UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS RAFAEL AFONSO GONÇALVES O DESPERTAR DOS MENDICANTES PARA OS OUTROS MUNDOS (SÉCULOS XIII E XIV) FRANCA 2011 RAFAEL AFONSO GONÇALVES O DESPERTAR DOS MENDICANTES PARA OS OUTROS MUNDOS (SÉCULOS XIII E XIV) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura. Orientadora: Profa. Dra. Susani Silveira Lemos França. FRANCA 2011 RAFAEL AFONSO GONÇALVES O DESPERTAR DOS MENDICANTES PARA OS OUTROS MUNDOS (SÉCULOS XIII E XIV) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura. Orientadora: Profa. Dra. Susani Silveira Lemos França. BANCA EXAMINADORA PRESIDENTE: __________________________________________ Profa. Dra. Susani Silveira Lemos França 1º EXAMINADOR: _______________________________________ 2º EXAMINADOR: _______________________________________ Franca, ___ de ____________ de 2011. Para a Carol e o Henrique AGRADECIMENTOS A elaboração e confecção desta dissertação se devem a algumas pessoas que tenho agora a oportunidade de expressar meus sinceros agradecimentos. À Susani Silveira Lemos França, por toda atenção e carinho com que orientou esta pesquisa, com uma competência e cuidado dignos de toda minha admiração. Grande parte dos pontos positivos deste trabalho se deve a ela. Ao Jean Marcel de Carvalho França, agradeço pela amizade e constante abertura em seus cursos de pós-graduação, onde pude, participando como aluno ouvinte, ter contato com temas fundamentais para minha formação. Aos colegas de “seminário de pesquisa”, especialmente aos amigos Rafael de Oliveira Falasco, Michelle Souza e Silva, Simone de Almeida e Tamara de Lima pelo incentivo e contribuições ao longo desta pesquisa, além dos muitos bons momentos compartilhados durante esse período. Agradeço à minha família, especialmente aos meus pais, Eva Cristina Afonso Gonçalves e Antônio Carlos Gonçalves Rosa, e irmãos, André Afonso Gonçalves e Carlos Eduardo Afonso Gonçalves, pelo apoio e compressão que pude contar em todos esses anos. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação e da Biblioteca da UNESP/ Franca, da Biblioteca Padre Labret da Ordem dos Pregadores e da Biblioteca Redentorista da Congregação Redentorista de São Paulo, agradeço todos os serviços prestados. À professora Denise Aparecida Moura e ao professor Gabriel Passetti pela cuidadosa leitura e sugestões no exame de qualificação. À CAPES, pela bolsa concedida. É ainda delicado aquele ao qual a pátria é doce; todavia é já forte aquele para o qual qualquer terra é a pátria; mas na verdade é perfeito aquele para o qual o mundo inteiro é um exílio. Hugo de São Vitor GONÇALVES, Rafael Afonso. O despertar dos mendicantes para os outros mundos (séculos XIII e XIV). 2011. 155 fl. Dissertação (Mestrado em História e Cultura Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca. 2011. RESUMO A partir de meados do século XIII, uma série de religiosos cristãos das duas principais ordens mendicantes, franciscanos e dominicanos, passou a defender a importância de visitarem e descreverem pormenorizadamente os povos e as paisagens de terras localizadas além da cristandade, sobretudo as regiões do interior do continente asiático. Até então, descrições como essas eram depreciadas pelos religiosos por serem consideradas um conhecimento curioso, concebido como um saber que não contribuía para o aperfeiçoamento espiritual do cristão, sendo, portanto, repreensível e desprezível. O novo interesse por essas terras se devia, em grande parte, a informações e notícias difundidas na cristandade que davam conta da existência de homens orientais muito diferentes dos já conhecidos, que dominavam um império de proporções grandiosas. Muitos homens partiram, assim, em viagem para aquelas terras com a finalidade de observar povos e lugares para elaborarem uma descrição detalhada dos costumes dos povos avistados, do itinerário percorrido e de tudo aquilo que eles puderam ver ou ouvir. A proposta central de nossa pesquisa é perceber como se realizou esse processo em que o continente asiático foi-se tornando alvo do interesse ocidental entre os séculos XIII e XIV, passando a ser o protagonista de numerosos relatos de viagem que se propunham a descrever em pormenores suas características físicas e os traços e costumes de suas populações. A partir das descrições produzidas pelos viajantes, procuramos investigar como os frades mendicants encontraram um lugar para o conhecimento das “partes orientais” no seu projeto de aperfeiçoamento e expansão da fé para terras distantes. Palavras chave: Idade Média – Viagens – Ásia – Missões – Ordens Mendicantes ABSTRACT From amidst XIIIth century, a series of religious from the most important Mendicant Orders, Franciscans and Dominicans, started to defend the relevancy of visit and describe the people and places of the lands outside the Christendom, especially those which were located inwards the Asiatic mainland. Theretofore, descriptions as these were depreciated by the religious ones, thought as a ken which couldn’t contribute to the spiritual improvement of the Christians, being, this way, a blamable and misfortunate way of knowledge. A new interest for these lands was thanks to the informations and news broadcasted through the Christendom, narrating the existence of very different eastern men, masterful of a great Empire. Many men started to travel to these lands, intending to observe the people and the places to, in the end, write about the eastern habits, the routes themselves crossed, and whatever else could be seen or heard. The main purpose of this research it’s in realize how this process – where the Asiatic mainland became the aim of western interest, between the XIII and XIVth centuries – could happen. In other words, we intent to see how those people and places became the protagonists of a countless travel reports where their physical and cultural characteristics were described. Through the descriptions made by the travelers, we want to understand how the Mendicant Friars could found a place to the knowledge of the “eastern parts” into their project of faith’s improvement and proliferation on faraway lands. Key words: Middle Ages – Travels – Asia – Missions – Mendicant Orders SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 DA “REJEIÇÃO DO MUNDO” À MISSÃO DE OLHAR PARA FORA ........................ 15 1.1 Do pecado de conhecer ..................................................................................................... 20 1.2 Vãs curiosidades ................................................................................................................ 32 1.3 O despertar para o mundo à volta ................................................................................... 40 1.4 Conhecer para converter .................................................................................................. 64 CAPÍTULO 2 O RECONHECIMENTO DAS TERRAS E GENTES ORIENTAIS ................................ 79 2.1 A indagação sobre os “novos bárbaros” ......................................................................... 82 2.2 A desesperança na conversão dos tártaros ..................................................................... 92 2.3 Os caminhos orientais e os novos ensejos para a cristandade .................................... 101 2.4 Mensageiros e missionários entre dois mundos ........................................................... 112 2.5 Planos e expectativas de conversão dos orientais ........................................................ 120 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 134 MAPAS .................................................................................................................................. 139 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 142 9 APRESENTAÇÃO O frade franciscano conhecido como C. de Bridia afirmou, em meados do século XIII, que “o mundo é dividido em duas partes principais1, isto é, a oriental e a ocidental, estendendo em largura entre os pontos de verão e inverno e o amanhecer e o pôr do sol”.2 O religioso escrevia para contar a seus superiores sobre seu encontro com um grupo de viajantes recentemente chegados da “parte oriental” e, principalmente, sobre tudo aquilo avistado nessas terras. Assim como outros homens de seu tempo, esses religiosos estavam interessados em saber sobre lugares que vinham exercendo um grande fascínio nos cristãos do século XIII e continuaram no XIV e muito depois a chamar a atenção dos homens das partes ocidentais. Se ainda hoje a alteridade do oriente causa certo espanto, a admiração com que os medievais olharam para aquelas terras foi sem dúvida maior, dado que agravada pelo desconhecido. É “em um outro mundo”, por exemplo, que o viajante Guilherme de Rubruc diz ter “entrado” quando chegou em território tártaro, em período próximo à narrativa do citado C. de Bridia. O que hoje, pois, costumamos chamar naturalizadamente de Oriente era, então, definido de forma menos precisa e estável, dada a vaguidade dos conhecimentos sobre aquelas partes. A noção de “Oriente” como um conjunto geográfico claramente delimitado e caracterizado por uma herança cultural diversa da ocidental não pode ser datada antes do final do século XVIII.3 Produto de um grande corpo de saberes literários, erudito e científico, o “Oriente” inventado na Europa dos séculos XVIII e XIX estava estritamente ligado ao processo de colonização do continente asiático.4 A terminologia empregada nos escritos dos séculos XIII e XIV, no entanto, denuncia uma outra forma e sentido das terras e homens situados ao leste da Europa, um lugar, pois, muito diverso daquele que conhecemos atualmente. A grande maioria das referências encontradas nos textos medievais é formulada a partir de termos como “partes orientais”, “países orientais” ou mesmo “partes do leste”.5 Tais termos indicam que, diferentemente do significado contemporâneo, aquelas terras não eram entendidas de forma homogênea, delimitadas dentro de um bloco fechado e contraposto ao Ocidente. A ausência do artigo que precede o termo atual – o Oriente – e o uso recorrente do plural apontam para a diferença na forma de entender aquelas terras. É, pois, da construção 1 Todas as citações diretas efetuadas a partir de obras originalmente em língua estrangeira foram traduzidas por nós. 2 THE VINLAND Map and the Tartar Relation. Ed. Skelton, R.A., Thomas E. Marston, and George D. Painter. New Haven: Yale University Press, 1965. 3 CARRIER, Jean-Luc. Femmes et Féminités D’Orient sous l’Oeil des Occidentaux du XIV au XVIII siècle: Images et Représentations. France: Atelier National de Reproduction des Thèses, 1995. p. 9-10. 4 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo Compahia das letras, 1990. 5 “Partibus orientalis”, “partes orientales”, “partes et homines orientales”. 10 desse modo ainda pouco específico de compreender as terras ao extremo leste da cristandade que trata esta pesquisa. Nosso principal objetivo é interrogar como surgiu o interesse dos cristãos pelas “partes orientais” nos séculos XIII e XIV e como se produziu um conhecimento sobre essas a partir, sobretudo, de relatos de viagens. Não se trata, portanto, de uma tentativa de apreender o modo como os orientais representaram a si mesmos, nem, muito menos, de captar um Oriente supostamente “real” contraposto às referências de maravilhas e exotismo difundidas sobre essa região no medievo. Nossa preocupação é, sim, perceber como as terras a leste da cristandade foram incorporadas no universo das reflexões dos cristãos medievais, procurando compreender os limites dessa “aparição”, bem como as justificativas para que esse “outro mundo” merecesse espaço no mundo cristão. Como os relatos de viagens e as descrições acerca dos orientais não se concentraram em apenas um reino ou uma região cristã específica, não nos restringiremos a uma parte da cristandade, ou melhor, os viajantes não serão selecionados por sua proveniência nacional.6 O processo de valorização do conhecimento sobre o continente asiático, a nosso ver, não está relacionado com a formação de nenhum Estado nacional ou país em particular, mas com a construção de uma imagem dos orientais compartilhada no mundo cristianizado. Como nos diz o viajante João de Pian del Carpine sobre seu relato de viagens, de meados do século XIII, trata-se de “um assunto da cristandade”.7 É possível identificar em diversos lugares da cristandade uma certa padronização no processo de valorização dos relatos de viagem dentro de um tempo relativamente bem delimitado. O período recoberto por esta pesquisa abrange, assim, de meados do século XIII, quando se começa a buscar informações das partes orientais até meados do século XIV, quando as fronteiras do leste da Europa se fecham novamente e conflitos dentro da cristandade levam os religiosos a se preocuparem mais com a unificação da fé dos cristãos do que com a conversão dos infiéis orientais. Se a partir do século XIII a cristandade volta seu olhar para os povos do continente asiático, os séculos anteriores foram marcados por um grande desinteresse mútuo. Diferentemente do que aconteceu com a América algum tempo depois, inexistente no 6 Sobre a ideia de Nação na Idade Média. Cf. TIPTON, Charles Leon. Nationalism in the Middle Ages. New York: Holt, Rinchart and Winston, 1972. GUENÉE Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV: os Estados. São Paulo: Pioneira: Ed. da universidade de São Paulo, 1981. TORRES SANS, Xavier, La historiografia de les nacions abans del nacionalisme (i després de Gellner i Hobsbawm). Manuscrits, 19 (2001), p. 21-42. 7 CARPINE, João de Pian del. História dos mongóis. In: CARPINE, João de Pian del [et al.] Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. 11 pensamento ocidental até sua “descoberta” ou “invenção”8 no final do XV, o que é delimitado como Ásia já era conhecido pelos europeus desde a Antiguidade, estando presente em obras de grande circulação na Idade Média, como a Mirabilia mundi de Solin, o Romance de Alexandre ou mesmo as famosas Etimologias de Isidoro de Sevilha. Um “outro mundo”, dizem os viajantes do período, e não em um “novo mundo”, como foi posteriormente caracterizado o continente americano. O que alimentou essa ignorância até o final do século XII pode ser definido como resultado de um profundo desinteresse pelos lugares localizados além da cristandade, excetuando, é claro, a região Palestina. Este direcionamento específico devia-se, em grande medida, à força da ideia de “rejeição do mundo”, ou seja, às propostas de alienação e negação da sociedade profana e de isolamento total da civilização urbana, entendida como um obstáculo à salvação.9 Esse tipo de informação, de acordo com tais crenças, era considerado simples curiosidade, inútil ao aprimoramento espiritual dos fiéis e, portanto, desprezáveis. É da retomada do interesse europeu por essa parte do mundo, a partir do século XIII, que trata o primeiro capítulo deste trabalho. Para tanto, apontamos primeiramente para os principais motivos e argumentos que fundamentavam a indiferença dos homens do medievo em relação às terras orientais. Destacaremos o papel desempenhado pelo ideal de “rejeição do mundo” e da associação entre as viagens e a curiosidade para a manutenção desse desinteresse, dando ênfase ao século XII, período que precedeu as grandes missões ao continente asiático. Far-se-á necessário, todavia, retomar algumas obras escritas em períodos mais recuados, dada a recorrência de suas formulações na grande maioria dos escritos de viagem produzidos no período sobre o qual nos debruçamos. Assim, autores como Santo Agostinho e São Bento foram mais cuidadosamente examinados, por sua importância e repetição nos escritos dos séculos XII, XIII e XIV. Após mapearmos os principais fundamentos do desinteresse em relação ao conhecimento das terras distantes, procuraremos investigar como, em meados do século XIII, se configuraram algumas alterações no modo como os homens, e principalmente os religiosos, entendiam sua relação com o mundo sensível, passando a dedicar variadas obras sobre as características das numerosas terras e povos até então conhecidos. A hipótese central apresentada é a de que as duas principais ordens mendicantes fundadas no período, Ordem 8 O'GORMAN, E. A invenção da América: Reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo. São Paulo. UNESP, 1992. 9 Sobre o ideal de rejeição do mundo Cf. GRABOÏS, A. Le pèlerin occidental en Terre sainte au Moyen Age. Paris, 1998; ZUMTHOR, P. La Medida Del Mundo: Representatión del espacio en la Edad Media. Trad. A. Martorell. Madrid: Cátedra, 1994. 12 dos Menores e Ordem dos Pregadores – ou como também são conhecidos, franciscanos e dominicanos –, cumpriram um papel fundamental na construção de um aparato discursivo capaz de legitimar o conhecimento de outras terras e povos, conhecimento anteriormente rebaixado e definido como um saber vicioso. Por fim, procuraremos examinar alguns dos conhecimentos considerados adequados, legítimos e apropriados sobre aquelas terras. Tais informações e notícias adequadas, além de isentarem o relato de qualquer acusação, poderiam também auxiliar seu autor a atingir a tão desejada salvação cristã. A filtragem desses conhecimentos, considerada necessária para reafirmar a validade da narrativa, acabou por implicar também em uma seleção daquilo que deveria preencher o relato e do que deveria ser ignorado pelo viajante e, consequentemente, por seu leitor. Tais escolhas, recortes, exclusões, inclusões e normatizações sociais – examinadas no primeiro capítulo – ajudaram, portanto, a delinear a representação das “partes orientais” nos séculos XIII e XIV. Em outras palavras, um direcionamento específico do olhar dos viajantes foi decisivo para formularem um sentido para a existência dos diversos povos avistados que teve uma vida longa e, da mesma forma que foi alimentado por referências antigas, alimentou as modernas. É sobre a organização dessas informações e acerca dos sentidos construídos pelos viajantes para as terras vistas e vislumbradas pelos lados do leste que trata o segundo capítulo desta pesquisa. Uma das grandes inquietações dos viajantes era conhecer o império do Grande Cã tártaro, que se estendia do leste da Europa até o extremo oriente do continente asiático. Por isso, privilegiamos o império tártaro dentre os diversos povos orientais mencionados pelos viajantes. Além disso, outras regiões mais próximas da cristandade, como é o caso da Palestina, já eram familiares aos cristãos do medievo e, principalmente após as primeiras cruzadas, no final do século XI, eram frequentemente visitadas. Já as terras do interior da Ásia, ao contrário, não possuíam nenhum tipo de tradição dentro religiosidade cristã, o que tornava o empreendimento das viagens algo novo e o encontro de gentes e lugares, impactante. Para elucidar nossas escolhas e opções, vale ressaltar que não temos ambição de realizar a história de “uma interpretação medieval do Oriente”, o que poderia supor um Oriente comum, essencial, captado de modo diferente. Vislumbramos, ao contrário, a construção de uma forma muito diversa de entender essas terras, originada de um ambiente histórico específico, repleto de crenças próprias de seu tempo. Consequentemente, o que almejamos examinar é o processo de produção de verdades sobre as terras ao leste da cristandade por meio, principalmente, dos relatos de viagem. Por isso, considerar o vocabulário utilizado por eles para se referir a essas regiões faz-se fundamental para 13 entendermos como eles construíram enunciados pretensamente verdadeiros. Optamos, portanto, por privilegiar os termos pelos quais eles mesmos se referiam àquelas terras com o intuito de evitarmos aplicar nossas próprias categorias a homens que pensavam de outra forma e tinham uma concepção geográfica marcada pela imprecisão. Não utilizaremos, assim, a expressão “o Oriente” para nos referirmos às regiões localizadas a leste da cristandade, mas sim os termos diversos empregados pelos próprios viajantes. Buscaremos, pois, atentar para a maneira como os homens do medievo tentaram delimitar, dentro das condições e dados de que dispunham, o mundo a leste. A maior parte das edições contemporâneas dos relatos de viagem, todavia, não estabelece essa distinção, recorrendo ao termo “Oriente”. Por isso, em alguns casos foi incontornável a utilização do termo, porém, apenas no caso de citações de fontes traduzidas. Vale lembrar também que algumas relações e correspondências com a geografia contemporânea foram incluídas somente para auxiliar o leitor a identificar o trajeto percorrido pelos viajantes e para efeito de esclarecimento, já que por muitas vezes as informações de diferentes relatos são vagas e contraditórias. Alguns mapas foram também anexados no final dos capítulos para auxiliar a localização geográfica dos percursos das viagens. Optamos também por utilizar prioritariamente o termo “tártaro” ao invés de “mongol”, para nos referirmos aos súditos do Cã e ao império oriental. Isso se justifica pelo fato de os viajantes empregarem majoritariamente o primeiro vocábulo mencionado em detrimento do segundo.10 A preferência dos medievais pelo emprego de “tártaro” se deve ao significado que a palavra adquiriu no período. O termo “tártaro” tem sua origem na língua grega, cujo significado mais preciso é “lugar profundo”11. Na mitologia, a palavra era utilizada para designar uma região nas profundezas do submundo, onde eram aprisionados alguns deuses como forma de punição. Posteriormente apropriado no mundo cristão, o “Tártaro” foi rapidamente associado ao inferno ou a algo diabólico, passando a possuir uma forte conotação negativa. Seu uso na designação dos homens comandados pelos Cãs se deve à grande onda de medo causada pelas primeiras notícias dos ataques no leste da Europa, cometidos, como se difundiu naquele momento, por criaturas demoníacas. Após os ataques, o termo permaneceu designando os súditos do Cã, em detrimento do termo “mongol”, forma pela qual os próprios orientais denominavam-se. Outro fator que contribuiu para a consolidação do uso do termo foi 10 Cf. JACKSON, P. The Mongols and the West. 1221-1410. London: Pearson /Longman, 2005. 11 Cf. THEVENET, J. La Mongolie. Ed. Karthala. 2007. MARTINO, P. L’Orient dans la Littérature française au XVIIe et au XVIIIe siècle. Paris: Hachette, 1906.; ALSAID, M. L’image de l’orient chez quelques écrivains français (Lamartine, Nerval, Barrès, Benoit). Naissance, évolution et déclin d'un mythe orientaliste de l'ère coloniale. Tese de doutorado apresentada na Université Lyon 2, em 2009. 14 a anexação de uma tribo asiática derrotada por Gengis Cã em 1202, conhecida como Tartar. Um dos poucos viajantes do período a mencionar o termo “mongol” foi o mencionado franciscano João de Pian del Carpine. Em sua obra, originalmente denominada Historia Mongolorum – História dos Mongóis –, o viajante estabelece a distinção entre a tribo dos tártaros e dos mongóis, narrando a forma como os primeiros se submeteram aos segundos. Carpine, no entanto, não deixa de denominar o império do Grande Cã ao longo de seu relato sobre a Tartária, findando sua narrativa com a frase: “termina a História dos Mongóis, que chamamos de tártaros”. Partamos, então, na esteira desses viajantes, para entendermos como e por que eles se interessaram pelo conhecimento do continente asiático e, ainda, como esses cristãos descreveram os orientais da “Tartária” e entenderam seu próprio papel naquelas terras, contribuindo para a construção da imagem de um continente estranho, assustador e ao mesmo tempo admiravelmente maravilhoso. 15 CAPÍTULO 1 DA “REJEIÇÃO DO MUNDO” À MISSÃO DE OLHAR PARA FORA Já no início de seu relato de viagem, o frade João de Pian del Carpine, visitante das terras tártaras em meados do século XIII, alertou seus leitores que havia sido encarregado pelo próprio papa “de perscrutar e ver tudo, com diligência,” que encontrasse naquelas terras, tarefa, segundo ele, que executou “com cuidado”.1 Essa ambição de escrever um relato onde pudesse ser encontrado tudo aquilo que avistara ou conhecera durante a viagem não é, como se pode notar em outros relatos, uma singularidade de Carpine. A grande maioria dos viajantes do período, que legaram uma narrativa ou um relatório sobre sua viagem, procurou produzir uma síntese, tão minuciosa quanto possível, de todas as suas experiências e daquilo que viu ou ouviu nas terras percorridas. Guilherme de Rubruc, outro franciscano que cruzou o continente asiático no século XIII, também afirma no início de seu relato ter seguido a sugestão do rei da França, Luis IX, que recomendara que “escrevesse tudo o que visse entre os tártaros”, sem receio de “escrever longas cartas”.2 Assim como eles, muitos outros viajantes dos séculos XIII e XIV asseguraram ter posto em escrito todas as coisas vistas ou ouvidas dos nativos durante a viagem. Embora assumam claramente tal objetivo, esses homens deparavam-se com certos limites que necessariamente interferiram na moldagem das descrições, impondo uma seleção daquilo que deveria ou não fazer parte do relato. Como em tantos outros tipos de escritos, em um relatório de viagens era necessário recortar informações, optar pela descrição de certos lugares, eleger certas narrativas, enfim, direcionar seu olhar e, sobretudo, do leitor para aquilo que se considerava mais importante e adequado. Tais balizas, fossem discursivas, valorativas ou definidas pelo suporte material dos textos,3 contribuíam para a construção de uma determinada imagem das terras orientais. O franciscano Pascal de Vitória, por exemplo, afirma ter passado tantos sofrimentos e aflições em sua viagem que “seria uma história muito 1 CARPINE, João de Pian del. História dos mongóis. In: ______. Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 259-260. 2 RUBRUC, Guilherme de. Itinerário. In: CARPINE, João de Pian del [et al.] Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 115. 3 Os suportes materiais do texto, como explica Roger Chartier, impunham certas escolhas que afetavam mais a forma, mas também o próprio conteúdo dos escritos, p Cf. CHARTIER, R. A aventura do livro:do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo de. Moraes.São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999; CAVALO, G., CHARTIER, R. História da leitura no mundo ocidental. Vol 2, São Paulo: Ática, 1999. 16 grande para contar em uma carta”;4 consideração que estava certamente ligada tanto ao trabalho de escrita exaustivo e certa ligeireza que o gênero epistolar impunha. Um dos dominicanos que se exprimiu acerca desse ponto foi Jordan Catala de Sévérac, ao afirmar que se concentraria em “assuntos difíceis e de considerável perplexidade” e que, por isso, o mensageiro da carta, também escrita em meados do XIV, explicaria o que ali não estivesse relatado “por falta de tempo”.5 A extensão do relato foi um dos numerosos motivos declarados por esses homens para que abrissem mão de certas descrições que poderiam ajudar o leitor a conhecer as terras orientais de forma mais ampla. Diante de um mundo tão estranho, com tantas coisas que chamavam sua atenção, os viajantes acabavam por excluir do relato alguns aspectos do trajeto, simplesmente por não disporem de espaço para registrar tudo. Odorico de Pordenone, viajante da primeira metade do século XIV, relata seu encontro com tantas coisas na “nobilíssima cidade de Tauris” que “seria demasiadamente longo contar”, portanto, limita-se a descrever a próxima cidade do percurso.6 Em uma carta de 1326, André, o bispo de Zayton, também opta por não descrever as qualidades e o território do Grande Cã de Catai pelo espaço que isso ocuparia no relato. Eram tantos os seus predicados positivos que, segundo ele, “seria muita coisa para escrever”.7 Apesar de pretenderem narrar em sua totalidade o visto e o ouvido, esses viajantes, como se observa nos seus depoimentos, parecem estar conscientes dos limites que sua tarefa impunha. Muitas das histórias, das lendas e dos homens encontrados pelo caminho eram excluídas dos relatos para dar lugar a descrições e narrativas anunciadas como mais incontornáveis. Um desses viajantes, o mencionado Guilherme de Rubruc, ao passar por um vale na Turquia, lembra que foi naquele lugar que o Sultão foi vencido pelos tártaros, no ano de 1243. Mas o franciscano não se prolonga no assunto, justificando que “seria muito longo descrever como [o sultão] fora vencido”.8 Jean de Mandeville, o viajante inglês do século 4 VITTORIA, Pascal of. Letter. In: CATHAY and the Way Thither. Being a Collection of Medieval Notices of China. Vol. III. Trad. and Ed. by Henry Yule London: The Hakluyt Society, 2005. p. 85-86. 5 FRIAR JORDANUS. Letter. In: .In: CATHAY and the Way Thither. Being a Collection of Medieval Notices of China. Vol. III. Trad. and Ed. by Henry Yule London: The Hakluyt Society, 2005.. p. 77. 6 PORDENONE, Odorico de. Relatório. In: CARPINE, João de Pian del [et al.] Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 286 7 ANDREW Bishop of Zayton. Letter. . In: CATHAY and the Way Thither. Being a Collection of Medieval Notices of China. Vol. III. Trad. and Ed. by Henry Yule London: The Hakluyt Society, 2005. p. 72. 8 RUBRUC, Guilherme de. Itinerário. In: CARPINE, João de Pian del [et al.] Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 240. 17 XIV sobre quem pairam muitas dúvidas,9 afirma que, além daquelas inumeráveis maravilhas narradas em seu livro, havia “outras muitas diversidades” que não pôde mencionar, “pois o relato alargar-se-ia muito se falasse de todas”. Narrador ardiloso, Mandeville utiliza-se até daquilo que deixou de contar para atrair atenção de seus leitores para aquelas terras. “Se tivesse descrito tudo o que existe nas partes de lá”, afirma, “um outro homem que se preparasse e se aparelhasse para seguir esses caminhos e procurar descobrir aqueles países, poderia ser impedido por minhas palavras de contar muitas coisas estranhas,” e assim “não poderia dizer nada novo que pudesse divertir ou deleitar a quem o ouvisse”.10 Artimanhas narrativas, como essa de Mandeville, poderiam ser utilizadas também com um propósito retórico, para ocultar a ausência de informações a respeito de alguns lugares e para contornar a expectativa de grandezas e estranhezas nem sempre passíveis de serem satisfeitas com o que era observado. Mesmo que seja difícil estabelecer os limites entre o que seria uma simples utilização retórica e as justificativas efetivas para a exclusão de certas informações, o fato de os viajantes optarem, na maioria das vezes, por não mencionar essa suposta falta de conhecimentos nos diz sobre a visão que pretendiam traçar daquelas terras. Na passagem citada acima, por exemplo, Mandeville usa a justificativa da omissão para enfatizar ainda mais a grande quantidade de maravilhas existentes naquele lugar, corroborando para reafirmar todas as descrições encontradas ao longo de sua narrativa. Não podemos perder de vista que a seleção das descrições que estruturam o relato era efetuada de forma que a narrativa e seu conteúdo suprissem expectativas, tanto do escritor, quanto de seus leitores. Eleger aquelas descrições que, de certo modo, os leitores já esperavam ouvir não era apenas uma forma de promover o relato, mas principalmente uma forma de atribuir veracidade a ele. 9 No século XIX, alguns autores como P. Hamelius, M. Letts e A. Bovenschen constataram que as Viagens fora escrita essencialmente através da compilação de obras clássicas e relatos de outros viajantes, tais como Guilherme de Boldensele, Odorico de Pordenone, João de Pian Carpini, Alberto de Aix e outros, chegando até a colocar em dúvida a existência de seu autor. Isso levou a obra de Mandeville a sofrer um grande descrédito entre os autores oitocentismas, e mesmo entre muitos do século XX, que tomaram as Viagens como uma ficção, um mero fruto da imaginação de seu autor. Entretando, por não procurar estabelecer uma divisão clara entre o “real” e o “imaginado”, ao contrário do que fizeram esses autores, consideramos que importa menos saber quem foi o indivíduo que escreveu a obra, e mais como esse nome caracteriza seu discurso e como foi possível alcançar tamanha popularidade no período. Pelo fato de seus próprios contemporâneos aceitarem a obra de Mandeville como “verdadeira”, não adotamos nenhuma diferenciação entre o tratamento de seus enunciados e os de outras obras produzidas por homens que acreditamos ter se delocado até as regiões mencionadas em seu relatos. Cf. HAMELIUS, P. Mandeville’s Travels. 2 vol. Introdução e Notas. Londres: Early English Text Society, 1923.; LETTS, A. R. Sir John Mandeville: the Man and the book. Londres,1959.; WARNER, G. F. Life of Mandeville. In: Dicionary of national biography. Oxford: Oxford University Press, 1885-1901; FRANÇA, Susani S. L. Introdução. In VIAGENS de Jean de Mandeville. Bauru: Edusc, 2007. 10 VIAGENS de Jean de Mandeville. Tradução, introdução e Notas de Susani Lemos França. Bauru: Edusc, 2007. 18 Preocupado com a credibilidade de seu escrito, Odorico de Pordenone, por exemplo, declara, no final de seu Relatório, que preferiu omitir algumas coisas que viu nas terras orientais, “pois a alguns pareceriam incríveis, se não as vissem com os próprios olhos”.11 Um exemplo pode ser sua observação sobre a ilha de Dandin,12 sobre a qual Pordenone admite ter deixado de escrever “muitas outras novidades”, pois, segundo ele, “sem vê-las, a pessoa não poderia crer, já que em todo o mundo não existem tais e tantas maravilhas como existem neste reino”.13 É interessante notar que o viajante, em nenhum momento, desacredita o que supostamente viu, mas prefere se calar, sob o risco de ter seu relato desqualificado. Ao contrário de seu confrade, o franciscano João de Pian del Carpine afirma não ter omitido “algumas coisas desconhecidas” que viu durante sua viagem, embora se mostrasse temeroso de que seu relato pudesse não parecer credível entre seus leitores, principalmente pelo tipo de conteúdo de sua narrativa. Logo no início, ele alerta seu leitor de que não deviam julgá-lo mentiroso, “pois relatamos aquilo que vimos ou que ouvimos como certo de outros que julgamos dignos de fé”.14 E ainda avisa: “seria até muito cruel que um homem fosse difamado por outros por causa do bem que faz”.15 A preocupação do viajante era que sua opção por certas descrições, digamos assim, mais estranhas, pudesse invalidar seu relato. De modo geral, entretanto, essas descrições mais pitorescas não pesavam contra a credibilidade do relato. Na seleção feita pelo viajante daquilo que iria rechear ou não seu texto, o comum e o corriqueiro poderiam ser mais frustrantes para o leitor interessado nas notícias trazidas daquelas regiões tão distantes do que o pitoresco. Para dotar seus escritos com o maior grau possível de veracidade, os viajantes procuravam sustentar seu relato com um grande número de tópicos largamente aceitos e esperados por seus leitores ou pelos ouvintes de suas narrativas. Terras comuns e homens da mesma natureza que aqueles encontrados na cristandade não correspondiam exatamente às expectativas dos europeus viajantes, ou daqueles que apenas liam sobre as terras ao oriente. Por isso, muitos deles omitiram algumas regiões que lhe pareceram muito comezinhas ou já muito conhecidas pelos cristãos. O conhecido veneziano, Marco Polo, conta, no final de seu relato, que não descreveu “nada com respeito ao grande mar”16 nem sobre as províncias de suas costas, porque 11 PORDENONE, Odorico de. Relatório. In: Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 336. 12 Ou Dondin 13 PORDENONE, Odorico de. Relatório. op. cit., p. 311. 14 João de Pian del Carpine utiliza a primeira pessoa do plural em alguns momentos para se referir ao grupo de viajantes que o acompanhou. 15 CARPINE, João de Pian del. História dos mongóis. In: Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330) Op. cit., p. 30. 16 Refere-se ao Mar Negro. 19 acreditava ser “desnecessário falar” sobre lugares que muitos já conheciam “perfeitamente”, visto que “são visitados por gentes todos os dias”.17 Além do comum e do demasiadamente estranho, outros motivos foram elencados para excluir do relato algumas passagens ou histórias ouvidas durante a viagem. A descrição de algumas regiões e seus ritos religiosos, para alguns viajantes, pareceu não trazer nenhuma contribuição, nem para si, nem para seu leitor. Para esses homens, o conhecimento contido naquilo que escreviam deveria auxiliá-los em um aprimoramento espiritual, por meio dos diversos exemplos de homens, mulheres e outras criaturas presentes em toda narrativa. É para reafirmar essa ideia que Guilherme de Rubruc, logo no início de seu Itinerário, cita uma passagem bíblica do Eclesiástico, “sobre o sábio”, em que aconselha: "Percorre a terra de povos estrangeiros, experimentará os bens e os males" (Eclo 39,5). Nesse sentido, aquilo que não contribuía para esse aperfeiçoamento do cristão não deveria fazer parte do relato. Odorico de Pordenone não nos conta tudo aquilo que viu em um povoado da Índia, onde diante de um ídolo “os homens matam seus filhos e filhas [...] para lhe oferecerem seu sangue”, porque, segundo ele, “esse povo faz muitas coisas sobre as quais escrever e ouvir seria uma abominação”. Justificando ainda sua omissão, o franciscano nos diz que, “nesta ilha, há e se originam muitas outras coisas que não convém muito escrever”.18 Temos aí alguns indícios de que, na impossibilidade de uma descrição totalizante, ou mesmo para não relatar aquilo que não traria nenhum benefício espiritual, os viajantes precisaram selecionar e, de certa maneira, editar as narrativas que davam conta de sua viagem. Essas omissões e seleções não necessariamente queriam dizer que o relato deixaria de ser mais verdadeiro, ao contrário, os viajantes muitas vezes deixaram de contar certas passagens para não comprometer a verossimilhança que procuravam. A necessidade de tais cortes, omissões e predileções de certos assuntos tratados sugere que o processo de confecção dessas obras – como de outros escritos – obedecia a regras e convenções que excediam a experiência pessoal de cada viajante, formando enunciados relativamente padronizados sobre aquelas terras. Tais padrões, socialmente construídos, interferiam inevitavelmente no processo de escrita dos relatos, bem como na percepção dos viajantes, delineando o que viam e podiam ver naquelas terras. Suas regras, princípios e desvios eram ainda novos, assim como era nova a prática de descrever o mundo que circundava o viajante. Por muito tempo, essas descrições 17 O LIVRO de Marco Pólo. Ed. Colares, 2000. p. 313. 18 PORDENONE, Odorico de. Relatório. In: Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 300. 20 foram vistas como um ato desprezível, que mostrava apenas o gosto do viajante pelo supérfluo e pelo mundano, legando para as terras orientais, distantes e desprovidas de tradições bíblicas, séculos de indiferença. Como se deu tal transformação no valor dessas descrições e quais foram seus principais personagens, bem como quais eram os padrões que ditavam os conhecimentos que poderiam ser relatados em uma narrativa de viagem às partes orientais são as principais questões condutoras deste capítulo. Buscaremos entender ainda quais eram os usos, atribuídos pelos próprios viajantes, do conhecimento transmitido pelos relatos e, de maneira geral, qual foi o papel dessas descrições na formação de uma imagem das partes orientais nos séculos XIII e XIV. Para tanto, abordaremos primeiramente a passagem do século XII para o XIII, quando os relatos de viagem adquiriram um formato muito diferente daquele que os precederam, ganhando também, à primeira vista, novos sentidos e objetivos dentro da sociedade cristã. Procuraremos mapear quais eram as justificativas mais recorrentes para a realização ou não das viagens, bem como as principais regras para aqueles que empreenderam uma viagem antes das longas travessias no interior do continente asiático do século XIII. Posteriormente, buscaremos compreender se houve e quais foram as rupturas no modo como os viajantes entenderam sua viagem, em especial aqueles que se destinaram às terras tártaras – franciscanos e dominicanos em sua maioria. Debruçar-nos-emos sobre como eles se relacionaram com as diversas normas e preceitos que regulavam as partidas e como estabeleceram um novo padrão de viagem, que ganhou aos poucos um grande espaço no repertório escrito e no pensamento do mundo medieval. Por fim, examinaremos quais eram os pontos de interesse e os limites do que poderia ser relatado por tais narrativas e para que fins eram dedicadas, em outras palavras, para que e para quem esses relatos eram comumente destinados. Acreditamos que, após tratarmos tais questões, poderemos avaliar de maneira mais cuidadosa o papel das normas que regulavam o discurso na formação de uma ideia sobre as terras localizadas além da cristandade, nomeadamente as terras orientais, bem como na expansão do mundo conhecido pelos homens dos séculos XIII e XIV. 1.1 – Do pecado de conhecer Uma das características mais marcantes dos relatos de viagem dos séculos XIII e XIV, como já anunciado, é a existência de descrições que tinham a ambição de dar conta de tudo aquilo que os viajantes encontravam durante o percurso – tanto de ida quanto de volta –, como também em seu destino. Ao contrário, por exemplo, dos relatos de peregrinação escritos em 21 séculos anteriores, que diziam apenas de construções religiosas e atos votivos do peregrino, as narrativas escritas a partir do século XIII fazem referência aos diferentes homens encontrados, seus costumes, alimentação, vestuário, aos diversos tipos de animais, vegetação, clima, enfim, sobre tudo aquilo que chamou sua atenção no mundo que o circundava. O interesse declarado por esses aspectos, digamos assim, “mundanos” do itinerário, pode ser comumente encontrado nos relatos de viagem escritos no período vislumbrado neste estudo. Muitas das narrativas, como a de Odorico de Pordenone, logo em seu início anunciam tal interesse, indicando que ali o leitor encontraria “as muitas e variadas histórias do bem-aventurado Odorico, frade menor, sobre os costumes e as condições deste mundo”.19 Em uma das versões mais difundidas do Livro de Marco Polo,20 o narrador indica a leitura das aventuras do “sábio e discreto cidadão de Veneza” aos “Imperadores, reis, duques, marqueses, condes, e cavaleiros”, e a todas as outras pessoas desejosas de “inteirar-se das raças da humanidade, e de reinos, domínios e de todas as partes do Oriente”, pois ali eles encontrariam “exatamente como ele as relatou [...] as características mais salientes e maravilhosas dos povos, especialmente da Armênia, Pérsia, Índia e Tartária”.21 O desejo de percorrer as rotas medievais a fim de conhecer as diferentes partes do mundo aparece também no relato de Jean de Mandeville, porém, como um traço naturalizado, quase intrínseco aos habitantes das terras ocidentais. Por meio de referências correntes entre os conhecedores medievais de geografia, que dividiam o hemisfério norte em sete climas ou regiões diferentes com os respectivos astros regentes, o cavaleiro, supostamente inglês, contrapõe as características dos ocidentais, habitantes do “sétimo clima”, aos habitantes da região da Índia, naturais do “primeiro clima”.22 Dissertando sobre os costumes dos homens da região indiana, o viajante quatrocentista explica que o motivo de os habitantes dessa terra serem sedentários está ligado ao seu planeta regente – Saturno –, que por ser “tão demorado de movimento, as gentes dessas terras, sob a influência desse clima regido por ele, tendem por natureza e vontade a não se deslocar”. Por outro lado, os homens da cristandade, segundo Mandeville, estão sob uma influência bem diferente: Em nossa terra, sucede justamente o contrário, pois estamos no sétimo clima, que está regido pela Lua, que tem um movimento rápido; é o planeta 19 PORDENONE, Odorico de. Relatório. In: Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 283. 20 Sobre as versões do Livro de Marco Polo Cf. IWAMURA, S. Manuscripts and printed editions of Marco Polo travel’s. Tóquio, 1949; PELLIOT, P. Notes on Marco Polo. Paris, 1959. 21 O LIVRO de Marco Pólo. Ed. Colares, 2000. p. 19. 22 Sobre a divisão dos “climas” Cf. ZUMTHOR, P. La Medida Del Mundo - Representatión del espacio en la Edad Media.Madrid: Cátedra, 1994. 22 de passagem. Por isso ela nos dá condição e vontade de nos deslocarmos e de caminharmos por diferentes rotas em busca de coisas estranhas e das diversidades do mundo.23 O interesse por essas “estranhezas” do mundo parece estar tão vulgarizado no tempo de Mandeville – meados do século XIV – que, nos escritos do viajante, parece naturalizado. Mas, como qualquer outro sentimento, essa vontade de conhecer o mundo não deve ser vista como inerente ao humano,24 nem muito menos àqueles que, segundo Mandeville, vivem no sétimo clima, ou seja, os europeus. Ao contrário, esse sentimento foi o produto de um processo complexo – ou processos complexos – que colocou em diálogo uma série de crenças, normas e inquietudes dos homens daquele tempo. Desse encontro muitas vezes conflituoso, algumas verdades se tornam obsoletas, outras caem definitivamente por terra, outras ainda recobram força, contribuindo para regular os corpos e o pensamento de uma época. Para entendermos melhor como essas mudanças se configuraram no caso específico das viagens, vamos, primeiramente, colocar lado a lado duas experiências de viagens distintas, em especial sua recepção pelos homens da época – a de João de Pian del Carpine, de meados do século XIII, e a de Bernardo de Claraval, do século XII –, para depois tentarmos estabelecer algumas de suas regularidades e as condições que as tornaram possíveis. Embora sejam de naturezas distintas, acreditamos que as duas viagens podem nos dar alguns indicativos de como esses homens de épocas diferentes entenderam sua viagem e, em especial, como eles se relacionaram com o mundo que os circundava. A viagem de João de Pian del Carpine, de meados do século XIII, é uma das primeiras missões para o continente asiático em que se nota o empenho de um homem do medievo em observar e descrever, com alguns detalhes, os homens e lugares encontrados durante o caminho, iniciativa que, por ter sido seguida de outras, indicia uma crescente aceitação entre os cristãos. Após retornar de sua viagem, Carpine participou de diversas audiências e encontros, onde frades e outros homens se reuniam para ouvir suas histórias a respeito das paisagens e dos povos avistados por ele. O franciscano conhecido como C. de Bridia foi um dos muitos que, em meados do século XIII, encontrou Carpine e seus companheiros para tentar conhecer mais detalhes daquelas terras distantes. A pedido de seu superior, o frade de Bridia escreveu um relatório sobre o encontro com os recém-chegados, conhecido hoje como 23 VIAGENS de Jean de Mandeville. Tradução, introdução e Notas de Susani Lemos França. Bauru: Edusc, 2007.p. 157-158. 24 Cf. TAGL, Justin. A History of Curiosity: The Theory of Travel 1550-1800. Chur, Switzerland: Harwood Academic Publishers, 1995.; ZACHER, C. Curiosity and Pilgrimage: The Literature of Discovery in Fourteenth-. Century England. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976. 23 Tartar Relation, onde afirma ter colocado “por escrito” aquilo que “entendeu sobre os Tártaros junto com os veneráveis frades”.25 Outro franciscano, Salimbene de Parma, menciona em seu Chronicon, escrito entre 1282 e 1290, que o papa Inocêncio IV reteve João de Pian del Carpine “junto de si por três meses”, período em que o frade “contou-lhe as notícias sobre os tártaros e entregou os presentes enviados pelo Cã”.26 Frei Salimbene afirma ter ouvido por inúmeras vezes Carpine repetir sua história aos interessados que o requeriam, chegando ao ponto de, “quando estava cansado de narrar as coisas dos Tártaros”, fazê-los ler seu “grosso livro sobre os costumes dos Tártaros e outras maravilhas do mundo”. Mas, como apontou o cronista de Parma, Carpine era um narrador acurado e, mesmo fadigado pelas repetições, não deixava seus ouvintes e leitores carentes de descrições pormenorizadas. Se, por acaso, a leitura indicada deixava algumas “coisas obscuras, [ele] intervinha para explicar e comentar cada coisa, com paciência”.27 O próprio Carpine alerta seus leitores sobre a possível existência de outras versões de seu relato. Isto se deve, segundo ele, ao fato de muitos cristãos encontrados em seu caminho de volta terem ficado tão interessados em sua narrativa que não o deixaram finalizá-la antes de copiar. Como o viajante explica, as réplicas poderiam ser encontradas em diversos lugares, como “na Polônia, na Boêmia e na Teutônia, e também em Liège e Champagne,” onde as pessoas “quiseram ter a transcrição da história, e por isso, a transcreveram antes de estar completa e bem resumida.” Carpine estava preocupado com alguma divergência entre as versões que pudesse comprometer a veracidade de sua narrativa, e pediu que ninguém se “admirasse” se, na versão final, houvesse “mais coisas e melhor corrigidas” do que nas anteriores, pois somente quando conseguiu “um pouco de tempo” é que pôde corrigi-la “plena e completamente”.28 Essas indicações nos alertam para o grande interesse que a viagem de Carpine suscitou em seus contemporâneos, que, como o citado Salimbene de Parma afirmou, procuravam esclarecer cada detalhe da narrativa. Ao mesmo tempo, o desejo do viajante em narrar suas experiências não foi menor, o que o levou a relatar cuidadosamente o que viu nas terras tártaras, como os costumes, vestimentas, alimentação e as características das terras que 25 THE VINLAND Map and the Tartar Relation. Ed. Skelton, R.A., Thomas E. Marston, and George D. Painter. New Haven: Yale University Press, 1965. p. 54. 26 CRONACA di Fra Salimbene Parmigiano dell' ordine dei minori. Ed. Carlo Cantarelli Adamo. Vol I. Parma: LUIGI BATTEI EDITORE, 1882. p. 112. 27 Ibid, p. 112-113. 28 CARPINE, João de Pian del. História dos mongóis. In: CARPINE, João de Pian del [et al.] Crônicas de viagem: Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Pólo (1245 – 1330). Porto Alegre: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. p. 97. 24 percorreu. A atitude de Carpine e seus contemporâneos, no entanto, parece diferir bastante daquela tomada pelos viajantes de períodos anteriores, especialmente os religiosos, que evitaram qualquer referência ao mundo sensível que os rodeava. As descrições das viagens efetuadas pelo conhecido Bernardo de Claraval são ilustrativas da negatividade com que os monges de seu tempo encaravam as paisagens e homens encontrados fora do mosteiro. São conhecidas as histórias que apontam para o extremo nível de interiorização de Bernardo, chegando mesmo a tomar, por mais de uma vez, óleo ao invés de água, tamanha a sua desatenção às coisas deste mundo. Todavia, seus maiores “feitos”, quando o assunto é a falta de atenção ao mundo, foram durante suas viagens. Com renome em quase toda a cristandade ainda enquanto era vivo, Bernardo percorreu uma boa parte das rotas do medievo em visita a abadias, a mosteiros, ou mesmo a algumas cidades.29 Em uma viagem ao mosteiro dos Cartuxos, como conta seu biógrafo, “ele cavalgou durante o dia todo ao lado do Lago Genebra sem vê-lo – ou sem prestar atenção no que via”. Mais tarde, “quando seus companheiros de viagem estavam conversando sobre o lago [...] ele perguntou a eles onde o lago ficava, e todos eles ficaram maravilhados”.30 Se compararmos essa passagem com a referida viagem de Carpine, percebemos que não é apenas a atitude do viajante que se altera, mas também a das pessoas em sua volta. Se os contemporâneos do franciscano o cercavam para ouvir os detalhes de sua viagem, os companheiros de Bernardo demonstravam grande admiração pela sua despreocupação em relação ao mundo exterior. A ausência de informações nos relatos de viagem sobre o mundo sensível, até o século XIII, deve-se, em grande medida, à força da ideia de contemptus mundi (rejeição do mundo), ou seja, às propostas de alienação e negação da sociedade profana e de isolamento total da civilização urbana. Noção baseada em uma oposição, relativamente clara, entre o terrestre e o celeste, sendo o primeiro associado ao profano e o segundo ao sagrado.31 Para os religiosos viajantes, sobretudo os de vocação monástica, preocupar-se com as paisagens e os homens encontrados durante o itinerário poderia sugerir uma profanação dos fins espirituais que os moviam. Recusar o itinerário terrestre significava, para os viajantes do século XII, dar atenção exclusiva ao itinerário espiritual, um ato de virtude e de aprimoramento da alma. O objetivo 29 Sobre Bernardo Cf. LECLERCQ, Jean. Bernard de Clairvaux. Paris: Desclée, 1989. 30 Apud OHLER, N. The Medieval traveller. The Boydell Press, 1989. p. 176 31 VAUCHEZ, A. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: séculos VIII à XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 48. 25 principal dessa recusa era distanciar-se do “mundo” e dos homens para se aproximar de Deus.32 Longe da natureza divina que o religioso buscava encontrar, o “mundo”, no entendimento desses homens, estava ligado a tudo aquilo que se referia aos prazeres da carne, ao estado primitivo do homem movido por desejos do corpo, e ao modo de vida adotado pelos laicos, preocupados com os assuntos transitórios do século.33 O “mundo”, para eles, não era mais do que um simples reflexo degradado de um outro lugar, o “mundo celeste”, onde se encontrava a Verdade. Seria vão, então, dar atenção às realidades terrenas, meras ilusões que decepcionam e apresentam riscos de pecado, pois, para o pensamento monástico do período, o criado, representando o domínio do transitório e do contingente, não deveria suscitar apego ou estima, mas antes desprezo e desejo de fuga.34 Fundamentada inicialmente nos séculos V e VI pelos primeiros doutores do Cristianismo,35 a proposta do contemptus mundi foi largamente utilizada pelos monges para distinguir seu modo de vida daquele adotado por outros homens, tanto por laicos quanto por outros religiosos. Como recompensa à opção dessa forma de vida direcionada inteiramente à contemplação divina, os monges acreditavam que alcançariam a salvação. O desprezo do mundo, dentro dessa concepção, significava o afastamento total da condição terrena para se atingir o estado celeste, em um modo de vida totalmente dedicado aos assuntos da fé e, assim, mais próximo de um lugar junto de Deus. As formas e os caminhos adotados para sua realização, todavia, tomaram contornos variados nos séculos que separam a experiência de Bernardo de Claraval e João de Pian del Carpine, onde as viagens adquirem um papel significativo. Não somente como uma ação negativa, ou seja, como um ato que colocava os religiosos diante de tentações e desvios do caminho da salvação, mas também em um sentido positivo. A realização da proposta do contemptus mundi foi largamente entendida pelos monges dos séculos XI e XII como um percurso, um itinerário de afastamento do mundo em direção ao encontro com Deus. A viagem esteve, em um sentido alegórico, ou em um mais literal, estritamente ligada às formas de realização dessa proposta monástica, dentre as quais podemos distinguir, em linhas gerais, três: o eremetismo, a peregrinação e a vida cenobítica. 32 LECLERCQ, J. La separation du monde dans le monachisme au moyen âge. In :_____. La séparation du monde, Paris : Ed. du Cerf, 1961. p. 78. 33 BULTO, R. Mépris du monde et XIe siècle. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 22e année, n. 1, p. 223, 1967. 34 VAUCHEZ, A. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: séculos VIII à XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 50. 35 LECLERCQ, J. op. cit. p. 79. 26 Apesar de não ser uma invenção do século XII, o eremitismo marca profundamente a espiritualidade dos coetâneos de São Bernardo. Sua existência data dos primeiros séculos do Cristianismo, sendo possível encontrar, já no século IV, um grupo influente de eremitas que se estabeleceram no deserto egípcio. Esses monges primitivos se retiravam para bosques, grutas e desertos a fim de levar uma vida religiosa solitária e errante, atraindo, assim, um grande número de seguidores que buscavam, por meio dessa austera opção de vida, a salvação e união com Deus.36 Os eremitas permaneceram em um número relativamente pequeno no decorrer da Idade Média, ganhando força apenas no século XI e, sobretudo, no século XII, quando o eremitismo foi visto como uma possibilidade renovada de cumprir os preceitos monásticos. Considerando o cenobitismo beneditino tradicional insuficiente para satisfazer as exigências religiosas do tempo, as iniciativas eremíticas procuravam ressaltar ainda mais em suas práticas a penitência e o desprezo pelo mundo.37 Cobertos por vestimentas miseráveis e com uma aparência sempre descuidada, esses homens procuravam, como os antigos eremitas, lugares inóspitos para permanecerem, como grutas, cavernas ou mesmo florestas. O objetivo aqui também era encontrar a presença divina longe dos homens, na extrema solidão de regiões totalmente desabitadas. O afastamento corporal era para favorecer o afastamento espiritual do religioso do mundo terreno, considerado fonte de preocupações e de desapontamentos.38 Para o fundador da Ordem dos Cartuxos – ordem essa que teve uma das mais bem sucedidas experiências de vida eremita na Idade Média –, o isolamento poderia livrar a alma das aflições causadas pelo mundo. Em uma carta enviada ao seu amigo Raúl, homem de vida laica, São Bruno o questiona sobre sua vida mundana: “não é um ônus terrível e inútil estar atormentado por seus desejos, ver-se sem cessar vergado pelas preocupações e angústias, pelo temor e dor que engendram tais desejos?” Crente que sim, o eremita aconselha seu amigo: “Foge, irmão meu, foge, pois, destas turvações e inquietudes, e passa da tempestade deste mundo ao repouso e à segurança do porto”.39 A ordem fundada por São Bruno foi, sem dúvida, uma das grandes responsáveis pelo sucesso da renovação do eremitismo no século XII. Um dos atos fundamentais dos Cartuxos foi dotar os religiosos de uma constituição original, garantindo obrigações mais fixas para o regimento da vida eremítica. Além de conferir à ordem uma estabilidade, considerada pelo 36 GATIER, P. Des femmes du desert? In : BERLIOZ, J. Moines et religieux au Moyen Âge. Paris : Ed. Du Seuil, 1994. p. 171-172. 37 DAVRIL, A. e PALAZZO, E. La vie des moines au temps des grandes abbayes (Xe-XIIIe siècles). Paris: Ed. Hachette, 2000. p. 20-22. 38 LECLERCQ, J. La separation du monde dans le monachisme au moyen âge. In :_____. La séparation du monde, Paris : Ed. du Cerf, 1961. p. 90. 39 CARTAS de São Bruno. Disponível em http://www.chartreux.org/textes/pt/Atras_pregadas_Bruno.htm#raul Acesso em 20/01/2011. 27 monaquismo beneditino um importante fator para a dedicação à vida contemplativa, a sistematização originada pela constituição conseguiu evitar que os eremitas de dispersassem, dispersão essa que desarticulou a maior parte das iniciativas eremitas do medievo.40 A escrita das constituições, no entanto, não veio do punho de São Bruno, mas do quinto prior cartusiano, Guiges I. Baseados em uma vida que emprestava elementos do cenobitismo beneditino, mas que em sua essência enfatizava o eremitismo solitário,41 os escritos de Guiges foram os principais reguladores das vidas desses monges. São Bruno também concebeu a vida eremítica – mesmo que não errante como a dos antigos – como uma fuga do mundo. Essa concepção estava justificada na oposição entre o terrestre e o divino, pois como ele aponta em carta semelhante àquela escrita por Bruno, “aspirando vivamente aos bens celestiais, rejeita os da terra”.42 E a forma mais virtuosa de se afastar do mundo, ainda segundo Guiges, seria o isolamento nos ermos, onde se encontraria a paz divina. O eremita aconselha em sua carta: o homem verdadeiramente feliz “não é o ambicioso que luta para conseguir honras altivas num palácio, mas aquele que escolhe levar uma vida simples e pobre no deserto, que gosta de aplicar-se à sabedoria no repouso, e deseja com ardor permanecer sentado e solitário no silêncio”.43 A singularidade dos Cartuxos do século XII reside em uma tentativa de total renúncia do mundo, por meio da solidão absoluta, sem qualquer ligação com a sociedade, nem tampouco vontade de agir diretamente sobre ela.44 A peregrinação, em suas manifestações na alta Idade Média, possuía finalidades próximas àquelas buscadas pelos eremitas: para o peregrino, a viagem que o afastava da sociedade também o levaria para mais próximo de Deus. Essa busca abstrata conduziu os peregrinos a errâncias nos desertos do que chamamos hoje de Oriente-Próximo, especialmente entre o Nilo e a Síria Oriental, ou mesmo em florestas e outros lugares não habitados na Europa; mas o que guiava o peregrino era, então, um empenho ascético inspirado na vocação monástica daqueles religiosos. Inicialmente, a palavra latina peregrinus possuía o sentido de “o estrangeiro”, ou seja, aquele que deixa sua pátria para se colocar em um tipo de exílio em uma região distante. A peregrinatio significava assim, no seu início, um exílio, porém, um 40 PACAUT, M. Les ordres monastiques et religieux au Moyen-âge. Paris: Ed. Nathan, 1970. p. 94. 41 VAUCHEZ, A. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: séculos VIII à XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.. p. 92. 42 CARTA de Guigo I: a um amigo sobre a vida solidária. Disponível em http://www.chartreux.org/textes/pt/GuigoI-VidaSolitaria.htm . Acesso 20/01/2011. 43 Ibid. 44 PACAUT, M. op.cit., p. 95. 28 exílio voluntário.45 Ao deixar seu ambiente familiar para enfrentar um país desconhecido e hostil, onde geralmente não se conhecia nem mesmo a língua utilizada, o viajante propunha a si mesmo uma espécie de automortificação, a fim de desvencilhar-se de seu estado carnal e atingir um contato místico com Deus. No decorrer do tempo, essas errâncias acabaram ganhando itinerários fixos, com lugares pré-estabelecidos de culto e adoração, como tumbas de santos, ou mesmo, como é o caso da Terra Santa, locais santificados pelas passagens bíblicas. Com o estabelecimento dessa “geografia sagrada”,46 a peregrinação deixa de ser pouco a pouco a errância em lugares desabitados, para tornar-se uma viagem com um destino definido. Essa alteração do sentido das peregrinações perdurou por vários séculos, podendo-se notar no século XI seu estabelecimento definitivo.47 Mesmo que a peregrinação tenha perdido seu valor de errância, os peregrinos não deixaram de reafirmar sua atenção exclusiva ao ‘caminho espiritual’.48 Para tanto, suas narrativas excluíram qualquer menção sobre o mundo “profano”, ou seja, de povos e cidades desprovidas de tradição bíblica, mesmo aquelas que forneciam o aparato logístico do peregrino. Nos relatos de viagens a Jerusalém, por exemplo, a cidade do Acre, principal porto de desembarque e núcleo logístico dos peregrinos ocidentais em Jerusalém, de maneira geral, não é mencionada. Essa depreciação do mundo que circundava a terra Santa, incluindo o reino cristão da Palestina, devia-se à ideia de que apenas os lugares consagrados pela tradição bíblica poderiam figurar como representações tangíveis da “Jerusalém celeste”. A “Jerusalém terrestre” servia essencialmente como um trampolim em direção à celeste, verdadeiro destino almejado pelo peregrino. O contato com o mundo terrestre e os povos que habitavam os contornos do itinerário, na maioria das vezes imprescindível para a realização da viagem, não deixou de ser alvo de 45 SIGAL, P-A. Les marcheurs de Dieu. Pèlerinages et pèlerins au Moyen Age. Paris: Armand Colin, 1974. p. 5-6. 46 Cf. GRABOÏS, A. Op. cit. Le pèlerin occidental en Terre sainte au Moyen Age. Paris : De Boeck Université, 1998. 47 Para Pierre Andre Sigal, este novo significado se consolida apenas a partir do meio do século XI. Mesmo que a busca por lugares consolidados como sagrados já ocorresse em períodos anteriores, para esse historiador, a conjunção entre as ideias e práticas ganha força somente no século XI, quando se percebe nitidamente o desejo de “imitação de Cristo”, através do estabelecimento do itinerário baseado nos mesmos caminhos palmilhados por Ele. Já para o historiador israelense Aryeh Graböis, a emergência do culto dos santos modifica o caráter original dessas viagens, introduzido dentro do itinerário das “errâncias espirituais”, paradas ao pé de túmulos venerados, onde o peregrino reza e pede a intercessão do santo junto a seu Deus. Para esse historiador, a devoção em lugares considerados sagrados pela presença dos restos mortais dos santos transformou, já no final do século IV, as “errâncias abstratas” em peregrinações concretas. Porém, Graboïs aponta que a confrontação dessas duas práticas distintas de peregrinação permaneceu na origem de uma contradição que perdurou vários séculos. 48 Cf. GRABOÏS, A. op. cit. p. 81-82. 29 críticas de alguns autores monásticos, principalmente a partir de meados do século XI.49 Se os peregrinos que visitavam a terra Santa procuravam encontrar certa ligação entre as cidades visitadas e sua correspondente dos céus, esses autores, sobretudo os oriundos de ordens monásticas, procuraram dissociar os caminhos que levaram em direção a elas. Em uma carta escrita ainda enquanto era abade, Santo Anselmo aconselhava um jovem que pretendia fazer uma peregrinação a desistir de seu projeto, pois, segundo ele, Jerusalém não era “uma visão de paz, mas de enfrentamentos, e dos tesouros de Constantinopla e da Babilônia que mancharam suas mãos de sangue”. Para Anselmo, o jovem deveria abraçar a vida religiosa, ou seja, tomar “o caminho da Jerusalém celeste, que é a visão de paz onde se encontram os tesouros que só recebem aqueles que desprezam os outros tesouros”.50 O monge beneditino Geoffroi de Vendôme também contrapôs a vida religiosa à viagem à Terra Santa, que, para ele, não garantiria a nenhum homem a entrada no reino dos céus. Os penhores da salvação seriam antes daqueles que tiveram uma vida virtuosa aqui na terra, como declara em uma carta endereçada ao bispo Hildebert du Mans, escrita na primeira metade do século XII. Geoffroi afirma, na correspondência, que “os homens bem comportados, e não aqueles que viram a Jerusalém terrestre, é que merecem receber a Jerusalém dos Céus”.51 Críticas às peregrinações não eram, a propósito, uma novidade desse período: desde as primeiras aparições dos viajantes piedosos no cristianismo encontram-se, principalmente em relação às mulheres, repreensões às situações pecaminosas que muitas vezes a própria condição da viagem impunha. Gregório de Nissa, um dos grandes teólogos do cristianismo primitivo, já elencava no final do século IV razões para que os religiosos cristãos não partissem para a Terra Santa. De acordo com ele, a viagem “inflige danos espirituais àqueles que se comprometeram com uma vida regular,” por isso, visitar Jerusalém “não é algo com o que se deveria ter grande preocupação, mas antes se deve repreender, para que aquele que escolheu viver segundo Deus não seja lesado por nada nocivo”.52 Ainda mais nociva, para Gregório, era a viagem pelas mulheres, já que “as necessidades da viagem rompem constantemente a vida regular [...], conduzindo à indiferença das observações.” Para o religioso, “é impossível a uma mulher fazer tal trajeto sem ter alguém que a proteja; por causa de sua fraqueza física, precisa-se sempre de alguém que a ajude a subir e descer de sua montaria, como também nas 49 CONSTABLE, G. Monachisme et pèlerinage au Moyen Age. Revue Historique. v. 258, 1977. 50 Apud. SOUTHERN, R. The making of the Middle Ages. New Haven: Yale University Press, 1953. p. 51. 51 apud. CONSTABLE, G. op.cit., p. 19. 52 GRÉGOIRE de Nysse. Letrre sur ceux qui vont à Jérusalém, à Censitor. In : MARAVAL, P. Recits des premiers pelerins chretiens en Proche-Orient. Paris: Ed. du Cerf, 1996. p. 51 30 dificuldades do terreno,” o que era necessariamente repreensível, já que nessas situações, “ela não poderia respeitar a lei da castidade”.53 Não eram apenas as mulheres, contudo, as que eram comumente desestimuladas a realizar uma viagem de longa distância. Vê-se, no século VIII, também um abade irlandês afirmando a todos seus discípulos que “Deus está tão próximo da Irlanda quanto de Roma ou de qualquer outro lugar, e que a rota para o Reino dos céus está à mesma distância de todos os países e que, então, não havia necessidade de cruzar os mares”.54 A intensificação dessas censuras e, especialmente, a adoção mais afetiva de seus conselhos ficaram, entretanto, reservadas ao século XII. Nesse período, os monges procuraram atrelar a peregrinação a um sentido mais interiorizado, como uma imagem alegórica da vida que o religioso encontraria no interior do monastério.55 Entendida ainda como uma ação que colocaria o religioso em contato com o mundo profano, a peregrinação física continuou a ser desestimulada pela maior parte dos escritores religiosos, que procuravam reforçar a ideia de que a única peregrinação possível para o monge era aquela da alma – e o lugar mais eficaz para evitar qualquer desvio dessa rota não era outro senão o monastério. O que levava os monges a adotarem a vida cenobítica nesses espaços era um desejo comum de afastamento da sociedade profana. O isolamento coletivo dentro desses verdadeiros desertos artificiais procurava afastar, deste modo, qualquer obstáculo ou empecilho que pudesse desviar o monge de seu objetivo principal: o encontro de Deus por meio da ascese e da oração.56 A vida exterior aos monastérios era vista como uma fonte de tentações e ilusões que poderiam furtar do monge toda sua concentração e disciplina que o levariam em direção a Deus. Como procuramos salientar, viver em comunidade nos monastérios significava, para esses religiosos, cumprir o ideal do contemptus mundi em sua forma plena. Essas ideias já estavam anunciadas na Regra escrita por São Bento, que considerava a estabilidade alcançada no interior do mosteiro como um dos principais fatores que levariam o religioso ao aprimoramento da alma, devendo ser punido severamente quem ousasse “sair do recinto do mosteiro ou ir a qualquer lugar [...] sem ordem do abade”.57 Em oposição aos monges que adotavam a vida cenobítica, Bento apresenta os monges chamados “girovagos” que, segundo ele, “passam a vida a percorrer províncias, permanecendo três ou quatro dias em 53 GRÉGOIRE de Nysse. Letrre sur ceux qui vont à Jérusalém, à Censitor. In : MARAVAL, P. Recits des premiers pelerins chretiens en Proche-Orient. Paris: Ed. du Cerf, 1996. p. 52. 54 HUGHES, K. The changing theory and practice in Irish pilgrimage. Journal of Ecclesiastical History. vol. XI, p. 147. 55 CONSTABLE, G. Monachisme et pèlerinage au Moyen Age. Revue Historique. v. 258, 1977. p. 25. 56 LECLERCQ, J. La separation du monde dans le monachisme au moyen âge. In :_____. La séparation du monde, Paris : Ed. du Cerf, 1961. p. 84. 57 REGRA de São Bento. In: PACÔMIO [et al.]. Regra dos monges. São Paulo: Ed. Paulinas, 1993. p. 138. 31 cada mosteiro”. “Sempre errantes, nunca estáveis”, esses monges, para Bento, eram “escravos das próprias vontades e das seduções da gula”.58 Uma leitura mais rigorosa da Regra beneditina ganha força no século XII, alimentada principalmente pela nascente ordem de Cister, que procurava, em um retorno às tradições monásticas “mais puras”, a renovação na vida religiosa de seu tempo.59 Nessas circunstâncias, cresceu a ideia de que a única forma capaz de evitar as ilusões e inquietudes características da vida mundana seria a vida cenobítica. Assim, seria mais proveitoso ao religioso renunciar ao mundo e suas tentações para viver como um peregrino, como um exilado no único lugar que ainda guardaria a essência de sua verdadeira pátria: o mosteiro. A peregrinação passa a ser valorizada por esses autores, não no sentido de um deslocamento físico, mas como o caminho que leva o religioso a abandonar o mundo e abraçar a vida monástica: a busca espiritual dos monges se torna, no século XII, a imagem de uma viagem.60 Como escreveu São Bernardo em uma carta endereçada ao abade de Saint Michel, “o objetivo dos monges é procurar não a Jerusalém terrestre, mas a celeste, e isso não se faz movendo-se com os pés, mas progredindo com o coração”. 61 Essas diferentes formas de viagens comuns nos séculos XI e XII não eram imunes à noção de rejeição do mundo. Eremitas, peregrinos ou mesmo monges enclausurados procuraram meios para evitar a atenção às coisas mundanas, mesmo quando a viagem os colocava em contato direto com elas. Isso porque o conhecimento das terras percorridas, adquirido na maioria das vezes pelo olhar e pelo ouvir dizer, era concebido como um saber que não contribuía para o aperfeiçoamento espiritual do cristão, sendo, portanto, repreensível e desprezível. O único conhecimento válido para esses homens era aquele que auxiliaria o cristão a conduzir sua vida virtuosamente, para que em seu fim ele pudesse conquistar a salvação. Tal expectativa de que o conhecimento virtuoso é aquele que conduz o cristão a entrar no Reino dos Céus62 não se altera substantivamente no decorrer da Idade Média, todavia, as crenças no que poderia ou não cooperar para a elevação espiritual dos cristãos, ou seja, o que poderia ser ou não considerado um conhecimento virtuoso oscila substantivamente, como convém examinar a seguir. 58 REGRA de São Bento. In: PACÔMIO [et al.]. Regra dos monges. São Paulo: Ed. Paulinas, 1993. p. 10-11. 59 PACAUT, M. Les ordres monastiques et religieux au Moyen-âge. Paris: Ed. Nathan, 1970. p. 101-104. 60 SOUTHERN, R. The making of the Middle Ages. New Haven: Yale University Press, 1953. p. 222. 61 SAN BERNARDO de Claraval. Obras completas de San Bernardo. Vol. VII. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1990. p. 246-247. 62 Cf. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fonte, 1995.; _________. O Espírito da Filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006.; MOREAU, Joseph. De la connaissance selon S. Thomas D’Aquin. Paris: Beachesne, s/d. 32 1.2 – Vãs curiosidades Até o século XII, o conhecimento adquirido por meio da observação dos povos encontrados era desvalorizado, por ser concebido como um saber inútil ao aprimoramento moral e espiritual do fiel. Sem um direcionamento preciso para aquilo que conhecia em uma viagem, o viajante foi muitas vezes associado, por alegorias ou metáforas, a alguém desorientado, desconhecedor do verdadeiro caminho, isto é, o caminho em direção a Deus. O mencionado Bernardo de Claraval, um dos pensadores cristãos mais importantes de seu tempo,63 utilizou inúmeras vezes esse recurso para caracterizar aqueles que ainda não tinham alinhado seu comportamento com a virtude. Dentre elas, em Os doze passos para a humilhação e orgulho, o primeiro tratado divulgado do monge cisterciense, escrito provavelmente em 1127, Bernardo escreve que Jesus teria dito “aos viajantes e àqueles que não sabem a direção: ‘eu sou o caminho’”.64 Ainda para Bernardo, o conhecimento deveria ser estritamente direcionado para auxiliar os homens na busca da salvação. Na verdade, segundo ele, a finalidade do conhecimento caracterizaria seu valor, ou seja, o bom conhecimento seria aquele a ser utilizado de forma benéfica – segundo os modos cristãos de entender o bem, é claro. Em um sermão proferido em torno de 1135, intitulado Sobre o conhecimento e a ignorância, Bernardo parte da ideia de que “o fruto e a utilidade do saber consistem no modo de saber”. Por isso, os cristãos, segundo ele, deveriam se aplicar “a saber, antes e acima de tudo, o que conduz mais diretamente à salvação”. Aquilo que não contribuísse para tal fim era considerado um conhecimento vão, inútil ou, para utilizar um dos termos prediletos dos medievais para caracterizar esse tipo de conhecimento, era uma “curiosidade”. Ao contrário dos dias de hoje, em que o termo também pode ser lido com um valor positivo ou, pelo menos, neutro, a curiosidade possuía na Idade Média um significado totalmente pejorativo, caracterizando aquilo que era dispensável, fútil, supérfluo, desprezível, enfim. Para os medievais, o conhecimento advindo da curiosidade era até mesmo contra a salvação, na medida em que levava ao desperdício do tempo e da atenção dos homens em algo que não os levaria mais próximo do conhecimento de Deus. Muitos dos escritos do período chegaram a contrapor o conhecimento curioso ao conhecimento virtuoso, para realçar a desaprovação a esse tipo de saber. Para demarcar essa disparidade, Bernardo de Claraval, no mencionado sermão, aponta que os homens deveriam buscar o conhecimento “não por 63 Cf. GILSON, Etienne. La Theologie mystique de St. Bernard. Paris : Imprenta, 1934.; LECLERCQ, Jean. St. Bernard et l'esprit cistercien. Paris : Maîtres Spirituels, 1966. 64 BERNARD of Clairvaux. The Twelve Steps of Humility and Pride. London: Hodder and Stoughton, 1985. p. 20. (grifo nosso) 33 vaidade ou curiosidade ou objetivos semelhantes, mas somente pela tua própria edificação e pela de teu próximo”. Como nos indica o conhecido monge claravalense, o que incomodava esses homens era o fato de que esse tipo de conhecimento não contribuía nem para a própria salvação nem para a dos outros, ou seja, a curiosidade iria de encontro a um dos grandes objetivos cristãos, o salvamento de si e do próximo. Na ausência dessa finalidade – a propósito, a grande finalidade da vida cristã –, qualquer tipo de conhecimento ou saber se tornaria uma curiosidade, sinônimo de vaidade, superficialidade e inutilidade. Para os medievais, todo conhecimento deveria possuir um fim bastante especifico: a salvação. É para reafirmar essas crenças que Bernardo estabelece uma rígida divisão entre os que buscam “o saber por si mesmo, conhecer por conhecer”, os que buscam “o saber para edificar” e aqueles que buscam “o saber para se edificar”. “Uma indigna curiosidade” caracterizaria o primeiro caso, de acordo com ele, enquanto o amor e a prudência, respectivamente, seriam o motriz dos dois outros tipos de conhecimento.65 Esse “utilitarismo” que conduz a reflexão de Bernardo sobre o conhecimento e, em especial sobre a curiosidade, não é uma singularidade do pensamento do monge cisterciense, nem mesmo de seus contemporâneos. Pode-se dizer que o valor atribuído ao conhecimento seguiu padrões há tempos vigentes. O critério da utilidade já desempenhava um papel importante para avaliar o valor do conhecimento para muitos autores romanos. Para os estoicos, bem como para o eclético Cícero66 – o primeiro a desenvolver uma reflexão mais aprofundada sobre a curiosidade –, todo conhecimento deveria contribuir para o aperfeiçoamento moral, com a finalidade de atingir a ataraxia ou, na tradução latina, a tranquilidade da alma.67 Para esses romanos, todo conhecimento que fugisse a esse fim era considerado um conhecimento vão, inútil, em suma, uma curiosidade – como já definiam.68 Os cristãos medievais apropriaram-se desse sentido antigo de curiosidade. No entanto, o termo foi adequado pelo cristianismo ocidental às crenças e dogmas fixados já pelos primeiros Padres da Igreja. Basílio, o grande, São Jerônimo e São Pedro Crisólogo foram alguns dos grandes fundamentadores da fé cristã que ligaram a curiosidade à conduta moral dos fiéis. Esses importantes teólogos do cristianismo atrelaram a curiosidade a formas de 65 BERNARDO de Claraval. Sermão sobre o conhecimento e a ignorância. In: LAUAND, L. J. (Org.). Cultura e educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 266-267. 66 LABHARDT, A. Curiositas, notes sur l'histoire d'un mot et d'une notion. Museum Helveticum. vol. 17, p. 210, 1960.; HARRISON, Peter. Curiosity, Forbidden Knowledge, and the Reformation of Natural Philosophy in Early Modern England. Isis, Vol. 92, No. 2 (Jun., 2001), p. 266. Disponível em http://www.jstor.org/stable/3080629, acessado em 23/09/2010. 67 Sêneca menciona a tradução do termo grego em sua “Carta a Sereno”. SÊNECA. Da tranquilidade da Alma. São Paulo: Abril, coleção Os Pensadores, 1973. 68 LABHARDT, A. op. cit., p. 211-213. 34 conhecimento mundanas, proibidas ou inúteis para o que se tornou a principal meta da vida desses homens, isto é, a salvação da alma. Vaidade, orgulho e imprudência, segundo eles, seriam alguns dos vícios que levariam os homens a possuir apetite desmedido por conhecer, portanto, seriam um caminho para o mundano, o paganismo e muitas vezes para as “artes mágicas”. A curiosidade, sob o olhar desses primeiros cristãos, começava a criar suas primeiras conexões com a noção de pecado.69 O primeiro grande formulador da noção cristã de curiosidade foi, contudo, Santo Agostinho. Na sua doutrina, marcada por um neoplatonismo que enfatizava a busca pela sapiência divina interiorizada em contraposição a formas exteriorizadas ou intermediadas pelo corpo, a curiosidade tem um papel fundamental. O espírito utilitário, ou seja, a reafirmação da necessidade de um fim específico para o conhecimento permeia grande parte do pensamento agostiniano. Para o bispo de Hipona, qualquer tipo de conhecimento diverso daquele que não contribuísse para a salvação da alma do fiel era considerado uma deformação, uma monstruosidade,70 um estímulo a tentações e pecados. A curiosidade, ainda segundo o Doutor da Igreja, despertava o desejo de experimentar sensações, não para fins da Salvação, mas para satisfazer a voluptuosa “paixão de tudo examinar e conhecer”. “Por causa desta doença da curiosidade”, nascia nos homens “o desejo de perscrutar os segredos preternaturais que afinal nada nos aproveita conhecer, e que os homens anseiam saber, só por saber”; desejos que levariam os homens a recorrer “às artes mágicas”.71 O termo é recorrente na obra de Agostinho, utilizado quase de maneira técnica para designar a falta de zelo que originaria a aquisição de um saber inútil, cujo fim acabava nele mesmo.72 A curiosidade, para Agostinho, desempenha um importante papel no processo que podia levar o homem a pecar. De acordo com ele, o pecado se efetiva após três etapas principais: a sugestão, o deleite e o consentimento. Nesse processo em que o fiel realiza uma escolha errada, a curiosidade ocupava um lugar importante, na medida em que levava o homem a se interessar pela sugestão exterior (ou da carne), possibilitando certo deleite e, enfim, o consentimento pecaminoso.73 O pecado original, de onde procedeu toda danação humana, segundo ele, seguiu esse mesmo processo: a serpente faz a sugestão, o deleite ocorre a partir do apetite carnal de Eva em provar o fruto da árvore do conhecimento e o 69 LABHARDT, A. Curiositas, notes sur l'histoire d'un mot et d'une notion. Museum Helveticum. vol. 17, p. 210, 1960. p. 216. 70 MARROU, H. Saint Augustin et la fin de la culture antique. Paris: De Boccard,1938. p. 279. 71 AGOSTINHO. Confissões. Livro X, cap. 35. Braga: Livrarias Apostoladas da Imprensa, 1990. 72 LABHARDT, A. op. cit. p. 220. 73 HOWARD, Donald R. The three temptations. Medieval Man in search of the world. Princeton, New Jersey: Princeton University Presse, 1966. p..57. 35 consentimento é dado por Adão. A curiosidade, então, não foi propriamente um pecado, mas aquilo que conduziu o homem a pecar.74 Na medida em que estabelece esses três passos para o pecado, Santo Agostinho não apenas reforça um certo “utilitarismo cristão” do conhecimento, alimentando toda uma doutrina medieval sobre a finalidade do saber, mas também começa a estabelecer uma distinção entre meios legítimos e ilegítimos de adquirir conhecimento. Essa formulação acaba levando o santo africano a associar o valor do conhecimento ao seu meio de aquisição. Assim como no pecado original, a sugestão, ou seja, o movimento inicial do pecado, seria animada por um estímulo exterior à alma, isto é, pelo corpóreo e carnal. Para Santo Agostinho, o conhecimento adquirido pela mediação carnal, oriunda dos sentidos corpóreos, como a audição, o olfato e, principalmente, a visão, teria mais propensão a ser um saber curioso, sendo, assim, repreensível e desqualificado. A ideia de que o espírito deseja amar a Deus, e a carne amar seu próprio poder, é perceptível em suas primeiras obras, e torna-se a base moral para a distinção das duas cidades presentes em seu A Cidade de Deus.75 Mas em suas Confissões, uma das obras mais lidas e citadas em toda a Idade Média, Agostinho exorta seus leitores a evitarem uma “tentação perigosa [...] que pulula na alma, em virtude dos próprios sentidos do corpo, [...] um desejo de conhecer tudo, por meio da carne”. Esse desejo “curioso e vão”, segundo ele, que “nasce da paixão de conhecer tudo, é chamado nas divinas Escrituras a concupiscência dos olhos,76 por serem estes os sentidos mais aptos para o conhecimento”.77 De um ponto de vista mais filosófico, o que Agostinho procurava salientar – inspirado, principalmente, em Platão e Plotino – é que tudo o que atinge os sentidos do corpo, que chamamos de sensível, possui um caráter transitório, permanecendo em um eterno devir. Como, segundo ele, o que é transitório é contraditório à verdade, já que esta era imutável, não poderíamos nutrir esperança de que os sentidos corporais nos conduziriam a uma verdade essencial. Em outras palavras, a verdade seria necessária e imutável; mas nada de necessário nem de imutável se encontraria na ordem do sensível, assim, ele conclui que não é das coisas sensíveis que poderíamos tirar a Verdade.78 74 ZACHER, C. Curiosity and Pilgrimage: The Literature of Discovery in Fourteenth- Century England. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976. 75 HOWARD, Donald R. The three temptations. Medieval Man in search of the world. Princeton, New Jersey: Princeton University Presse, 1966. p. 58. 76 A referência bíblica está localizada em I Jo. II, 16. 77 AGOSTINHO. Confissões. Livro X, cap. 35. Braga: Livrarias Apostoladas da Imprensa, 1990. 78 GILSON, Étienne. O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 304-322. 36 A curiosidade, recoberta de todos esses aspectos negativos, estava, na visão de Agostinho, intimamente ligada às formas e práticas de aquisição de conhecimento por meio dos sentidos corporais. A viagem, prática que por excelência colocava os homens em contado direto com o mundo percorrido por meio da visão dos homens e paisagens e da audição das inúmeras lendas e historietas ouvidas durante o caminho, foi, por consequência, rapidamente associada às formas ilegítimas de adquirir conhecimento. Mais sujeito às distrações banais proporcionadas pela natureza e aos desvios de conduta morais oferecidos pelo mundo, o viajante estava mais exposto às sugestões pecaminosas, que eram o primeiro passo para efetivação da falta moral. O próprio Agostinho de Hipona “confessa” sua dificuldade em evitar tais distrações durante suas viagens e deslocamentos. Como afirma, ele já estava aprimorado o suficiente para evitar um espetáculo natural como “um cão a correr atrás duma lebre quando isso sucede no circo”. Mas o problema era se a caçada fosse em um “campo [...] casualmente” percorrido por ele, pois admite ele: “talvez ela me distraia dum pensamento importante e, se me não obriga a mudar de caminho para a seguir, sigo-a ao menos com um desejo de coração”.79 O que todo fiel deveria almejar para evitar “tantos pensamentos fúteis, que se despenham sobre nós e nos cortam a atenção em coisa tão importante”, segundo Agostinho, é uma total despreocupação com os meios sensoriais da carne, com o fim de desviar dos caminhos mundanos e empreender uma viagem em direção a Deus. Para tanto, ele apela para uma forma interiorizada dos sentidos, a única capaz de fazer o fiel resistir “às seduções dos olhos para que os pés, com que começo a andar no Vosso caminho, não fiquem presos”, e levantar “os olhos invisíveis, a fim de que me livreis os pés, do laço da tentação”.80 Com Santo Agostinho, a associação entre as viagens e a curiosidade ganha amarras mais duradouras, legando ao pensamento cristão medieval um forte teor pejorativo do conhecimento adquirido durante as andanças pelo mundo. Outros importantes pensadores e teólogos reforçaram essas ideias durante um longo período. Cerca de um século e meio após a escrita das Confissões de Agostinho, São Bento utilizou grande parte das convicções que sustentavam a argumentação do bispo de Hipona sobre a validade de certos tipos de conhecimento para redigir sua Regra. Atingindo um grande sucesso a partir do século VI, essa obra fez-se fundamental para todo pensamento monástico medieval, pois era ela quem estabelecia as principais normas condutoras da vida dos religiosos enclausurados. 79 AGOSTINHO. Confissões. Livro X, cap. 35. Braga: Livrarias Apostoladas da Imprensa, 1990. 80 Ibid., cap. 34. 37 Um dos pontos fundamentais para a condução de uma vida religiosa virtuosa e disciplinada, segundo a Regra de São Bento, era a estabilidade. O monge deveria professar o voto de estabilidade, permanecendo num mesmo lugar e comunidade, onde ele se dedicaria à vida religiosa, passando ali o resto de seus dias. A estabilidade, nesse sentido, garantia que o monge e, consequentemente, a comunidade monástica vivesse sempre voltada para Deus. Para assegurar essa estabilidade, a Regra procurava garantir a permanência dos monges dentro dos muros dos mosteiros, essas verdadeiras ilhas de paz em um mundo de conturbações. A permanência nos mosteiros era desejada, porque Bento acreditava que, do lado de fora, o monge poderia ter sua atenção desviada de sua meta principal: a contemplação de Deus. Por isso, quando trata “do porteiro dos mosteiros”, um dos poucos que poderia ter um contato maior com o mundo exterior, dada sua posição próxima à saída, ele recomenda “um ancião prudente [...], cuja maturidade não lhe permita vaguear”. Bento adverte ainda que o mosteiro “deveria ser construído de tal modo que todas as coisas necessárias, isto é, água, moinho, horta, oficinas e os diversos ofícios se exerçam dentro do mosteiro”. Isso a fim de que “não haja necessidade de os monges saírem e andarem fora, o que de nenhum modo convém às suas almas”.81 Embora oriente os monges a permanecerem trancados nos mosteiros, Bento admite a possibilidade de, por alguma necessidade, ocorrerem algumas viagens, e procura inclusive normatizar essa prática em dois capítulos de sua Regra dedicados aos “irmãos mandados em viagem”. Para não fugir do princípio da estabilidade, recomenda que, durante o percurso, a primeira ação do viajante devia ser não deixar de cumprir os ofícios diários “consigo mesmos” e não descuidarem do “desempenho desta obrigação”.82 Guardando o máximo possível suas observâncias monásticas, o monge deveria, por assim dizer, levar o monastério consigo para todos os lugares, perpetuamente, como uma espécie de proteção contra o mundo ao seu redor.83 Essa preocupação se devia às inúmeras tentações que o monge viajante poderia encontrar no exterior do monastério. Segundo a Regra, os monges também deveriam, “ao regressarem, se prostrar no oratório, pedindo a todos que rezem por eles por causa das faltas cometidas durante a viagem, deixando-se, talvez, surpreender, vendo ou ouvindo alguma coisa má ou mantendo conversas 81 REGRA de São Bento. In: PACÔMIO [et al.]. Regra dos monges. Cap. 66, 6-7 São Paulo: Ed. Paulinas, 1993. p. 137-138 82 Ibid., Cap. 50. 83 DELATTE, Dom Paul. Commentaire sur la règle de Saint Benoit. Paris : Librairie Plon/ Maison Alfred Mame et fils, 1948. p. 534-535. 38 ociosas”.84 Aqui, portanto, é possível encontrar os mesmos fundamentos que também levaram Santo Agostinho a desestimular a prática das viagens. Tanto o meio pelo qual o conhecimento é constituído, ou seja, o visto e o ouvido, quanto seu próprio conteúdo, são também mencionados no trecho. A palavra “ociosa”, utilizada por Bento para qualificar as conversas que o monge poderia ter durante a viagem, tem o mesmo sentido de inútil, estéril, o que lembra em muito os termos utilizados por Agostinho e outros pensadores para designar a curiosidade. É por esse teor nocivo do conhecimento adquirido durante a viagem que Bento, enfaticamente, adverte: “Ninguém presuma transmitir aos outros o que viu e ouviu fora do mosteiro, pois isto poderia muito prejudicar”.85 Para evitar essa e outras faltas, São Bento apresenta “os doze graus da humildade” para “alcançar rapidamente aquela exaltação celeste à qual só se pode chegar pela humildade da vida presente”. O duodécimo grau, ou seja, a última etapa para o fiel atingir um grau de perfeição que o levasse à salvação, era justamente o cuidado com a “errância do olhar”. Para evitar esse tipo de tentação, aconselha a Regra, o monge deve adotar uma postura corporal específica, pois ele não “deve só conservar a humildade interior”, mas deixá-la transparecer “exteriormente aos que vêem”. Por isso, é preciso que, “em viagem, no campo ou onde quer que esteja, sentado, andando ou em pé, tenha sempre a cabeça inclinada, com os olhos fixos no chão”.86 Os preceitos e normas presentes na Regra beneditina obtiveram notável alcance e sucesso nos meios monásticos na cristandade, pois, como já mencionado, durante séculos, ela foi a principal regra condutora da vida dos religiosos no interior dos monastérios. É inspirado na Regra, ou mais especificamente, nos “doze graus da humildade”, que o cisterciense Bernardo de Claraval escreveu a obra supracitada Os doze passos da humildade e orgulho, em meados do século XII. Se, para Bento, o último grau da humildade era o cuidado para não tirar os olhos do chão para evitar o desvio de sua atenção dos assuntos do espírito, o primeiro passo para o orgulho, segundo Bernardo, era precisamente “o apetite pelo conhecimento, especialmente sendo curioso com os olhos”. Bernardo, de certa maneira, sintetizou as principais ideias monásticas referentes à busca pelo conhecimento, o que também contribuiu para o sucesso atingido por seus escritos, tanto anterior quanto posteriormente a sua morte.87 84 REGRA de São Bento. In: PACÔMIO [et al.]. Regra dos monges. Cap. 66, 6-7 São Paulo: Ed. Paulinas, 1993.p. 138 85 Ibid., p. 138. 86 Ibid., p. 77. 87 Sobre Bernardo de Claraval, Cf. AUBÉ, P. Saint Bernard de Clairvaux. Paris, 2003.; LECLERCQ, Jean. Bernard of Clairvaux and the Cistercian Spirit. Cistercian Publications, 1976.; GEORGES, Duby. Saint Bernard et l’art ci