RENATO CESAR SANTEJO SAIANI LIBERDADE HIPOTECADA: o processo de independência cubana na imprensa brasileira (1895-1902) ASSIS 2013 RENATO CESAR SANTEJO SAIANI LIBERDADE HIPOTECADA: o processo de independência cubana na imprensa brasileira (1895-1902) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade). Orientador: Dr. José Luis Bendicho Beired. ASSIS 2013 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP. Saiani, Renato Cesar Santejo S132l Liberdade hipotecada: o processo de independência cubana na imprensa brasileira (1895-1902) / Renato Cesar Santejo Saiani. Assis, 2013 180 f. : il. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista. Orientador: Prof. Dr. José Luis Bendicho Beired 1. Cuba. 2. Jornal do Commercio (1827-). 2. O Estado de São Paulo (Jornal). 3. Estados Unidos. I. Título. CDD 972.91 079.81 Para Paulo, Lúcia, Carlos e Paula, meu Quarteto Fantástico, que com amor e coragem me deram o incentivo necessário para trilhar o caminho que me trouxe até aqui. Agradecimentos Não há melhor maneira de começar se não pelos meus pais, Paulo e Lúcia. São aqueles que iniciaram minha história e ainda me acompanham e me orientam, mesmo a distância, em todas as minhas lutas, apreensões, dúvidas e medos. Também são eles que celebram minhas vitórias e conquistas e por isso são indispensáveis em minha vida e devo esse momento a eles. Julgo necessário agradecê-los por experiências e exemplos particulares que ainda me ajudam a moldar meu caráter e minha postura como homem. Ao meu pai devo o exemplo de honestidade e retidão, além do investimento e crença no meu sucesso, que foram essenciais em minha caminhada. À minha mãe agradeço por sempre estar ao meu lado lutando bravamente contra aqueles que duvidavam da minha capacidade, por ter muitas vezes esquecido seus problemas para tentar resolver os meus e, acima de tudo, pelo carinho e dedicação que sempre me dão a sensação de que sou capaz de superar qualquer obstáculo. Ao meu irmão, melhor amigo e segundo pai, Carlos, quero deixar o registro de que ele realmente é um exemplo para mim, pois foi ele quem me inspirou a fazer muitas das coisas que hoje conquistei em meu percurso. “Carlão” você me ensinou que ninguém bate tão forte quanto a vida, contudo, não se trata de quão forte ela pode bater, mas sim do quanto você pode ser atingido e mesmo assim continuar seguindo em frente. Muito obrigado por fazer parte da minha vida e por me mostrar que os caminhos a serem tomados nem sempre são os mais óbvios, comuns ou fáceis. À Paula dedico o meu amor e carinho. Esses seis anos de convivência permitiram que eu me tornasse um homem melhor, repleto de planos e objetivos, os quais tenho certeza de que serão realizados ao seu lado. Agradeço imensamente pelo companheirismo, compreensão, coragem, paciência e amor, todos irradiados pelo seu sorriso e pelo brilho de seus olhos. Sua presença me completa de uma maneira indescritível e imensurável. Obrigado por caminhar ao meu lado e me ajudar a superar os desafios que se impuseram ao longo de todos esses anos. Findas as referências familiares volto meus agradecimentos ao professor José Luis Bendicho Beired. Sua orientação segura, interessada e amigável, respeitando minhas posições e pontos de vista, permitiu que eu me desenvolvesse academicamente. Sou grato por todos os livros emprestados, textos indicados e leituras atentas e apuradas. Agradeço aos professores Clodoaldo Bueno e Carlos Alberto Sampaio Barbosa, pelos quais tenho grande apreço, que contribuíram sobremaneira com a leitura e apontamentos durante minha Qualificação. Sou muito grato, também, aos aportes teóricos e metodológicos que recebi nas discussões do grupo de estudos temáticos “Cultura e Política nas Américas”. Aos meus amigos Ulda, Mara e Alex, aos quais considero como minha “família assisense”, agradeço pela recepção calorosa, por todo o auxílio, conselhos e pelos momentos de descontração, tenho sorte de contar com amizades tão sinceras e cordiais. Dois funcionários da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, também foram representativos em minha caminhada. Inicialmente, volto meus agradecimentos para Ana Elisa Paziam dos Santos com quem aprendi que o trabalho exercido com prazer e felicidade transforma-se em competência e solicitude; obrigado também pelo incentivo nos momentos em que os problemas técnicos tornavam minha pesquisa impraticável. Em segundo lugar, agradeço ao Auro Sakuraba, pelos seus “olhos de águia” que sempre localizam os livros e revistas que fogem à nossa percepção e também pelo seu constante bom-humor e disposição. Agradeço aos funcionários dos arquivos onde realizei minha pesquisa, CEDAP (Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa) localizado na UNESP de Assis, e AEL (Arquivo Edgard Leuenroth) localizado na Unicamp. Sem o acervo existente nesses centros esse trabalho não teria se desenvolvido. Finalizo com os agradecimentos à FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) pelo apoio material que recebi na Iniciação Científica e Mestrado, responsável pela minha dedicação exclusiva à construção deste trabalho. SAIANI, Renato Cesar Santejo. LIBERDADE HIPOTECADA: o processo de independência cubana na imprensa brasileira (1895-1902). 2013. 180 f. Dissertação (Mestrado em História). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo central analisar de forma comparada a produção dos periódicos Jornal do Commercio e O Estado de S. Paulo, no período compreendido entre os anos de 1895 e 1902, acerca do processo de independência cubana e suas diversas configurações e desdobramentos. Procuraremos, fundamentalmente, compreender como cada jornal se posicionou em relação ao conflito hispano-cubano e à posterior intervenção norte- americana, quais foram os aspectos privilegiados por cada um e se houve mudanças na postura dos mesmos em relação ao conflito que se desenvolvia em Cuba. Palavras-chave: Cuba; Jornal do Commercio; O Estado de S. Paulo; Estados Unidos. SAIANI, Renato Cesar Santejo. MORTGAGED FREEDOM: the process of Cuban independence in the Brazilian press (1895-1902). 2013. 180 f. Dissertation (Master’s Degree in History) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013. ABSTRACT The present study has as the main objective to analyse in a comparative form the production of the newspapers Jornal do Commercio and O Estado de S. Paulo, in the period between the years 1895 and 1902, about the process of Cuban independence and its various configurations and deployments. We will seek to fundamentally understand how each newspaper was positioned in relation to the Spanish-Cuban conflict and the subsequent U.S. intervention, what the privileged aspects of each were and whether there were changes in their positions in relation to the conflict that developed in Cuba. Keywords: Cuba; Jornal do Commercio, O Estado de S. Paulo; United States. Sumário Introdução ............................................................................................................................ 09 Capítulo 1. O processo de independência cubana: história de um projeto de liberdade....... 16 1.1. A Guerra dos Dez Anos e o primeiro fracasso separatista..................................... 18 1.2. José Martí e os novos sonhos de independência.................................................... 28 1.3. Antagonismo inevitável: Espanha e Cuba novamente em guerra.......................... 33 1.4. Rumo a uma nova relação de domínio: a intervenção e tutela norte-americana.... 44 Capítulo 2. O Brasil republicano no contexto internacional................................................. 63 2.1. A política exterior da República............................................................................ 66 2.2. A Imprensa no final do século XIX: comercialização e discussão política........... 77 2.2.1. O Estado de S. Paulo................................................................................. 79 2.2.2. Jornal do Commercio................................................................................ 83 Capítulo 3. Impressões de uma guerra: os discursos da imprensa brasileira sobre a independência cubana ............................................................................................................ 88 Capítulo 4. A imprensa brasileira frente ao expansionismo norte-americano...................... 117 4.1. Antecedentes da Guerra Hispano-Americana........................................................ 119 4.2. O início de uma nova tutela................................................................................... 132 Considerações Finais ........................................................................................................... 153 Fontes .................................................................................................................................... 158 Referências Bibliográficas................................................................................................... 158 Anexos Anexo A: Levantamento quantitativo das seções de O Estado de S. Paulo (tabelas) 166 Anexo B: Levantamento quantitativo das seções do Jornal do Commercio (tabelas) 169 Anexo C: Reprodução de documentos......................................................................... 172 9 Introdução 10 O objetivo deste trabalho é analisar, por meio da produção jornalística dos periódicos Jornal do Commercio e O Estado de S. Paulo, no período compreendido entre os ano de 1895 e 19021, a repercussão do processo de independência cubana na imprensa brasileira. Os posicionamentos e opiniões emitidas pelos jornais serão observados a partir de uma perspectiva comparada e com base na configuração política e ideológica assumida por cada um. Além disso, intenta-se investigar em que medida, por meio do posicionamento destes jornais, é possível encontrar propostas ou opiniões acerca da inserção do Brasil no âmbito das relações políticas internacionais, sobretudo americanas. O uso dos jornais como fonte histórica foi, por muito tempo, questionada por sua falta de objetividade e pelo uso instrumental e ingênuo que tomava os periódicos como meros receptáculos de informação a serem selecionadas, extraídas e utilizadas “ao bel prazer do pesquisador”2. Essa caracterização da imprensa sofreu um deslocamento fundamental na década de 1970, na medida em que o próprio jornal tornou-se objeto da pesquisa histórica. Assim, definiram-se na relação da História com a imprensa dois campos de estudo: “História da Imprensa” e “História Através da Imprensa”3. O primeiro tem como objetivo reconstruir o processo histórico dos órgãos de comunicação determinando suas principais características e formas de atuação. O segundo, por sua vez, refere-se a trabalhos que utilizam a imprensa como fonte primária para a pesquisa4. Nosso trabalho insere-se na segunda modalidade, contudo, não podemos deixar de aproveitar os pressupostos do campo da “História da Imprensa”, pois é impossível a utilização de periódicos como fontes sem o conhecimento de 1 As balizas temporais deste trabalho foram delimitadas levando-se em consideração o início das atividades, em Cuba, do movimento separatista (1895), que desencadeou uma guerra contra a dominação colonial espanhola; e a retirada das tropas norte-americanas da ilha, caracterizando o fim de quatro anos de domínio militar e o início de um novo governo, liderado por Tomas Estrada Palma, efetivamente cubano (1902). 2 LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos, e por meio dos periódicos. In. PINSKY, Carla Bassanezi (org.) Fontes Históricas São Paulo: Editora Contexto, 2005. p. 126. 3 ZICMAN, Renée Barata. História através da imprensa: algumas considerações metodológicas. In Projeto História nº. 4. PUC. São Paulo. 1981, p. 89. 4 Ibidem. 11 sua história, seu posicionamento político, suas vinculações e seus interesses, como demonstram Maria Helena Capelato e Maria Lígia Prado: A escolha de um jornal como objetivo de estudo justifica-se por entender-se a imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação, de interesses e de intervenção na vida social, nega-se, pois, aqui aquelas perspectivas que o tomam como mero “veículo de informações”, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político social na qual se insere.5 Assim, os discursos e representações6 dos jornais acerca do processo de independência cubana, que serão discutidos ao longo do texto, inserem-se na perspectiva metodológica de observar a imprensa como um agente que participava constantemente das discussões políticas que se desenvolviam no período. As particularidades de cada periódico também nos permitem fazer uma análise comparada entre as opiniões por eles emitidas. Segundo Marc Bloch, a comparação deve “escolher, um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários fenômenos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si, descrever essas curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferenças e, na medida do possível, explicar umas e outras”7. Obviamente nossa pesquisa não estabelece uma comparação entre grandes sociedades, como propunha Marc Bloch, entretanto, apreende os pressupostos teórico- metodológicos da História Comparada para que possamos estabelecer uma comparação entre os jornais sem incorrer nas generalizações, justaposições, ou classificações precipitadas, mas sim constatar as semelhanças e diferenças entre os discursos de cada um e, na medida do possível, explicá-las com base em uma aproximação. A independência cubana possui uma trajetória sui generis se comparada ao processo pelo qual passaram os demais países latino-americanos, pois, após duas guerras separatistas, não atingiu por completo sua soberania, passando, em 1899, do domínio colonial espanhol 5 CAPELATO, Maria Helena e PRADO; Maria Lígia. O Bravo Matutino: imprensa e ideologia no jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: Editora Alfa-Ômega. 1980, p. XIX. 6 Por representações entendemos, de acordo com a formulação de Pierre Rosanvallon, “a maneira pela qual uma época, um país, ou grupos sociais procuram construir as resposta àquilo que percebem mais ou menos confusamente como um problema”. Conf. ROSANVALLON, Pierre. “Por uma história Conceitual do Político”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.15, nº 30, 1995, p. 16. 7 BLOCH, Marc. Para uma história comparada das sociedades europeias. In:_______. História e historiadores: textos reunidos por Ètienne Bloch. Lisboa: Teorema, 1998, p. 120. 12 para a tutela norte-americana e mantendo-se, mesmo com a retirada das tropas estadunidenses, em 1902, presa aos limites estabelecidos pela Emenda Platt, incluída de forma impositiva à sua Constituição. Criou-se, assim, um forte compromisso com a busca da soberania nacional e o estabelecimento de uma sociedade igualitária, em termos liberais, constantemente frustradas pelas ingerências externas ou pelo centralismo dos governos autoritários que se revezaram ao longo do século XX. A segunda guerra de independência cubana chegou ao Brasil em um período no qual o americanismo orientava a política externa e marcava uma nova forma de relacionamento do país com o contexto continental, sobretudo com os Estados Unidos. Nessa constatação baseia- se a nossa primeira hipótese, pois julgamos que a solidariedade americana e o estreitamento dos laços políticos e econômicos com os norte-americanos influenciaram a interpretação e o discurso dos periódicos acerca do processo de independência cubana, seus desdobramentos e consequências. O Estado de S. Paulo possuía uma concepção política baseada nos postulados liberais, na autodeterminação dos povos e na sua definição como órgão de oposição aos governos constituídos, buscando calibrar seu princípio liberal de autonomia à experiência prática e institucional de outros países, sobretudo na dos Estados Unidos. O Jornal do Commercio, por sua vez, possuía um caráter essencialmente conservador e ligado aos interesses do governo e da elite carioca e, a partir da instauração do regime republicano e da mudança de seu grupo diretor, assumiu uma forte admiração pelos Estados Unidos, devido ao seu desenvolvimento industrial e organização institucional, colocando-o como exemplo para o crescimento brasileiro. As diferentes orientações políticas dos periódicos norteiam, assim, a segunda hipótese deste trabalho, pois acreditamos que elas serão responsáveis pela construção de um discurso díspar, com vistas a influenciar e satisfazer as opiniões e interesses do público alvo de cada jornal. Nesse sentido, procuraremos acompanhar como cada periódico se posicionou 13 em relação à questão cubana, quais foram as diferenças e, se existiram, as semelhanças, quais os aspectos privilegiados nas análises, se houve mudanças de posicionamento e a veiculação de manifestações de outros agentes da opinião pública8 paulista e carioca. Com a análise da visão da imprensa sobre a independência cubana, pretendemos realizar uma nova contribuição sobre esse tema, pouco conhecido e estudado pela historiografia brasileira. Essa observação nos possibilita, também, encontrar propostas e opiniões acerca da inserção do Brasil no âmbito das relações externas, com ênfase para as interamericanas. Permite, além disso, discutir o papel que os Estados Unidos possuíam nas relações continentais e sua busca por uma maior projeção no sistema internacional, sempre tendo como parâmetro o desenrolar dos acontecimentos referentes ao conflito existente no território cubano. *** O trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro, buscamos apresentar uma síntese do processo de independência cubana, observando o desenvolvimento das questões militares e diplomáticas, os interesses dos países envolvidos, a intervenção norte-americana e a consequente instauração de um regime de tutela estadunidense em Cuba. Para isso será necessário fazer um breve recuo ate a primeira guerra de independência, entre 1868 e 1878, no intuito de entender como se desenvolveu a insatisfação com o domínio colonial espanhol e qual foi o legado deixado para construção de um novo levante separatista. Julgamos necessário, também, nos deter na análise da influência e ação de José Martí na união dos setores diversos da sociedade cubana em prol de um objetivo comum e na construção de um projeto político-ideológico de independência. Ressalta-se que não temos a pretensão de 8 Entendemos por opinião pública, de acordo com a formulação de Jean Jacques Becker, “um conceito em profundidade, com a finalidade de perceber, da maneira mais precisa e segura possível, a atitude e comportamento dos homens confrontados com os acontecimentos”, sem perder de vista que ela apresenta um caráter multifacetado “revelando um fervilhamento de opiniões particulares nas quais, em alguns casos, as manifestações da minoria podem ser mais representativas e atuantes do que as de uma maioria que se reserva ao direito de observar os fatos à distância”. Conf. BECKER, Jean-Jacques. “A opinião pública”. In RÉMOND, René (org). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 186; 190-191. 14 esgotar o assunto, mas sim demonstrar temas importantes para o entendimento das discussões e posicionamentos assumidos pelos periódicos e que serão analisados nos capítulo posteriores. No segundo capítulo, pretendemos demonstrar como a instauração do regime republicano reorientou a política externa brasileira para o continente americano, sobretudo para os Estados Unidos, desenvolvendo a ideia de uma solidariedade continental e visando apagar o legado deixado pelo regime monárquico. Consideramos essa apresentação necessária, pois a mudança da política externa brasileira teve considerável influência nas representações construídas pelos periódicos acerca do processo de independência cubana, suas consequências e desdobramentos. Ainda neste capítulo faremos uma breve análise da história de cada jornal, para podermos entender como as características ideológicas e políticas de cada um influenciaram nas nuances de interpretação em relação à insurgência cubana. No terceiro capítulo, iniciaremos a análise das opiniões e posicionamentos assumidos por cada periódico em relação ao objeto de estudo deste trabalho. Contudo, optamos por dividir o desenvolvimento dos eventos em dois períodos: o primeiro, inserido nos anos de 1895 a 1897, apresenta o início da rebelião separatista e o alargamento dos conflitos militares e das discordâncias diplomáticas, culminando na adoção de uma proposta de governo autonomista para a ilha; o segundo momento, fixado entre os anos de 1898 e 1902, refere-se ao período no qual os Estados Unidos abandonaram sua atuação exclusivamente diplomática e promoveram uma intervenção militar em Cuba, finalizando o domínio espanhol e implantando um regime de tutela no território insular. Assim, neste capítulo nos dedicaremos exclusivamente ao período de 1895 a 1897, observando como os jornais receberam e repercutiram as questões relacionadas ao conflito hispano-cubano. Por fim, o quarto capítulo, será dedicado ao período de 1898 a 1902, no qual a nova fase da política externa norte-americana, mais agressiva e projetada de maneira concreta no 15 espaço internacional e a instauração de um governo militar e a adoção da Emenda Platt, dominaram as discussões e opiniões do Jornal do Commercio e do Estado de S. Paulo. 16 Capítulo 1 O processo de independência cubana: história de um projeto de liberdade 17 O processo de independência cubana foi um dos mais importantes pontos de inflexão nas relações e influências que agiam no continente americano em fins do século XIX. Inicialmente, concluiu a desintegração do Império colonial espanhol na América e no Pacífico, além de aprofundar a crise nacionalista enfrentada pelo território peninsular. Concomitantemente, configurou-se como o início de uma nova fase da política exterior norte- americana, mais agressiva e projetada de maneira concreta no espaço internacional. Por fim, promoveu a redefinição dos países latino-americanos em relação aos Estados Unidos e à sua antiga metrópole, principalmente pelo embate das correntes ideológicas representadas pelo hispanismo e pan-americanismo. Para o território cubano o caráter frustrado da independência deixou uma importante herança para os movimentos revolucionários que surgiram posteriormente, sobretudo, para Revolução de 1959. Este movimento não deve ser entendido em uma perspectiva de curta duração, pois os fracassos de 1868 e 1895, segundo José Rodrigues Mao Júnior, “acabaram por determinar a correlação de classes do movimento nacional cubano, que passou a basear-se num nacionalismo militante extremado e de caráter crescentemente anti-imperialista”9. Nesse sentido o ideal revolucionário de 1959 não surgiu de forma espontânea, mas sim em decorrência de uma construção de longa duração, permitindo um processo histórico baseado na constante luta por uma liberdade efetiva. Podemos observar essa situação no discurso de Fidel Castro, diante do Tribunal de Exceção de Santiago, ainda em 1953: Há uma razão, porém, que nos assiste, mais poderosa que todas as outras: somos cubanos. E ser cubano implica um dever, não cumpri-lo é crime de traição. Vivemos orgulhosos da história de nossa pátria; aprendemo-la na escola e crescemos ouvindo falar de liberdade, de justiça e de direitos. Ensinaram-nos a venerar desde cedo o exemplo glorioso de nossos heróis e de nossos mártires. Céspedes, Agramonte, Maceo, Gómez e Martí foram os primeiros nomes gravados em nosso cérebro; ensinaram-nos que o Titã (Antonio Maceo) havia dito que a liberdade não se mendiga, mas se conquista com o fio da espada [...]10 9 JÚNIOR, José Rodrigues Mao. A Revolução Cubana e a questão nacional (1868-1963). São Paulo: Editora do autor, 2007, p. 17. 10 CASTRO, Fidel. A história me absolverá. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1979, p. 107-108. 18 Apesar da importância adquirida pelo processo de independência cubana a historiografia brasileira não produziu estudos específicos sobre esse assunto11, obrigando os interessados a buscarem informações na historiografia cubana, espanhola, norte-americana e, com menor incidência, argentina. Assim, tendo em vista essa situação, procuraremos neste capítulo desenvolver uma síntese da independência cubana em fins do século XIX, observando as questões militares e diplomáticas, os interesses dos países envolvidos, a intervenção norte-americana e os desdobramentos do fracasso separatista. Para isso será necessário fazer um breve recuo para a primeira guerra de independência, entre 1868 e 1878, no intuito de entender como se desenvolveu a insatisfação com o domínio colonial espanhol e qual foi o legado deixado para a construção de um levante posterior. Julgamos necessário, também, analisar a influência e a ação de José Martí na união dos setores diversos da sociedade cubana em prol de um objetivo comum e na construção de um projeto político- ideológico de independência. Ressalta-se que não temos a pretensão ou a ousadia de esgotar o assunto, mas sim demonstrar temas importantes para o entendimento das discussões e posicionamentos assumidos pelos periódicos e que serão analisados em capítulos posteriores. 1.1. A Guerra dos Dez Anos e o primeiro fracasso separatista O destino colonial de Cuba foi marcado por sua posição estratégica no seio do Império espanhol adquirindo desde logo uma importância considerável como porto de escala e ponto privilegiado de comunicação com as outras colônias americanas. A ilha possuía, também, um potencial natural diversificado, do qual podemos destacar a exploração de jazidas de ouro, a 11Alguns poucos estudos brasileiros abordaram de forma tangencial, por objetivarem o estudo de outros temas, a independência cubana, entre eles podemos destacar: A Revolução Cubana, Luis Fernado Ayerbe; De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, Luiz Alberto Moniz Bandeira; A data símbolo de 1898: o impacto da independência de Cuba na Espanha e Hispanoamérica, de Maria Helena Capelato; Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana, Florestan Fernandes; A Revolução Cubana e a questão nacional (1868-1963), José Rodrigues Mao Júnior. 19 criação organizada de gado e a produção de gêneros coloniais, como tabaco, açúcar e café. Entretanto, essas possibilidades foram, por certo período, subaproveitadas pela Espanha, que direcionava seus interesses para suas demais colônias no continente. A exploração de ouro, por exemplo, foi feita de forma superficial ainda no século XVI, mas as reservas não muito extensas e a concorrência da exploração no território mexicano criaram obstáculos à sua continuidade. A agropecuária ficou restrita ao abastecimento das frotas itinerantes espanholas e ao consumo interno. O setor agrícola, por sua vez, passou por um desenvolvimento concreto apenas no final do século XVI, com a produção de tabaco, mantendo a supremacia deste produto até meados do século XVIII, quando os espanhóis aumentaram o investimento nas plantações de açúcar e café, devido à perda de grande parte de suas colônias, do fim da concorrência haitiana e da aproximação com os Estados Unidos – livres da obrigatoriedade de consumir os produtos provenientes da Jamaica ou de outras colônias britânicas. Cuba converteu-se rapidamente em um dos principais produtores de açúcar, atingindo o índice de 42% da produção mundial em 187012. Ao assumir essa nova posição de grande exportadora, Cuba mudou de uma colônia com pouco dinamismo econômico e de pequenas cidades, fazendas de gado e de tabaco, para um território agrícola de considerável importância, recuperando o atraso de aproximadamente três séculos em apenas algumas décadas. Segundo Adrian A. Bantjes: By the early 19th century, Cuba had become an economic powerhouse, the world’s leading producer of sugar: vast sugar haciendas, owned by Cuban planters and worked by slave labor, dominated the countryside, especially the western part of the island, and employed the latest technology, such as steam-driven mills, and even railways, developed in Cuba well before they were built in Spain. Cuba's wealth was also apparent in Havana, a bustling port city of 140.000, where colonial structures mixed with the French-style places of the noveaux riches13. As consequências diretas desse desenvolvimento agrícola foram o surgimento das grandes propriedades produtoras de açúcar, a maior concentração de renda e o incremento da 12 TONE, John Lawrence. Guerra y genocidio en Cuba (1895-1898). Madrid: Turner publicaciones, 2008, p. 32. 13BANTJES, Adrian A. The Spanish-Cuban-American War: a Cuban perspective. In MELLIZO, Carlos; NÚÑEZ, Ladevéze (coord.). España, Estados Unidos y la crisis de 1898 (reflexiones para un centenario). Madrid: Fundación para el Análisis y los Estudios Sociales y los autores, 1998, p. 106-107. 20 mão de obra escrava, necessária para o trabalho nas lavouras14. Aumentou, também, o racismo branco, principalmente pelo espectro constante da revolução haitiana que pairou sobre Havana ao longo do século XIX. Essa situação contribuía para que criollos e peninsulares definissem o domínio espanhol como a garantia de manutenção do sistema escravista e de controle em relação a qualquer ameaça rebelde que pudesse surgir entre os negros e afetar o desenvolvimento da produção agrícola. A Espanha, por sua vez, se aproveitava dessa circunstância para aumentar os impostos e restrições comerciais delegadas à ilha, principalmente na exportação de açúcar para os Estados Unidos, já que a república do norte tornara-se o grande parceiro comercial de Cuba. Assim, o desenho da sociedade cubana de meados do século XIX era o de uma população majoritariamente negra, dominada por grandes produtores de açúcar, dependentes, por sua vez, da proteção espanhola e do mercado norte-americano. Mesmo as ideias do iluminismo europeu e das independências latino- americanas atingiram Cuba de forma tangencial, promovendo algumas revoltas pouco eficazes15, organizadas pelos “setores de cor e livres”16 e rebatidas pela elite branca e favorável à Espanha17. Apenas na década de 1860 o separatismo se tornou uma força política real. O primeiro movimento pró-independência com organização efetiva e a participação de uma parte da elite cubana foi iniciado em outubro de 1868, pelo advogado e proprietário de terras Carlos Manuel de Céspedes, e se estendeu ate o ano 1878. Os fatores que motivaram esse levante baseavam-se nos abusos cometidos pela administração espanhola, com destaque para a cobrança de taxas comerciais excessivas, sobretudo, após o fracasso peninsular na 14 Estima-se que entre os anos de 1791 e 1867 foram transportados 780.000 africanos para o trabalho nas plantações de açúcar, café e tabaco. Conf. TONE, Op. Cit., p. 32. 15 As rebeliões ocorreram nos anos de 1795, 1810, 1812, 1820 e 1843. Conf. GOTT, Richard. Cuba: Uma nova História.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006, p. 65-69; 82-85. 16 Esses “homens de cor e livres” eram aqueles, que de alguma forma conseguiram sua independência e atuavam como trabalhadores urbanos, operários, artesãos ou, em casos excepcionais, como pequenos comerciantes. 17 A elite branca de Cuba era formada por espanhóis de origem ou por criollos, que dominavam a burocracia do país e o comércio internacional e local. Além disso, devem ser levados em consideração os cidadãos norte- americanos que se transferiram para Cuba e dominavam uma parcela considerável da produção açucareira. 21 guerra contra a República Dominicana18, a obstrução de reformas autonomistas, o crescimento das importações provenientes da Espanha e a política de favorecimentos destinada aos produtores de açúcar do oeste. Nesse sentido, Céspedes proclamou, em conjunto com outros proprietários de terras da porção leste de Cuba, a instauração de uma rebelião contra o domínio espanhol, atacando o povoado de Yara e dando o impulso necessário para a sublevação das províncias orientais de Camanguey e Las Villas19. A conjuntura política enfrentada pelo governo espanhol contribuiu sobremaneira para a organização e desenvolvimento do movimento rebelde. Em meados da década de 1860 a Espanha passava por uma importante crise econômica e política que gerava descontentamento entre os militares e parte considerável dos setores monarquistas, além da constante pressão exercida por outros grupos políticos, como os liberais, republicanos e carlistas20. Já em setembro de 1868, a situação tornou-se insustentável e as forças navais baseadas em Cádiz amotinaram-se e lançaram um manifesto que condenava a administração vigente e negava qualquer obediência em relação a ela, culminando com o destronamento de Isabel II. Instalou- se, assim, um governo revolucionário e cercado por opiniões conflitantes que iam do monarquismo moderado dos militares, com a intenção de promover mudanças constitucionais e a substituição do monarca, ao radicalismo de alguns liberais e republicanos, defensores de um rompimento definitivo com os Bourbons e a implementação de uma República baseada no 18 Em 1861, o Haiti buscava invadir a República Dominicana, que, consequentemente, decidiu buscar ajuda na Espanha, com a renúncia de seu caráter independente em troca de ajuda militar. A ameaça haitiana foi rapidamente desfeita pelos espanhóis, mas os dominicanos declinaram de sua promessa. Essa situação causou um conflito armado entre os dois países, encerrado em 1865, com a retirada espanhola devido à grande perda de soldados para as doenças existentes na ilha. Conf. TONE, Op. Cit., p. 40-41. 19 Atualmente é denominada de Vila Clara. 20 Nos últimos anos de reinado de Fernando VII – por volta de 1830 – surgiu uma corrente ideológica e política na Espanha, de caráter tradicionalista e antiliberal, que defendia a restauração da monarquia absoluta e preconizava a subida ao trono do infante D. Carlos, irmão do então rei Fernando VII. Esse grupo, denominado Carlista, promoveu uma série de revoltas internas na península com combates constantes com as forças do exército espanhol. Conf. MARÍA MARCO, José. El 98 en la historia de España. In MELLIZO, Carlos; NÚÑEZ, Ladevéze (coord.). España, Estados Unidos y la crisis de 1898 (reflexiones para un centenario). Madrid: Fundación para el Análisis y los Estudios Sociales y los autores, 1998, p. 79. 22 princípio da soberania nacional21. Claramente a Espanha não tinha possibilidades de voltar sua completa atenção para o conflito cubano, pois os problemas internos demandavam um cuidado imediato. Favorecidos por esse ambiente os insurgentes conseguiram um avanço territorial significativo, novas cidades e homens aderiam à causa e, em meados de 1880, haviam dominado grande parte das províncias orientais, mas esbarravam na resistência dos territórios ocidentais em aderir à revolução. Essa era uma divisão tradicional em Cuba, pois o desenvolvimento econômico, político e social de cada porção territorial foram feitos de forma desigual e motivavam o desencontro de interesses. O oeste era, desde a colonização, a área de maior investimento espanhol, com a concentração das principais cidades e portos, entre os quais se destacava o de Havana, e, consequentemente, com um maior fluxo comercial e de imigrantes provenientes da Espanha. Com um sistema econômico melhor estruturado a região atraiu, no século XIX, os grandes produtores de açúcar interessados no potencial natural da ilha, assim como um forte investimento na construção de linhas férreas e do sistema telegráfico, integrando-se ao capitalismo global vigente no período22. Na corrente oposta, o Oriente não tinha recebido a mesma proporção de investimentos e passava por um atraso substancial. O predomínio das áreas montanhosas, dominadas por florestas inexploradas e com um clima excessivamente quente e úmido, dificultava a produção de açúcar diminuindo o interesse e o investimento espanhol. Destacava-se nesse cenário a existência de uma maioria de pequenas propriedades, algumas baseadas na agricultura de subsistência e outras no arrendamento. O trabalho livre era preponderante e a presença de escravos e peninsulares muito menor do que a existente no oeste. As poucas propriedades produtoras de açúcar não recebiam grandes incentivos da Espanha e sofriam com a política 21 FUSI AIZPÚRUA, Juan Pablo; GOMÉZ FERRER, Guadalupe; JOVER ZAMORA, José Maria. España: sociedad, política y civilización (siglos XIX y XX). Madrid: Areté, 2001, p.188-190. 22 FRAGINALS, Manuel Moreno. El Ingenio: complejo económica-social cubano del azúcar. Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1978, 3 volúmenes. 23 comercial de favorecimento em relação às grandes propriedades das províncias ocidentais, sendo obrigadas a complementarem sua produção com outros gêneros23. Em decorrência desses fatores a capacidade de mobilização revolucionária desta área era latente e contava ainda com a possibilidade de atacar a estrutura produtora de açúcar e outros gêneros sem sofrerem grandes prejuízos comerciais. Os ocidentais, por sua vez, não podiam correr o risco de qualquer desequilíbrio no cultivo de suas lavouras e na possibilidade de abolição da escravidão. De acordo com Florestan Fernandes, os proprietários do Ocidente, moderados e pró-espanhóis, temiam o teor radical proposto pela revolução, principalmente “o temor pela bandeira da emancipação imediata da escravidão e, sobretudo, que o controle político-militar do movimento passasse fatalmente para os grupos sociais identificados com a pressão popular por uma revolução democrática”24. Assim, Céspedes e os demais proprietários mobilizaram grande parte da população oriental para o levante separatista, alguns emanciparam seus escravos, e receberam o apoio dos trabalhadores chineses insatisfeitos com o desrespeito de seus contratos de trabalho25. Dos setores populares emergiram importantes líderes político-militares, como Máximo Gómez e Antonio Maceo, por exemplo, figuras que também tiveram papel fundamental na rebelião de 1895. Apesar da crescente adesão popular, as orientações do movimento revolucionário, inicialmente, foram ambíguas e mal definidas. Alguns defendiam a separação completa da Espanha, outros optavam por uma busca de apoio nos Estados Unidos e uma consequente anexação26 e havia aqueles que se contentavam com a obtenção de um regime autonomista. 23 Ibidem. 24 FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 61. 25 O comércio de escravos em Cuba foi suprimido em 1867, assim, era necessário buscar novas fontes de mão de obra. Os plantadores de açúcar se voltaram para a China, e o “comércio de coolies” trouxe cerca de 130 mil trabalhadores chineses para a ilha entre 1853 e 1874. Conf. GOTT, Op. Cit., p.88. 26 Desde o início do século XIX os Estados Unidos promoveram algumas tentativas de anexar Cuba, fosse pela compra ou pela força, mas com o fim da Guerra Civil norte-americana essa intenção passou a diminuir pelo temor de que uma área com a existência de escravos pudesse reacender as rivalidades entre norte e sul. No 24 Contudo, o ponto central de discordância era a resolução da situação escravista, a qual Céspedes e outros líderes, mesmo após emanciparem seus escravos, se mantinham reticentes. O direito à liberdade era um consenso, mas a forma como ela seria definida gerava desinteligências, pois muitos exigiam uma emancipação gradual e com o pagamento de uma indenização para os proprietários; os negros, por sua vez, buscavam uma libertação imediata, ou em um cenário menos otimista que ela ocorresse imediatamente após o término do conflito27. Era clara a necessidade de apoio da população de escravos e negros libertos, assim, as intenções foram gradualmente organizadas e acordou-se, mesmo sem unanimidade, a definição de um movimento independentista e com abolição ao fim do conflito. Apesar do crescimento das fileiras revolucionárias e do aparente consenso em relação ao problema escravista, a insurgência ainda se mantinha regionalizada e não conseguia afetar as províncias ocidentais, principalmente após a construção de uma linha defensiva que atravessava a ilha entre os extremos norte e sul, mais especificamente das cidades de Júcaro a Morón. A construção dessa linha foi descrita por Francisco Marín: La trocha era una línea constituida por fuertes de mampostería, con 20 hombres para su defesa distanciados un kilómetro y provistos de un proyector luminoso de 500 metros de alcance. Cada seis fuertes se situó un campamento fortificado con una guarnición de 120 soldados. A cada lado de la línea que unía dichos fuertes se establecía un espacio desprovisto de vegetación, que facilitaba la observación, y minado28. Ademais, o desenvolvimento da revolta ainda se mantinha ligada à crise interna da Espanha que, em 1874, chegava ao fim do Sexênio Revolucionário29 e iniciava sua Restauração Monárquica. O líder do Partido Conservador, Antonio Cánovas Del Castillo, em conjunto entanto, essa ideia ficou entranhada no imaginário de alguns cubanos e era propagada nos momentos de crise em relação ao domínio espanhol. Conf. MARÍN, Francisco. La estrategia militar en la Guerra de Cuba. In MELLIZO, Carlos; NÚÑEZ, Ladevéze (coord.). España, Estados Unidos y la crisis de 1898 (reflexiones para un centenario). Madrid: Fundación para el Análisis y los Estudios Sociales y los autores, 1998, p. 42 a 47. 27 ELORZA, Antonio; SANDOICA, Elena Hernández. La guerra de Cuba (1895-1898): Historia política de una derrota colonial. Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 89-91. 28 MARÍN, Op. Cit., p. 61. 29 O Sexênio Revolucionário é o período da história espanhola decorrido entre o triunfo da revolução de 1868 ate o início da etapa de restauração monárquica ocorrido em 1874. Na atividade política destes anos participaram quatro blocos políticos – unionistas, progressistas, democratas e republicanos - que se dividiram em três governos: Monarquia Constitucional, República federal e República unitária e presidencialista. Conf. FUSI AIZPÚRUA; GOMÉZ FERRER; JOVER ZAMORA, Op. Cit. 25 com o general Arsênio Martinez Campos, deu início a um movimento de restauração da dinastia bourbônica, centrada na figura de Afonso XII, e com base em uma monarquia constitucional. Instaurou-se um sistema político bipartidário, dividido entre os conservadores liderados pelo próprio Cánovas Del Castillo e os liberais liderados por Praxédes Mateo Sagasta. A superação do sistema de partido único, que levara o governo de Isabel II a ser acusado de falta de legitimidade democrática, permitiu um panorama de alternância pacífica entre os partidos, dando a ilusão de um sistema eleitoral efetivo, mas que em realidade aumentou a centralização do poder e as práticas de corrupção. Reestruturada a situação interna, a Espanha pôde voltar sua atenção completamente para a situação conflituosa desenvolvida em Cuba. Em 1876, o general Martinez Campos assumiu o comando militar da ilha e começou um processo de reorganização das forças disponíveis e dos reforços provenientes da península. Além disso, planejava minar a união entre os insurgentes, principalmente entre os líderes provenientes da elite, promovendo um sistema de compensação para aqueles que desistissem da luta. As manobras espanholas foram bem sucedidas e, no início de 1878, uma parcela dos revolucionários firmou com as autoridades militares espanholas o Pacto de Zanjón. O acordo previa, mediante a rendição dos rebeldes, anistia aos combatentes, reformas políticas voltadas para a constituição de um governo autonômico e a libertação dos escravos combatentes. Mesmo sem tocar no ponto da independência o convênio foi aceito e a situação da ilha foi considerada como pacificada. Muitos rebeldes ficaram frustrados e, para demonstrar sua indignação, redigiram o Protesto de Baragua ratificando sua intenção de continuar o combate, porém, não possuíam condições materiais e humanas para prosseguir. Em 1879 a chama revolucionária se reacendeu e teve início uma nova insurgência, denominada Guerra Chiquita, considerada como um prolongamento da Guerra dos Dez Anos. O novo movimento nasceu fadado à 26 derrota, pois não possuía uma organização efetiva, apoio e recursos para desenvolver uma luta de fato. Assim, foi suprimida com a mesma celeridade de seu surgimento. A despeito do fracasso, o primeiro movimento independentista contribuiu para o surgimento de algumas mudanças sociais, econômicas e políticas importantes para a constituição de uma consciência nacional e o surgimento de um novo levante. O primeiro ponto a ser observado é o encaminhamento dado ao problema escravista. O Pacto de Zanjón previa a libertação de todos os escravos que haviam lutado tanto do lado rebelde como do lado espanhol, mas era impossível para a Espanha promover tal abolição sem prejudicar o andamento da produção de açúcar e outros gêneros comerciais. Dessa forma, iniciou uma emancipação gradual, da qual os primeiros a usufruir foram os negros pertencentes ao exército espanhol e aqueles que nasceram ate 1810 ou depois de 1868, parcela pouco considerável da mão de obra existente em Cuba. A erradicação do sistema escravista desenvolveu-se lentamente concretizando-se apenas no ano de 1886. A transformação do trabalho escravo em uma atividade livre e assalariada, muitas vezes exercida pelos próprios negros, permitiu aos libertos, mesmo de forma precária, uma integração social e o desenvolvimento de uma nova identidade nacional baseada no sentimento de pertença ao território cubano, aumentando sua motivação para lutar em uma rebelião futura. Além disso, com o fim da escravidão a Espanha perdeu boa parte do apoio oferecido pela sociedade ocidental, o que enfraquecia ainda mais os laços colônias ainda existentes. Em segundo lugar, é necessário ter em mente a mudança estrutural pela qual passou a produção açucareira cubana. No último quarto do século XIX o açúcar proveniente da cana perdeu parte considerável do seu mercado europeu em decorrência do crescimento da extração de açúcar da beterraba, nesse sentido, as perspectivas de aumento das exportações foram minadas e alguns produtores desistiram do negócio e venderam suas propriedades às grandes empresas estrangeiras ou se tornaram fornecedores e arrendatários destas. A renda 27 concentrou-se ainda mais nas mãos de uma reduzida burguesia e a dependência comercial em relação aos Estados Unidos tornou-se aguda30, segundo Adrian Bantjes, “em 1894, 94% do açúcar cubano e 87% das demais exportações foram dirigidas para os Estados Unidos e apenas 6% do total das exportações foram destinadas para a Espanha”31. Contudo, essa transição aumentou a vulnerabilidade cubana às flutuações da economia estadunidense, sobretudo, nos períodos de crise, como no crack de 1893 e na promulgação do Wilson- Gorman Act, em 1894, que submeteu a exportação de açúcar a pagamentos de tarifas de ate 40%, anulando todos os acordos de reciprocidade firmados anteriormente32. A transformação na estrutura produtora afetou o Ocidente e o Oriente de forma distinta e exacerbou a profunda diferença entre as duas partes da ilha. Na porção leste as pequenas propriedades ficaram devastadas e as dependentes do açúcar faliram ou foram reduzidas a uma existência marginal se comparadas com a competitividade da produção das plantações de beterraba ou com a reorganizada e capitalizada região ocidental. Esta, por sua vez, recebeu um considerável contingente de imigrantes espanhóis, contribuindo para o branqueamento da população e para o surgimento de novos pequenos produtores que investiam em produtos diversos e abasteciam as províncias de Havana, Matanzas e Pinar Del Río. Em síntese, a divisão social da ilha acentuava-se ainda mais: o leste pouco desenvolvido, repleto de negros egressos das plantações ocidentais e constantemente insatisfeitos com a administração espanhola; e o oeste desenvolvido, com uma população majoritariamente branca e ainda resistente a manifestações independentistas. As mudanças econômicas e sociais posteriores ao fracasso de 1868 promoveram a manutenção do descontentamento com a administração colonial espanhola. Entretanto, era necessário reorganizar o movimento independentista para que ele pudesse ser convertido em 30 GIL, Federico. Latino America y Estados Unidos: Dominio cooperación y conflicto. Madrid: Tecnos, 1975, p. 87- 88. 31 BANTJES, Op. Cit., p. 120. Tradução do autor. 32 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 30. 28 uma força preparada e aparelhada, com possibilidades de combater de forma eficiente o domínio espanhol. Assim, a reformulação dos ideais separatistas e o início da segunda guerra de independência centraram-se nas propostas de um grupo que mesclava veteranos da Guerra dos Dez Anos com uma nova geração de cubanos, entre os quais se destacava José Martí. 1.2. José Martí e os novos sonhos de independência. Nascido em Havana, no ano de 1853, de família espanhola e com grande interesse pelos livros, José Martí começou muito jovem a dar mostras de um talento literário e de um ativismo político acentuado. Prontamente abraçou o ideal independentista cubano e, em 1869, fundou seu primeiro periódico, Patria Libre, que divulgava escritos favoráveis aos rebeldes. A apreensão de uma carta de Martí, na qual acusava um amigo de trair o movimento insurgente, o levou, aos dezesseis anos, a ser preso e condenado a seis anos de trabalho forçado. Por meio da influência de seu pai, o governo espanhol comutou sua pena pelo exílio na Espanha, onde começou a estudar Direito e a integrar os círculos da elite política e intelectual33. Sua permanência fora de Cuba lhe proporcionou uma amplitude de experiências e perspectivas que o ajudaram a lapidar o núcleo nacionalista de seu pensamento. De acordo com Antonio Elorza e Elena H. Sandoica, essa experiência: Le lleva a sentar las bases doctrinales que depuraron su patriotismo de los componentes xenófobos, articulando su específica religión de la patria – de base inconfundiblemente democrática – con una fe extensísima en la idea del progreso y la humanidad34. O conceito de nação era muito forte nas ideias de José Martí. Defendia a tese de que ela deveria emanar do próprio povo, como um sentimento interiorizado e convertido em uma realidade institucional. A nação era considerada como condição prévia para a formação eficaz de um Estado, assim como as comunidades nacionais eram o marco no qual o indivíduo 33 THOMAS, Op. Cit., 390. 34 ELORZA; SANDOICA, Op. Cit., p. 163. 29 encontrava sua plena realização. Posição contrária à tendência de se observar a nação como construção intencionada e exclusiva de uma elite governante que utilizava o nacionalismo para se sobrepor à vontade de seus opositores. Entre 1875 e 1880 Martí transitou por vários países da América Latina, como México, Guatemala e Venezuela, além disso, foi representante consular da Argentina, Uruguai e Paraguai, essas pequenas passagens e contatos serviram para definir o vínculo emocional e político de Martí com a América hispânica. Por fim, em 1881, fixou-se nos Estados Unidos, momento no qual aumentou sua produção literária e jornalística ganhando o reconhecimento dos círculos intelectuais latino-americanos. Não obstante, Martí empregou a maior parte de suas forças na busca de seu autêntico objetivo: a independência cubana. Nesta etapa, sua luta por Cuba se deu por meio das palavras e dos escritos, da fundação de revistas, dos livros e dos artigos para periódicos de língua espanhola e inglesa. Já em meados de 1884 iniciou a organização de um novo movimento revolucionário, não sem enfrentar alguns obstáculos, a serem discutidos mais adiante. O pensamento martiano é marcado por dois pontos essenciais: seu latino- americanismo e seu anti-imperialismo. A ameaça expansionista representada pelos Estados Unidos, país conhecido a fundo por Martí, teve papel fundamental na evolução do seu pensamento que criticava ativamente as ideologias definidas pela Doutrina Monroe e o Destino Manifesto. A Conferência de Washington, em 1889, o alarmou ainda mais e desencadeou sua crítica veemente ao perigo representado pela ambição comercial dos norte- americanos para as repúblicas do continente. Segundo Martí, jamais houve na América, da independência para cá, assunto que requeira mais sensatez, que obrigue a maior vigilância, que peça exame mais claro e minucioso que o convite que os Estados Unidos, poderosos, repletos de produtos invendáveis e determinados a estender seus domínios pela América fazem às nações americanas de menos poder, ligadas pelo comércio livre e útil com os povos europeus, para coordenar uma liga contra a Europa e fechar negócios com o resto do mundo. Da tirania da Espanha soube salvar-se a América Espanhola; e agora, depois de ver com o criterioso olhar os antecedentes, causas e fatores do convite, urge dizer, porque é 30 verdade, que chegou para a América espanhola a hora de declarar a sua segunda independência35. A partir de suas observações e experiências vividas nos países latino-americanos, Martí percebeu a existência de características comuns entre essas sociedades, o que tornou possível o vislumbre de uma identidade comum, além da existência de uma unidade de naturezas geográfica, histórica e social, dentre as quais Cuba estava inserida. Essa aparente unidade passou a ser defendida pelo cubano que evocava constantemente a identidade cultural e histórica, a qual adjetivou de Nuestra América. A América hispânica deveria libertar-se espiritualmente dos resquícios do colonialismo, tornando-se capaz de definir seu destino, sua autonomia e sua expressão própria. Movido pelos ideais de união continental e pelo temor do expansionismo norte- americano, José Martí reforçou sua atuação na organização de um novo movimento revolucionário cubano, encontrando sérios problemas para unificar os diversos setores interessados em combater o domínio espanhol. Para entendermos melhor essa situação é necessário retroceder para meados dos anos oitenta do século XIX. Apesar de sua ascensão como escritor, José Martí era visto com antipatia e desconfiança pelos cubanos exilados nos Estados Unidos e em outros países latino- americanos. O pensamento recorrente o definia como um homem de palavras, sem as características necessárias para ser reconhecido como um verdadeiro combatente da independência, além de ser acusado de temer uma guerra de verdade, principalmente por que seria eclipsado pelos líderes militares do movimento. Por sua parte, José Martí desconfiava, influenciado por suas experiências no México, Guatemala e Venezuela, de uma possível postura “caudilhista” de Maximo Gómez e Antonio Maceo, ou seja, da intenção de ambos assumirem de forma centralista o controle da ilha no caso de uma vitória contra a Espanha. Os primeiros contatos com os chefes militares foram, em consequência, conturbados e repletos de 35 MARTÍ, José. Nossa América: antologia. São Paulo: Coleção Nossa América. Editora Hucitec. 1980, p. 170. 31 discordâncias. Martí observava, principalmente em Máximo Gomez, uma postura autoritária e avessa às suas ideias. Nesse sentido, as discussões levaram a um rompimento entre ambos. Martí atacava Gomez com as seguintes palavras: ... un pueblo no se funda, General, como se manda un campamento [...] ¿Qué somos, General?: ¿ los servidores heroicos y modestos de una Idea que nos calienta el corazón, los amigos leales de un pueblo en desventura, o los caudillos valientes y afortunados que con el látigo en la mano y la espuela en el tacón se disponen a llevar la guerra a un pueblo, para enseñorearse después de él? […] A una guerra así mi apoyo no se le prestaré jamás36. A tensão entre os líderes do movimento independentista suavizou-se em princípios de 1890, em grande parte devido aos esforços de Martí, que reconhecia a necessidade de uma unidade entre os setores diversos. Trabalhou constantemente para unir as forças no exílio e aprendeu a conviver com o militarismo de Maceo e Gomez. Era necessária a comunhão com essas figuras, pois os líderes carismáticos e com a experiência do primeiro conflito separatista arrastavam inúmeros seguidores, necessários para a constituição de uma ação armada. O ponto de inflexão na carreira política de José Martí ocorreu em 1891, quando entrou em contato com as efervescentes comunidades de Tampa e Cayo Hueso, ambas localizadas na Flórida. Essas cidades abrigavam um número considerável de empreendedores e trabalhadores cubanos ligados ao tabaco, que se aproveitavam dos incentivos estadunidenses na concorrência com o produto importado de Cuba. Esse setor possuía uma tendência radical, e muitos deles estavam ligados ao movimento anarquista, e Martí viu a possibilidade de atraí- los para a causa cubana. Para isso incluiu às suas ideias de independência e democracia, as demandas sociais dos trabalhadores, como reforma agrária, melhores salários e condições de trabalho. Após seu triunfo na Flórida, Martí voltou-se para a fundação de uma estrutura política capaz de dirigir o processo de independência, pois, segundo José Rodrigues Mao Júnior, “ele [Martí] compreendia que as tarefas a serem realizadas iam muito além da luta pela obtenção da independência propriamente dita, pois já antevia as necessidades e desafios da construção 36 MARTÍ apud TONE, 2006, p. 55. 32 de uma república futura”37. Dessa forma, em abril de 1892 foi oficialmente fundado o Partido Revolucionário Cubano (PRC), sendo José Martí eleito comissário. O PRC38 uniu-se aos diversos Clubes e Juntas revolucionárias e ficou responsável pela organização civil da guerra e da arrecadação de fundos junto aos cubanos exilados39 para a compra e envio de armas aos combatentes na ilha. Assim, a constituição financeira e política para o desenvolvimento de uma nova investida estava consolidada e as alianças entre civis e militares foram costuradas da melhor maneira possível. O projeto de um novo levante separatista poderia, após dezessete anos de espera, ser colocado em prática. A ação e liderança de Martí geraram uma interessante discussão historiográfica, entre aqueles que se debruçaram no entendimento da construção simbólica arquitetada acerca do “apóstolo” da independência. Não temos nesse trabalho a intenção de entrar em tal debate, mas sim observar que, a despeito das classificações de “mártir”, “apóstolo”, “integrador” ou “herói nacional” e as críticas feitas a essas alcunhas, consensualmente Martí foi de suma importância para o movimento revolucionário, principalmente na estruturação política e na ação integradora, constituindo uma espécie de comunidade imaginada40 ao redor do objetivo comum de tornar Cuba independente. Seu pensamento foi, e continua sendo, utilizado e exaltado em diversos períodos da história cubana, além de ter deixado uma importante herança de ativismo e busca por uma liberdade igualitária para toda a América Latina. 37 MAO JÚNIOR, Op. Cit., p.123. 38 Sigla que utilizaremos para nos referir ao Partido Revolucionário Cubano. 39 Os trabalhadores do tabaco em Tampa e Cayo Hueso, desde a aproximação com os ideais de Martí, entregavam três dias de salário por mês ao PRC e à Junta Revolucionária de Nova Iorque para ajudar na compra de armas e outros tipos de matérias necessários para o abastecimento das tropas cubanas. Também era forte a desconfiança de que os sindicatos açucareiros norte-americanos investiam quantias vultosas para a manutenção do contingente revolucionário. Conf. ELORZA; SANDOICA, Op. Cit., p. 182. 40 Entendemos o conceito de comunidade imaginada de acordo com as ideias de Benedict Anderson. Conf. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1991, p. 32. 33 1.3. Antagonismo inevitável: Espanha e Cuba novamente em guerra Após os anos de estruturação, foi posto em andamento o plano que deu início a nova guerra de independência. A intenção inicial era promover uma série de levantes em diversos pontos da ilha mediante o envio de homens e armas em três pequenas lanchas, originárias dos Estados Unidos, para se juntarem aos rebeldes já instalados em Cuba. Essa ação, colocada em prática em janeiro de 1895, foi frustrada pela marinha norte-americana, perdendo-se grande parte de armamentos e suprimentos, além do elemento surpresa, fundamental para o sucesso inicial da rebelião41. O fracasso da primeira expedição desestabilizou momentaneamente os líderes rebeldes e colocou em dúvida a possibilidade de uma mobilização efetiva. Contudo, os patriotas cubanos voltaram a buscar recursos para restituir as perdas e lançaram um comunicado, assinado por Gomez e Martí, assegurando que o movimento continuava sua busca e seria retomado na segunda quinzena de fevereiro. E de fato em 24 de fevereiro foi emitida uma ordem de sublevação geral, que atingiu de forma esparsa as províncias do oriente e não se concretizou no ocidente. Em realidade mesmo com os demorados preparativos de guerra os cubanos residentes na ilha ainda estavam pouco informados sobre a nova proposta revolucionária e suas pretensões, além de não contarem com a presença dos principais líderes revolucionários – Máximo Gomez e Antonio Maceo – elementos fundamentais para impulsionar a adesão à luta independentista. Quando a insurreição teve início em Cuba, a Espanha era liderada pelo Partido Liberal, representado por Praxédes Mateo Sagasta. Desde o início da década de 1890 os liberais defendiam que a manutenção de suas possessões deveria ser feita por meio da implantação de uma forma de governo autônoma, mantendo os privilégios econômicos e 41 ELORZA; SANDOICA, Op. Cit., p. 182. 34 políticos da península. Dessa forma, Sagasta, em conjunto com seu ministro das colônias, propôs a implementação de um regime autonomista para Cuba, que permitiria aos insulares o controle das obras públicas, das comunicações, da saúde e da educação, além da construção de uma nova lei eleitoral mais justa e favorável aos interesses cubanos. No entanto, os demais setores da política e da opinião pública relutavam em assumir qualquer compromisso reformista e esse desacordo promovia manifestações contrárias ao Partido Liberal e desestabilizavam o governo de Mateo Sagasta. A notícia de uma rebelião em Cuba acentuou as dificuldades enfrentadas pelo gabinete governamental de Sagasta, sobretudo, quando em março irrompeu uma crise entre a imprensa liberal e um setor radical do exército espanhol. Os periódicos apontavam que um número considerável de militares vinha pedindo dispensa ou desligamento do exército por não estarem dispostos a lutar em Cuba. Em resposta os oficiais invadiram as oficinas desses jornais e promoveram uma destruição generalizada. O alto escalão das forças armadas espanhola se colocou ao lado dos oficiais exaltados e contra a lei de liberdade de expressão, colocando em risco a estabilidade interna da Espanha. Preso a essa situação, Sagasta recuou, pois não podia defender a posição dos jornais ligados ao seu partido sem acentuar a exaltação militar e o risco de um levante interno, e se demitiu do cargo de chefe do governo espanhol. Para preencher o vazio político, Cánovas Del Castillo reassumiu o gabinete com uma proposta de defesa da honra dos militares contra os ataques da imprensa. Erradicou as pretensões de qualquer reforma para Cuba e vetou a possibilidade de negociação com a nova insurreição. De acordo como essa inclinação política recorreu, novamente, ao Marechal Arsenio Martínez Campos, artífice da Restauração e da Guerra dos Dez Anos, em quem depositava a confiança no desenvolvimento de uma dupla ação, combinando a organização militar com a sua característica política conciliadora. 35 Nesse ínterim da crise espanhola, a rebelião em Cuba teve a oportunidade de se reestruturar e avançar para outras províncias. Em Santiago, Mazanillo, Bayamo, Holguín e Guantanamo a revolta já havia se instalado e os líderes começavam a suas investidas contra as guarnições espanholas, guardas civis e a população leal à metrópole. Em fins de março Antonio Maceo, seu irmão José e outros líderes desembarcaram na ilha e iniciaram os contatos com as colunas já estabelecidas. Uma vez à frente das forças sublevadas, Maceo desenvolveu uma campanha ativa, e em junho de 1895 dominou a maior parte da região oriental42. Também em fins de março, José Martí e Máximo Gomez publicaram o Manifesto de Montecristi, no qual apresentavam as metas da revolução. O documento visualizava uma República Cubana diferente das repúblicas feudais e teóricas da América espanhola e a guerra seria disputada de maneira civilizada, os negros convidados a participar e a propriedade privada e os não combatentes seriam respeitados. Em meados de abril, Gomez e Martí chegaram a Cuba e após alguns dias conseguiram se unir a Maceo e auxiliar na campanha de domínio do Oriente. Com os principais líderes estabelecidos em Cuba e a difusão do programa revolucionário a revolta recebeu o impulso necessário para o seu alargamento. No entanto, a rebelião cubana se desenvolveu para além dos combates militares e abarcou uma série de fatores políticos e econômicos que interferiam diretamente em sua evolução. Desse modo, entendemos, em consonância com Manuel Moreno Fraginals, que a guerra de independência de Cuba deve ser analisada “em três planos simultâneos, que conectados entre si formam um só conjunto de inter-relações”43. Inicialmente, temos a batalha dos setores civis pelo comando do PRC, importante para a definição de quem ficaria com o poder decisório sobre a orientação política da guerra e da interlocução com o governo da Espanha e dos Estados Unidos. Em segundo lugar, encontrava-se a situação militar, na qual se 42ELORZA; SANDOICA, Op. Cit., p. 191 43 FRAGINALS, Manoel Moreno. Cuba-Espanha-Cuba: uma história comum. Bauru: EDUSC. 2005, p. 339. 36 enfrentavam as tropas independentistas e as peninsulares. Por fim, ocorria a “batalha” diplomática entre a Espanha e os Estados Unidos, como um terceiro envolvido e com interesses específicos em relação a Cuba. A morte de José Martí, em 19 de maio de 1895, contribuiu para que os três planos citados acima sofressem sensíveis modificações. Após o encontro com as forças reunidas por Maceo, Gómez e Martí haviam partido com um pequeno contingente de homens para a província de Porto Príncipe com a intenção de impulsionar a revolta nessa região. Esse destacamento foi atacado por uma coluna de infantaria espanhola e facilmente batido sofrendo inúmeras baixas, entre elas Martí. Essa perda privou os cubanos de um homem-chave na organização revolucionária e possível condutor da guerra diplomática. Para o britânico Hugh Thomas, a perda de Martí, apesar de irreparável, possuía uma vantagem para os rebeldes, na medida em que “proporcionou um mártir para a luta cubana”44. Longe de corroborar essa afirmação consideramos a morte de Martí como um ponto de forte desequilíbrio para o desenvolvimento da revolução de independência, pois promoveu o início de uma batalha interna pelo domínio do PRC que, futuramente, afetaria a evolução militar e os objetivos propostos no Manifesto de Montecristi. O comando do PRC foi desestabilizado e passou por uma profunda crise de identidade ate meados de junho, quando Tomás Estrada Palma assumiu o posto de delegado do partido. Estrada Palma havia passado grande parte de sua vida nos Estados Unidos, sofrendo um intenso processo de “americanização” e assumindo a defesa da anexação de Cuba à União norte-americana. Nesse sentido, ocorreu uma maior aproximação entre o PRC e os estadunidenses, os quais possuíam interesses na ilha, motivados, em grande medida, pela produção de açúcar, e se diziam simpatizantes do movimento rebelde. Estabelecia-se uma contradição acerca das ideias de José Martí da necessidade de um afastamento em relação aos 44 THOMAS, Op. Cit., p. 416. 37 Estados Unidos, pois esse país oferecia riscos palpáveis para a liberdade de Cuba. Assim, a liderança civil assumiu uma nova postura e aproximou a revolta com os interesses do país do norte, o que posteriormente influenciaria diretamente no andamento das decisões militares. Em realidade, por certo período, os líderes civis foram pouco atuantes no que tange ao desenvolvimento das ações bélicas, restritas ao comando de Máximo Gomez, Antonio Maceo e, a partir de 1896, Calixto Garcia. Esses líderes possuíam o carisma necessário para arrastar uma grande quantidade de seguidores e levarem o conflito a uma evolução efetiva, ao mesmo tempo em que ignoravam as orientações políticas do partido instalado nos Estados Unidos e distantes das dificuldades da guerra. Fortalecia-se outra tendência contrária às orientações de Martí: a centralização do poder nas mãos dos militares, reconhecidos pelo cubano como possíveis exemplos da tradição autoritária presente em outros países latino-americanos. A nova postura assumida pela direção do PRC e o centralismo dos líderes militares iniciaram um choque de ideias e interesses que perdurou ao longo do conflito. A influência dos norte-americanos ligados à produção de açúcar trouxe um novo significado para a orientação política da guerra e essa situação entrou em colisão com as estratégias de combate instauradas em Cuba por Gomez e Maceo que consistiam, além da guerrilha, na destruição das usinas e das lavouras açucareiras com a intenção de causar prejuízos à economia espanhola. Entretanto, os danos se estendiam para os investidores norte-americanos que, em consequência, pressionavam o comando civil cubano radicado em Nova Iorque. Assim, as discussões sobre as decisões na esfera militar ganharam, inevitavelmente, implicações políticas e ressurgiam as antigas diferenças entre os setores civis e militares, abafadas com muita dificuldade antes do início da guerra. Apesar da morte de Martí e das discordâncias entre os comandos, a guerra contra o colonialismo espanhol logrou êxitos durante o ano de 1895. A porção leste da ilha sublevou- se com mais facilidade, e permitiu ao contingente rebelde um crescimento a cada conquista. O 38 exército libertador era constituído por uma combinação heterogênea de personagens: camponeses, negros, trabalhadores do tabaco, intelectuais, pequenos comerciantes, arrendatários e alguns estrangeiros, com poucos conhecimentos militares e desprovidos de suprimentos adequados para a manutenção de um combate eficaz45. O exército espanhol, por sua vez, era composto por uma maioria de homens provenientes do outro extremo do Oceano Atlântico, obrigados a combater em um lugar que conheciam apenas à distância. Entre o ano de 1895 e o início de 1898, a Espanha realizou o maior esforço militar de uma metrópole na América. Segundo algumas estimativas, 220.285 soldados foram enviados a Cuba, além daqueles que já combatiam na ilha46. A Espanha conseguiu esse grande número de soldados, segundo Yolanda Díaz Martínez, ao colocar em prática “el artículo 3º de la Constitución que planteaba la obligatoriedad de todo español de defender el país con las armas cuando fuese llamado a hacerlo y cuyo reclutamiento, a través de sorteos, se hacía atendiendo a la Ley de Reclutamiento y Reemplazo del Ejército.”47. Além disso, contava com a adesão dos voluntários, dos militares aposentados, dos desertores em busca de indulto, e por fim, dos presos que, por meio da Lei de Anistia de 1895, trocavam suas penas pelo cumprimento do serviço militar na ilha. Os combatentes espanhóis possuíam aparatos bélicos adequados para empreender uma derrota rápida aos rebeldes, porém tinham as mesmas dificuldades em relação à alimentação, higiene e vestimenta, além da maior suscetibilidade a contrair as doenças características da ilha. Como não era possível para os cubanos avançarem diretamente contra o exército espanhol, principalmente pela superioridade numérica e bélica, Máximo Gomez optou por assumir a estratégia da guerra de guerrilhas. Os insurgentes deveriam evitar o enfrentamento direto, permitido apenas em situações de clara condição de superioridade, e limitar-se a 45 MARTÍNEZ, Yolanda Díaz. Dos ejércitos en lucha: táticas y estructuras militares en la Guerra de Cuba, 1895- 1898. Revista Complutense de historia de America. Madrid: 1994, Editorial Complutense. n. 20, p. 260. 46 FRAGINALS, 2005, Op. Cit., p.335. 47 MARTÍNEZ, Op. Cit., p.261. 39 pequenas escaramuças e sabotagens aos recursos econômicos e estruturais dos espanhóis. A população civil era de suma importância para o desenvolvimento dessa forma de guerra, pois atuava como informante e provedora de recursos materiais48 – obviamente essa adesão à revolta não era unânime e muitos civis preferiram manterem-se favoráveis à Espanha ou neutros. A rede local de informações aliada à topografia montanhosa e selvática da porção oriental tornava a repressão espanhola ineficiente e permitam aos rebeldes se espalharem e prosseguirem com a dominação da região. No entanto, a revolução não alcançaria seus objetivos se ficasse restrita a pequenos combates e a ataques aos recursos espanhóis. Dessa forma, Máximo Gómez foi além e declarou que os cubanos empregariam uma “guerra total”, ou seja, não seriam combatidos apenas os exércitos espanhóis, mas também toda a estrutura que explorava deliberadamente os recursos econômicos de Cuba. Seu plano consistia em paralisar a produção de açúcar, tabaco e café, que sustentavam boa parte da economia da Espanha, minando o ânimo e o interesse desta em relação à ilha. Com isso buscava, além de refrear a exploração, eliminar a circulação de produtos provenientes da península, que proporcionavam trabalho aos espanhóis, reduzir a cobrança de impostos sobre a importação e exportação, diminuir a rentabilidade de Cuba e enfraquecer a lealdade que alguns trabalhadores dedicavam à Espanha. Além disso, Gómez ordenou apenas a destruição das grandes propriedades e, em oposição, destinou proteção às pequenas áreas rurais que se mantinham fora da influência do comércio espanhol, com a intenção de diminuir o abismo econômico e construir uma sociedade próxima da igualdade. A postura radical assumida por Gómez não foi consenso entre os outros líderes que não julgavam a destruição como a melhor saída, mas sim a cobrança de impostos das 48 A guerrilha cubana era favorecida em grande medida pela rede de informações constituída por uma parte da população civil. Esses homens e mulheres forneciam aos rebeldes preciosos detalhes que permitiam a localização ou a antecipação dos movimentos espanhóis pela ilha. É necessário observar que essa rede nem sempre era formada pela cooperação intencional dos civis, mas também pela pressão e violência que os revolucionários empregavam para coagir essas pessoas a colaborarem com a causa independentista. Conf. ELORZA; SANDOICA, Op. Cit., p. 198; MARÍN, Op Cit., p. 54-55. 40 propriedades para a conservação da produção, permitindo ao exército libertador arrecadar fundos para a compra de armas e outros recursos para a sua manutenção. No entanto, a política do comandante em chefe dos rebeldes não se alterou e ele justificava sua continuidade pela possibilidade de atrair novos homens, entre aqueles que perdiam o trabalho nas lavouras, para a causa e paralisar as trocas comerciais favoráveis à Espanha. Se os civis não aderissem à guerra e continuassem a produzir e vender seus produtos às cidades dominadas pelos espanhóis, a colher cana ou tabaco, ou patrulhar as cidades como forças de defesa, a revolução fracassaria. Para Máximo Gómez em uma guerra de libertação, os civis deveriam assumir um lado, ser neutro implicava ser inimigo da revolução e amigo da Espanha. Em outubro de 1895 o movimento de independência havia consolidado o domínio da porção leste da ilha e podia direcionar seus esforços para o avanço em direção ao oeste e abalar decisivamente a estrutura econômica dominada pela Espanha. O comandante espanhol, Martinez Campos, passou a recuar suas tropas para a parte ocidental com o intuito de proteger as principais províncias – Havana, Matanzas e Pinar Del Río – e propriedades açucareiras. A marcha para o oeste necessitava de um plano bem definido que explorasse as vantagens do conhecimento do território e da rede de informações construída junto à população civil. Era preciso, também, uma concentração de homens superior à usada nas escaramuças guerrilheiras, dessa forma, uniram-se as forças sob o comando de Máximo Gomez e Antonio Maceo. A marcha foi iniciada em meados de outubro com Gomez a frente de uma pequena coluna responsável por ultrapassar a linha defensiva de Júcaro-Móron e chamar a atenção dos espanhóis, facilitando, deste modo, o avanço de Maceo com o grosso do exército de invasão, operação que alcançou sucesso em fins de novembro de 1895. No início de janeiro de 1896, os rebeldes já tinham avançado ao largo de grande parte da ilha procurando evitar o enfrentamento com as principais colunas do exército espanhol e promovendo combates apenas com pequenos contingentes. O rastro de plantações queimadas, 41 engenhos em ruínas, pontes e cidades destruídas comprovavam o sucesso revolucionário. No começo de fevereiro, o avanço dos patriotas cubanos chegou aos limites da Província de Havana, onde Martinez Campos concentrara a maior parte de suas tropas na expectativa de desencadear um combate decisivo. Gomez e Maceo decidiram por uma opção mais atraente: ao invés de mergulhar em um combate frontal, dividiram o exército em dois. A coluna liderada por Maceo flanqueou o exército espanhol e continuou seu avanço em direção a Pinar Del Rio. Os homens de Máximo Gomez, por sua vez, permaneceram em Havana no intuito de ocupar os espanhóis e guarnecer o avanço de Maceo. Martinez Campos demonstrava sua incapacidade em debelar uma guerra como à desenvolvida em Cuba, principalmente ao não abrir mão de suas concepções morais e éticas de não empregar qualquer tipo de ação contra a população civil favorável aos cubanos. Sua demissão foi registrada em uma carta a Cánovas Del Castillo: No puedo yo, representante de una nación culta, ser el primero que dé el ejemplo de comodidad e intransigencia; debo esperar a que ellos empiecen […] no vacile en que me reemplace; estamos jugando la suerte de España; pero yo tengo creencias, y son superiores a todo y me impiden los fusilamientos y otros actos análogos. La insurrección, hoy día, es más grave, más potente que a principios del 7649 Martinez Campos foi substituído por Valeriano Weyler, um militar da ala radical, com grandes qualidades marciais e poucas restrições ao uso da violência, característica que lhe rendeu o apelido nos Estados Unidos e na Espanha de “El Carnicero”50. Ainda na Espanha, Weyler reconhecia que a chave para a vitória estava na separação entre o exército rebelde e a rede de informação constituída por parte da população civil, fator de suma importância para a tática de guerrilhas. Ao chegar a Havana e se deparar com uma situação desvantajosa o general espanhol traçou um plano que se dividia em três partes. A primeira objetivava eliminar as guarnições que defendiam as lavouras açucareiras e os pontos de pouca importância estratégica, para criar grandes contingentes capazes de forçar batalhas decisivas. Em segundo lugar, era necessário limpar as províncias cubanas uma a uma, com 49 CAMPOS apud BANTJES, Op. Cit., p. 122-123. 50 THOMAS, Op. Cit., p. 427. 42 início na parte oeste, empurrando os separatistas para o oriente. O primeiro passo era derrotar Maceo em Pinar Del Río e para isso iniciou a construção de uma nova linha defensiva, que se estendia de Mariel a Majana para separar as tropas de Maceo e Gomez e enfraquecer a resistência (Figura 1). Figura 1 Mapa de Cuba entre os anos 1895 e 1898. Mapa de Cuba entre os anos de 1895 e 1898 que demonstra a localização das principais províncias e cidades, o avanço para oeste das tropas insurgentes, as batalhas mais importantes e a representação das linhas defensivas de Júcaro-Morón e Mariel Manjana. Mapa retirado de: TONE, Op. Cit., p.20. Por fim, a terceira e draconiana etapa do plano de Weyler consistia na transferência forçada dos civis para cidades ou povoados controlados por tropas espanholas, privando, assim, os patriotas cubanos de sua valiosa rede de informações. A reconcentración, como era denominada tal política, previa também a eliminação ou confisco das plantações e do gado, assim como o aproveitamento dos reconcentrados como mão de obra na agricultura. Estima-se que mais de quinhentos mil cubanos foram mantidos em cárcere entre os anos de 1896 e 1897, principalmente nas províncias de Santiago, Porto Príncipe, Sancti Spíritus, Pinar Del Rio, 43 Havana e Matanzas, e aproximadamente 10% da população da ilha morreram em decorrência da inanição ou das endemias cubanas facilmente proliferadas nos campos da reconcentración51. O cerco aos civis também se tornou um fator negativo para as tropas de Weyler. A quantidade de comida caiu vertiginosamente, assim como as condições sanitárias, o que colocava os soldados espanhóis em contato direto com os vetores de diversas doenças, às quais não possuíam defesas imunológicas adequadas52. A mortalidade no exército aumentou, prejudicando a reestruturação das colunas combatentes, obrigando a Espanha a enviar mais soldados para Cuba. Após colocar em prática todas as táticas planejadas, Weyler começou a investir diretamente contra os exércitos insurgentes. A linha de Mariel isolou Maceo em Pinar Del Rio e a reorganização das tropas obrigou Gomez a recuar até a província de Santa Clara, preso entre as duas linhas defensivas espanholas. Os reforços e os recursos enviados pela Junta Revolucionária de Nova Iorque enfrentavam dificuldades para atingir essa região, enfraquecendo ainda mais as posições dos separatistas. A rebelião começou a sofrer reveses ate nas províncias de Porto Príncipe e Santiago, localizadas no leste, e Gomez era constantemente pressionado pelos líderes civis a retornar, juntamente com Maceo, para defender tais posições. No início de dezembro Maceo iniciou sua marcha de retorno ao Oriente, com poucos homens e munição. Conseguiu cruzar as defesas de Mariel pelo mar e se dirigiu para Havana, onde a revolta declinava com rapidez. Contudo, foi localizado por uma coluna espanhola, sofrendo um forte ataque, sem possibilidade de resistência, e foi morto, juntamente com 51 As estimativas dos estudos que se baseiam no censo cubano de fins do século XIX apresentam um número de mortos entre 155.000 e 170.000. Cifra relevante se considerarmos que a população de Cuba era de 1.700.000 habitantes. Para maiores informações conf. TONE, Op. Cit., p. 275-282; 291-292. 52 O clima tropical do território cubano, alternando períodos de muito calor com períodos de chuva intensa, favorecia a proliferação de inúmeras doenças, destacadamente a febre amarela, a malária e a cólera. Grande parte dos soldados espanhóis que desembarcavam em Cuba era acometida por essas doenças, aumentando consideravelmente as baixas nas fileiras do exército da metrópole. A incidência de mortos nas fileiras espanholas em decorrência das enfermidades foi muito superior à causada pelos soldados cubanos, considera-se que 41 mil espanhóis morreram em decorrência das doenças contra 4.000 mortes em batalha. Conf. FRAGINALS, Op. Cit., p. 343-344. 44 Panchito Gomez, filho de Maximo Gomez. Segundo Antonio Elorza e Elena Sandoica, quando foi conhecida a morte de Maceo “los cañones de La Habana dispararon salvas para celebrarlo [...] y por un momento las multitudes que celebraron el hecho en la Península pudieron creer que la victoria sobre los mambises por fin estaba al alcance de la mano.”53 Era incontestável o sucesso alcançado pela tática de Weyler, mas suas práticas controversas, principalmente pela reconcentración, geravam desconforto em alguns setores espanhóis e em outros países. A imprensa liberal, representada pelo El Imparcial, El Heraldo de Madrid e El Liberal, classificavam a política desenvolvida pelo general como extremada e desumana e cobravam sua imediata retirada do comando militar em Cuba. A questão humanitária permeou também as manifestações da opinião pública norte-americana, principalmente quando alimentada pela imprensa sensacionalista, que cobrava uma ação concreta do governo estadunidense para encerrar a brutalidade espanhola em Cuba. No entanto, o posicionamento dos Estados Unidos foi ambíguo e baseado em uma série de situações e interesses, como veremos a seguir. 1.4. Rumo a uma nova relação de domínio: a intervenção e tutela norte-americana. Em fins do século XIX, os Estados Unidos passavam por um processo de desenvolvimento político e econômico interno que impulsionavam o país a sair da periferia dos negócios internacionais para uma posição diferente, com uma agenda externa mais adequada e atuante. O excedente da produção industrial levava o governo estadunidense a buscar novos mercados, mediante a expansão de suas fronteiras para além do espaço físico. 53 ELORZA; SANDOICA, Op. Cit., p. 263. 45 Nesse sentido, a intervenção na questão da independência cubana foi um fator sine qua non para o início dessa nova proposta54. A reação inicial do governo norte-americano ao movimento de independentista foi a de um agente diplomático que se preocupava com o destino da ilha, mas sem o comprometimento de uma ação intervencionista. O presidente Grover Cleveland (1893-1897) e seu secretário de Estado Richard Olney lançaram uma série de manifestações oficiais descrevendo o efeito desintegrador do conflito sobre os interesses econômicos dos Estados Unidos, os perigos que cercavam os cidadãos norte-americanos radicados em Cuba e o repúdio contra a possibilidade de outros dez anos de guerra colonial55. No início de 1896 a situação cubana passou a integrar constantemente o programa político dos opositores à política do presidente democrata e a pressão aumentava à medida que parte da imprensa e da opinião pública cobravam uma atuação direta do país. A falta de ímpeto em relação a uma intervenção colocava obstáculos à possível candidatura a reeleição de Cleveland e fortalecia a posição dos republicanos que se demonstravam mais exaltados e propensos a tomar uma decisão favorável ao fim do conflito. Cumprida a previsão, Cleveland não foi escolhido como representante do Partido Democrata para as eleições de 1896 – substituído por William Jennings Bryan – e arrastou a questão cubana ate o fim do seu mandato. Os republicanos, por sua vez, lançaram William McKinley como candidato à presidência. Com uma campanha agressiva em relação à situação econômica e política dos Estados Unidos, julgando necessário que o país passasse por um processo de expansão capaz de suprir a produção industrial, também se aproveitou da passividade do governo de Grover Cleveland, para desenvolver a tese de que o governo estadunidense deveria ser mais ativo na política externa e assumir uma postura enérgica acerca dos acontecimentos de Cuba. O candidato republicano sagrou-se vencedor e assumiu o 54PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos: continuidade ou mudança?. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005, p. 73-78. 55 SCHOULTZ, Lars. Estados Unidos: poder e submissão. Bauru: Edusc, 1998, p. 153. 46 governo em março de 1897, com a expectativa popular de que o problema crônico da instabilidade caribenha fosse resolvido de forma favorável aos interesses do país do norte. Segundo Jean Baptiste Duroselle, para que exista um conflito internacional, são necessárias duas condições: A primeira é que o poder responsável por uma “unidade política” decida considerar certo objeto, fora da competência de sua soberania, como uma aposta cujo ganho é desejável e merece que se corram certos riscos. A segunda é que essa decisão se faça acompanhar de reação emocional favorável, pelo menos em uma parte da população que ele controla ou da população do campo adversário. Dito de outra maneira, em todo conflito entram em jogo, necessariamente, uma ação e uma reação56. Esses dois fatores apresentados pelo autor francês, povoavam a ideia do novo presidente, mas precisavam ser consolidadas entre os diversos setores do país, como exemplificaremos a seguir. Em meados do século XIX os Estados Unidos acumulavam uma dívida externa considerável, motivada pela expansão para o oeste e o alargamento da malha ferroviária. A conquista dos novos territórios, a construção das ferrovias e a especulação de terras ampliaram, segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira, “o círculo de consumo para o capital, possibilitando sua reprodução e acumulação, e atraíram grandes contingentes de imigrantes europeus”57, que se adaptaram às novas técnicas agrícolas e contribuíram para o desenvolvimento industrial do país. A produção de aço, carvão, ouro, madeira, maquinarias e manufaturas, cresceram de maneira acentuada e promoveram mudanças profundas na estrutura comercial estadunidense. A magnitude do espaço econômico, facilitando a extraordinária especialização dos estabelecimentos industriais, a fabricação em série e a redução dos custos de produção, haviam possibilitado que os Estados Unidos se desenvolvessem e, em alguns decênios, se tornassem uma potência econômica, antes mesmo de emergirem como potência política e militar. 56 DUROSELLE, Jean Baptiste. Todo Império perecerá: teoria das relações internacionais. Brasília: Editora da UnB. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 283. 57 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 42. 47 A crescente expansão industrial, aliada com a depressão ocorrida entre os anos de 1890 e 1893, fizeram os norte-americanos se defrontarem com o esgotamento de sua expansão fronteiriça e a necessidade de mais terras para atender à demanda de sua crescente população e industrialização. No mesmo período Frederick Jacson Turner escreveu o ensaio The Significance of the Frontier in American History, no qual fundamentava o passado norte- americano, com base no estudo da geografia, dos costumes, da cultura e da ideologia do homem simples que havia desbravado o oeste58. A experiência fronteiriça, segundo a teoria de Turner, foi fundamental para o desenvolvimento das instituições americanas, de tal forma que ajudou a forjar o caráter inventivo, democrático, trabalhador, nacionalista e igualitário dos estadunidenses. A partir deste pilar Turner sinalizava o futuro grandioso dos Estados Unidos e a necessidade de superar a escassez de fronteiras físicas com a busca de outras mais fluídas e compensatórias para o desenvolvimento econômico do país. O crescimento da indústria norte-americana tornou a conquista de mercados no exterior não só uma possibilidade, mas uma necessidade, duramente sentida e refreada pelo isolacionismo. A política externa deveria ser mais agressiva e projetada no sistema internacional e o militarismo seria um elemento indispensável nesse processo expansionista. O mercado asiático e a consolidação do mercado caribenho tornaram-se, assim, prioritários para a nova política norte-americana59. A luta pela libertação cubana ensejou a grande oportunidade para alcançar esses objetivos. Cumpria-se, assim, o primeiro argumento defendido por Duroselle, ou seja, a intervenção em Cuba traria os ganhos desejáveis e valeria todos os riscos assumidos. 58 LOPES, Maria Aparecida de S. Frederick Jackson Turner e o lugar da fronteira na América. In GUTIÉRREZ, Horácio; NAXARA, Márcia R. C.; LOPES, Maria Aparecida de S. Fronteiras: Paisagens, personagens, identidades. São Paulo: Olho d’ Água, 2003, p. 14-15. 59 MOORE, William. A Splendid Little War? United States perspectives on the war with Spain. In MELLIZO, Carlos; NÚÑEZ, Ladevéze (coord.). España, Estados Unidos y la crisis de 1898 (reflexiones para un centenario). Madrid: Fundación para el Análisis y los Estudios Sociales y los autores, 1998, p. 34 e 44. 48 Alcançar a aprovação popular para a ingerência no conflito cubano era mais simples do que se imaginava e, em realidade, já vinha sendo construída há algum tempo por três grupos específicos. O primeiro era constituído pelos republicanos ligados a McKinley e muito próximos à Junta Revolucionária Cubana de Nova Iorque. Essa conveniente aliança gerava uma movimentação constante no Congresso para o reconhecimento da beligerância dos insurgentes, ou para que os Estados Unidos interviessem diretamente na situação. Somava-se a isso a disponibilidade da imprensa republicana em abrir espaço para os escritos e manifestações dos cubanos, influenciando seus leitores a desenvolverem sentimentos favoráveis aos rebeldes. O segundo grupo mencionado era composto pelos políticos conhecidos coletivamente como jingoes, representantes de um modelo político belicoso e ultranacionalista, baseado no Destino Manifesto e na linguagem do darwinismo social. Liderados por Theodore Roosevelt, Henry Cabot Lodge, o almirante William T. Sampson e Fitzhugh Lee, cônsul geral em Havana, eles exerciam pressão constante por uma política externa mais agressiva e belicosa. Esse setor considerava essencial aos Estados Unidos iniciarem seu expansionismo a fim de manter o desenvolvimento político e econômico da nação. Por fim, o terceiro grupo era constituído por uma geração de editores e diretores de jornais que encarnava as práticas de um novo periodismo, baseado no sensacionalismo e no crescimento da lucratividade60. Os melhores representantes do espírito dessa nova imprensa foram os diários nova-iorquinos The New York World e The New York Journal, comandados por Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst, respectivamente, e que graças à guerra cubana multiplicaram sua fama e fortuna no final do século XIX. Quando em 1895 se instalou o conflito em Cuba, tanto Hearst quanto Pulitzer colocaram seus periódicos à disposição da campanha intervencionista, pois percebiam o potencial de um acontecimento dessas 60 PÉREZ PUERTO, Ângela. Cuba 1898: la Guerra nacida del papel. Goiás: Anphlac, 2010, p. 05. 49 proporções, quando tratado sob a ótica sensacionalista, para a rentabilidade dos jornais. No entanto, a ilha não gerava os escândalos e feitos esperados e, desse modo, dedicaram-se a criá-los eles mesmos e a maioria dos correspondentes em Cuba eram instruídos a enviarem falsos relatos, alimentados pelos cubanos de Nova Iorque, ou inventados a partir de outros acontecimentos. Prontamente os leitores norte-americanos souberam de fantásticas batalhas que nunca tinham acontecido e das exageradas crueldades espanholas, principalmente nas áreas dominadas pela reconcentración. Lars Schoultz faz uma interessante descrição da forma de noticiar empregada por esses jornais: Levou apenas uns poucos meses para Pulitzer, Hearst e um monte de concorrentes converterem a rebelião cubana numa moderna peça de moralidade, com relatos detalhados de batalhas encarniçadas, fictícias e reais, frequentemente suplementadas por narrativas em primeira pessoa de autenticidade questionável, com foco sempre sobre os atos particularmente pusilâmines dos espanhóis. Todos os a