O MAPA DE PONTA-CABEÇA Maria Luiza Calim de Carvalho Costa1 1 Maria Luiza Calim de Carvalho Costa, docente FAAC-UNESP, Bauru, estado de São Paulo, Brasil, marialuiza@faac.unesp.br. Abstract ⎯ Joaquin Torres Garcia reversed the position of the map of the continent, reaching South America north. This little drawing illustrates an article by Torres García, 1935, in which he advocates the creation of a "Escuela del Sur". This image illustrates a need in Latin America to seek their own ways. Torres-Garcia was inspired by the pre- Columbian American heritage for their symbolic and Constructivism proposes that Latin America look to the popular ancestral and cultural traditions and build an art itself through which the continent would no longer be a tributary of European culture. As production visual modern and contemporary Latin American context of globalization, takes the center / periphery relationship? The colonizer's model center / periphery relationship persists in the Latin American visual production? The technologies offered other ways of representation that break with the culture of repetition? These questions guide our research. KeysWords ⎯ Joaquin Torres Garcia, Latin American art INTRODUÇÃO Joaquim Torres García inverteu a posição do mapa do continente, situando a América do Sul ao norte. Este pequeno desenho ilustra um artigo de Torres García de 1935, no qual ele defende a criação de uma “Escuela del Sur”. Essa imagem ilustra uma necessidade latino- americana de buscar caminhos próprios. Joaquim Torres Garcia El norte es el Sur, 1935 A “Escuela del Sur” proposta por Torres Garcia sugere que a América Latina inverta a posição de dependência, valorize seu legado, resgatando a arte indígena com sua geometria, entretanto estabelecendo um diálogo entre uma arte construtiva que harmonizasse com as leis universais e com o saber de todos os tempos históricos. He dicho Escuela del Sur; porque en realidad nuestro norte es el Sur. No debe de haber norte, para nosotros, sino por oposicion a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el mapa al reves, y entonces ya tenemos justa idea de nuestra posicion, y no como quieren en el resto del mundo. La punta de America, desde ahora, prolongandose, senala insistentemente el Sur, nuestro norte. Igualmente nuestra brujula: se inclina irremisiblemente siempre hacia el Sur, hacia nuestro polo. Los buques, cuando se van de aqui, bajan, no suben, como antes, para irse hacia el norte. Porque el norte ahora esta abajo. Y levante, poniendonos frente a nuestro Sur, esta a nuestra izquierda Esta rectificacion era necesaria; por esto ahora sabemos donde estamos (TORRES GARCIA, 1935). O seu gesto simbólico foi tantas vezes retomado por outros artistas latino-americanos como Rubens Gerchman e Nicolas Garcia Uriburu, apontando a necessidade de se pensar a América Latina cuja complexidade de suas relações precisa ser revista principalmente com o advento das novas tecnologias. É impossível, hoje, interpretar as relações culturais como simples relações de interdependência. A América Latina também se constituiu (e ainda se constitui) como o “outro” no imaginário europeu e norte-americano. Narrativas fragmentadas, espaços relocados, imagens desmontadas configuram-se e reconfiguram-se incessantemente, numa espécie de caleidoscópio de moto continuo. A ambigüidade ideológica dos movimentos culturais da segunda metade do século XX brota dessa configuração e reconfiguração, dessa rede de atrações e de repulsas por esse “outro” a ser devorado, a nos devorar. (MELENDI, p.3) Os diálogos transnacionais que as novas tecnologias proporcionam rompem os limites geofísicos e constroem territórios antes inexistentes. As relações interculturais deslocam e ao mesmo tempo resignificam os espaços locais, criando a sensação de habitarmos um não-lugar. © 2011 WCCA April 17 - 20, 2011, São Paulo, BRAZIL World Congress on Communication and Arts 193 A ARTE CONSTRUTIVA DE TORRES GARCIA AntonioTorres Garcia (1874-1949) artista uruguaio, após longo tempo de permanência no exterior, nos Estados Unidos e Europa, retorna em 1934 à Montevidéu com o ideal de criar uma arte própria e inédita para o continente americano. Uma arte que unisse os postulados do construtivismo que vivenciara durante sua permanência no exterior, mas que conjugasse a tradição pré-colombiana americana. Para difundir sua concepção de uma arte que expressasse a ordem do cosmo regida pelo que o artista chamava de Razão Universal cria, em 1935, a AAC - Asociación de Arte Constructivo: um centro intelectual e importante escola de arte. Este grupo formado por 32 artistas trabalhou e expôs junto do mesmo modo que o grupo “Circle et Carre” o qual Torres Garcia participou em Paris juntamente com Mondrian, Marcel Suphor e outros. A AAC se desfez em 1939 por incompatibilidade de visões do grupo. Em 1943 Torres Garcia fundou seu atelier freqüentado por jovens alunos sedentos de novas idéias. Com o objetivo de contribuir para a cultura em seu país, realiza um trabalho pictórico, teórico e educativo, ministrando conferências, formando jovens artistas como Augusto y Horacio Torres, Julio Alpuy, José Gurvich, Gonzalo Fonseca, Francisco Matto Vilaró, etc. Seu atelier se transforma em espaço de trabalho e ensino e se constitui em uma experiência importante para construção de um olhar para a cultura na América Latina. Em 1944 o artista publica “Universalismo Constructivo” obra que busca definir uma arte americana com vigência universal. O livro reúne as 150 conferências ditadas por Torres García desde seu retorno ao Uruguai em 1934 até 1943. Com textos e desenhos, são tratados no livro temas como: Equilíbrio, O espírito da obra, Espírito e Matéria, O abstrato e o concreto, Simbolismo, Arte moderna e Arte de tradição... Torres Garcia versa sobre o símbolo: ... Este lenguaje simbólico, viviente y bien real, es el más profundo y concreto que pueda expresar el arte; y fue el lenguaje del arte de la antigüedad y de los mal llamados salvajes; más civilizados en esto como en otras cosas de ese orden, que no el prosaico hombre moderno, materialista. Me parece que habría que volver a este arte, pasando del símbolo intelectual al símbolo mágico. (...)Símbolo que puede traducirse en lenguaje, en idea, no es símbolo tal como lo entendemos. Nuestro símbolo es aquel que viene de la intuición y es sólo interpretado por ella. Algo, pues, ininteligible al pensamiento, y así es que vemos el gran arte. Por esto, un artista, jamás tendrá que poder dar razón del porqué de tal forma (TORRES GARCIA,1944). Torres Garcia busca uma saída autêntica para a crise da arte moderna, ao retornar para sua terra assume para si a missão de encontrar um caminho para arte da América do Sul através da conjunção da arte pré-colombiana e da arte construtiva. Para ele, somente assim, a América do Sul deixaria de ser tributária da cultura européia. E, hoje? Aprendemos a olhar para nós mesmos? Rompemos com uma cultura de repetição? AMÉRICA LATINA E O MERCADO CULTURAL TRANSNACIONAL Para compreender as dinâmicas culturais e a busca de uma identidade para América Latina podemos buscar o modernismo brasileiro e os movimentos vanguardistas hispano-americanos e caribenho. Neste período, nas duas primeiras décadas do século XX, a América Latina foi palco de conflitos sociais e políticos importantes como; a Revolução Mexicana, a criação de partidos comunistas, movimentos operários e estudantis e movimentos nacionalistas de esquerda e de extrema direita. Neste mesmo período, em alguns países da América Latina foram organizadas comemorações aos centenários de independência que levaram à uma reflexão sobre questões nacionais surgindo a necessidade de se pensar as identidades nacionais. No caso do Modernismo brasileiro, o movimento propôs uma reconstrução iconológica das nossas raízes indígenas e negras através da valoração do popular e pela deglutição das vanguardas européias. Olhar para a nossa realidade, constatar nossas diferenças, romper com o modelo de repetição e a partir desse hibridismo construir uma cultura nacional. Contudo, esse esforço de busca de identidade não configurou com clareza nossa latinidade. O que somos? Como entendemos a América Latina hoje? Conjunto de nações das Américas que falam espanhol e português - as línguas indígenas praticamente ignoradas- com uma história colonial semelhante e religiosidade católica desde a gênese das colônias? Embora a comunidade lingüística e muitas convergências históricas permitam agrupar os países latino-americanos, não é fácil situar produtores culturais fortes como o Brasil, Colômbia e México num mesmo conjunto ao lado de países de baixo desenvolvimento tecnológico e pequenos mercados para livros e discos, como Paraguai e República Dominicana.(CANCLINI, 2008,p.31) Somos uma América Latina diversa, heterogênia no que tange nosso desenvolvimento econômico, nossa acessibilidade aos bens de consumo. Diferenças essas, tanto entre as nações como, também, e principalmente dentro das mesmas. Centros de excelência tecnológica avizinham-se à miséria e exclusão. O acesso às tecnologias contemporâneas promove maior comunicação entre culturas. Em contexto de globalização, há uma difusão transcultural que reorganiza sob a forma de consumo os modos de vida e modos de ver. © 2011 WCCA April 17 - 20, 2011, São Paulo, BRAZIL World Congress on Communication and Arts 194 Canclini (2008) diante desse contexto, pergunta se podemos continuar falando em América Latina, como uma unidade? Temos que reler os discursos, os pactos nacionais e internacionais que nos constituem como região, pensar como as heranças vão se transformando e recolocando num tempo de misturas interculturais. (CANCLINI, 2008,p.36) Para “recolocar o ‘latino-americano’ no mundo” deve- se considerar a construção híbrida da latino-americanidade. A cultura de europeus do mediterrâneo somada aos indígenas e os africanos, agora essa fusão se amplia na interação com o mundo anglófono (CANCLINI, 2008,p.77). O NÃO-TERRITÓRIO: UMA CARTOGRAFIA PARA A AMÉRICA LATINA A I Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre em 1997, apesar da limitação da participação de países que compunham o Mercosul- Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai- e um país convidado- Venezuela propôs um olhar sobre a arte da região. A curadoria da exposição a organizou em três temas "Construtiva - A arte e suas estruturas", "Política - A arte e seu contexto" e "Cartográfica - Território e história”. Dois seminários internacionais foram realizados durante o período da exposição onde as utopias latino-americanas e o ponto de vista dos países do hemisfério norte sobre a arte latino- americana foram amplamente discutidas. Na I Bienal do Mercosul, no grupo de obras "Cartográfica - Território e história”, o artista argentino Victor Grippo expõe obra da série “Analogia”- conjunto de obras com batatas, mesas, cadeiras, algumas conectadas com eletrodos e cabos fazendo medidas de cargas elétricas geradas pelas batatas- intitulada “Analogia IV”. Víctor Grippo, Buenos Aires, Argentina, 1936-2002 Analogia IV (III), 1972 Madeira, tela, acrílico, e metal 81,5 x 94,3 x 59 cm A obra apresenta de um lado da mesa um prato com três batatas garfo e faca sobre uma toalha branca e do outro lado da mesa retangular sobre uma toalha negra a repetição dos mesmos objetos em acrílico transparente. Ao explorar metaforicamente o tubérculo de origem americana propõe um olhar para os contrastes: natural e o artificial, o positivo e o negativo, branco e preto. Ivens Machado Florianópolis, Brasil 1942- Mapa Mudo, 1979 Concreto e vidro, 150x150x18cm Coleção Gilberto Chateaubriand Obra do artista brasileiro Ivens Machado intitulada "Mapa Mudo” apresenta um mapa do Brasil construído em concreto recoberto de cacos de vidro. Obra realizada em 1979, momento em que o Brasil vivia uma ditadura militar, sugere os duros tempos de restrição aos direitos humanos. Como os muros cravejados de cacos de vidro para isolar uma área, a obra representa o país fechado politicamente. A impossibilidade de tocar a obra pelas pontas cortantes dos pedaços de vidro dá o limite à apreensão da concretude da realidade brasileira. Rubens Gerchman. A Nova Geografia / Homenagem a Torres García, 1971-1979 Rubens Guerchman retoma o mapa invertido de Torres Garcia homenageando o artista uruguaio e propõe um olhar © 2011 WCCA April 17 - 20, 2011, São Paulo, BRAZIL World Congress on Communication and Arts 195 crítico para uma nova cartografia... Sua obra “A Nova Geografia/ homenagem a Torres Garcia” foi produzida na década de setenta do século XX e aponta para a forte americanização da cultura latino-americana. É momento de ditaduras no território latino-americano, dívidas internacionais quase impagáveis e de um processo crescente de influência cultural norte-americana. As rádios tocam música norte-americana e a televisão veicula “enlatados” produzidos nos Estados Unidos da America. No Brasil, o acordo MEC/USAID altera o projeto educativo do país passando do modelo humanista francês para um modelo tecnicista norte-americano. A segunda língua obrigatória nas escolas brasileiras passa ser o inglês. Contudo, há também, por conta do fechamento político das ditaduras latino-americanas, assim como também a crise econômica nesses países um êxodo muito grande de latino- americanos para os EUA, que criam comunidades de latinos na América do Norte, também na Europa ou em outros países da própria América Latina. “A América Latina não está completa na América Latina. Sua imagem é devolvida por espelhos dispersos no arquipélago das migrações” (CANCLINI,2008,p.25). Nicolás Garcia Uriburu realiza uma série de obras onde apresenta sua visão geopolítica inspirado na obra “El norte es el Sur”de Joaquim Torres Garcia. São elas: “Latinoamérica, reservas del futuro, unida o sometida”, 1973; “Mapamundi (desde el sur). Inversión de la relación norte-sur por sur-norte”,1981; “Mapamundi concreto”, 1993; “Granero del mundo”, 1993; "Ni arriba ni abajo" 1993; “Utopía del sur”, 1995; “Rojo sur”, 1997;”Latinoamérica con hojas y espinas”, 2000. Escolhemos para o artigo a obra "Ni arriba ni abajo", 1993 por colocar as Américas lado a lado como se estivesse em uma balança equilibrada. O fundo em cores quentes alertam para um cenário conflituoso ou, pouco harmônico, para representar esse equilíbrio. É quase uma provocação! Uriburu, Nicolás García,. Buenos Aires, Argentina 1937- "Ni arriba ni abajo" 1993 – Óleo sobre tela 130 x 220 cm Colección Francisco de Narváez Imagem utópica propõe que após 58 anos da obra manifesto de Torres Garcia poderíamos estar em relação de igualdade... Estamos longe desse equilíbrio da balança? A América Latina é composta por índios, imigrantes europeus, africanos, asiáticos... Essa multiculturalidade dificulta a definição do que somos. As fronteiras físicas não contornam o espaço latino-americano, estamos também como imigrantes nos outros continentes, assimilamos e somos assimilados nos diálogos transculturais. O que nos faz constituir uma região? Canclini (2008) propõe algumas reflexões para que a América Latina se constituísse como região: a- encontrar áreas estratégicas para o desenvolvimento com fortalecimento e valorização de nosso patrimônio tangível e intangível, buscando ganhar espaço nas industrias culturais para produção de conteúdos; b- desenvolver políticas socioculturais para promover o avanço tecnológico para promover nossa expressão multicultural com participação democrática dos cidadãos latino- americanos; c- recolocar as políticas culturais em áreas estratégicas de desenvolvimento nacional e internacional; d- proteger e cultivar a diversidade latino-americana. Políticas públicas socioculturais podem transformar as condições de acessibilidade de informação e bens de consumo - ainda inacessíveis à América Latina como um todo – dando voz e espaço de audição, no mundo globalizado, para que os latino-americanos expressem sua cultura mestiça. A integração da América Latina continuará sendo uma “utopia”, entre aspas irônicas ou cínicas, enquanto não houver articulação entre trabalhadores, indígenas, consumidores, cientistas, artistas, produtores culturais; enquanto não incluirmos na agenda formas de cidadania latino-americana que reconheçam os direitos de todos os que produzem dignamente dentro ou além de seus territórios de nascimento (CANCLINI,2008, P.105). Os artistas expositores da I Bienal do Mercosul, eleitos para o artigo, apresentam novas configurações cartográficas para a América Latina, numa busca de encontrarmos o nosso lugar. Continuamos a refletir sobre os territórios culturais: Onde está a América Latina no contexto geopolítico- cultural do mundo globalizado? REFERÊNCIAS [1] ADES, Dawn. Arte na América Latina. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1997. [2] AMARAL, Aracy A. Textos do Trópico de Capricórnio. Volume II. São Paulo: Editora 34, 2006. [3] BERTOLI, Mariza. A Sedução dos Contrários na Arte da América Latina. Tese de doutorado. São Paulo: PROLAM-USP, 2003. © 2011 WCCA April 17 - 20, 2011, São Paulo, BRAZIL World Congress on Communication and Arts 196 [4] BULHOES, Maria Amélia; KERN, Maria Lúcia Bastos (org.). América Latina: territorialidade e práticas artísticas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. [5] CANCLINI, Nestor. As Culturas Híbridas. México: Grijalbo, 1990. [6] CANCLINI, Néstor García. Latino-americanos à procura de um Lugar neste Século. São Paulo: Iluminuras, 2008. [7] CAPELATO, Maria Helena Rolim. Modernismo Latino-Americano e construção de identidades através da pintura. In: Revista de História, número 153. São Paulo: FFLCH/USP, 2005. [8] MELENDI, Maria Angélica. Da adversidade vivemos ou uma cartografia em construção In: Anais do 7° Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, 2008. www.ig.art.br/territorialidades/archivos/doc_texto_71.doc © 2011 WCCA April 17 - 20, 2011, São Paulo, BRAZIL World Congress on Communication and Arts 197 Página Inicial: