UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS – UNESP, UNICAMP E PUC-SP JOÃO VITOR TOSSINI A presença militar do Reino Unido no Atlântico Sul: os interesses geoestratégicos britânicos na região (1990-2016) São Paulo 2021 JOÃO VITOR TOSSINI A presença militar do Reino Unido no Atlântico Sul: os interesses geoestratégicos britânicos na região (1990-2016) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”, na linha de pesquisa “Pensamento Estratégico, Defesa e Política Externa”. Orientador: Samuel Alves Soares. São Paulo 2021 JOÃO VITOR TOSSINI A presença militar do Reino Unido no Atlântico Sul: os interesses geoestratégicos britânicos na região (1990-2016) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência para obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Paz, Defesa e Segurança Internacional”, na linha de pesquisa “Pensamento Estratégico, Defesa e Política Externa”. Orientador: Samuel Alves Soares. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Samuel Alves Soares (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) Prof. Dr. Luís Alexandre Fuccille (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) Prof. Dr. Cauê Rodrigues Pimentel (Instituto Rio Branco) São Paulo, 04 de março de 2021. A Otávio, Antônia e Carly [in memorian]. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, entre março e junho de 2019, e, posteriormente, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), entre junho de 2019 a fevereiro de 2021 (processo nº 2019/04474-3). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES. Nunca medindo esforços para me ajudar, agradeço imensamente aos meus pais, Claudia Cristina dos Santos Tossini e Ronaldo Tossini. O incessante suporte, apoio e compreensão de vocês permitiram que este trabalho fosse realizado. Obrigado por me incentivarem e acreditarem mim. Aproveito para agradecer aos meus familiares, em especial a Luzia e Everton. Ao meu orientador, Prof. Dr. Samuel Alves Soares, pelos inúmeros conselhos acadêmicos, pelo suporte e atenção que recebo desde a Iniciação Científica. Espero que esta parceria persista nos anos vindouros. Agradeço aos funcionários e funcionárias do PPGRI San Tiago Dantas pelo suporte e atenção que contribuíram para facilitar o cotidiano da elaboração deste trabalho. Giovana, Isabela e Graziela, agradeço pelo trabalho crucial durante esses dois anos. Aos docentes do PPGRI San Tiago Dantas, com os quais o aprendizado não foi reservado as salas de aula, mas nas variadas trocas de conhecimento ao longo desses anos. Agradeço aos professores Luís Alexandre Fuccille e Cauê Rodrigues Pimentel, que contribuíram para o avanço deste trabalho com valiosas sugestões e conselhos no exame de qualificação, por aceitarem prontamente a participação como membros da banca de defesa. Aos meus colegas e amigos, pelas excelentes trocas ao longo da elaboração deste trabalho. “[…] For who are so free as the sons of the waves?” David Garrick RESUMO O trabalho visa analisar os interesses geoestratégicos do Reino Unido no Atlântico Sul considerando seu histórico como grande potência. Além disso, será analisada a natureza da presença militar britânica na região, as capacidades expedicionárias do Reino Unido no pós- Guerra Fria e a projeção de poder nesse período de 1990 a 2016. Apesar de um período de declínio relativo, o Reino Unido continua a ser tradicionalmente caracterizado como uma grande potência, com significativo peso militar, econômico e político no sistema internacional, sendo um dos membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), um dos membros mais ativos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o aliado mais próximo dos Estados Unidos. Esses fatores possibilitam ao país uma liberdade relativamente significativa de ação no Atlântico Sul onde é a única grande potência militar estrangeira além dos Estados Unidos a possuir uma presença permanente no Atlântico ao sul do Equador. Ademais, o Reino Unido manteve um sistema de projeção de poder militar aeronaval baseado em seus Territórios Ultramarinos localizados em regiões de grande relevância geoestratégica. Entende-se que as Ilhas Malvinas/Falklands e Ascensão no Atlântico Sul, Gibraltar na entrada oeste do Mediterrâneo, Diego Garcia no Oceano Índico, dentre outras possessões, são pilares essenciais para a capacidade de projeção de poder britânico, para o controle relativo das áreas vizinhas e, consequentemente, para a posição do Reino Unido como uma grande potência militar. Logo, o Atlântico Sul, região que possui uma concentração relevante desses territórios, está no centro das considerações estratégicas do Reino Unido, especialmente durante e após a Guerra das Malvinas/Falklands quando esse sistema de projeção de poder esteve ameaçado. Dessa forma, ao analisar os interesses geoestratégicos do Reino Unido no Atlântico Sul, considera- se o histórico conflituoso do país na região, suas capacidades expedicionárias e a natureza da sua presença militar na região. Com isso, espera-se contribuir para o melhor entendimento do entorno geoestratégico que os países regionais estão inseridos, da relação das capacidades expedicionárias de Londres com os territórios britânicos e expandir a literatura nacional sobre a presença do Reino Unido no Atlântico Sul para além da disputa de soberania das Ilhas Malvinas/Falklands. Palavras-chave: Projeção de Poder. Reino Unido. Interesses Geoestratégicos. Atlântico Sul. ABSTRACT This research aims to analyse the United Kingdom’s geostrategic interests in the South Atlantic, taking into account the country’s history as a great power. Beyond that, the research will be analysing the nature of the British military presence in the region, the expeditionary capabilities of the United Kingdom in the post-Cold War years and power projection of this period from 1990 to 2016. Despite a period of relative decline, the United Kingdom remains characterised as a great power, bearing significant military, economic and politic power in the international system, being one of the permanent members of the United Nations’ Security Council, one of the most proactive members of the North Atlantic Treaty Organisation (NATO) and the closest ally of the United States. These factors enable the country to have relatively meaningful freedom of action in the South Atlantic. The United Kingdom is the only foreign great power beyond the United States with a permanent presence south of the Equator. Additionally, the United Kingdom kept a power projection system based on its Overseas Territories, located on significant geostrategic relevant areas. It is supported that the Malvinas/Falklands and Ascension in the South Atlantic, Gibraltar in the western Mediterranean, Diego Garcia in the Indian Ocean, amongst other territories, are essential pillars for the British power projection capabilities, relative control of surrounding areas and, consequently, for the position of the United Kingdom as a great military power. Therefore, the South Atlantic, a region with an appropriate amount of those territories, is in the centre of the British strategic considerations, especially during and after the Malvinas/Falklands War that threatened this power projection system. Thus, analysing the United Kingdom’s geostrategic interests in the South Atlantic, the past conflicts, and the expeditionary capabilities and military presence in the region of the country are going to be taken into consideration. It is expected that this dissertation might contribute to the studies concerning the strategic environment that surrounds the regional countries, to the links between the British expeditionary warfare and the British Overseas Territories in the South Atlantic, in addition to expanding the national studies about the United Kingdom in the region to areas beyond the Falklands/Malvinas sovereignty dispute. Keywords: Power Projection. United Kingdom. Geostrategic Interests. South Atlantic. RESUMEN Esta investigación pretende analizar los intereses geoestratégicos del Reino Unido en el Atlántico Sur, teniendo en cuenta la historia del país como gran potencia. Además, la investigación analizará la naturaleza de la presencia militar británica en la región, las capacidades expedicionarias del Reino Unido en los años posteriores a la Guerra Fría y la proyección de poder de este período de 1990 a 2016. A pesar de un período de relativa disminución de su poder, el Reino Unido sigue caracterizado como una gran potencia, que tiene un importante poder militar, económico y político en el sistema internacional, siendo uno de los miembros permanentes del Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas, Uno de los miembros más activos de la Organización del Tratado del Atlántico del Norte (OTAN) y el aliado más cercano de los Estados Unidos. Estos factores permiten que el país tenga una libertad de acción relativamente significativa en el Atlántico Sur. El Reino Unido es la única gran potencia extranjera después de los Estados Unidos con una presencia permanente al sur del Ecuador. Además, el Reino Unido mantuvo un sistema de proyección de poder basado en sus Territorios de Ultramar, cerca de importantes zonas geoestratégicas. Se afirma que las Malvinas/Falklands y la Ascensión en el Atlántico Sur, Gibraltar en el Mediterráneo occidental, Diego García en el Océano Índico, entre otros territorios, son pilares esenciales para la capacidad de proyección de poder británico, el control relativo de las zonas circundantes y, en consecuencia, por la posición del Reino Unido como una gran potencia militar. Por lo tanto, el Atlántico Sur, una región con una cantidad significativa de esos territorios, está en el centro de las consideraciones estratégicas británicas, especialmente durante y después de la Guerra Malvinas/Falklands que amenazó este sistema de proyección de poder. Así pues, se van a tener en cuenta los intereses geoestratégicos del Reino Unido en el Atlántico Sur, los conflictos pasados, las capacidades expedicionarias y la presencia militar en la región del país. Se espera que esta investigación contribuya a la investigación científica nacional con una comprensión completa del entorno estratégico que rodea a los países regionales, una mejor comprensión de la relación entre la guerra expedicionaria británica y los Territorios británicos de Ultramar en el Atlántico Sur, además de ampliar los estudios sobre el Reino Unido en la región con cuestiones que superan la disputa de soberanía de las Malvinas/Falklands. Palabras clave: Proyección de Poder. Reino Unido. Intereses geoestratégicos. Atlántico Sur. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Mapa 1 – Estações Carvoeiras do Império Britânico (1870-1914) ……...…...…… 38 Mapa 2 – A Estratégia de Ilhas (Island Strategy, 1962) do Governo Britânico ....... 42 Mapa 3 – Territórios Ultramarinos Britânicos ..…...………………...…………...... 61 Gráfico – Gasto Militar em Porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB) …...…... 72 Mapa 4 – Os Territórios Ultramarinos do Reino Unido no Atlântico Sul ...………. 118 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Composição das principais unidades da Royal Navy entre 1990 e 2020 ....... 86 Tabela 2 – Os oito países com os maiores orçamentos militares em 2015 .…………..... 95 Tabela 3 – Infraestrutura e Presença Militar nos Territórios britânicos no Atlântico, Mediterrâneo e Índico .................................................................................... 122 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BA British Army (Exército Britânico) CSR Comprehensive Spending Review (Revisão Abrangente de Gastos) HMS His/Her Majesty’s Ship (Navio de Sua Majestade) JEF Joint Expeditionary Force (Força Conjunta Expedicionária) JRRF Joint Rapid Reaction Forces (Forças Conjuntas de Reação Rápida) NSS/SDSR National Security Strategy and Strategic Defence and Security Review ONU Organização das Nações Unidas/United Nations Organization OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte PIB Produto Interno Bruto RAF Royal Air Force (Força Aérea Real) RFA Royal Fleet Auxiliary (Frota Real Auxiliar) RN Royal Navy (Marinha Real) SDR Strategic Defence Review (Revisão Estratégica de Defesa) USAF United States Air Force (Força Aérea dos Estados Unidos da América) USN United States Navy (Marinha dos Estados Unidos da América) ZOPACAS Zone de Paz e Cooperação do Atlântico Sul SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................... 13 1.1 O Reino Unido, a Projeção de Poder e os resquícios imperiais no Atlântico Sul ................................................................................................. 17 2 PROJEÇÃO DE PODER NAVAL NO PÓS-GUERRA FRIA ............... 22 2.1 Territórios e bases militares ultramarinas: Pivôs para a Projeção de Poder ............................................................................................................. 36 2.2 Os custos da Projeção de Poder ..………...…............................................ 46 2.3 Conclusões Parciais ..............……….……...…….….................................. 55 3 O PODER MILITAR EXPEDICIONÁRIO BRITÂNICO NO PÓS- GUERRA FRIA ........................................................................................... 59 3.1 O declínio relativo e a posição internacional do Reino Unido ................. 59 3.2 A Política de Defesa no Governo John Major (1990-1997) ...................... 68 3.3 A Política de Defesa do Governo Tony Blair (1997-2007) ........................ 74 3.4 A Política de Defesa do Governo Brown (2007-2010) ............................... 81 3.5 A Política de Defesa do primeiro Governo David Cameron (2010-2015) 84 3.6 A Política de Defesa do segundo Governo Cameron (2015-2016) ............ 90 3.7 Conclusões Parciais ...................................................................................... 97 4 A NATUREZA DA PRESENÇA MILITAR BRITÂNICA NO ATLÂNTICO SUL ...................................................................................... 102 4.1 Serra Leoa e o intervencionismo do Reino Unido no Governo Blair....... 103 4.2 África do Sul: O porto de Simon’s Town ................................................... 108 4.3 O Contingente Militar do Reino Unido no Atlântico Sul ......................... 114 4.3.1 Ilhas de Ascensão, Santa Helena e Tristão da Cunha ..................................... 116 4.3.2 Ilhas Malvinas/Falklands e Ilhas Geórgia do Sul e Sandwich do Sul ............ 124 4.4 O Reino Unido como ator regional e os efeitos para os Estados sul- atlânticos ....................................................................................................... 131 4.5 Conclusões Parciais ..................................................................................... 142 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 147 REFERÊNCIAS .......................................................................................... 157 13 1 INTRODUÇÃO Apesar do processo de descolonização que levou ao fim dos impérios coloniais europeus, o Reino Unido continuou a usufruir da utilidade militar de seus territórios remanescentes no Mediterrâneo, Caribe, Índico e, em menor escala, no Atlântico Sul. A Guerra das Malvinas/Falklands mudaria o engajamento de Londres na região, estabelecendo o Atlântico Sul como uma das principais áreas de atuação das Forças Armadas Britânicas, especialmente no pós-Guerra Fria, período que houve o contínuo decréscimo da presença britânica na Alemanha e o consequente crescimento da relevância relativa da presença militar do Reino Unido em suas possessões ultramarinas. Enquanto determinados territórios além-mar foram deliberadamente mantidos pelo Governo Britânico nos anos 1960, a guerra de 1982 traria ao Atlântico Sul a concepção estratégica-militar aplicada pelo Reino Unido no Mediterrâneo que estabelecia principalmente uma presença militar para a manutenção do controle britânico sobre esses territórios ao passo que inseria essas possessões regionais em um sistema global de projeção de poder. Similarmente ao Mediterrâneo, o Atlântico Sul se tornava uma das principais áreas de considerações estratégicas de Londres, apesar da ausência aparente de potências hostis que mantivessem uma presença robusta e permanente na região. Dessa forma, chega-se a pergunta que norteou o trabalho: Quais os interesses geoestratégicos britânicos no Atlântico Sul no período pós-Guerra Fria? Além disso, busca- se entender a relevância dessas possessões para a posição internacional do Reino Unido como uma grande potência militar e as capacidades militares britânicas destinadas à guerra expedicionária, visando entender as condições do país em destinar reforços para seus territórios ultramarinos. Outro aspecto foi a inquirição sobre as consequências da presença territorial e militar do Reino Unido na região para os projetos regionais que visam o estabelecimento de uma Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul. Essas são as principais perguntas que guiaram o trabalho, estando presentes em diferentes momentos do processo argumentativo apresentado na dissertação. Com isso, o trabalho permeia áreas das Relações Internacionais como a Política Externa e de Defesa, a Projeção de Poder Militar, Grandes Potências e o quadro de segurança sul-atlântico. A hipótese inicial levantada neste trabalho defende que os Territórios Ultramarinos Britânicos no Atlântico Sul reduzem os custos e os desafios da projeção de poder militar, ampliam o escopo de atuação das forças militares britânicas e contribuem para que o Reino Unido retenha o status de grande potência militar, mais especificamente de uma 14 “superpotência de bolso”1. Esta superpotência de bolso representaria a singularidade da posição do Reino Unido no sistema internacional pós-Guerra Fria, devido em certa medida, à retenção de características do seu passado hegemônico: capacidades militares e uma indústria nacional de Defesa significativas, relações próximas e acordos com ex-colônias, conservação de bases e territórios de apoio para operações além-mar, poder militar expedicionário significativo - somente superado pelos Estados Unidos e por vezes igualado pela França – e um compromisso perene em manter-se como um ator para além da Europa. Nota-se que essas capacidades não seriam equivalentes à superpotência do período a ser analisado, os Estados Unidos, e podendo ser superado pela rápida ascensão chinesa, especialmente a partir dos anos 2010. Assim, o termo “superpotência de bolso” pode ser empregado para diferenciar o Reino Unido como grande potência com capacidades expedicionárias inferiores apenas aos Estados Unidos, ainda que possua uma capacidade de combate em operações terrestres de grande escala relativamente inferior à Rússia e à China. Buscando estabelecer um recorte temporal que incidisse sobre o pós-Guerra das Malvinas/Falklands e inserisse as subsequentes políticas de Defesa britânicas, o recorte selecionado para a análise foi o período o período de 1990 a 2016. Assim, pode-se analisar a totalidade de quatro governo britânicos e suas respectivas ações na área de Defesa e nos Territórios Ultramarinos Britânicos ao passo que inclui o Reino Unido no contexto das primeiras décadas do pós-Guerra Fria, no qual o país adotou um política externa relativamente mais intervencionista e enfrentou mudanças significativas na configuração de suas forças militares, especialmente a partir de 1990. Ademais, a retomada de investimentos de grande escala na infraestrutura dos territórios no Atlântico Sul nos anos 2010 e as intervenções militares nos Balcãs, em Serra Leoa, no Iraque e no Afeganistão, durante o Governo Blair, elevando a intensidade da atividade das forças britânicas ao maior nível desde a Segunda Guerra Mundial, contribuem para a delimitação do escopo temporal. Nesse sentido, visando alcançar os objetivos expostos acima, a presente dissertação foi dividida em cinco capítulos, incluindo a Introdução e as Conclusões Finais. Desse modo, a Introdução apresenta o contexto histórico do Reino Unido com potência imperial, a aquisição dos Territórios Ultramarinos Britânicos no Atlântico Sul e considerações sobre o poder naval do país. Com o exposto, foi possível avançar em direção aos capítulos que tratam de questões mais específicas. No segundo capítulo, intitulado “Projeção de Poder Naval no Pós-Guerra Fria”, 1O termo superpotência de bolso foi utilizado previamente por autores como Stephen Petrie (2010). 15 procura-se expor uma abordagem teórica do poder naval e da projeção de poder, incluindo os custos e desafios da guerra expedicionária. Assim, visando o exercício de uma análise mais pormenorizada de cada ponto, o capítulo foi dividido em três partes. A primeira aborda a discussão teórica do poder naval, tendo em Alfred T. Mahan (1890) e Sir Julian Corbett (1911) os pontos de referência iniciais. Neste tópico são discutidas as estratégias de emprego do poder naval e marítimo, além dos requisitos necessários para que um Estado desenvolva e mantenha capacidades navais para estabelecer o comando dos oceanos. Ademais, foram exploradas algumas das principais classificações das marinhas de guerra, indicando aspectos que devem ser tomados em consideração para avaliar o poder naval de um país no período pós-Guerra Fria. Procura-se expor, dentre outras questões, que a manutenção de um poder naval capaz de almejar o controle dos oceanos está reservado aos Estados como maior poder relativo, as grandes potências, e a existência de aspectos indicados por Mahan e Corbett que continuam sendo amplamente empregados pelas forças navais durante e após a Guerra Fria. Na segunda parte aborda-se o uso de bases e territórios além-mar para a projeção de poder, analisando a função histórica desempenhada por essas bases, tendo o histórico imperial britânico como exemplo. Em adição é feita uma análise a respeito de quais Estados continuam a utilizar sistemas de bases ou territórios ultramarinos para objetivos militares, incluindo os Estados Unidos e o Reino Unido. Por fim, a terceira seção combina os entendimentos derivados das duas partes anteriores ao apresentar os custos e desafios da projeção de poder e o papel desempenhado pelos territórios ultramarinos. O caso do Reino Unido na Guerra das Malvinas/Falklands é tomado como uma exemplificação histórica ao indicar que a projeção de poder e a manutenção de bases e territórios, que contribuem para a guerra expedicionária, do mesmo modo como o comando dos oceanos, estão reservados às grandes potências. O terceiro capítulo, “O Poder Militar Expedicionário Britânico no Pós-Guerra Fria”, trata da questão do Reino Unido como uma grande potência militar e, consequentemente, detentor de um poder expedicionário capaz de garantir alcance global. Logo, dentro do escopo temporal deste trabalho, visto que a presença militar britânica no Atlântico Sul está diretamente ligada à habilidade de projeção de poder, visa-se identificar as capacidades militares do Reino Unido nos anos pós-Guerra Fria e analisar variações na habilidade do país em projeção de poder. Para tanto, são analisados separadamente os quatro governos britânicos entre 1990 e 2016: John Major (1990-1997), Tony Blair (1997-2007), Gordon Brown (2007-2010) e David Cameron (2010-2016). O critério de divisão foi baseado grandemente na publicação das Revisões de Defesa, os principais documentos que 16 estabelecem os investimentos, os números de efetivos, equipamentos, dentre outros planos de cada novo governo para defesa do reino. Entre 1990 e 2016 foram publicadas quatro dessas Revisões, sendo o Governo Cameron responsável por duas, a primeira em 2010 e a segunda em 2015, e os governos Tony Blair e John Major responsáveis por uma revisão cada, em 1998 e 1990 respectivamente. Adicionalmente, com este capítulo considera-se possível identificar as alterações internas do Reino Unido na área de Defesa e as políticas que a antiga potência hegemônica adotou para suas Forças Armadas no contexto de reorientação estratégica dos anos após o fim da Guerra Fria. No quarto capítulo, intitulado “A natureza da presença militar britânica no Atlântico Sul”, explana-se sobre a presença militar e territorial do Reino Unido no Atlântico Sul, as relações bilaterais britânicas com dois Estados sul-atlânticos – Serra Leoa e África do Sul - que possuem laços próximos com Londres e os impactos regionais dessa presença. Estes pontos foram incluídos visando uma análise pormenorizada das capacidades militares britânicas em seus territórios, a utilidade destes para a posição do país como uma grande potência militar ou “superpotência de bolso” e as realações regionais que podem contribuir para a legitimidade do controle britânico sobre territórios disputados. O capítulo apresenta- se dividido em três grandes partes. Na primeira delas explora-se as relações, especialmente na área de Defesa do Reino Unido com Serra Leoa e a África do Sul. Objetivando a exposição do contexto histórico das relações entre Londres e os dois países africanos, o escopo de análise foi brevemente expandido, com destaque para o caso da África do Sul, contudo o enfoque principal permaneceu no período de 1990 a 2016. A segunda parte é dedicada à análise da presença militar britânica nos Territórios Ultramarinos de “Ascensão, Santa Helena e Tristão da Cunha”, Ilhas Malvinas/Falklands e “Ilhas Geórgia do Sul e Sandwich do Sul”. Os impactos regionais dessa presença militar e territorial de uma grande potência militar são analisados na última seção. Por fim, tendo examinado questões como o poder naval e projeção de poder, as capacidades militares do Reino Unido, a presença militar britânica e a utilidade para Londres dos territórios ultramarinos no Atlântico Sul, segue as Considerações Finais deste trabalho. Para situar adequadamente as questões propostas, cabe adentrar no contexto histórico e alguns do temas que permeiam a questão do Reino Unido no Atlântico Sul. A partir disso, as questões posteriormente analisadas da projeção de poder, das políticas de Defesa britânicas e da presença militar do Reino Unido no Atlântico Sul estarão brevemente contextualizadas. 17 1.1 O Reino Unido, a Projeção de Poder e os resquícios imperiais no Atlântico Sul A presença militar do Reino Unido no Atlântico Sul está diretamente ligada à expansão imperial britânica entre o séculos XVIII e XIX. A supremacia naval da Royal Navy – a Marinha Real - demandava um sistema de apoio global para a frota de guerra que crescia seguindo a rápida expansão do comércio britânico, fomentado pelos efeitos da Primeira Revolução Industrial (DARWIN, 2009; KENNEDY, 2004). Dessa forma, ao passo que o comércio estimulava uma força naval para a sua proteção, a esquadra de guerra demandava a expansão das bases ultramarinas britânicas que serviriam de apoio às operações militares do Império Britânico. Logo, pequenos enclaves ou ilhotas seriam o alvo inicial do Reino Unido no Atlântico Sul, no Índico, no Mediterrâneo e no Caribe. Durante a primeira metade do século XIX, o Império Britânico consolidou sua presença nos diminutos territórios que continuam sendo controlados por Londres no Atlântico Sul e nas duas colônias que se tornariam Estados soberanos com laços militares próximos com os britânicos. Assim, as possessões que serão analisadas neste trabalho foram reivindicadas ou conquistadas pelo Reino Unido majoritariamente antes do auge territorial do Império, sendo a Ilha de Ascensão ocupada em 1815, Tristão da Cunha em 1816, as Malvinas/Falklands em 18332 e a Ilha de Santa Helena bem antes, em 1657, sendo esta a primeira base permanente de Londres na região (KENNEDY, 2004). Adicionalmente, o Reino Unido estabeleceria bases na África continental banhada pelo Atlântico, com a conquista da Colônia do Cabo em 1806, o estabelecimento da colônia de Freetown em 1792 que daria origem a Serra Leoa e com a colônia de Banjul em 1821 que se tornaria a capital da Gâmbia Britânica. Ademais, a presença britânica poderia ser encontrada em enclaves que se tornariam colônias e posteriormente os Estados soberanos de Gana e Nigéria (DARWIN, 2009; FERGUSON, 2004). Consequentemente, a presença britânica no Atlântico Sul pode ser compreendida como parte da ascensão comercial- industrial do Reino Unido, na segunda metade século XVIII e início do XIX, que estimulou o estabelecimento de bases ultramarinas para a sustentação de seu crescente poder marítimo. Em outras palavras, essa presença no Atlântico Sul está inclusa no período em que o Reino 2 Nota-se que a presença britânica nas Ilhas Malvinas/Falklands remonta ao ano de 1766, evacuada em 1774 e retornando em 1833 após conflitos diplomáticos com a Argentina que resultaram na retomada do território e na expulsão das autoridades argentinas na ilha. 18 Unido transitava para a consolidar sua hegemonia sistêmica, por vezes intitulada “Pax Britannica”, com a derrota definitiva da França Napoleônica em 1815. Com o avanço da propulsão a vapor, o Reino Unido converte suas bases navais ao redor do globo em estações carvoeiras assegurando a capacidade operacional de sua principal força militar e, consequentemente, a segurança do Império. O sistema de estações carvoeiras seria amplamente implementado no Atlântico Sul com bases nas Ilhas Malvinas/Falklands, Ascensão, Santa Helena, Freetown, Lagos, Cidade do Cabo, Banjul e Cape Coast. Por sua vez, este sistema seria adaptado para a era do petróleo a partir do fim dos anos 1890, assegurando a preponderância marítima do país. Os desafios logísticos e os custos de manutenção e eventual atualização desse sistema global garantia que o Império Britânico seria o grande expoente do poder naval até o período Entreguerras, quando multiplica-se a competição de outras potências (GRAY, 2014; 2017). Assim, no início da década de 1900, o Reino Unido havia se consolidado como o centro de um vasto sistema imperial, com ampla capacidade de projeção de poder baseado na Royal Navy, suas bases ultramarinas (GRAY, 2014) e pela capacidade terrestre de seus exércitos coloniais (JAMES, 1994). Apesar da diminuição da relevância da rota do Cabo após a abertura do Canal de Suez – e o posterior controle britânico do Egito – Londres continuaria a manter o sistema de bases na região. Considerando a totalidade do Atlântico, o país detinha quatorze bases do Canadá até as Ilhas Malvinas/Falklands o que possibilitava ao Reino Unido o controle da totalidade das rotas comerciais do Atlântico e do Mar do Caribe (PENHA, 2011). As bases navais ao redor do globo podem ser identificadas como símbolos do poder militar e da hegemonia britânica no século XIX e início do XX. Todavia, com as duas Guerras Mundiais, a posição hegemônica do Reino Unido seria suplantada pela hegemonia dos Estados Unidos nos anos 1940. Os custos dessas duas guerras, combinado com o crescimento dos movimentos independentistas no Império e com a ascensão econômico-militar dos Estados Unidos, além da existência de uma superpotência soviética, favoreceria o declínio relativo do Reino Unido no sistema internacional (DARWIN, 2009; FERGUSON, 2004). A Crise de Suez de 1956, resultado de uma intervenção militar anglo-francesa em conjunto com Israel contra o Egito, afeta grandemente o prestígio internacional dos dois países europeus e expõe o fim do status do Reino Unido como uma das superpotências, contribuindo para a aceleração do recuo imperial britânico (DARWIN, 2009). Nesse contexto, o processo de descolonização afetou diretamente a presença militar britânica além-mar. Entre os anos 1957 e 1966 ocorreu o auge da descolonização do Império Britânico, eliminando todos os territórios continentais 19 controlados por Londres lindeiros ao Atlântico Sul. A partir de 1966, a presença territorial do país na região seria reservada aos arquipélagos e ilhas que são objetos de análise deste trabalho. As possessões remanescentes seriam gradativamente reorganizadas nos quatorze “Territórios Ultramarinos Britânicos”, incluindo as reivindicações do Reino Unido na Antártica. Cada unidade administrativa possui liberdade legislativa, com suas próprias constituições e eleições gerais locais. Contudo, essas possessões não elegem representantes para o Parlamento Britânico e, ainda que seus habitantes sejam cidadãos britânicos, não são partes constituintes do Reino Unido. Ademais, Londres possui responsabilidade total sobre as áreas de Defesa e Relações Exteriores destas possessões. Apesar de relativamente numerosos, os territórios possuem pequena expressividade populacional e territorial 3 . Contudo, como notado pelo Parlamento Europeu, as possessões retidas são, majoritariamente, localizadas em áreas de grande relevância geoestratégica, ideais para a projeção de poder e manutenção de uma presença militar permanente, que mesmo em escalas relativamente reduzidas, permite a realização de operações militares em seu entorno geográfico (EUROPEAN UNION, 2009). No caso europeu, o Reino Unido e a França são principais os detentores dessas possessões. Assim, considerando a utilização militar por parte das forças britânicas, destacam-se Gibraltar, as Bases Soberanas no Chipre – ambos localizados em extremidades opostas no Mediterrâneo -, o Território Britânico no Oceano Índico4, a Ilha de Bermuda no Atlântico Norte e as Ilhas Malvinas/Falklands, Ascensão e Santa Helena ao longo do Atlântico Sul. Outros Territórios Ultramarinos, especialmente no Caribe, são utilizados pelas forças britânicas em escala reduzida. Essas possessões ao redor do globo serão frequentemente mencionadas ao longo dos capítulos, visando compará-las entre si e destacar sua característica global e função na projeção de poder militar do Reino Unido. Parcela destes territórios, como as Malvinas/Falklands e Gibraltar, possui uma relevância que ultrapassa as considerações estratégicas. O valor simbólico e de prestígio 3Em 2019, a população dos Territórios Ultramarinos era de aproximadamente 270 mil habitantes, com uma extensão aproximada de 18,110 km². Estes cálculos não incluem as reinvindicações britânicas na Antártica. 4O “Território Britânico no Oceano Índico”, por vezes, pode ser citado como “Diego Garcia”, a única ilha do arquipélago de Chagos utilizada pelas forças militares do Reino Unido e dos Estados Unidos. Diego Garcia é geralmente classificada como um “porta-aviões inafundável” (unsinkable aircraft carrier) devido ao seu vasto sistema de apoio a operações militares, especialmente aeronavais, e sua posição privilegiada no Índico. Este termo será explorado no segundo capítulo. 20 desses territórios, adquiridos ao longo do histórico das relações conflituosas do Reino Unido com a Argentina, no caso das Malvinas/Falklands, e com a Espanha, no caso de Gibraltar, coloca-se como outro fator que contribui para o interesse britânico nessas possessões (GRANDPIERRON, 2017). No período em análise, esse contexto envolvendo aspectos militares e simbólicos, associados ao prestígio internacional britânico, está reforçado no Reino Unido pela Guerra das Malvinas/Falklands. Além disso, a presença militar no Atlântico Sul desta potência extrarregional adentraria um período de estabilização com números significativamente superiores aos do anos pré-1982, demonstrando que Londres buscou a manutenção de uma presença de longo prazo, mesmo tendo restabelecido relações diplomáticas com Buenos Aires em 1990. Nesse contexto, a dissolução da União Soviética, fonte de uma das principais justificativas da presença militar do Reino Unido na região nos anos 1980 (BEACH, 1986), possui poucos efeitos na configuração da presença britânica no Atlântico Sul. O fim da atuação soviética deixa o Reino Unido e os Estados Unidos – e em menor escala a França por meio da Guiana Francesa – como as únicas potências extrarregionais com atuação militar na área nas duas décadas seguintes. Assim, entende-se que no escopo temporal analisado, o Reino Unido compartilhou o Atlântico Sul com seu aliado mais próximo e obteve oposição apenas da Argentina sobre a questão das Malvinas/Falklands. Gestos de solidariedade entre Estados sul-americanos para com a posição argentina foram cuidadosamente elaborados para evitar o aparecimento de atritos comerciais e políticos com Londres, como no caso do Brasil (GUIMARÃES, 2016), que recebe o apoio britânico na busca por um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Entre 2010 e 2011, articulações da diplomacia argentina no Mercado Comum do Sul resultaram na concordância dos membros em proibir que embarcações com a bandeira do território britânico das Malvinas/Falklands atraquem em seus portos (DAVIES; PHILLIPS, 2011). Similarmente, no mesmo período a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) condenou os exercícios militares do Reino Unido no território disputado com os argentinos (GUIMARÃES, 2010). Entretanto, como será exposto ao longo do trabalho, a posição estratégica britânica no Atlântico Sul é minimamente afetada, pois embarcações militares do Reino Unido patrulhando as Malvinas/Falklands, mesmo com acesso negado aos portos sul- americanos5 , não dependem de auxílio de Estados regionais para a manutenção de sua 5 Em 2011, o Governo Brasileiro recusou o acesso aos seus portos do navio da Royal Navy permanentemente baseado nas Ilhas Malvinas/Falklands. Londres declarou que a posição britânica sobre as Malvinas/Falklands permaneceria inalterada, sendo o pedido de acesso aos portos parte dos 21 operabilidade local, podendo utilizar a infraestrutura presente nos territórios britânicos, que funcionam para o país como “trampolins estratégicos” para a projeção de poder (CASTRO, 2002). Em adição, os navios da Royal Navy possuem acesso aos portos de países na África sul-atlântica, com destaque para o caso de Simon’s Town na África do Sul. Novamente, reaparecem os territórios e bases ultramarinas, um dos temas centrais deste trabalho, auxiliando o Reino Unido na continuidade da sua presença militar e no estabelecimento de um controle relativo das águas sul-atlânticas. Como indicado por Sir Julian Corbett (1911), deter o comando dos oceanos (ou “comando do mar”) significa, em tempos de paz, que o Estado possui “posições navais adequadas”, além de uma frota capaz de assegurar este comando em tempos de guerra. Completando essa questão, o comando dos oceanos pode ser entendido como uma forma de evitar que o inimigo utilize o meio marítimo para interferir seriamente nas operações pelas quais o Estado busca alcançar seus objetivos na guerra (CORBETT, 1911). O inimigo poderia teria uma atuação naval, mas seria incapaz de influenciar a direção do conflito a partir deste meio. Com este alinhamento são apresentadas as “posições navais” britânicas no Atlântico Sul e as políticas de Defesa que guiam o estabelecimento de uma frota adequada para exercer esse comando. Contudo, no próximo capítulo, torna-se necessário explorar mais detalhadamente o debate teórico sobre o poder naval e marítimo, seu papel central para projeção de poder, suas bases de sustentação e suas características, para avançar posteriormente na análise das capacidades militares expedicionárias e na presença militar do Reino Unido no Atlântico Sul. planos de rotina. O Parlamento Britânico destacou a coincidência da negação com o encontro entre os presidentes do Brasil e da Argentina, indicando a percepção de que não ocorria uma mudança significativa na posição brasileira (UNITED KINGDOM, 2011). 22 2 PROJEÇÃO DE PODER NAVAL NO PÓS-GUERRA FRIA A capacidade de um Estado de projetar e sustentar suas forças militares para além de seu território apresenta-se como uma das questões centrais das relações interestatais ao delimitar quais atores possuem os meios que possibilitam maior alcance geográfico de seu poder militar. Quanto maior a disponibilidade dessas capacidades, mais significativa é a potência do ator estatal em relação ao seus competidores no sistema internacional ao realizar a guerra. Em suma, os conflitos interestatais são em grande medida possibilitados pela projeção de poder militar. Logo, a análise sobre os capacidades necessárias para atores obterem alcances extrarregionais e, especialmente, globais, apontam para a existência de uma hierarquia dentre os Estados, sendo aqueles com grande potência relativa os que podem ser classificados como os detentores dos meios para influenciar em maior escala os eventos intrasistêmicos. Nesse sentido, uma análise das capacidades expedicionárias - ou de projeção de poder – apresenta-se como um dos possíveis caminhos para identificar as “grandes potências” militares que apresentam maior capacidade relativa de moldar as regras do sistema internacional e realizar a guerra (FARISS; MARKOWITZ, 2013; MODELSKI; THOMPSON, 1988). Torna-se necessário uma breve definição de “projeção de poder”. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos estabelece o termo como sendo a habilidade de uma nação de “[...] empregar todo ou parte de seus elementos do poder nacional [...] para sustentar e deslocar rápida e eficazmente suas forças em e a partir de múltiplos locais dispersos visando responder à crises, contribuir para a dissuasão, e incrementar a estabilidade regional.” (UNITED STATES, 2010, p. 367, tradução nossa)6. Os elementos do poder nacional são definidos como sendo “políticos, econômicos, informacionais ou militares”, indicando a correlação do poder militar com as bases político-econômicas do Estado, além da relevância de questões informacionais, centrais para o desenvolvimento de estratégias e percepções de ameaças. Em adição ao postulado pelo Departamento de Defesa, entende-se que a finalidade da projeção de poder, assim como a guerra, reside principalmente na defesa ou expansão de interesses econômicos, estratégicos e políticos, além de não raramente ser baseada por motivações derivadas de anseios pela glória ou prestígio nacional, como proposto por 6 “[…] to apply all or some of its elements of national power […] to rapidly and effectively deploy and sustain forces in and from multiple dispersed locations to respond to crises, to contribute to deterrence, and to enhance regional stability.” (UNITED STATES, p. 367, 2010). 23 Raymond Aron (2002). Assim, para fins analíticos, entende-se projeção de poder como “a capacidade de um Estado de empregar parcela ou a totalidade de seus elementos de poder nacional”, especialmente militar, para responder rapidamente, descolocando e sustentando suas forças em diversas regiões para além de seu entorno geográfico imediato de atuação, visando a defesa ou imposição de seus interesses estratégicos, econômicos e políticos. O enfoque estratégico-militar do trabalho requer maior espaço aos aspectos militares da “projeção de poder”, em especial o aspecto naval ao abordar a projeção para além da região de atuação dos Estados. O Ministério da Defesa britânico define a projeção de poder naval como “[...] a ameaça, ou uso, do poder nacional a partir dos mares para influenciar eventos [...]” 7 (UNITED KINGDOM, 2017a, p. 45, tradução nossa), sendo que esse poder: “[...] explora o controle dos mares e as manobras marítimas para alcançar os meios para ameaçar ou projetar força em terra, usando uma combinação de forças anfíbias, aeronaves embarcadas, armamentos contra forças terrestres, capacidades cibernéticas, guerra eletrônica e forças especiais.”8 (UNITED KINGDOM, 2017a, p. 45, tradução nossa). Logo, se apresenta como uma das principais formas de emprego do poder militar nacional. Todavia, apesar da centralidade do poder naval, outro aspecto relevante reside na interoperabilidade dos três braços das forças armadas, visando integrá-las em operações conjuntas de projeção de poder. No decorrer do século XX, as forças navais e terrestres passam a compartilhar espaço com as forças aéreas que rapidamente seriam empregadas como parte das capacidades expedicionárias das grandes potências. Com o advento do poder aéreo, ocorre a implementação de elementos desse novo braço armado nos exércitos e nas marinhas, especialmente por meio da introdução dos porta-aviões e, posteriormente, dos porta- helicópteros (MODELSKI; THOMPSON, 1988). Logo, pode-se apontar para a formação de um “poder aeronaval”, centrado nos porta-aviões. Essa nova capacidade militar foi amplamente utilizada na Segunda Guerra Mundial, especialmente nos conflitos travados no Oceano Pacífico entre os Estados Unidos e o Império do Japão. Assim, no contexto da projeção de poder ultramarino, as capacidades aéreas e navais 7 “[…] the threat, or use, of national power from the sea to influence events” (UNITED KINGDOM, p. 45, 2017a). 8 “[…] exploits sea control and maritime manoeuvre to achieve access to threaten or project force ashore using a combination of amphibious forces, embarked aircraft, land attack weapons, cyber capabilities, electronic warfare and special forces.” (UNITED KINGDOM, p. 45, 2017a). 24 mostram-se tão essenciais quanto as forças terrestres que realizam a ocupação do território. A partir disso, é válido citar brevemente as condicionantes para que Estados, limitados por seus recursos, privilegiem determinadas capacidades em detrimento de outras. Durante o fim do século XIX e a primeira metade do XX, com a ascensão de estudos sobre a Geopolítica, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, ocorre um dos períodos mais férteis das considerações sobre quais forças deveriam ser privilegiadas: a força terrestre (MACKINDER, 1904), a naval (CORBETT, 1911; MAHAN, 1890) e, após os anos 1910, a aérea (DE SEVERSKY, 1942). Autores como Alfred T. Mahan, com a obra The Influence of Sea Power upon History de 1890 e Sir Julian Corbett com Some Principles of Maritime Strategy de 1911, apresentam- se como os primeiros a traçarem justificativas e princípios estratégicos para o emprego do poder naval ou marítimo9. Apesar das divergências, ambos os autores possuem considerações históricas e geográficas sobre esse poder. Corbett dedica ponderações ao explicitar e explorar a questão do território como condicionante para o poder marítimo, o que intitula de “condições geográficas” (CORBETT, 1988). Dessa forma, o autor britânico realiza um amálgama dos termos “território” e “geografia” ao considerá-los como as bases para que os Estados, e seus comandantes e líderes, executem suas estratégias e suas relações políticas (UEBEL, 2018). A condição geográfica coloca-se como um conjunto de fatores que podem maximizar ou reduzir os efeitos de uma estratégia militar naval. Destarte, Mahan e Corbett reconhecem que a geografia auxilia no potencial naval ou marítimo de Estados insulares, como o Reino Unido, ou distantes de grandes competidores, como os Estados Unidos. Nesse contexto, Mahan buscou elaborar um discussão sobre o poder naval a partir de uma análise histórica do poderio naval britânico, além de entender como Londres empregou uma estratégia que lançou o país ao posto de predomínio nos oceanos por mais de dois séculos (MAHAN, 1890). Concomitantemente, Mahan buscava demonstrar o potencial do poder naval, tendo em consideração a ascensão dos Estados Unidos como uma grande potência mundial (VIOLANTE, 2015). Assim, a teoria do poder marítimo de Mahan concentra-se em demonstrar a importância dos oceanos para a prosperidade do Estado, entender os princípios históricos que 9 Entende-se que “poder marítimo” inclui aspectos mais amplos do que poder naval, incluindo questões como frotas auxiliares, treinamento e efetivo militar, portos e indústria naval, e especialmente, aspectos geopolíticos e político-econômicos. O poder naval é mais restrito, sendo um poder exclusivamente militar (MELLO, 1997). 25 regem a guerra no mar e iluminar a classe dirigente dos Estados Unidos sobre a relevância das políticas navais para o poder nacional (VIOLANTE, 2015). Com isso, é possível identificar que o poder marítimo, segundo Mahan, seria baseado em três aspectos. O primeiro deles seria uma economia nacional robusta, que estimularia o intercâmbio comercial com outras nações. Outro ponto seria a marinha mercante, mais especificamente o transporte de bens realizados pelas embarcações comerciais de uma nação. O terceiro aspecto reside na obtenção e manutenção de colônias, vistas como necessárias por aspectos econômicos – a comercialização de produtos – e militares, como bases de apoio para navios militares e mercantes (MAHAN, 1890; VIOLANTE, 2015). Ademais, na concepção de Mahan, a manutenção de uma grande esquadra, composta por navios de batalha, no período analisado pelo autor estes eram os navios de linha (ships of the line), seria a configuração primordial do poder militar nos oceanos. Considerando a proteção das rotas comerciais e de comunicação como a função central das marinhas, Mahan privilegia a busca por uma “batalha decisiva”, que acabaria com a ameaça naval do inimigo em um único golpe (MAHAN, 1890). Logo, o controle dos oceanos por meio da concentração das forças em uma grande frota visando a obtenção de uma batalha naval decisiva, demonstra a adaptação da concepção terrestre dos choques decisivos entre Exércitos como abordado por Antoine-Henri Jomini, uma das grandes influências presentes no trabalho de Alfred Mahan. Adicionalmente, a estratégia de Mahan na guerra naval apresenta-se orientada por uma postura ofensiva, em linha com a postura da guerra terrestre em Jomini, mesmo tendo concordado com Clausewitz sobre a efetividade da defesa (VIOLANTE, 2015). Concernente a nações que não possuíssem a superioridade de esquadras, Mahan propôs a adoção de uma estratégia que ficaria conhecida como “esquadra em potência”. Nesta abordagem a frota inferior deveria permanecer nos portos e bases guarnecidas, restando ao poder superior do inimigo vigiar essa força e impossibilitá-la de adotar ações ofensivas. Segundo Mahan, essa esquadra tornaria impeditivo o completo domínio dos oceanos. Contudo, o autor destacava que essa estratégia deveria ser relativizada (ALMEIDA, 2009). Como demonstrado nas Guerras Revolucionárias e Napoleônicas, a superioridade da Royal Navy em números e em qualidade relegaria a marinha francesa aos portos, como Toulon e Brest, especialmente após uma série de batalhas navais10 que resultaram na constante redução 10Entre 1793 e 1815, a Royal Navy obteve vitórias significativas contra a França e seus aliados, especialmente na Batalha do Cabo de São Vicente (1797), na Batalha do Nilo (1798), na Batalha de Copenhague (1801), na Segunda Batalha de Algeciras (1801), na Batalha de Trafalgar (1805) e na Batalha de San Domingo (1806). Após Trafalgar, o que pode ser apontada como uma “batalha 26 das capacidades francesas de realizar a guerra no mar e, consequentemente, de possuir a superioridade necessária no Canal da Mancha para lançar a invasão das Ilhas Britânicas e de manter seu comércio e império ultramarinos seguros dos ataques britânicos (KENNEDY, 2004). Corbett compreendia que a esquadra em potência poderia facilmente ceder o domínio total dos oceanos ao inimigo caso reservasse seu propósito a permanecer nos portos vigiada pelas forças hostis. Consequentemente, o autor indica que a esquadra inferior pode optar por operações de menor intensidade, evitando o encontro com forças militares superiores, impossibilitando o uso completo do mar pelo inimigo (ALMEIDA, 2009). O princípio de concentração esquematizado por Mahan estabelecia que a “esquadra” não poderia ser dividida, visando a superioridade no momento do desfecho do golpe por meio da batalha naval decisiva (MAHAN, 1890). Do mesmo modo, esse princípio demandava o controle de infraestrutura, bases e ilhas estratégicas que permitissem a continuidade da “concentração” da esquadra11. Entretanto, apesar de ser possível a utilização de exemplos históricos para apoiar o uso da abordagem de “concentração da esquadra”, como a Batalha de Trafalgar de 1805, destaca-se que mesmo nesses engajamentos a “esquadra”, isto é a força militar naval da nação, raramente está concentrada em sua totalidade. Segmentos da força naval geralmente encontram-se espalhados em outros teatros de guerra, como ocorreu com a Royal Navy nas Guerras Napoleônicas e na Primeira Guerra Mundial, apesar deste último conflito ser caracterizado pela maior concentração das forças navais britânicas no Canal da Mancha e no Mar do Norte através da Home Fleet (KENNEDY, 2004). Divergindo de Corbett, Mahan apresentava-se relutante no apoio do uso do poder naval para a imposição de bloqueios marítimos e considerava inadequado o emprego da marinha de guerra em operações periféricas, como o ataque ao comércio ultramarino do inimigo (Commerce raiding) (MAHAN, 1890; SPRANCE, 2004). As divergências entre Mahan e Corbett ocorrem especialmente devido ao enfoque dado pelo o primeiro à tática militar, pois a estratégia era considerada como definida pelos princípios imutáveis da guerra (VIOLANTE, 2015). Similarmente a Jomini, Mahan elabora sua principal obra sem considerações sobre as novas tecnologias militares, que se apresentavam na segunda metade decisiva” (KENNEDY, 2004), San Domingo foi o último encontro entre as duas frotas em águas abertas, marcando a consolidação da superioridade naval britânica. 11Mahan refere-se ao potencial do canal do Panamá que passou por tentativas de construção pelos franceses entre 1881 e 1894. Os Estados Unidos assumiriam formalmente os planos de construção em 1904. Outro território de destaque seria Gibraltar por apresentar uma posição central que impediria a “concentração” da esquadra francesa atlântica baseada em Brest e da mediterrânica em Toulon (VIOLANTE, 2018). 27 do século XIX como uma revolução na natureza dos conflitos (FULLER, 2002), bem posteriormente denominada como “Revolução nos Assuntos Militares (RAM) (VIOLANTE, 2015). Por meio de suas considerações sobre o poder marítimo, Sir Julian Corbett busca apresentar uma abordagem que integre a teoria da guerra de Clausewitz ao estudo dos conflitos no mar. Assim, o autor apresenta um balanceamento à abordagem grandemente jominiana de Mahan, apesar de não aspirar o estabelecimento de uma teoria (SUMIDA, 1993). O objetivo central do autor britânico era “mostrar que o poder naval possuía algumas características que o diferenciava do poder terrestre, e que sua contribuição para a estratégia seria apontar suas limitações e possibilidades.” (VIOLANTE, 2015). Corbett reconhecia que a história naval seria a principal fonte para a elaboração e demonstração das características que diferenciavam o poder naval do terrestre e como os comandantes das forças navais poderiam aproveitar as experiências prévias. Com isso, Corbett buscava avançar para além dos reducionismos estratégicos e organizacionais, por vezes presentes na abordagem de Mahan e influentes nos círculos de comando das marinhas das principais potências do período (ALMEIDA, 2009). Dessa forma, o autor elabora considerações mais amplas sobre o poder marítimo, transpassando estudos de táticas e decisões militares pormenorizadas, presentes nos trabalhos de Alfred Mahan (O’LAVIN, 2009). Em sua obra seminal, Corbett apresenta o entendimento de que as forças navais e, consequentemente, a estratégia marítima, geralmente constituem parte de um esforço de suporte para as forças militares terrestres, apesar de sua relevância: “Visto que os homens vivem em terra e não no mar, grandes questões entre nações em guerra tem sido sempre decididas [...] seja pelo o que seu exército pode fazer contra o território e vida nacional do inimigo, ou então pelo medo do que a frota possibilita a seu exército fazer.”12 (CORBETT, 1911, p. 12, tradução nossa). O posicionamento de que o poder marítimo não apresenta-se como suficiente para a vitória coloca Corbett contra a literatura dominante de sua época, permeada pela influência de Mahan. Esta “literatura clássica” possuía como ponto de partida a guerra naval como um mundo próprio, sem reservar destaque para interdependência entre as forças militares terrestres e as navais (VIOLANTE, 2015). Consequentemente, operações conjuntas entre as marinhas e os exércitos eram ignoradas mesmo possuindo exemplos históricos no próprio 12 “since men live upon the land and not upon the sea, great issues between nations at war have always been decided [...] either by what your army can do against your enemy’s territory and national life, or else by the fear of what the fleet makes it possible for your army to do.” (CORBETT, 1911, p.12). 28 século XIX, como o papel do Reino Unido contra as forças napoleônicas na Península Ibérica (KENNEDY, 2004). Nesse sentido, o poder naval estaria diretamente relacionado com o poder terrestre, sendo ambos utilizados em conjunto para alcançar os objetivos estabelecidos pelas lideranças políticas do Estado. Logo, dependendo da estratégia nacional, os objetivos podem apresentar- se como limitados, retirando das concepções a destruição total do inimigo e, consequentemente, de suas forças, terrestres e navais. A utilização conjunta dessas forças deve compelir o inimigo à mesa de negociações. Corbett descarta a utilidade do princípio da indivisibilidade da esquadra e de uma posição ofensiva nos conflitos militares, adotando a posição de Clausewitz sobre a defesa ao passo que se opõe ao princípio de Jomini sobre a ofensiva. Além disso, discordando de Mahan, o autor britânico entende que os princípios da guerra terrestre seriam divergentes dos presentes na guerra naval (CORBETT, 1988). Ademais, segundo Corbett, o relevante para a obtenção de um poder marítimo adequado deveria ser a compreensão das necessidades do uso dos oceanos por parte da nação. O modo e a intensidade do uso dos oceanos por parte das nações estava exposto a variações. Com isso, dependendo das demandas nacionais da utilização do meio marítimo, a destruição da esquadra inimiga em uma “batalha decisiva” poderia ser um objetivo desnecessário para determinados países (CORBETT, 1988). Consequentemente, o controle dos oceanos apresenta graus de intensidade, podendo ser o exercício de um controle local ou global, passageiro ou permanente (PROENÇA; DINIZ; RAZA, 1999; VIOLANTE, 2015). Estados podem exercer o controle marítimo relativo de regiões garantindo a manutenção de rotas de comunicação e de comércio sem o emprego de grandes números de embarcações militares, e, em tempos de guerra, a batalha decisiva pode não ser necessária para o grau de comando dos mares ambicionado pelos responsáveis pela estratégia nacional. Outro aspecto corbettiano reside na superação do princípio de “concentração da esquadra” de Mahan. A divisão da esquadra em forças menores, concentradas em realizar tarefas específicas e sendo capazes de se juntarem quando necessário, apresentava-se como uma vantagem. O reagrupamento ocasional da esquadra poderia ocorrer para sua aplicação tática ou para a obtenção de objetivos estratégicos. Não obstante, a dispersão das forças possibilitaria que o poder naval exercesse controle relativo de maiores áreas operacionais. A dispersão das forças navais seria possível ao passo que suas partes mantivessem comunicação e coordenação. Esta estratégia esquematizada por Corbett, praticada por diversas marinhas durante séculos sem grande esquematização, seria sistematicamente empregada no decorrer do século XX, sendo prática presente durante e no pós-Guerra Fria (VIOLANTE, 2015). Em 29 adição, o entendimento de que o controle do mar reside em uma força naval com variedade de embarcações e não apenas dos “navios de linha de combate”, apresenta-se como outro legado de Corbett para a estratégia naval13 (ALMEIDA, 2009; VIOLANTE, 2015). Por fim, o autor britânico entende que o poder naval deve ser utilizado para a escolta de comboios comerciais e para o bloqueio de portos inimigos. O bloqueio naval seria o eixo central da guerra no mar devido à dificuldades que um força superior pode encontrar em atrair o inimigo para a realização de “batalhas decisivas”. Assim, o bloqueio era a opção central do Estado detentor da superioridade naval (CORBETT, 1988). Conter o inimigo nos portos abria caminho para a domínio dos oceanos, assegurando as rotas de comunicação e de comércio, o controle de territórios ultramarinos e a liberdade de contribuir para o esforço de guerra de aliados por meio de reforços financeiros e materiais ao passo que auxilia para dilapidação do comércio, das possessões e de possíveis movimentos estratégicos do inimigo (KENNEDY, 2004). Logo, negar o comando dos oceanos ao inimigo apresenta-se como uma prioridade mais significativa do que o estabelecimento do comando por meio de uma grande batalha (SPRANCE, 2004). Ambos os autores possuem contribuições para o poder marítimo no pós-Guerra Fria, especialmente tendo seus conceitos atualizados e contextualizados para o fim do século XX e início do XXI. Corbett possui um entendimento do papel das forças navais diretamente associado ao emprego dessa força em conjunto com a terrestre, assemelhando-se a “interoperabilidade” presente nas forças armadas de países com histórico naval de destaque, como o Reino Unido, a França e os Estados Unidos, abrindo espaço para análise do poder marítimo como meio que possibilita a projeção de poder além-mar do poder terrestre. Ademais, o controle de bases ultramarinas era compreendido como contribuições positivas para o poder marítimo por ambos os autores, especialmente por Mahan. No fim do século XX, apesar do desmantelamento dos impérios coloniais entre as décadas de 1950 e 1960, os Estados que possuem capacidades expedicionárias expressivas – em sua maioria, os mesmos que apresentam históricos recentes de grandes capacidades marítimas – continuaram a reter pontos de apoio ao redor do globo. Por fim ambos destacam a relevância da atividade econômica para o poder nacional e Corbett (1988) abre caminho para o reconhecimento dos impactos das inovações tecnológicas no meio naval. Dessa forma, a partir dos dois principais autores clássicos do poder marítimo, reúne-se os princípios introdutórios das concepções 13As marinhas de guerra das principais potências do pós-Guerra Fria apresentam uma composição variada, incluindo fragatas, porta-aviões, navios-anfíbios, contratorpedeiros (destroyers), navios patrulha, submarinos, porta-helicópteros, dentre outras classes com propósitos específicos. 30 estratégicas da guerra no mar, do papel das marinhas, do controle de bases além-mar, dentre outros. Contudo, outros aspectos devem receber maior espaço para considerações sobre a projeção de poder ultramarino desde as Guerras Mundiais. A economia e a tecnologia do Estados apresentam-se como questões centrais. Concomitantemente, a extensão territorial e o “caráter da população” postulado por Mahan são reduzidos em relevância por essas considerações. Um Estado com uma população e território relativamente diminutos pode deter capacidades comerciais e tecnológicas que tornem sua marinha de guerra superior àqueles que detenham maior extensão territorial e populacional, mas apresentem menor atividade econômica e emprego de tecnologia de ponta (TILL, 2009), sendo o caso da expansão ibérica no século XVI, da hegemonia holandesa em parte do século XVII e da Grã- Bretanha entre o século XVIII e início do século XX (KNUTSEN, 1999). As bases econômicas, tecnológicas e geográficas possuem relevância em análises sobre todas as maneiras de poder militar, sendo indicadores das características do poder marítimo, terrestre, aéreo e, mais recentemente, cibernético de um Estado. Assim, concernente ao poder marítimo, Coutau-Bégarie (2010 apud VIOLANTE, 2015) identifica a existência de duas formas desse poder, grandemente caracterizados pela duração e pelos pontos centrais em que se baseiam. As duas faces do poder marítimo são o “estável” ou de longa duração e o “instável de curta duração” ou transitório14. O primeiro deles possui como aspecto essencial os quesitos geográficos de Mahan, marcado pelo controle de territórios ultramarinos estratégicos que auxiliariam as capacidade navais do Estado. O poder marítimo instável de curta duração seria baseado nos aspectos econômicos e políticos, sujeitos a variações (COUTAU-BEGARIE, 2006). Esta forma seria caracterizada pela presença e atenção transitória de um Estado para determinadas regiões, exercendo seu poder marítimo conforme o contexto político e estratégico aparenta mostrar necessário. O poder transitório requer maiores recursos relativos para a sustentação do controle dos oceanos, contudo o período desses deslocamentos seriam reduzidos, cessando conforme os objetivos são alcançados pelo Estado. A base econômica pode ser sintetizada em quatro pontos relevantes para o poder marítimo. Segundo Coutau-Bégarie (2006), estes pontos seriam (1) as atividades comerciais, 14Entende-se que termo “poder marítimo transitório” sintetiza o significado atribuído por Coutau- Bégarie de forma mais adequada, evitando possíveis interpretações errôneas sobre essa forma de poder marítimo como em “poder instável de curta duração”, o que pode sugerir aspecto de subalternidade ao “estável” ou de longa duração. 31 (2) o nível da capacidade industrial e de mobilização de recursos, (3) a infraestrutura de suporte, que incluem portos e estaleiros, e (4) o desenvolvimento tecnológico e científico nacional. Assim como em Corbett, nota-se a ausência da centralidade da extensão territorial para as bases do poder marítimo e a presença do reconhecimento do papel dos quesitos tecnológicos para a proeminência militar de um ator. A base política do poder marítimo seria pontuada por uma política doméstica privilegiando os quatros pontos mencionados acima e a política externa, marcada pelas alianças que contribuem para os deslocamentos do aspecto militar desse poder. A partir da contextualização dos trabalhos de Mahan e Corbett, além das produções sobre o poder marítimo na segunda metade do século XX e início do XXI de Geoffrey Till (2009; 2012), Patrick Batton (2012) e Coutau-Bégarie (2006), pode ser apontado que a projeção de poder militar nos oceanos demanda a existência de forças navais com capacidades singulares. As “marinhas de águas azuis” apresentam-se como pertencentes ao seleto grupo de Estados com maior poder relativo, capazes de reunir as condições econômicas, políticas e tecnológicas para a manutenção de um poder marítimo que possui poucos ou nenhum equivalente. Nesse contexto, algum autores propõem a classificação de marinhas de guerra de acordo as capacidades de projeção de poder militar, dividindo-as em marinhas de “águas azuis”, “águas verdes” e de “águas marrons” (BATTON; TILL, 2012). Apesar das variações sobre o emprego e definição dos termos, essas denominações apresentam-se úteis para a distinção entre as principais formas organizações das marinhas no pós-Guerra Fria. Entretanto, as múltiplas definições são comumente elaboradas seguindo considerações sobre o alcance operacional das marinhas. Till e Batton (2012, p. 96) definem “[...] uma marinha de águas marrons, capaz de defender suas zonas costeiras, uma marinha de águas verdes sendo competente para operar em seu mar regional e finalmente uma marinha de águas azuis como uma marinha com capacidade de operar em águas profundas” 15 (tradução nossa). Nota-se que outros autores buscam uma delimitação de atuação geográfica específica que determinaria as capacidades navais de um Estado 16 , mas a capacidade 15 “[…] a brown-water navy standing for a navy capable of defending its coastal zones, a green-water navy for a navy competent to operate in regional sea and finally a blue-water navy described as a navy with capability to operate across the deep waters.” (BATTON; TILL, 2012, p. 96). 16Amardeep Athwal (2007) define os espaço de atuação de marinhas de águas marrons como sendo de no máximo 100 milhas náuticas da costa, as de águas verdes atuam a partir das 100 milhas náuticas (cerca de 185km) até a próxima grande formação de terras emersas. Por fim, as marinhas de águas azuis possuem capacidade operacional de no mínimo 1.500 milhas náuticas (aproximadamente 2.780km). 32 operacional contínua sendo a base destas considerações. Em suma, uma marinha de águas marrons pode ser apontada como uma força grandemente costeira ou ribeirinha, sendo as mais comuns em número de Estados que possuem essa capacidade militar reduzida. Em seguida, há as marinhas de águas verdes detentoras de uma capacidade operacional regional, sendo caracterizadas como forças intermediárias de potências regionais. As principais forças existentes que podem almejar o controle dos oceanos podem ser classificadas como “marinhas de águas azuis”. Além de capazes de operar em “alto-mar” e possuir capacidade de alcance global, essa marinha pode: [...] se proteger contra ameaças submarinas, de superfície e aéreas e que, sustentada por um apoio logístico móvel, pode se manter operando por considerável período de tempo a grandes distâncias de suas bases, ou também aquela que opera em alto-mar, geralmente com apoio de navios- aeródromo, com capacidade de projetar o poder naval sobre terra. (VIDIGAL, 2010, p.8). Apesar das três divisões apresentadas acima, as capacidades navais incluídas em cada termo podem apresentar disparidades sensíveis. Neste contexto, Batton e Till (2012) identificam o caso das marinhas dos Estados Unidos e da França, ambas de “águas azuis”, contudo ressaltam que as capacidades da Marinha dos Estados Unidos são significativamente superiores, demonstrando a necessidade de considerações individuais sobre a classificação de cada força naval. A classificação de Batton e Till apresenta apenas uma estrutura básica de categorização das marinhas de guerra. Todavia, a literatura sobre a estratégia e o poder naval possui um longo histórico de tentativas de classificação das marinhas, especialmente a partir dos anos 1980, incluindo Michael Morris (1988), Eric Grove (1990), Daniel Todd e Michael Lindberg (1996), Hervé Coutau-Bégarie (2006) e Francisco de Almeida e Ricardo Cabral (2018), dentre outros. Michael Morris (1988) possuía como objetivo estabelecer a hierarquia das marinhas do “Terceiro Mundo”17 ao passo que fornecia um método para classificar essas forças navais – que considerava distintas das marinhas do “mundo desenvolvido” - de acordo com sua atuação geográfica e capacidade de projeção de poder. Assim, adotou um método predominantemente quantitativo ao estabelecer as divisões do poder naval do que chamou de 17Termo utilizado especialmente no contexto da Guerra Fria inicialmente para denominar os Estados não-alinhados. O termo apresenta severas limitações, mas se tornou durante a Guerra Fria sinônimo de países capitalistas considerados como subdesenvolvidos, sendo utilizado como um indicador de divisões econômicas interestatais. 33 Terceiro Mundo 18 . Uma classificação das marinhas com elementos qualitativos e com comparações relativas entre elas não seria realizada, além de não incluir as marinhas dos Estados “desenvolvidos”. Com isso, Eric Grove (1990) buscou estabelecer uma listagem do poder naval em escala global, mas acompanhado de uma análise majoritariamente quantitativa. Grove apresentou uma hierarquização contendo uma análise quantitativa com breves considerações qualitativas e sem os aspectos comparativos, elaborando os “níveis” de poder naval e os possíveis Estados correspondentes de acordo com sua “percepção” (ALMEIDA; CABRAL, 2018; GERMOND, 2014). Por sua vez, o estrategista francês Coutau-Bégarie (2006), apresenta considerações similares ao elaborado por Grove no quesito qualitativo, não elaborando uma análise extensa do poder das marinhas em relação à suas concorrentes. Coutau-Bégarie estabelece suas considerações de acordo com as tarefas que cada força pode alcançar, apontando a primazia naval dos Estados Unidos e elaborando conclusões similares a Grove ao estabelecer uma hierarquia funcional entre as marinhas (GERMOND, 2014). Os autores mencionados evitam a elaboração de uma análise comparativa e qualitativa detalhada das marinhas de guerra, depositando parcialmente as conclusões em percepções próprias sobre as capacidades operacionais das principais forças navais ou no caso de Morris, das forças navais do que chamou de “Terceiro Mundo” (ALMEIDA; CABRAL, 2018). Considerando as limitações da classificação do poder militar, Geoffrey Till (2009) reconhece que hierarquizações são passíveis de apresentar pontos sensíveis e generalizações19. Apesar disso, o autor oferece determinados pontos que podem ser guias relativamente adequados para a elaboração de uma classificação. O primeiro aspecto é o tamanho e natureza da marinha (Size and Nature of the Navy), que inclui a capacidade de manter e operar grandes navios de superfície, como fragatas, contratorpedeiros e porta- aviões. Neste ponto, os números totais de uma força naval não devem ser tomados como indicadores absolutos de poder, sendo necessário o entendimento da composição da frota. Outro aspecto seria o alcance geográfico, incluindo as áreas de atuação da marinha, 18Morris (1988) elaborou seis divisões para as marinhas de guerra da periferia: (1) regionais, (2) sub- regionais, (3) marinhas de áreas reduzidas (for area defense), (4) costeiras, (5) de vigilância e (6) marinhas simbólicas. 19Sendo assim, Geoffrey Till (2009) não estabelece uma hierarquia entre as marinhas de guerra, identificando que forças variadas possuem propósitos diversos e em sua maioria não almejam o comando dos oceanos. Em relação a tentativas de análises que incluam aspectos qualitativos, quantitativos e comparativos, destaca-se o trabalho de Almeida e Cabral (2018) na listagem das marinhas do continente americano. 34 deslocamentos rotineiros e especiais, e as capacidades de sustentação e atuação da frota quando deslocada para regiões sensíveis. Ademais, deve-se considerar as funções desempenhadas, com destaque para os tipos de missões desempenhadas em cada marinha. Outra questão relevante para uma análise das forças navais reside no quesito tecnológico, ou seja a habilidade de desenvolver ou adquirir tecnologias avançadas, assimilá-las e operá-las de maneira efetiva. Por fim, Till (2009) considera que as marinhas devem ser classificadas de acordo com a sua efetividade relativa. A eficiência pode ser estimada pelo alcance geográfico desejado, pela qualificação de seu efetivo, capacidade de mobilização e sustentação da frota e a versatilidade, possibilitando a realização de diversas missões (GERMOND, 2014). Assim, ainda que a classificação do poder militar seja uma tarefa complexa, a partir dos autores citados, dentre outros, ocorre a prevalência de determinados Estados no topo das listagens do poder naval. Entre os anos 1980 e 2010 podem ser apontadas duas grandes alterações na dinâmica de força das marinhas de guerra, sendo a primeira delas o declínio e dissolução da União Soviética, seguido nos anos 2000 e 2010 pelas tentativas de Moscou de reafirmar a Rússia como uma grande potência. A segunda modificação ocorre com a rápida ascensão da China, que estabelece uma crescente e tecnológica força naval, apoiada em uma significativa capacidade industrial e grandes contingentes bem treinados, concentrada especialmente na contenção de ameaças em seu litoral e vizinhança imediata, apesar do aumento de suas capacidades de projeção de poder (KIRCHBERGER, 2015). Dessa forma, é possível indicar uma relativa aceitação na literatura de que os Estados Unidos detém, desde a sua participação na Segunda Guerra Mundial, a principal força naval do globo, seguidos pelo Reino Unido20, França e, mais recentemente, pela China e Rússia21 (BARBER; SIPOS, 2004; GROVE, 1990; KIRCHBERGER, 2015; LINDBERG; TODD, 1996). Nesse sentido, além dos Estados Unidos, o Reino Unido e a França apresentam forças navais orientadas para a projeção de poder e missões expedicionárias, por vezes classificados como potências com “projeção de poder de alcance global limitado” em contraste com a 20 As capacidades militares e a política de Defesa do Reino Unido serão analisadas pormenorizadamente no próximo capítulo, tendo alguns breves paralelos com as capacidades da França. 21A União Soviética era apontada como a segunda força naval do período de 1950 a 1990, com capacidades superiores ao Reino Unido e França (GROVE, 1990). Contudo, há questionamentos sobre a hierarquização da marinha soviética e principalmente sobre suas capacidades de projeção de poder que poderiam colocá-la como superior – ou não - às forças navais britânicas e francesas, especialmente como elaborado por Grove que estabelece uma classificação própria para a marinha soviética (GERMOND, 2014). 35 capacidade superior dos norte-americanos. Assim, a diferença entre as duas grandes potências europeias e a superpotência norte-americana reside na capacidade dessas de realizar “no mínimo uma grande operação de projeção de poder global” enquanto que a superpotência apresenta-se capaz de “múltiplas, regulares e prolongadas missões de projeção de poder ao redor do globo”. Em seguida, a Rússia pode ser classificada como detentora de uma força naval apta para “missões de projeção de poder em regiões além da Zona Econômica Exclusiva” (KIRCHBERGER, 2015; LINDBERG; TODD, 1996). A classificação elaborada por Lindberg e Todd (1996) e atualizada por Kirchberger (2015), apresenta a China como a principal força em ascensão, sendo uma “marinha de águas azuis” em processo de consolidação, apesar de considerá-la em meados dos anos 2010 ainda ligeiramente abaixo das forças navais russas, francesas, britânicas e norte-americanas. Um aspecto que pode ser destacado das cinco marinhas mencionadas acima reside na busca pelo estabelecimento de força navais sem grande especialização em determinadas tarefas, mantendo a flexibilidade da frota, especialmente no pós-Guerra Fria. Neste caso, considerando principalmente as marinhas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com a exceção dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França, as forças navais dessa organização adotaram funções especializadas, como o caso da Bélgica e patrulha anti- minas (minesweeping), ou foram reduzidas para papeis de defesa territorial, patrulha antissubmarino e escolta de forças aliadas superiores que adentram regiões próximas de seu território nacional, como o caso da Espanha, além de posteriormente participarem de operações antipirataria e de controle imigratório (GERMOND, 2014). No pós-Guerra Fria, essa configuração deixou de ser generalizada, mas as marinhas expedicionárias e mais flexíveis da OTAN continuariam centradas nas forças navais de Washington, Londres e Paris (BARBER; SIPOS, 2004). Assim, entende-se que as capacidades expedicionárias de um Estado estão diretamente ligadas com sua força naval e, indiretamente, com seu poder marítimo que residem no poder econômico nacional. Os postulados de Sir Julian Corbett sobre a necessidade de empregar o poder naval do Estado em conjunto com o terrestre, como parte de uma única estratégia reside no centro das considerações sobre a projeção de poder militar. O advento e consolidação do poder aéreo consolidou e ampliou os princípios de interoperabilidade dos distintos braços das forças armadas. Esta concepção apresenta-se amplamente generalizada nas práticas das principais potências militares do sistema internacional, especialmente naquelas que possuem forças expedicionárias. Ademais, a questão tecnológica e sua influência no modo de fazer a guerra, reconhecida por Corbett em 36 1911, coloca-se como um dos principais aspectos dos novos conflitos assimétricos e das “pequenas guerras”22 desde os anos iniciais da Guerra Fria (TILL, 2009), além de ser parte essencial das tentativas de mensuração do poder relativo dos Estados. Ainda que as inovações tecnológicas no meio militar tenham contribuído para a alteração do modo em que as guerras possam ser travadas, no período pós-Guerra Fria a prática de manutenção de bases e territórios ultramarinos por parte das principais potências militares permaneceu, embora em escala reduzida. Um grupo seleto de Estados mantém ao redor do globo instalações que possuem como um de seus deveres auxiliar na sustentação de sua projeção de poder militar. Em adição ao suporte aos deslocamentos expedicionários, determinadas bases e possessões desempenham o papel de apoios permanentes (EUROPEAN UNION, 2009), estabelecendo áreas distantes do território nacional do Estado como parte da zona operacional primária de suas forças armadas. Tanto Mahan (1890) e Corbett (1988) compreendiam a utilidade de bases de apoio além-mar, no caso de Mahan para principalmente manter a concentração e indivisibilidade da esquadra, e consequentemente facilitar a “batalha decisiva” e o posterior comando dos oceanos23. Com sua visão direcionada à coordenação das forças navais e terrestres por meio de uma única estratégia durante o tempo de guerra, Corbett reconhecia o potencial dos territórios na forma de pontos de apoio para a marinha de guerra, de bases para controle de áreas específicas e para influenciar os eventos em terra (CORBETT, 1988). Como será exposto, os avanços tecnológicos, incluindo o advento do poder aéreo, expandiriam e consolidariam o uso de bases ultramarinas nas décadas após os trabalhos seminais de Mahan e Corbett. 2.1 Territórios e bases militares ultramarinas: Pivôs para a Projeção de Poder A aquisição de bases de apoio logístico para operações além-mar é uma prática característica de potências que buscam estabelecer, manter ou expandir seus interesses políticos, econômicos e militares em regiões distantes de seu território nacional, como o caso 22Till (2009) aplica o termo “pequenas guerras” (small wars) sem uma definição precisa, mas visando descrever uma série de conflitos a partir do século XIX que não envolveram Grandes Potências em posições antagônicas. Em suma, a partir dos exemplos as guerras coloniais, de descolonização e da Guerra Fria dados pelo autor, esses conflitos ocorrem entre Grandes Potências e Estados periféricos de menor poder relativo ou organizações políticas não reconhecidas como “Estados modernos” e insurgências, sendo conflitos de “menor duração”. 23Segundo Mahan (1890), é válido destacar que o comércio com colônias – e a aquisição destas - era vista como forma de fomentar o poder marítimo do Estado. 37 da Grã-Bretanha que possuía um robusto poder marítimo quando iniciou a expansão de suas forças terrestres no século XVIII e da Holanda um século antes (MODELSKI; THOMPSON, 1988). Entre grande parte do período iniciado pela colonização europeia das américas até a Primeira Guerra Mundial, essas bases possuíam o duplo propósito de facilitar a expansão territorial-econômica dos Estados que as controlassem e fornecer apoio para as forças militares encarregadas de assegurar o fluxo comercial. Logo, países como a Grã-Bretanha buscaram o estabelecimento do controle de diversos territórios que apresentavam poucos benefícios se considerados isoladamente, mas funcionavam ativamente como bases militares ultramarinas (KENNEDY, 2004). Durante esse período, o comércio marítimo estava intrinsicamente ligado às motivações de estabelecimento dessas bases de apoio além-mar. Nesse contexto, as bases possibilitavam a ampliação da área de operações da marinha de guerra, forneciam suporte para a frota mercante e eram facilmente defendidas através do uso quase exclusivo do poder naval (TILLY, 1990). Ademais, como mencionado anteriormente, Mahan (1890) reconhecia a importância do controle de territórios estratégicos que auxiliassem no processo de impedimento da concentração das forças navais do inimigo, facilitando a busca pela supremacia nos oceanos. Entretanto, essa função esboçada por Mahan apresenta-se como apenas uma das utilizações dessas bases. O século XIX pode ser apontado como o auge das bases militares ultramarinas das grandes potências. Nesse período, os principais impérios coloniais europeus consolidaram um vasto sistema de colônias ao redor globo permeadas por possessões insulares ou enclaves que detinham como objetivo principal assegurar o controle relativo das regiões adjacentes ao passo que fossem facilmente defendidas se necessário. Os impérios britânico e francês, acompanhados pelos Estados Unidos a partir de 189824, são os expoentes da utilização de pequenas possessões para fins estratégicos. Nesse período, devido aos avanços tecnológicos no meio marítimo, essas bases desempenhavam o papel de “estações carvoeiras”, sendo símbolos da capacidade de projeção de poder naval de um nação. Em 1901, o Reino Unido por meio de seu império controlava estações em todos os oceanos. Como pode ser visto no Mapa 1, algumas dessas estações localizavam-se em territórios como as Ilhas Malvinas/Falklands, Gibraltar, Ilha de Bermuda, Santa Helena, Arquipélago de Chagos ou Diego Garcia, Singapura, Hong Kong, dentre outras (GRAY, 2014). 24Em 1898 os Estados Unidos obtiveram colônias espanholas após a Guerra Hispano-Americana, marcando a posição do país como uma Grande Potência em ascensão. Os Estados Unidos assumiram o controle das Filipinas, Guam, Porto Rico e, temporariamente, de Cuba (FERGUSON, 2011). 38 Mapa 1 – Estações Carvoeiras do Império Britânico (1870-1914) Fonte: GRAY, 2017, p. 5. Esse sistema global de bases de apoio em conjunto com a mais numerosa e altamente avançada esquadra de guerra e uma robusta indústria naval, além de uma extensa frota mercante, mantinha na década após o fim da Era Vitoriana a primazia do poder marítimo britânico, apesar da ascensão do Império Alemão e dos Estados Unidos (GRAY, 2017) (KENNEDY, 2004). Ademais, o sistema de bases de reabastecimento possuía o duplo proposito de servir as marinhas mercantes e de guerra dos Estados detentores dessa infraestrutura. Similarmente, essa estratégia permitia que atores como o Reino Unido negassem a utilização de suas bases por parte de terceiros quando necessário. Estes Estados podiam exercer influência no modo como outras forças navais utilizavam os oceanos e, em determinados contextos, no resultado de conflitos em que apresentavam neutralidade sem a necessidade de engajar o inimigo em batalha (GRAY, 2017). O caso da Frota do Báltico deslocada pelo Império Russo em 1905 durante a guerra contra o Império do Japão, com o objetivo de auxiliar as forças russas no Pacífico, exemplifica a papel das bases ultramarinas para a mobilidade e emprego do poder naval. A Frota Russa do Báltico passaria por desafios de abastecimento e de acesso à rotas controladas por outras potências. A neutralidade britânica no conflito levaria ao declínio em permitir a travessia da Frota do Báltico pelo Canal de Suez e pela proibição de acesso desta força aos portos do Império Britânico, incluindo as estações carvoeiras. Similarmente, a pressão britânica e os protestos japoneses tornariam as bases francesas e de outras potências 39 inacessíveis em diversas ocasiões. Consequentemente, neste caso, Londres enfraqueceu a posição naval russa na guerra contra o Japão ao explorar a ausência de bases de apoio para o poder naval do Império Russo (GRAY, 2017). Em outras palavras, o poder marítimo britânico enfraqueceu indiretamente o poder naval russo na guerra de 1905 contra o Império do Japão. Assim, um dos papeis centrais desempenhado pelas instalações militares ultramarinas pode ser identificado no seu uso pelos Estados para fortalecer sua posição relativa na guerra e em períodos de paz. Nesse contexto, durante guerras, aliados teriam acesso à infraestrutura ultramarina do Estado em questão ao passo que inimigos dependeriam de suas próprias capacidades e de atores neutros. Em tempos de paz, assim como na guerra, o Estado detentor não dependeria de terceiros ao passo que aliados, em muitos casos, continuariam a depender de sua infraestrutura. O principal exemplo dessa prática reside novamente no Reino Unido na era da combustão a vapor sendo que “Suas extensas instalações carvoeiras significavam que não necessitava depender de atores neutros, enquanto que os seus potenciais inimigos seriam forçados a essa dependência se operassem globalmente.” 25 (GRAY, 2017, p. 9, tradução nossa). Historicamente, o declínio relativo de grandes potências abre caminho para o recuo estratégico de bases militares e possessões antes consideradas como parte dos elementos que contribuíam para sua posição no sistema internacional. A redução de compromissos para novos patamares condizentes com a situação nacional pode ocorrer especialmente por meio de considerações dos governantes (retrenchment), pela guerra contra outras potências em ascensão e pela exaustão político-econômica subsequente aos conflitos do período de declínio (MACDONALD; PARENT, 2011). Logo, entende-se que o declínio das grandes potências europeias e o fim da hegemonia britânica no sistema internacional na primeira metade do século XX, acompanhados pela ascensão dos Estados Unidos e da União Soviética como “superpotências” e pelos movimentos nacionalistas, abalariam a estrutura global de bases militares em possessões além-mar de alguns dos principais países que empregavam essa estratégia nas décadas anteriores. O processo de descolonização do pós-Segunda Guerra Mundial testemunharia o desmantelamento dos impérios coloniais europeus e o recuo estratégico da presença militar-territorial desses países, com destaque para o Reino Unido e 25“Its extensive coaling facilities meant it did not have to rely on neutral powers, whereas any potential enemy would be forced to if they were to operate globally.” (GRAY, 2017, p. 9). 40 a França, os centros do grandes impérios coloniais da Europa26 (DARWIN, 2009). Entretanto, Londres e Paris reteriam um pequena parcela de territórios ao redor do globo que poderiam desempenhar um papel similar às antigas estações carvoeiras. Parte desses vestígios imperiais auxiliariam na manutenção de um poder naval britânico e francês de alcance global e independente de aliados quando necessário, como destacado do pelo Parlamento Europeu (2009) e indicado pela classificação atualizada de Kirchberger (2015) originalmente elaborada por Lindberg e Todd (1996). Adicionalmente, a superpotência norte- americana detém uma série de possessões com propósitos similares adquiridas na guerra de 1898 contra a Espanha ou na Segunda Guerra Mundial, estando concentradas grandemente no Oceano Pacífico27, com destaque para Guam e Wake Island. Não obstante, os Estados Unidos possuem diversas bases militares presentes em Estados soberanos que compartilham de relações diplomáticas relativamente próximas com Washington, sendo o Japão, a Coreia do Sul e a Alemanha os principais recipientes dessa presença nos anos 2010. Em 2018, o Departamento de Defesa declarou que os Estados Unidos possuem 514 sítios ou locais (sites) além-mar sob sua administração e outros 111 nas possessões ultramarinas norte-americanas. Contudo, o Departamento destaca que bases militares (installations) podem conter diversos “sítios” dentro de suas instalações. Nota-se que os “locais” além-mar ou em outros países operados pelo Departamento de Defesa representavam 19% das bases utilizadas pela Marinha dos Estados Unidos, a maior parcela dentre os serviços militares (UNITED STATES, 2018), reafirmando o papel especial dessas instalações ultramarinas para o poder naval. Desde o início da Guerra Fria, o termo “porta-aviões inafundáveis” (unsinkable aircraft carriers) passou a ser empregado para descrever a nova utilidade de ilhas ou enclaves 26A descolonização dos impérios europeus foi marcada por conflitos coloniais entre a metrópole e as colônias em busca da independência, sendo o caso da Holanda nas Índias Orientais Neerlandesas – futura Indonésia -, da França na “Indochina Francesa” e na Argélia e as guerras coloniais de Portugal. Darwin (2009) destaca o caso britânico em operações na “Emergência Malaia” e no Quênia que buscavam eliminar ameaças de grupos “comunistas” e hostis ao Reino Unido para posteriormente garantir a independência dessas colônias. 27Alguns destes territórios no Oceano Pacífico são: Guam (conquistado da Espanha em 1898), Samoa Americana e Ilhas Marianas do Norte (adquirida nos acordos do fim da Segunda Guerra Mundial), além da livre associação que os Estados Federados da Micronésia possuem com os Estados Unidos. Ademais, há um conjunto de ilhas da região sobre o controle de Washington classificadas como United States Minor Outlying Islands que incluem possessões como Wake Island utilizada como uma grande base militar entre os Estados Unidos e a Ásia. 41 políticos para a capacidade aeronaval28 dos Estados (BREWSTER, 2018). Os porta-aviões inafundáveis desempenhariam papel similar aos porta-aviões “convencionais”, projetando o poder aéreo a partir de bases nos oceanos e sendo “inafundáveis” devido à suas características geográficas. O termo pode designar bases militares que abrigam os três braços das forças armadas de um Estado, servindo como pontos de apoio para deslocamentos militares em regiões adjacentes. Em suma, entende-se que a denominação serve especialmente para contextualizar a relevância de bases de apoio e as capacidades militares que podem ser estabelecidas em pequenas possessões ultramarinas, apresentando-se como uma sucessora no campo militar das antigas “estações carvoeiras”. A concepção de uma capacidade aeronaval centrada nos porta-aviões inafundáveis geraria ponderações sobre a forma que a projeção de poder poderia ser aplicada. No início dos anos 1960, o Governo Britânico considerava o modo como o país continuaria a deter alcance militar global. As dificuldades econômicas do Reino Unido desde o fim da Segunda Guerra pesavam sobre o debate que se desenhava dentro do Ministério da Defesa britânico29, tendo os chefes da Royal Air Force (RAF) e da Royal Navy em lados opostos dos possíveis planos. A RAF apoiava a utilização de uma Estratégia de Ilhas (Island Strategy) para assegurar o alcance operacional das forças armadas do país, defendendo o estabelecimento de instalações militares em uma série de possessões controladas pelo Reino Unido nos oceanos Atlântico e Índico. O argumento dos chefes da Royal Air Force residia na redução de custos que a Estratégia de Ilhas proveria ao contribuinte britânico ao passo que, diferindo dos porta-aviões convencionais, essa estratégia não dependeria de portos para manter-se operacional no longo prazo (BREWSTER, 2018). Por sua vez, o Almirantado indicou que a estratégia proposta pela Royal Air Force não apresentava a mesma flexibilidade operacional que os porta-aviões tradicionais. Nessa linha, a estratégia poderia expor a riscos políticos todo o sistema de projeção de poder militar do Reino Unido, pois as possessõ