebastian, na Espanha, que reconhece o direito humano à paz. Afirma-se nessa declaração (artigo 1º) que: “As pessoas, os grupos e os povos têm o direito inalienável a uma paz justa, sustentável e duradoura. Em virtude deste direito, são titulares dos direitos enunciados nesta Declaração”. Podemos citar ainda outros documentos de vigência internacional que tratam do tema da paz, como: a Declaração sobre a Preparação da Sociedade para Viver em Paz, da Organização das Nações Unidas, prevista pela Resolução nº 33/73, de 15/12/1978; a Declaração Sobre a Prevenção e Solução de Disputas e Situações que possam Ameaçar a Paz e a Segurança Internacionais (Resolução nº 43/51, de 05/12/1988); e, a Declaração Sobre o Reforço Sobre a Cooperação entre as Nações Unidas e Acordos ou Agências Regionais Sobre a Manutenção da Paz e da Segurança Internacionais (Resolução nº 49/57, de 09/12/1994). A Organização das Nações Unidas definiu ainda uma política internacional de valorização da cultura de paz na Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz, de 06/10/1999, ao propor: Artigo 1º. Uma Cultura de Paz é um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados: a) No respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da não-violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; b) No pleno respeito aos princípios de soberania, integridade territorial e independência política dos Estados e de não ingerência nos assuntos que são, essencialmente, de jurisdição interna dos Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e o direito internacional;c) No pleno respeito e na promoção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; d) No compromisso com a solução pacífica dos conflitos; e) Nos esforços para satisfazer as necessidades de desenvolvimento e proteção do meio-ambiente para as gerações presente e futuras; f) No respeito e promoção do direito ao desenvolvimento; g) No respeito e fomento à igualdade de direitos e oportunidades de mulheres e homens; h) No respeito e fomento ao direito de todas as pessoas à liberdade de expressão, opinião e informação; i) Na adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância, solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os níveis da sociedade e entre as nações; e animados por uma atmosfera nacional e internacional que favoreça a paz. Artigo 2º. O progresso até o pleno desenvolvimento de uma Cultura de Paz se conquista através de valores, atitudes, comportamentos e estilos de vida voltados ao fomento da paz entre as pessoas, os grupos e as nações. (ONU, 1999) A Carta da Organização das Nações Unidas relata em seu artigo primeiro a paz como meta e como caminho para as relações internacionais, quando afirma como propósito daquela 44 organização internacional: manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim, tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz. O magistério de Pietro Alarcón nos diz: O que nos parece é que é preciso avançar na interpretação atualizada da Carta da ONU, em discussões como a redefinição da composição do Conselho de Segurança, na promoção do desenvolvimento do Direito Constitucional Internacional, o que talvez tenha um impacto mais eficaz na promoção do que temos denominado o direito humano à paz. [...] De maneira que a paz da qual falamos, e à qual atribuímos a característica de direito humano é daquela que se reveste de um caráter mais universal e denso, daquela paz que foge em situações evidentes de conflitos permanentes, persistentes, oriundos de ações estatais ou de atores dedicados a uso da violência como meio ou fim. Um direito típico dentre os denominados de terceira geração. (ALÁRCON, 2009, p. 8.787) O direito à paz passa, assim, a partir do século XX, a integrar diversos diplomas normativos internacionais, ainda que não de vinculação obrigatória, mas com características de normas facultativas ou normas diretivas. Embora não se apresente como norma internacional cogente, o direito à paz das nações e dos indivíduos se destaca a partir da segunda metade do século passado como uma norma de soft law [poder brando]. Presente em vários textos internacionais desprovidos de caráter jurídico e coercitivo na ordem internacional, mas nem por isso com menos destaque e relevância. Para o sociólogo português e professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Souza Santos, os direitos humanos deveriam ser reconceitualizados como multiculturais. Em sua concepção, o multiculturalismo seria “pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo” (SANTOS, 1997, p. 19). A partir de uma nova concepção de direitos humanos centrados no aspecto multicultural de sua manifestação, poderíamos entender que se referem eles a sujeitos múltiplos, diferentes entre si embora possam parecer iguais. O jurista José Afonso da Silva, renunciando à perspectiva jusnaturalista acerca dos caracteres dos direitos fundamentais, reconhece, em um sentido jurídico-positivo, o caráter de historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade a tais direitos (SILVA, 2007, p. 181). A historicidade seria o atributo de todo direito, pois estes 45 surgiriam em um determinado período e se ampliaram com o passar dos tempos, inclusive se modificando. A imprescretibilidade seria um elemento diferenciador; afinal, em sua maioria, os direitos demandam um lapso apto para serem exercidos ou exigidos; logo, enquanto direitos fundamentais, nunca deixam de ser exigíveis. Inalienabilidade é sua não cessão ou transferência a outrem: embora alguns possam apresentar conteúdo econômico ou patrimonial, em regra não se pode alienar um direito fundamental a outra pessoa, justamente pelo fato de se imaginar um direito cuja titularidade é inerente a todos. A irrenunciabilidade denota, igualmente, a impossibilidade de renúncia a direitos fundamentais que podem não ser exigidos ou exercidos em um determinado momento e pela circunstância vivenciada, porém jamais deixam de integrar a esfera de direitos dos indivíduos, pois não há a possibilidade de renúncia a eles. Afirma Sala que “a paz, no entanto, a partir da segunda metade do século XX não pode mais ser um desejo, é preciso engastá-la no mesmo conjunto de direitos essenciais à dignidade da vida humana, e torná-la também um direito inalienável” (2014, p. 131). A paz passa a compor o rol dos direitos fundamentais, ainda que não expressamente positivados no texto constitucional como o estado em que os demais direitos e garantias podem integralmente ser exercidos. Além do que, apresenta a paz todas as demais características inerentes aos direitos fundamentais, não restando dúvida de que “a paz deixa de ser considerada uma aspiração de cunho meramente moral e passa a ser vista como um verdadeiro direito no marco da afirmação histórica dos direitos humanos” (ALÁRCON, 2009, p. 8.788). No universo da diplomacia e das relações internacionais, a paz diametralmente tem se destacado nos últimos decênios e se tornado o principal objetivo da Organização das Nações Unidas. Somente a paz é capaz de manter