EMERSON CERDAS A História segundo Xenofonte: Historiografia e usos do passado Araraquara 2016 Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras Câmpus Araraquara EMERSON CERDAS A História segundo Xenofonte: historiografia e usos do passado Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, Câmpus de Araraquara, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Orientador: Profa. Dra. Maria Celeste Conslin Dezotti. Bolsa: FAPESP Araraquara 2016 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Cerdas, Emerson A História segundo Xenofonte: historiografia e usos do passado / Emerson Cerdas — 2016 301 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquista Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Maria Celeste Consolin Dezotti 1. Xenofonte. 2. Historiografia. 3. Mito. 4. Romance. I. Título. EMERSON CERDAS A História segundo Xenofonte: Historiografia e usos do passado Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da Narrativa. Orientador: Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti. Bolsa: FAPESP Data da defesa: 27/04/2016 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti. Faculdade de Ciências e Letras (FCL) Universidade Estadual Paulista Membro Titular: Prof. Dr. Jacyntho Lins Braandão Faculdade de Letras (FALE) Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Membro Titular: Prof. Dr. Breno Sebastiani Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Universidade.de São Paulo (USP) Membro Titular: Profa. Dra. Marcia Valéria Zamboni Gobbi Faculdade de Ciências e Letras (FCL) Universidade Estadual Paulista Membro Titular: Prof. Dr. Brunno Vinícius Gonçalves Vieira Faculdade de Ciências e Letras (FCL) Universidade Estadual Paulista Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Cláudio (in memorian) e Filomena, pelo apoio sempre amoroso e pela compreensão das ausências forçadas. Aos meus irmãos, Viviane, Luciene, Anderson e Eliane, e aos meus sobrinhos, Lorena, Poliana e Héttore, pela eterna diversão que é estar junto de vocês. Aos meus brothers, Maurílio, João, Daniel, Alejandro e Luís “el Gallego”, sobretudo, pelas risadas sem fim, que tornaram o processo de construção desta tese menos doloroso Aos queridos Ana, Lívia, Marco Aurélio (não só pelas caronas), Joana, Leandro, Thayse, Israel, Darbi, pela sempre agradável e estimulante companhia de bibliotecas e bares. Às professoras-amigas Carina e Cissa, por permitirem que as aulas de espanhol e inglês se tornassem sessões de terapia. À Patricia Iagallo, que, desde o início, me incentivou a entrar no Doutorado. Aos meus professores de Grego, Fernando, Edvanda, Anise e Claúdia (in memorian), por contribuírem em minha formação. Aos professores Brunno e Marcia, pelas valiosas contribuições que fizeram tanto para o desenvolvimento dessa pesquisa, quanto para a minha formação pessoal. Agradeço-os profundamente pelo exemplo fraterno. Aos professores Jacyntho Lins Brandão, Breno Sebastiani, pela disponibilidade e disposição de lerem meu trabalho e participarem desta banca. Ao professor Emílio Crespo, pela hospitalidade com que me recebeu em Madrid e pelas discussões de literatura (e, principalmente, de futebol) sempre bem-humoradas, Em especial, à minha querida orientadora Maria Celeste Consolin Dezotti, que, com paciência e amizade, me acompanha desde a iniciação científica nesse apaixonante e labiríntico mundo da literatura helênica. Além disso, e principalmente, por ter sido sempre uma pessoa íntegra que, com suas atitudes e jeito de ser, demonstra que bom-humor, simplicidade e respeito são muito mais cativantes e encantadores do que qualquer pedantismo literário. Aos funcionários da Biblioteca da Unesp/Araraquara, em especial ao querido Zé. FAPESP, nº 2012/11106-1, pelo financiamento, que possibilitou a realização da minha pesquisa. CAPES, pelo financiamento que me proporcionou cinco meses de estudo na Universidad Auntónoma de Madrid. Há histórias tão verdadeiras que Às vezes parece que são inventadas (Manoel de BARROS,1997, p.69) Suas cartas [da Grécia] eram maravilhosas também, mas, apesar disso, pareciam um pouco irreais. Durrel é um poeta e suas cartas eram poéticas: causavam uma certa confusão em mim pelo fato de misturarem tão astuciosamente o sonho e a realidade, a história e mitologia. Eu viria a descobrir por mim mesmo que essa confusão é real e não se deve unicamente aos dons poéticos (Henry MILLER, 1983, p.10). RESUMO O objetivo deste trabalho é a análise de três narrativas de Xenofonte, as Helênicas, a Anábase e a Ciropedia, questionando a sua tradicional classificação como obras historiográficas. Considerando a historiografia um gênero literário, que manifesta estruturas linguísticas e narrativas próprias, buscamos comparar como Xenofonte constrói suas narrativas de modo autônomo e inovador diante da tradição do gênero instituído por Heródoto e Tucídides. A historiografia, com a obra desses autores, criou um discurso próprio a respeito do passado, instituindo uma forma específica de se trabalhar a história recente do povo grego. No entanto, desde Homero, a história estava presente na literatura grega através dos mitos que compunham as narrativas da história dos gregos. Desse modo, compreendemos que a presença de eventos históricos em forma narrativa não garante, por si só, o enquadramento genérico como obra historiográfica. O que garante esse enquadramento é a própria atitude do autor que o organiza os eventos de modo historiográfico, atualizando os recursos linguísticos e estruturais que compõem o gênero. Diante disso, compreendemos que apenas as Helências preenchem esse requisito, pois nela Xenofonte atua como um historiador consciente do gênero. Diferentemente, na Anábase e na Ciropedia, embora baseadas em eventos reais, a estrutura dessas narrativas se distancia daquela da historiografia, apresentando, desse modo, novas e inovadoras formas de se trabalhar o passado em forma narrativa. A Anábase é construída como uma narrativa de aventura e de retorno, em uma relação de intertextualidade com a Odisseia de Homero, enquanto, na Ciropedia, Xenofonte utiliza o passado do rei persa Ciro, o velho, para ficcionalizar um modelo de líder, criando uma narrativa que podemos chamar de proto- romance. PALAVRAS-CHAVE: Xenofonte; Historiografia; Gênero literário; História; Mito; Ficção. ABSTRACT The aim of this paper is the analysis of three Xenophon’s narratives, the Hellenica, the Anabasis and the Cyropaedia, questioning their traditional classification as historiographical works. Considering the Historiography as a literary discourse, which manifests its own linguistics and narratives structures, we seek to compare how Xenophon builds his narrative in an autonomous and innovative way in relation to the genre tradition instituted by Herodotus and Thucydides. The Historiography, with the work of these authors, created a own discourse about the past, establishing a specific way of working the recent history of Greek people. However, since Homer, the history was present in Greek literature through the myths that made the narratives of the history of the Greeks. Thus, we understand that the presence of historical events in narrative form does not guarantee, by itself, the generic framework as a historiographical work. What guarantees this framework is the very attitude of the author who organizes the events the historiographical way, updating the linguistic and narrative structures that make up the genre. Therefore, we understand that only Hellenica meet that requirement because, in this work, Xenophon acts as a conscious gender historian. Unlike, in Anabasis and Cyropaedia, although based on real events, the structure of these narratives is distant from that of historiography, presenting thereby new and innovative ways to work with the past in narrative form. The Anabasis is built as a narrative of adventure and return in a intertextual relationship with Homer’s Odyssey, while in Cyropaedia Xenophon uses the past of the Persian king Cyrus to fictionalize model of a leader, creating a narrative that we call proto-novel. KEYWORDS: Xenophon; Historiography; Gender literary; History; myth; fiction. SUMÁRIO Introdução.......................................................................................................................... 11 Primeira Parte: As disformes formas do passado...........................................................23 I.1 Épica como história............................................................................................25 I.2 Epinício, mito e história.....................................................................................37 I.3 Elegias históricas?..............................................................................................47 I.4 Os Persas de Ésquilo..........................................................................................55 Segunda Parte: Como os gregos fizeram do passado uma história...............................72 II.1 Heródoto: yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay……………………76 II.2 Tucídides: ou como se faz da história um presente.........................................100 Terceira Parte: A história segundo Xenofonte.................……………….....................120 III. As Helênicas ou vamos narrar o que não é digno……....................................123 III.1 O fim da Guerra do Peloponeso: o que é preciso dizer (I.1.-II.3.10).............128 III.2 As histórias que não pertencem à História.....................................................135 III.2.1 A morte de Teramênes....................................................................135 III.2.2 Teleutias e os líderes exemplares....................................................144 III.2.3 Fliunte e as pequenas cidades.........................................................151 IV. 401 a.C.: uma odisseia na Pérsia......................................................................164 IV.1 O incrível caso do proêmio que não existe....................................................168 IV.2 A história de um retorno................................................................................180 IV.2.1 Os lotófagos ou o desejo de não voltar...........................................185 IV.2.2 O sonho do retorno tranquilo..........................................................190 IV.2.3 Retorno solitário.............................................................................196 IV.3 Xenofonte, o πολύτροπος..............................................................................201 IV.4 A Anábase: uma história épica?...............................................................208 V. A Ciropedia e as histórias verossímeis........................................................217 V.1 A história do romance................................................................................223 V.1.1 O corpus do romance grego........................................................230 V.1.2 Os usos da história: romances históricos.....................................241 V.1.3 Os usos da história: proper novel................................................248 V.2 Ficção na Ciropedia...................................................................................254 V.2.1 Discurso sério-cômico: Ciropedia II.2...................................... .260 V.2.2 Julgamento do rei Armênio: Livro III.1......................................269 Considerações Finais..................................................................................................277 Referências Bibliográficas.........................................................................................283 11 Introdução O objeto de estudo desta tese, A história segundo Xenofonte: historiografia e usos do passado, são três narrativas do autor ateniense que, tradicionalmente, se classificam como historiográficas: as Helênicas, a Anábase e a Ciropedia. Este trabalho dá prosseguimento aos nossos estudos realizados no mestrado sobre a ficcionalização do material histórico da Ciropedia de Xenofonte1. Nosso objetivo inicial era observar nas narrativas supracitadas elementos que dão aos eventos históricos um caráter heroico, engrandecendo-o, principalmente, através da recuperação de um ideal épico de herói. Entretanto, à medida que o trabalho foi se desenvolvendo, a discussão se ampliou e a heroicização passou a ser um aspecto importante de nosso trabalho, porém não o essencial para a compreensão das narrativas de Xenofonte. Embora Xenofonte tenha sido um polígrafo, escrevendo em vários gêneros (tratados técnicos, discursos socráticos, biografia epidítica), ele passou a ser conhecido como historiador, formando, ao lado de Tucídides e Heródoto, a tríade canônica de historiadores gregos antigos. Porém, modernamente, contesta-se muito sua qualidade enquanto historiador e até mesmo a sua integração nesse cânone. O gênero da Historiografia na Grécia formou-se e desenvolveu-se no século V a.C., principalmente com as obras de Heródoto e Tucídides, que se tornaram modelos para todo aquele que desejasse se aventurar em escrever obras historiográficas na Antiguidade. No século IV a.C., período em que Xenofonte produziu sua obra literária, foi especialmente o modelo de Tucídides que foi seguido, inclusive por Xenofonte. No entanto, a historiografia nunca foi um gênero, por assim dizer, acabado e, como observa Marincola (1999, p.218), os autores discutiam os trabalhos de seus predecessores, buscando afirmar as suas próprias qualidades e novidades. O gênero, portanto, estava constantemente se remodelando nas incursões criativas de seus autores que, nessas experiências individuais, revelam o quanto o conceito de história é maleável, ganhando novos significados de acordo com as mudanças sociais, contextos políticos e econômicos do tempo daquele que escreve; por isso, como já atentou Hartog (2001, p.10) sobre a 1 Cf. CERDAS, E. A Ciropedia de Xenofonte: um romance de formação na Antiguidade. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. 12 polissemia do termo, “[...] de Heródoto a Luciano e a Santo Agostinho, passando por Cícero e Tito Lívio, a mesma palavra não designou sempre a mesma mercadoria”. Xenofonte, embora siga o modelo de Tucídides nas Helênicas, também desenvolveu sua própria forma de trabalhar o passado, e essa postura revisionista, propondo rupturas e inovações, tem sido, em geral, criticada como falha pelos estudiosos por não apresentar o mesmo rigor metodológico de Tucídides. Essa visão foi principalmente desenvolvida no século XIX, quando a historiografia passou a ser considerada não mais um gênero narrativo, mas uma ciência autônoma. Leo Strauss (1954, p.47-48), que, no século XX, foi um dos primeiros estudiosos a trabalhar com atenção a obra de Xenofonte, questiona essa crítica ao autor ateniense, acreditando que essa postura leva mais em conta o que achamos que Xenofonte deveria ter feito do que o que ele realmente fez. Uma postura analítica que leva em consideração a narrativa de Xenofonte por si só, sem desvalorizá-la por essa ideia de que ele deveria ter sido o Tucídides do século IV, provou-se extremamente útil nos trabalhos de Bodil Due (1989), James Tatum (1989), Vivienne J. Gray (1989) e Deborah L. Gera (1999), revelando um escritor muito superior àquele que a visão instituída no século XIX buscou demonstrar. Tais trabalhos não só foram norteadores de nossa postura crítica, mas também um incentivo para o estudo de Xenofonte. A nova postura desses autores com relação às narrativas de Xenofonte segue também uma tendência da segunda metade do século XX de encarar o discurso historiográfico não como um campo isolado, mas um terreno misto entre a literatura e a ciência. Conforme Hayden White (1995), se no século XIX acreditava-se que a história, ou o conhecimento histórico, era um domínio autônomo, no século XX, pensadores “[...] expressaram sérias dúvidas sobre o valor de uma consciência especificamente “histórica”, sublinharam o caráter fictício das reconstruções históricas e contestaram as pretensões da história a um lugar entre as ciências.” (WHITE, 1995, p.17). Trabalhos como o de Roland Barthes (1987), questionando a construção do discurso historiográfico, pensam a obra do historiador como um discurso que, como tal, se estabelece por meio de uma série de dispositivos linguísticos e estruturais, que tornam a obra pertencente a um gênero, o historiográfico, e que, portanto, é passível de ser reconhecido pelos seus leitores. O gênero historiográfico, então, é a manifestação do uso de categorias discursivas – que se assemelham às do discurso literário – na organização e apresentação do fenômeno histórico, o que implicitamente indica, segundo White (2009, 13 871-872), a ficcionalização dos dados históricos. O conceito de ficcionalização usado por White não se refere à narrativa cuja matéria é inventada, mas sim ao uso de uma determinada organização dos dados históricos a fim de se criar um enredo que é, como narrativa, semelhante ao tipo de organização da ficção, por exemplo, a dos romancistas. A própria construção do “efeito de real” que se dá na transposição do acontecimento histórico em escrita é, conforme Barthes (1987, p.), o mesmo recurso usado por Flaubert, na tentativa de apagar o enunciador para criar a impressão de que os eventos ocorreram tal qual são narrados, sem a organização de um autor por trás da narrativa. Se a historiografia é, primordialmente, uma narrativa, retórica e poética por natureza (WHITE, 1995, p.11), o historiador pode modelar sua narrativa de diversos modos, dando aos eventos significados distintos, pois “[...] a elaboração do enredo é a via pela qual uma sequência de eventos modelados numa estória gradativamente se revela como sendo uma estória de um tipo determinado.” (WHITE, 1995, p.23). White segue a teoria dos mitos de Northop Frye, na Anatomia da Crítica (1973), identificando os mesmos modelos de elaboração de enredo da ficção na história: a estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira: “Pode haver outros, como o épico, e é provável que um determinado relato histórico contenha estórias vazadas num modo como aspectos ou fases do conjunto inteiro de estórias postas em enredo de outro modo.” (WHITE, 1995, p.23). Os gêneros não são a concretização artística de uma essência “natural” e inerente a eles, mas são sistemas abertos, sujeitos às misturas, mudanças e reformulações de acordo com as necessidades de diferentes contextos culturais e sociais. Isso significa que, se os gêneros não têm uma natureza, eles têm uma história (WHITE, 2009, p.868), que vai se construindo à medida que é atualizado e reatualizado pela própria experiência dos escritores. A historiografia no Ocidente nasce com as obras de Heródoto e Tucídides no século V a.C., porém, no seu alvorecer, o gênero era, ao lado de outros gêneros como a épica, apenas mais um discurso que tratava do passado, mas que, com o tempo, se tornou o discurso “oficial” sobre o passado (FINLEY, 1965; HARTOG, 2001). Para White (2009, p.869), toda a cultura literária grega está, implicitamente, relacionada com o passado, porém a historiografia consistia no discurso no qual o “componente histórico predominava como princípio orientador da pesquisa e representação” (WHITE, 2009, p.869) e o resultado disso é o surgimento de uma variedade de formas de se narrar o passado. A existência de outras modalidades de discurso sobre o passado também impõe 14 que levemos em conta a tensão entre a inovação proposta pela historiografia quanto ao uso do passado diante da tradição poética que a precedia e a cercava. Dada essa variedade de discursos sobre o passado, acreditamos que, para melhor entender como Xenofonte construía suas narrativas usando os fatos históricos, faz-se necessário primeiro entender a relação entre história e literatura nos gêneros poéticos que circulavam na Grécia, antes do nascimento da historiografia. De Homero a Ésquilo, tentamos identificar nessas modalidades de discurso tanto como se articulava a relação entre passado e presente, quanto como o passado mítico e histórico dialogavam nessas estruturas poéticas. Antes de a historiografia se impor como uma espécie de gênero oficial sobre o passado, os gregos tinham o mito como repositório do passado. Através da tradição oral, as histórias míticas e lendárias eram recontadas de geração em geração e tinham através dos aedos o principal meio de transmissão. O mito, em que pese a tentativa positivista de opô-lo ao lógos como discurso falso e discurso verdadeiro, mentira e razão, tinha entre os gregos um papel fundamental na consciência histórica do povo, pois demarcava, por meio das narrativas, os porquês da existência presente. Isso significa um caráter etiológico dessas narrativas, que se desenvolvem como justificativa para a realidade dos homens. Servia, por exemplo, para justificar a posição de liderança de aristocratas nas cidades gregas, pois essas figuras eram tidas como descendentes dos heróis antigos narrados pelos mitos. O mito, além disso, estava presente constantemente na vida dos cidadãos, seja pela rotina religiosa dos festivais, seja pela presença de templos e monumentos que, de algum modo, avalizavam a existência histórica desse passado. Nota-se, por exemplo, que mesmo nos historiadores, que assumem, em princípio, uma posição de descrença com relação às narrativas míticas, não ocorre um descrédito absoluto da verdade histórica presente nas narrativas lendárias. Passagens de Heródoto e Tucídides mostram bem a tentativa de extrair do mito uma base histórica, uma base que, embora não pudesse ser asseverada com certeza, podia explicar a história da Grécia dos tempos mais antigos. Nesse sentido, comenta Hartog, a respeito de Minos, o lendário rei de Creta, que Nem Heródoto nem Tucídides puseram em questão a existência de Minos, mas o primeiro relegou-o para além do círculo de seu saber, enquanto o segundo incluiu-o em seu quadro dos progressos do poderio grego, que tinha como ponto final (e de partida) o presente (2003,p.60). 15 Mesmo em autores tardios como Plutarco, essa perspectiva se manteve. Chamou- nos a atenção justamente esse caráter perene do mito na sociedade grega, que Veyne comenta em seu livro Acreditavam os gregos em seus mitos? (2004). Mesmo com o surgimento desse discurso oficial do passado, a historiografia, essas outras formas de preservação do passado continuaram na sociedade grega. Há que se levar em conta que o gênero historiográfico era um gênero literário que deveria circular em camadas mais restritas e cultas da sociedade, enquanto que as lendas e as tradições narrativas que embelezavam e engrandeciam o passado eram divulgadas naturalmente entre o povo. Desse modo, nossas reflexões e análises com vistas a contribuir e elucidar o quadro descrito acima se organizam, neste trabalho, em três partes. Na Primeira Parte, intitulada As disformes formas do passado, analisamos como a épica, o epinício, a elegia e a tragédia trabalham com o passado, o mítico e o histórico. Dado objeto de nosso estudo ser a obra de Xenofonte, nos detivemos, nessa primeira parte, a uma abordagem mais panorâmica desses gêneros supracitados, sem nos determos em aspectos mais específicos, e, para isso, nos utilizamos de uma bibliografia mais “clássica”, ou tradicional, a respeito desses gêneros. A épica narra as histórias dos deuses e dos nobres e heroicos guerreiros do passado preservadas pelos mitos. Um dos aspectos dessa narrativa é fazer do discurso do poeta um discurso inspirado pela divindade. É através dessa inspiração que o canto do aedo cria a sua autoridade em relação ao passado, pois ele se coloca como transmissor de um conhecimento que lhe é exterior e que provém das Musas, que conhecem o passado, no presente e no futuro. Desse modo, o discurso épico de Homero passa a ser o discurso da história antiga, cuja garantia de existência é a crença na inspiração divina. Ressaltamos que, na abordagem que fazemos da épica, a invocação às Musas é tomada como um artifício literário, talvez possamos chamá-la de tópica épica, e não investigaremos as complexas nuances envolvidas nessa questão. Isso significa que, de fato, não nos interessa a relação da crença fora do contexto literário, ou seja, nos interessa como a narrativa homérica cria no seu universo diegético essa similariedade entre os discursos do poeta e das Musas. A análise das fórmulas de invocação à Musa foi bastante significativa, em especial, a invocação que abre o “Catálogo das Naus” na Ilíada (II. v.484-492), na qual o poeta, antes de listar um grande número de nomes e regiões, assume sua incapacidade de relembrar todo aquele vasto material e declara-se dependente do poder das musas. Outro 16 ponto significativo é que nas epopeias o passado antigo está sempre desvinculado do presente. Refere-se a um tempo muito longínquo, cujos vestígios no presente são apenas essas narrativas tradicionais; porém, ao mesmo tempo, esse passado é constantemente comparado com o presente, como um tempo nobre e superior ao tempo presente do aedo e de seu público. A própria perspectiva de que naquele antanho os deuses conviviam mais abertamente com os homens e estes eram superiores moral e fisicamente aos homens do presente está sempre no horizonte da narrativa épica, como no “Mito das cinco raças” (Trabalhos e os dias, v.106-201) de Hesíodo. Superiores, esses heróis praticavam grandes façanhas que mereciam ser contadas e recontadas. O epinício, odes destinadas a celebrar os triunfos atléticos dos Jogos, era composto sob encomenda dos próprios vencedores ou de seus familiares. Nesse gênero, o mito não aparece mais deslocado da realidade presente, pois é a partir da figura histórica vencedora das competições esportivas que o poeta recorre ao mito. Píndaro e Baquílides, nas odes que analisamos, procuraram engrandecer o personagem histórico relacionando- o com figuras míticas, seja através da linhagem, seja pela semelhança de seu comportamento que relembra algum personagem mítico. No epinício, então, o passado promove o engrandecimento do presente, e o poeta usa qualquer ligação entre presente e passado para narrar a história mítica. Chamou-nos a atenção a Ode III de Baquílides, na qual o poeta celebra Hierão de Siracusa, vencedor na quadriga nas Olimpíadas de 468 a.C, pois, nesse epinício, o poeta não retoma um personagem mítico para engrandecer Hierão, mas sim um personagem histórico, o rei da Lídia, Creso. A narrativa apresentada por Baquílides sobre esse personagem se assemelha à que Heródoto narrará em suas Histórias (I.6-94): Ciro, rei persa, após dominar a Lídia, acende uma pira para queimar Creso vivo, porém este suplica aos deuses e Apolo, apiedando-se do homem por conta de sua nobreza de caráter, o salva no momento de sua morte e o conduz para a Ilha dos Bem-aventurados. Embora se assemelhe à narrativa de Heródoto, em Baquílides há uma série de elementos fabulosos e míticos que heroicizam a personagem de Creso. Assim, o fato histórico, ao ser trazido para um espaço tradicionalmente reservado ao mito, recebe uma roupagem mítica. Esse processo se assemelha ao que vemos na tragédia de Ésquilo, Os persas. Este drama de Ésquilo é o único, dentre todas as tragédias que conhecemos integralmente, que não trata de um evento mítico, mas histórico, a guerra entre persas e gregos. Tanto Ésquilo quanto Baquílides recorreram a um fato histórico, porém o 17 adaptaram ao gênero que utilizavam, mitologizando o evento histórico de acordo com os recursos poéticos do gênero. A postura dos dois poetas, nesse sentido, parece exemplificar a opinião de Tucídides (Guerra do Peloponeso, I.21) de que não se pode confiar no que dizem os poetas sobre o passado, pois eles o engrandecem e o embelezam sem se preocupar com a verdade. Por fim, analisamos a elegia. Esse gênero tinha como conteúdo uma grande variedade: da poesia marcial de Calino e Tirteu às elegias gnômicas de Xenófanes. Essa variedade fez com que a elegia fosse dividida em tipos temáticos: elegia amorosa, elegia guerreira, elegia gnômica e moral e elegia filosófica. Em 1992, foram descobertos fragmentos de uma poesia de Simônides de Ceos, conhecidos hoje como “New Simonides”. Esses fragmentos apresentam uma narrativa histórica, na qual o poeta trata da batalha de Plateia. Como uma elegia, ela apresenta traços do gênero, como a tradicional exortação e reflexão sobre a condição humana, porém essa descoberta demonstrou que a elegia podia também usar a narrativa de eventos históricos como matéria, contrariando, por exemplo, uma tradicional perspectiva da elegia como fundamentalmente focada no presente. Também analisamos um fragmento de Mimnermo, conhecido como Esmirneida, pois se celebra a coragem de um guerreiro de Esmirna em sua participação na batalha contra os lídios. Tanto a elegia de Simônides quanto a de Mimnermo analisadas apresentam uma novidade nessa relação entre o passado mítico e o passado recente ou contemporâneo, pois aqui o passado histórico é tão valoroso e grandioso quanto o passado antigo (em Mimnermo é, inclusive, superior). O mito não aparece nesses textos para valorizar o presente, mas sim para constituir um termo de comparação para os poetas mostrarem que o tempo histórico também produz ações grandiosas. Essa concepção do passado recente como grandioso por si só, digno de ser narrado e lembrado, como aparece nas elegias, será a mesmo que fundamentará o discurso historiográfico e, por isso, para Bowie (2010, p.146-148), essas poesias parecem um estágio na formação da consciência historiográfica grega. Se a poesia grega trabalhava com o passado mítico e, às vezes, incorporava na sua matéria o passado histórico, qual é a novidade trazida pela historiografia? Como ela se impôs, nesse jogo de semelhanças e alteridades, para incluir-se como discurso oficial sobre o passado? É justamente essa questão que discutimos na Segunda Parte, intitulada Sobre como Heródoto e Tucídides inventaram o passado. Como o passado mítico ou 18 histórico, portanto, estava presente nas formas poéticas da literatura grega, o surgimento do discurso historiográfico se dá exigindo que este novo gênero se estabeleça discutindo toda a tradição literária anterior a ele. Discutimos como Heródoto e Tucídides, cada um a seu modo, criam os mecanismos que tornam a historiografia o discurso legítimo e “oficial” da história, ao tentarem estabelecer métodos de análise do passado que fossem mais rigorosos do que o processo de embelezamento e engrandecimento dos poetas. Heródoto, a partir do tema principal de sua narrativa, as guerras entre gregos e bárbaros, narra uma série de histórias para que nem as ações nem as obras maravilhosas dos homens fossem esquecidas com tempo. Heródoto se coloca como uma espécie de aedo dos novos tempos, sem “romper completamente com a economia do kléos, que fixava o estatuto e a função da palavra épica” (HARTOG, 2003, p.30). Entretanto, não é mais o aedo dos tempos míticos que são preservados pelas Musas, mas sim o aedo do tempo dos homens, esse que é perecível, pois é esquecível com a ação do tempo. Heródoto, então, estabelece uma certa divisão entre o tempo mítico e o tempo histórico e é este que interessa ao historiador. O passado mítico só aparece circunstancialmente, com o historiador procurando retirar da narrativa mítica o que ele julga invenção dos poetas para poder encontrar alguma verdade histórica. Entretanto, ainda que narre muitas vezes um material lendário, Heródoto está sempre explicitamente mostrando ou seu descrédito com relação a esses fatos ou sua incapacidade de afiançá-los ou de negá-los. Analisamos passagens em que essa questão fica evidente, tentando compreender com quais mecanismos se constrói o discurso do historiador. Além disso, não mais exposto aos poderes divinos das Musas, Heródoto depende de sua própria pesquisa para determinar os eventos de forma crível ao seu leitor. Com isso, ele substitui a onipresença e onisciência das Musas pela investigação, calcada na experiência da autópsia, tornando-se testemunha dos eventos que narra, ou no inquérito, escutar as fontes e, das informações apreendidas, julgar o que é verdade e mentira. Tucídides, por outro lado, na Guerra do Peloponeso, já de início mostra que o passado antigo não pode ser matéria de uma narrativa rigorosa, pois os fatos com o passar do tempo são embelezados pelos poetas e pela tradição oral, e as pessoas se aprazem mais com esse tipo de narrativa do que com a verdade rigorosa dos fatos. É interessante que mesmo eventos próximos ao tempo dele sofriam esse processo. Por conseguinte, só a história do presente pode ser analisada de modo rigoroso, à medida que o historiador se converte em testemunha ocular dos fatos. Como testemunha, não só ele garante maior 19 credibilidade para seus leitores, como é capaz de julgar com mais rigor a narrativa dos outros sobre os eventos. O historiador, portanto, se torna não só um revisor da história do passado, mas um cronista do presente para que, no futuro, ele seja uma fonte digna de crença desse tempo. A narrativa historiográfica, então, converte-se numa “aquisição para sempre” (ktḗma eís aeí) e, como observa Hartog (2003, p.56), “[...] não se tratava mais de preservar do esquecimento as ações valorosas, mas de transmitir aos homens do futuro um instrumento de inteligibilidade de seu próprio presente.”. Para ser uma fonte digna de fé para o futuro, o historiador deve evitar narrativas que se assemelhem aos mitos (tò mythṓdes), seja porque embelezam e engrandecem o passado para serem agradáveis ao público, seja porque criam discursos laudatórios sobre algum personagem histórico. O historiador deve ter em vista a verdade rigorosa dos fatos e essa só se consegue através de uma postura imparcial. Apesar das diferenças no tratamento do passado, Heródoto e Tucídides estabelecem que, em se tratando tanto de um fato mais antigo como de um fato mais recente ou contemporâneo, a historiografia deve narrar a história política e militar dos grandes povos ou cidades. Não é, portanto, qualquer assunto que deve fazer parte de uma narrativa historiográfica, mas apenas aqueles eventos que sejam do interesse público. Além disso, só os maiores é que são dignos de serem narrados (aksiológoi). Assim, os historiadores da antiguidade passarão a amplificar o material com que estão trabalhando, buscando chamar a atenção para a necessidade de se narrar os eventos por causa da sua grandeza e amplitude. Com suas obras, Heródoto e Tucídides estabeleceram mecanismos discursivos da historiografia e já no século IV a.C se tornaram modelos para quem fosse escrever obras historiográficas. Os historiadores do século IV a.C., ao contrário dos seus modelos, não tinham a necessidade de desenvolver o discurso historiográfico e seu complexo sistema de significação a partir do nada; tinham a obra deles como ponto de partida. Assim, na Terceira Parte, intitulada A história segundo Xenofonte, passamos a analisar a obra do escritor ateniense, pensando na relação entre história e historiografia. Nossa perspectiva é que, embora Xenofonte trabalhe com material histórico, nem sempre suas narrativas podem ser chamadas de historiográficas. Em nossa opinião, a única das três narrativas usadas no corpus desse trabalho que merece tal rótulo é a das Helênicas. Falta à Anábase e à Ciropedia o enquadramento genérico da historiografia, ou seja, faltam 20 a elas os elementos discursivos que Heródoto e Tucídides estabeleceram como fundamentais no discurso historiográfico e que o próprio Xenofonte usa nas Helênicas. Não é objetivo deste trabalho avaliar se a obra de Xenofonte é ou não a melhor quanto à descrição dos eventos, ou se, comparada com outras informações a respeito da história do período, ela é ou não a mais digna de fé. Procuramos, de fato, identificar as estruturas das suas narrativas que se aproximam ou se afastam da narrativa historiográfica, tal qual era entendida pelos gregos em sua época, o século IV a.C., tomando como base as narrativas historiográficas de Heródoto e Tucídides. A partir dessa comparação, pudemos averiguar em que medida as três narrativas de Xenofonte, aqui estudadas, se inserem ou não como obras da Historiografia antiga. Nossa percepção é que apenas em um sentido lato de história pode-se rotular obras como a Anábase e a Ciropedia de historiográficas, pois, ao tratarem de temas da história, o fazem em uma perspectiva genérica diferente. O estudo da narrativa como forma de discurso, pertencente a um gênero de discurso, ajuda a compreender “as mudanças pelas quais as audiências esperam como modos de discurso apropriados assim como temas apropriados e referentes de diferentes modos de representação” (WHITE, 1981, p.794). A análise das Helênicas, nesse sentido, nos parece fundamental, pois é, das obras de Xenofonte, a que melhor se enquadra no gênero, seguindo o modelo de Tucídides, o que demonstra a consciência de Xenofonte quanto ao gênero e também o seu reconhecimento de que a historiografia era não apenas a narrativa sobre eventos reais do passado, mas um gênero que atualizava dispositivos estruturais e temáticos sobre os eventos reais do passado. Por isso, no capítulo As Helênicas ou vamos narrar o que não é digno, discutimos como Xenofonte cria rupturas com o modelo de historiografia contemporânea de Tucídides. Xenofonte, inclusive, continua a obra de Tucídides do ponto em que ficou interrompida por causa da morte de seu autor. Por isso, nas Helênicas, as rupturas aparecem apenas esporadicamente, em alguns momentos da narrativa, quando o narrador sente a necessidade de se desculpar com o leitor, por acrescentar material que não deveria estar presente em uma obra historiográfica. Todavia, são comentários essenciais para o desenvolvimento de nosso estudo, uma vez que, ao indicar ao seu leitor a ruptura, demonstra a sua consciência, e a dos seus leitores também, quanto ao que se deveria esperar de uma narrativa historiográfica. Há, portanto, uma consciência de que o gênero historiográfico para ser caraterizado como tal deve levar em conta a escolha da matéria e do tipo de discurso que se faz sobre o passado. 21 A partir disso, nossa atenção recai sobre a Anábase e a Ciropedia. Ambas as narrativas são de temáticas históricas, porém, em nossa opinião, não manifestam os elementos que poderiam identificá-las como historiográfica. Já ressaltamos que entendemos a historiografia como um tipo de discurso sobre o passado, que manifesta um tipo determinado de comportamento linguístico e estrutural, que, por isso, atualiza os eventos narrados como eventos historiográficos. A historiografia, na atualização de seu discurso, transforma os fatos humanos em narrativos com um sentido historiográfico, porém os fatos humanos, a história, é uma matéria que pode ser encenada de múltiplas formas por múltiplos discursos. No capítulo 401 a.C.: uma odisseia na Pérsia, tratamos da Anábase, narrativa da experiência real vivenciada por Xenofonte como mercenário grego, lutando ao lado príncipe persa, Ciro, contra seu irmão, Artaxerxes II. Dividida em sete livros, a narrativa relata a batalha apenas no primeiro, focando nos outros seis livros a tentativa dos dez mil soldados gregos em retornar à Grécia. Analisamos como esta narrativa não se adequa do ponto de vista temático ao gênero historiográfico, pois o retorno dos gregos não é um tema político e militar importante para a história grega e nota-se isso em como o próprio Xenofonte, no Livro III, 1, 1-2 das Helênicas, resume essa aventura em poucas linhas. Uma narrativa de aventura e de retorno, um nóstos, eis o que nos parece a Anábase. Assim, procuramos analisar o uso intertextual da Odisseia de Homero, narrativa arquetípica de retorno, como subtexto da Anábase para que Xenofonte amplifique e engrandeça a aventura, senão do ponto de vista político e militar como faziam os historiadores com seus temas, ao menos do ponto de vista humano, comparando a sua experiência real à experiência mítica. Por fim, no último capítulo, A Ciropedia e as histórias verossímeis, trabalhamos com a possiblidade de classificar essa narrativa de Xenofonte como um romance antigo. O tema da narrativa é a vida de Ciro, o velho, rei persa que, com suas conquistas, tornou a Pérsia um grande império. Se a historiografia deveria focar em assuntos políticos e militares essencialmente públicos, a Ciropedia de Xenofonte nos apresenta a vida de um único personagem, um rei oriental e de um passado já relativamente distante. Além disso, a narrativa foca em uma série de cenas cujo tema é a vida particular de Ciro e sua relação com outros personagens que, em geral, são ficcionais. Do ponto de vista discursivo, a Ciropedia apresenta ainda várias inovações, como o uso do discurso sério-cômico ou um novo uso do discurso direto, fruto, talvez, da própria experiência de Xenofonte como 22 escritor de diálogos socráticos. Com essas informações em mente, discutimos a validade de classificar a Ciropedia como um romance antigo, uma espécie de “romance histórico”. Analisamos, como comparação, alguns fragmentos dos primeiros romances gregos, como os de Nino e Sesoncôsis, que, assim como a Ciropedia, tratam de personagens históricos, orientais e de um passado longínquo. Em cada uma das três narrativas de nosso corpus, Xenofonte trabalha o passado de um modo. Do historiográfico ao romanesco, a tentativa de criar modelos de comportamento para seus leitores influi decisivamente na forma de modelar esse passado. Xenofonte, nos parece, era bem consciente do que o leitor deveria esperar de uma narrativa historiográfica, e se não o faz, é simplesmente porque ele tem outros objetivos. Assim como os poetas antigos usavam o mito como forma de expressar suas ideias através das formas poéticas, Xenofonte usa os fatos históricos com esse fim. A história em Xenofonte é um meio, não um fim. 23 Primeira Parte: As disformes formas do passado. Se a historiografia surgiu, na Grécia, apenas no começo do século V a.C., significa que os gregos não tinham história? A primeira tarefa que nos propomos neste trabalho é discutir o que exatamente constitui o gênero historiográfico na Antiguidade e as implicações de seu surgimento com relação aos outros gêneros literários da Grécia. Trabalho árduo, uma vez que, dois mil e quinhentos anos depois, a “História” continua sendo um espinhoso território, reino de uma palavra de difícil definição, na qual se aglomera uma variedade semântica que, pela sua própria história, nos confunde e nos despista. A língua alemã, por exemplo, parece de imediato resolver esse problema corrente nas línguas românicas, distinguindo entre a Geschichte (história como acontecer) e a Historie (história como relato)2. Também a língua inglesa opõe history e story, sendo a primeira a ciência da História propriamente dita, enquanto a segunda refere-se às narrativas de modo geral e, em especial, às ficcionais. Em português, contudo, seja ficção ou realidade, seja a ciência seja a narrativa oral, conto, lenda, fala de um indivíduo em uma conversa de bar, costumamos adotar o mesmo termo: história. Os eventos passados, ocorridos na vida de uma pessoa ou de um povo, podem ser rememorados pela preservação da memória, seja individual ou coletiva, através das tradições orais e documentos escritos. Os fatos passados existem independentemente de um discurso que os resguarda e os ordena. Todavia, como nos lembra Paul Veyne, em Como se deve escrever a história (1982, p.28), se os eventos existem por si mesmos, eles só podem, no entanto, ser retomados a partir do momento que se constitui um relato desses eventos. Esses relatos podem ser feitos de diversas formas, ou seja, retomar o passado através do relato não faz dele uma ciência historiográfica. A historiografia é apenas, nesse sentido, uma das várias formas com que se pode transpor os eventos em discurso, e, conforme Marincola (1999, p.20), dificilmente era a principal fonte de conhecimento dos gregos sobre o passado. Tradição oral, representações pictóricas sobre o passado, estátuas, a oratória, os outros gêneros literários, todas essas formas de representação serviam também como fonte de informação sobre os eventos históricos. 2 Cf. Koselleck, R. “Futuro passado” (2006). 24 Como discurso, a historiografia se efetiva por meio de dispositivos temáticos e linguísticos, que a caracterizam como um gênero do discurso, que se contrasta com os outros gêneros e torna-se, assim, reconhecível ao seu leitor. É nas obras de Heródoto e Tucídides, pais ocidentais da história, que ela se forma, e nelas que podemos averiguar como esse discurso vai se estabelecendo, buscando se emancipar da poesia e da tradição literária, para construir um discurso próprio e autônomo. Estabelecida e canonizada, no entanto, a historiografia jamais foi um gênero acabado, remodelando-se sempre nas incursões criativas de seus autores, que revelam, nessas experiências individuais, o quanto o conceito de história é maleável. A história segue as mudanças sociais, contextos políticos e econômicos do tempo daquele que escreve, por isso, como já atentou Hartog (2001, p.10) sobre a polissemia do termo, “[...] de Heródoto a Luciano e a Santo Agostinho, passando por Cícero e Tito Lívio, a mesma palavra não designou sempre a mesma mercadoria”. Uma vez que a historiografia, ao surgir, procurou se estabelecer como um discurso autônomo sobre o passado, é interessante investigar como os gêneros poéticos, anteriores à historiografia, trabalham o passado, seja ele mítico ou histórico, para, desse modo, buscarmos compreender qual a inovação que a historiografia propõe. Cada gênero possui para com o passado, com os feitos dignos de memória, uma atitude discursiva própria, porque o sentido do passado não está nos eventos em si, mas sim na forma com que eles são recuperados pelos gêneros. No percurso que iniciaremos nesta Primeira Parte, da épica à tragédia, mais do que sugerirmos uma origem genealógica, evolutiva dos conceitos de história, queremos somente sublinhar a existência de gêneros paralelos à historiografia nos quais repousam atitudes para com o passado. O diálogo entre esses tantos gêneros também faz parte da afirmação da Historiografia enquanto tal, já que, para sua afirmação, é essencial a relação de imitação e distanciamento, de ruptura com as formas literárias já existentes. Além disso, partimos do pressuposto que, tal qual o mito, a história sofre diversos usos de acordo com o gênero que o retoma. Mostrarmos como isso se efetua nos diversos gêneros poéticos, nos ajudará a entender como é equivocado, em nossa opinião, definir as narrativas de Xenofonte como historiográficas a partir apenas do tema histórico. Ressaltamos, por fim, caráter panorâmico da nossa abordagem nessa Primeira Parte e que não esperamos com nossa análise esgotar todas as discussões a respeito do tema; além disso, essa espécie de digressão ao tema principal de nosso estudo, será melhor 25 aclarada e justificada no momento em que nos detivermos nas obras de Xenofonte, na Terceira Parte. I.1. Épica como história. A mais antiga das formas de preservação da história na Grécia são os mitos que, por meio da tradição oral, passavam de geração em geração, dando sentido ao passado desconhecido. Preservar o mito significa, em alguma medida, justificar o presente por meio do passado tradicional. É essencialmente essa função instauradora que fundamenta o discurso mítico, e é “na medida em que o mito institui a ligação do tempo histórico com o tempo primordial que a narração das origens ganha valor de paradigma para o tempo presente” (RICOEUR, 1988, p.22). Há que se ressaltar, no entanto, que narrar o mito através da oralidade já é, em si, um uso discursivo do mito. O nosso próprio conhecimento do mito está sempre vinculado ao discurso, seja o da literatura, seja o da pintura, ou outras. Isso significa que o “mito em si” ou extradiscurssivo é apenas uma abstração. Nos interessa, portanto, o uso que o discurso literário faz dessa narrativa popular. Em alguma medida, as obras de Homero conservavam e transmitiam a história grega, pois narravam mitos que traziam à audiência uma espécie de história de seu povo. Contavam uma série de aventuras de personagens que transcorriam por regiões geográficas reconhecidas pela comunidade, existentes no mundo real e cujos símbolos – templos, estátuas, ícones – pareciam comprovar a existência deles no passado. A própria performance da poesia heroica que busca tornar presente à audiência esse passado, por meio de uma poética visual (WERNER, 2013, p.20), para encenar e afirmar a veracidade desse passado. A audiência da poesia heroica, de qualquer época e nação cujo canto era proeminente, usualmente assume que aquela narrativa, tornada presente pela performance, é o relato de um fato passado verdadeiro (BOWRA, 1966; GRETHLEIN, 2010). Nas sociedades que ainda não possuem anais, essa poesia, portanto, toma o lugar da História, uma vez que ela explica e concatena os eventos passados. Através da poesia oral, cada indivíduo da sociedade estabelece vínculos com seu passado coletivo, e, assim, a poesia heroica nessas sociedades era a sua história – não Historiografia, gênero ainda por nascer –, mas história enquanto narrativa do passado nacional. 26 Esta crença quanto à veracidade dos fatos narrados no mito se manteve, ainda que com algumas ressalvas, posteriormente no pensamento antigo, como, por exemplo, em Heródoto que, ao explicar o mito, procurou encontrar na cadeia de eventos narrados pelos poetas aquilo que poderia haver de verdadeiro neles. A atitude de Heródoto com relação aos mitos, como por exemplo na narração dos raptos das mulheres, é definida por Lesky (1995, p.350) como uma postura que “[...] nem aspira a uma racionalização total, nem é um céptico por princípio; mas também não aceita sem mais a tradição mítica”. Ou seja, Heródoto procura o que pode haver de verdadeiro na tradição mítica, afastando do mito o “brilho épico” (LESKY, 1995, p.339), eliminando das narrativas o que ele julgava inverossímil, sem, no entanto, negá-los por completo, já que as limitações impostas à sua investigação não lhe permitiam uma descrença completa3. Embora criticamente, os mitos preenchiam um espaço temporal cuja investigação do historiador não podia alcançar. Comentários como, “Quanto a mim, a respeito de tais acontecimentos, não vou afirmar que as coisas se passaram assim ou de outra maneira [...]” (HERÓDOTO, 2002, I, 5.3), que aparecem por toda a obra de Heródoto, demonstram não apenas sua posição crítica com relação aos eventos narrados pela tradição, mas também demonstram como a tradição era ainda indispensável na construção do passado histórico. Também Tucídides, para quem critérios de objetividade e imparcialidade eram características de um bom historiador, não apresentava tantas dúvidas quanto à ocorrência dos fatos narrados na Ilíada. Vê-se isso, por exemplo, na sua arqueologia (I.X,4), quando repete os números homéricos do contingente bélico transportado à Troia no catálogo das Naus. Na visão de Heródoto e Tucídides, os poetas narram fatos históricos, engrandecendo, exagerando e embelezando através dos artifícios poéticos. Estabelece-se assim a distinção fundamental entre o poeta épico e o historiador, pois, enquanto aquele pode engrandecer com ficção os fatos, este é obrigado a regular-se narrando os eventos tal qual aconteceram, com objetividade e posicionamento crítico. No entanto, se os fatos narrados pelos poetas épicos apresentam elementos históricos, a diferença entre historiador e poeta está mais na maneira de tratar esses assuntos do que na matéria selecionada. Embora duvidassem dos relatos poéticos feitos sobre fatos passados, autores como Tucídides e Heródoto não parecem duvidar dos eventos em si, confiando que a 3 Comentaremos com mais atenção essa relação no capítulo II.1. 27 imaginação poética engrandecera e embelezara ações históricas. Esse fato é relevante, já que são autores de um período em que as narrativas lendárias eram constantemente atacadas pela nova postura racional dos séculos VI e V a.C., e indica, em alguma medida, que a crença nos mitos e nas narrativas heroicas ainda estava presente e que a poesia homérica era, também, a poesia da história do povo. Se descobertas arqueológicas hoje comprovam ou desacreditam as informações apresentadas na épica, isso não é um problema que nos interessa nesse estudo. Nem um problema que, aparentemente, interessava às assembleias de gregos do século VIII a.C, que escutavam encantados os cantos dos aedos. História não é só o que a ciência da história ou o gênero historiográfico mostram como verdade, matéria do currículo escolar, mas é também todo um arsenal narrativo e ideológico que é transmitido e tomado como verdade pela comunidade. Se os gregos acreditavam nas suas lendas e mitos, devemos entendê-las, a partir dessa crença, como parte da história. Se Homero hoje é ou não fonte confiável para eventos históricos4, ele o era para os gregos, que acreditavam em suas narrativas e o tomaram como autoridade até o final da Antiguidade (GRETHLEIN, 2010, p.130). Mas o que fazia dos cantos épicos discursos aceitos como verdade histórica pela comunidade? Para Bowra (1966, p.40), isso ocorre justamente por causa da autoridade granjeada pela tradição. Durante um período vasto, as lendas da pré-história grega, através das narrativas poéticas dos bardos, foram sendo transmitidas e, por se manterem vivas através dos séculos, contadas e recontadas por gerações, ganharam uma espécie de atestado de veracidade. Como observa Veyne (1982, p.18), “[...] a tradição estava lá e ela era verdade, eis tudo”. A narrativa mítica, além disso, é seletiva. Não se resguarda no mito toda a matéria do passado, somente aquilo que é relevante, pois alcançou o kléos, a glória, o renome. O poeta na invocação épica recorta desse passado o trecho que quer cantar. Conforme Beye, Direcionando sua Musa para aquele lugar da saga onde ele pretende começar sua história, ele [o poeta] relembra sua audiência que a história épica não tem começo nem fim, que ela é composta por um complexo infinito de eventos e pessoas5 (BEYE, 1968, p.18). 4 A respeito da relação entre os poemas homéricos e a história, cf. RAAFLAUB, 1998. 5 Tradução nossa. No original: By directing his Muse to that place in the saga where he wishes to begin his story he reminds his auditors that the epic story is without beginning or end, that it is made up of an infinite complex of events and people. 28 A seleção do que é digno de ser narrado reflete a importância de tais fatos, já que não foram apagados. Impedir que uma ação caia no esquecimento implica relegar outro fato, julgado menos importante, ao esquecimento. Ao não serem apagados, como tantos outros o foram, ganham com isso a cristalização de sua veracidade. Séculos depois, o poeta romano Horácio, na Ode IX do Livro IV, brinca e resume com a beleza de seus versos esse processo seletivo do épos: Antes de Agamémnon, muitos outros valorosos homens vieram; sobre todos eles, porém, não chorados, ignorados, uma longa noite pesa, porque lhes falta o sagrado vate6. (v.25-28) Através dos cultos e dos festivais, a comunidade sentia a presença viva daquelas figuras e sua recorrência no cotidiano reforçava a veracidade dos eventos narrados. O intenso calendário religioso das cidades ritualizava as aventuras dessas personagens, com cantos e oferendas, e reencenando os grandes feitos de seus principais heróis, muitos dos quais eram tidos como fundadores dessas cidades, inclusive tendo participação no patronímico das importantes famílias aristocráticas, cumprindo, assim, uma função política, que justificava e estabelecia o poder daquelas famílias. Ademais, vestígios da presença desses heróis, como monumentos, tornavam-se também indícios reais e confiáveis da sua existência. O mito era vivo no próprio cotidiano do cidadão, e, acima de tudo, fonte de explicação da natureza e da política (FINLEY, 1965, p.284). Por fim, há, sobretudo, um aspecto fundamental para o estabelecimento da crença naqueles fatos antigos: a inspiração divina a que os poetas e bardos, transmissores dos mitos, estão submetidos (MARINCOLA, 1999, p.3). É claro que essa inspiração tem caráter literário e está presente no próprio canto do poeta que, abrindo a performance do canto épico com ela, procura se estabelecer a imagem de um porta-voz do canto divino. As Musas são filhas de Mnemosine, a deusa da memória, as guardiãs de todo monumento do passado, do presente e do futuro e, a partir do momento em que se inicia o canto, são as Musas que cantam através do poeta. O aedo, portanto, busca através da figura divina garantir a autoridade de seu canto. No decorrer da narrativa da Ilíada há várias invocações às Musas, que, embora variem 6 Tradução de Pedro Braga Falcão. In: Horácio. Odes. Lisboa: Livros Cotovia, 2008. 29 quanto à forma, mantém sempre o mesmo significado. Krausz (2007, p.49), que analisou todas essas invocações, afirma que A necessidade do amparo das deusas no momento da récita é enfatizada ao mesmo tempo em que empresta às récitas uma aura divina: a história que está para ser narrada é uma história impregnada de verdade imperecível, e suas origens encontram-se, não nas limitadas possibilidades de um mortal, mas no conhecimento divino e infinito das deusas, que tudo testemunham. Dentre as várias invocações às Musas na Ilíada, comentaremos a que ocorre no Canto II da Ilíada (v.484-492), no famoso catálogo das Naus, pois nela o narrador detalha o poder das divindades. Dizei-me agora, ó Musas que no Olimpo tendes a vossa morada – Pois sois deusas, estais presentes e todas as coisas sabeis, Ao passo que a nós chega apenas a fama e nada sabemos – Quem foram os comandantes dos Dânaos e seus reis. A multidão eu não seria capaz de enumerar ou nomear, Nem que tivesse dez línguas, ou então dez bocas, Uma voz indefectível e um coração de bronze, A não ser que vós, Musas Olímpias, filhas de Zeus detentor da égide, Me lembrásseis todos quantos vieram para debaixo de Ílion7. Ao invocar as Musas, o poeta enfatiza sua dependência delas, apresentando-nos alguma caracterização que nos ajuda a compreender o jogo entre o passado coletivo do mito e o canto épico. As Musas, por serem divinas, estão presentes e todas as coisas sabem (este páresté te hísté te pánta, v.485), isto é, configuram-se como testemunhas dos eventos que serão narrados pelo vate. A sua presença testemunhal valida o narrado, valida o passado. Os homens, sobre esses tempos antigos, ouvem apenas a fama dos eventos (kléos oîon akoúomen, v.486), mas não conhecem deles a sua totalidade – esta só é revelada através da força poética das Musas. Elas, por serem deusas, presenciaram os eventos, os viram, e agora podem presentificá-los pelo canto do poeta. Este, destituído daquele poder divino, sozinho é incapaz de expressar o conteúdo do canto, nomear e enumerar as naus (muthḗsomai oud’ onomḗnō, v.488). Sob a inspiração divina, o aedo vê “[...] o que, todavia, jamais viu e se lembra do que, para ser exato, jamais conheceu” 7 Todas as traduções de Homero usadas nesse trabalho são de Frederico Lourenço. 30 (HARTOG, 2001, p.34). Diante da onipotência e equidade das Musas, ele assume a sua limitação de humano e as invocações, portanto, “expressam a necessidade que o poeta tem das Musas como fontes de informações sobre fatos ou nomes determinados. O aedo recorre a elas como a fontes confiáveis de verdade” (KRAUSZ, 2007, p.59). No canto VIII da Odisseia, Odisseu louva Demódoco pelo canto que proferira sobre a derrocada de Troia. Um canto que, segundo Odisseu, ou foram as Musas ou próprio Apolo que lhe ensinaram, pois era “[...] como se lá estivesses estado ou o relato ouvido de outrem” (hṓs té pou ḕ autòs pareṑn ḕ állou akoúsas, v.491). O canto inspirado tem para aquele que esteve nos eventos cantados, Odisseu, um sabor de realidade como se o próprio Demódoco tivesse estado presente e visto a queda de Troia. Nesse sentido, através da beleza da poesia visual do canto épico, Demódoco presentifica o narrado para Odisseu. Hanna Arendt (2001), em um interessante artigo sobre o conceito de história, afirma que o canto de Demódoco é um elo entre o bardo e o historiador, justamente pela presença de Odisseu na plateia que, como testemunha, pode comprovar ou não os fatos narrados. Odisseu, de alguma forma, valida a facticidade do que foi narrado, não só por chorar ao ouvir a narrativa, mas também por afirmar que parecia que Demódoco estivera presente em Ílion. Odisseu assume, por um breve momento, o papel de histṓr, testemunha ocular dos eventos e árbitro da veracidade deles8. Chama-nos a atenção nessa passagem, ademais, que os fatos narrados são maiores do que a existência de Odisseu que, abatido por anos de dificuldades no mar e sem nome, encontra-se isolado em meio aos Feácios e pode assim ouvir as suas próprias aventuras, que já alcançaram o kléos9, ou seja, a sua “fama já chegou aos céus” (meu kléos ouranòn íkei) (Od.IX.20). Ao ouvir sua própria história, o homem-sem-nome, o “Ninguém” (Oûtis) pode recuperar sua identidade e, com isso, voltar a ser reconhecido como Odisseu. Como observa Hartog (2003, p.17), os episódios da Guerra de Troia, narrados na Odisseia, já estão em posição de história, porque mantém uma relação causal entre o passado – a Guerra de Troia – e o presente da narração – o retorno de Odisseu. 8 A palavra grega historía, pertence à família da palavra histṓr que, segundo Chantraine (1999, p.779), aparece em Homero como “juiz”, “árbitro de uma contenda” ou como “testemunha”. Esta palavra está etimologicamente ligada ao verbo oída, “eu sei porque eu vi”, pressupondo uma apreciação direta dos fatos (PEREIRA, 2002, p.XIX). 9 A respeito do kléos de Odisseu, ameaçado constantemente durante a narrativa da Odisseia, cf. WERNER, 2001. 31 Na sequência dessa passagem, quando Odisseu revela sua identidade, ele passa a narrar a história do que aconteceu desde que saíra de Troia até chegar à Feácia (Od.IX- XII). Odisseu, no entanto, não é um aedo e seu canto não está sob a inspiração das Musas. Sua narrativa fala da aventura de que só ele é testemunha. Como observa Hartog (2014), o canto de Odisseu não depende da Musa, ele não é um aedo, mas aprendeu o que canta pela própria experiência. “Fala na primeira pessoa, dando-se a si mesmo como única garantia do que diz (donde também a questão da mentira), enquanto o aedo recorre sempre à terceira, pondo-se sob a autoridade das Musas que, elas sim, estavam presentes” (HARTOG, 2014, p.44-45) Embora as narrativas de Odisseu sejam marcadas pelo maravilhoso, sua posição como personagem-testemunha dos eventos garante ao seu público um caráter verídico e esse desvio, da onipresença das Musas à autópsia, de algum modo, coloca Odisseu como um historiador avant la lettre (HARTOG, 2003, p.23). As viagens de Odisseu e seu retorno a Ítaca ainda não são um evento acabado (ao menos no momento em que Odisseu as narra); o herói depende de seu retorno para alcançar o kléos e, assim, ter sua história guardada pelas Musas e cantada pelos aedos. Desse modo, no período arcaico da Grécia, os mitos cantados pelos poetas narravam a história do povo, em performances sobre os heróis de antanho, que estabeleciam, para aquela comunidade, a relação entre o passado e o presente. Todavia, uma vez que o canto das Musas é seletivo, diante da massa informe e incontável de fatos, quais devem ser lembradas e guardadas pela memória? Para Finley (1965, p.283), Muito antes de a história ser sonhada, o mito dava uma resposta. Essa era a sua função ou uma de suas funções: tornar o passado inteligível e significativo pela seleção, concentrando-se em alguns pedaços do passado que assim adquiriam permanência, relevância e significado universal10. Poeta e historiador compartilham a subjetividade da escolha do tema, que limita a sua narrativa a determinados pontos de um passado mais amplo. Desse amplo passado, os eventos que são dignos do canto épico são eventos extraordinários realizados por deuses e heróis; por serem ações fora do comum, são dignos de serem guardados através 10 Tradução nossa. No original: Long before anyone dreamed of history, myth gave an answer. That was its function, or rather one of its functions; to make the past intelligible and meaningful by selection, by focusing on a few bits of the past which thereby acquired permanence, relevance, universal significance. 32 do canto e impedidos de caírem no esquecimento. Os deuses, no entanto, são, por essência, imortais, e independem do canto épico para serem imortalizados – o herói, contudo, é mortal, por isso, tem que agir grandiosamente, fazer uma façanha, para que seja digno de canto (BOWRA, 1966, p.4). Os heróis eram semideuses, seres intermediários entre os deuses e os homens. Segundo Chantraine (2009), na época homérica a palavra hḗrōs, herói, era um termo de cortesia com que se denominava certos personagens singulares da comunidade. Werner (2013) afirma que na poesia homérica ela refere-se exclusivamente aos homens do passado, superiores aos do presente, e que isso não nos permite asseverar se o público do canto identificava esses heróis às entidades religiosas (WERNER, 2013, p.10). É a partir da poesia de Hesíodo que o vocábulo passa a comportar também uma significação religiosa, entendida no sentido de “semideus” ou de “deus local”. Esta carga semântica procede do culto a um ser humano que, depois de sua morte, se diviniza por causa de sua nobreza de agir, passando a ser herói de uma região. O culto dos heróis é um marco muito antigo e significativo na religião grega, retrocedendo ao período micênico (sec. XVI a XI a.C.). Os heróis possuem, conforme Aristóteles (Política, VII 1332b), dons físicos e mentais, além de uma excelsa virtude e caráter, muito superiores aos dos homens comuns. No entanto, dado sua condição intermediária, compartilham com os homens a triste realidade da velhice e da morte. Com exceção de Héracles, que alcança a imortalidade ao fim da vida, os heróis gregos, revelando seu lado humano, estão destinados a morrer. Podem, no entanto, alcançar outro tipo de imortalidade, a da glória do seu nome, que se dá através do canto épico. Tornar-se assunto de um canto épico é a única maneira para se escapar do esquecimento; mortal e perecível fisicamente, o herói busca realizar grandes feitos para que seu nome seja lembrado pelos poetas e, assim, se torne imortal. Seria então o canto épico a narrativa da busca dos heróis, por meio de grandes feitos, de se tornar matéria de canto épico. Delimitar, no entanto, o conteúdo da poesia épica, conforme faz Bowra (1966), às narrativas dos heróis seria desconsiderar uma série de obras, compostas também em hexâmetro para uma performance, que focam sua matéria em outros momentos desse passado mítico. Além das obras de Homero e Hesíodo, são associados a esse gênero os 33 poemas do Ciclo Épico11 e os Hinos Homéricos, o que ampliaria a matéria do canto épico para a narrativa de todo o passado, desde a origem do universo até o período das aventuras dos heróis, quando se daria a separação entre a idade dos heróis e a dos homens (FORD, 1997, p.398). Essa separação se apresenta no “Mito das Cinco Raças” (v.106-201) que Hesíodo narra n’ Os Trabalhos e os Dias. A ordenação temporal desse mito se estrutura a partir da valoração decrescente dos metais, ouro, prata, bronze e ferro. Nessa sucessão das raças, Hesíodo acrescenta, entre a Idade de bronze e a Idade de ferro, a dos heróis. Esta “raça divina dos homens heróis” (andrṓn hērṓōn theîon génos, v.159) era justa e valorosa, “geração anterior a nossa” (protérē geneḕ), que lutou nas Guerras de Tebas e de Troia. A raça seguinte é a Idade de ferro, na qual os homens vivem com miséria e fadiga, com duras preocupações. Há, por conseguinte, uma divisão nítida12 entre os homens que fazem parte da épica, ou seja, os heróis da Idade dos heróis que conseguiram a imortalidade pelo canto épico, e os homens da Idade de ferro que apenas conhecem essas histórias através dos cantos divinizados dos aedos13. O declínio da raça humana, nessa sucessão de Idades, é claramente marcado pela vida em sintonia de deuses e homens que, progressivamente, vai desaparecendo até chegar a nossa idade de ferro, um presente destituído de honra e glória. Por isso, Claude Calame (2009, p.3) prefere em referência a essas narrativas lendárias substituir o termo mýthos, enraizado numa tradição antropológica dos séculos XIX e XX d.C., por archaîa, ou palaiá (antanho, outrora, antiguidade), pois o mito é uma narrativa essencialmente vinculada com uma história do passado, uma antiguidade, uma tradição longínqua. Essa distinção do tempo mítico com o tempo dos homens, ou histórico, aparece ainda na obra do romano Varrão (sec. I a.C.). O comentador Censorinus14, autor do De 11 Aristóteles (Poética, 1459b) cita Os Cantos Cíprios e a Pequena Ilíada para contrastá-los com a Ilíada e a Odisseia, quanto a unidade de ação. 12 Segundo Werner (2013, p.31), embora haja a distinção entre os dois períodos, “Isso não significa endossar a interpretação segundo a qual Hesíodo tenha buscado uma distinção radical, marcada pelo desaparecimento físico, das linhagens entre si, o que geralmente foi o caso na releitura do mito entre os antigos”. 13 Cf, Ilíada, XII, 1-33. O narrador conta que no futuro, após a guerra de Troia ter se encerrado, os deuses destruirão a muralha construída pelos aqueus com um dilúvio que varrerá da terra a raça dos homens semidivinos (hemithéon génos andrôn). 14 Censorinus foi um gramático latino do século III d.C. O fragmentado tratado De die natali (238 d.C.) apresenta uma variedade de assuntos, como história natural, música, astronomia, geometria, religião, etc. 34 die natali, apresenta a divisão da história da humanidade adotada por Varrão, divisão tripartida em três períodos: o primeiro, chamado de ádḗlos15, “obscuro, desconhecido, incerto”, vai da origem dos homens até o primeiro dilúvio; o segundo, que vai do primeiro dilúvio até a primeira Olimpíada, em 776 a.C., ele chama de mythicon, “mítico”, porque “muitas narrativas fabulosas são incluídas nele” (quia multa in eo fabulosa referuntur); o terceiro período que vai da primeira Olimpíada até os seus dias, ele chamava de historicon, “histórico”, pois “os feitos ilustres nele são guardados por verdadeiras histórias” (res in eo gestae veris historiis continetur). Se do primeiro período Varrão diz que não se pode conhecer quantos anos houve, para o período mítico ele estabelece uma relação interessante entre o mito e a história: do primeiro dilúvio, o dilúvio de Ogigo16, até o reinado de Ínaco17, conta-se em torno de quatrocentos anos; deste fato até a queda de Troia, mais oitocentos anos e, de Troia até a Primeira Olimpíada, mais quatrocentos anos. Assim, entre o dilúvio de Ogigo até a Primeira Olimpíada teria transcorrido cerca de mil e seiscentos anos, que comporiam o chamado tempo mítico. Censorinus ainda acrescenta outras tentativas de cronologização, como as de Sosibius, Eratóstenes, Timeu e Arétes, e essa mesma divisão cronológica foi utilizada na Biblioteca de Apolodoro (sec. I ou II d.C.), na esquematização da trama de seu livro (PEMBROKE, 1998, p.338). Em todo caso, a procura de uma data específica em que teriam ocorrido os eventos relatados pelos mitos mostra o quanto essas narrativas faziam parte da história, mesmo muitos séculos depois de Homero. Nesse esquema temporal, os antigos historiadores, mais do que discutir os tempos míticos, ajuntam a eles o tempo histórico; acrescentam à linha temporal os fatos dignos de memória que não estão protegidos pelo canto épico e, nesse sentido, o historiador é um continuador do poeta, uma espécie de substituto das Varrão e Suetônio são as principais autoridades utilizadas por Censorinus. O texto de Censorinus está disponível em http://penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Censorinus/text*.html 15 Censorinus ora se utiliza de termos gregos ora latinos para designar o nome com que Varrão chamava tais períodos. 16 Ogigo era rei dos Ecténios, que habitaram a região da Beócia antes do Dilúvio de Deucalião. Atribui-se a ele vários descendentes epônimos de várias povoações tebanas. É durante o seu reinado que se deu o primeiro dilúvio, que cobriu toda a região beócia. 17 Ínaco é um deus-rio da Argólida ao qual são atribuídas várias tradições dispersas. Em uma versão da lenda, após o Dilúvio de Deucalião (o segundo dilúvio da tradição mítica grega), teria reunido os homens e se estabelecido na planície do rio ao qual foi dado seu nome como memória desse benefício. É filho de Oceano e Tétis e, segundo os Argivos, vivia desde a criação do mundo. Atribui-se a ele a paternidade da jovem Micena, epônimo da cidade de Micenas, e de Argos e de Pelasgo. 35 Musas. É interessante que o texto de Heródoto chegou até nós dividido em nove livros, cada um recebendo o nome de uma Musa. Tal divisão é alexandrina, porém, de algum modo, sinaliza a percepção de que a obra de Heródoto agregava novas histórias aos mitos transmitidos pelas Musas. O estabelecimento de estágios cronológicos entre os diversos eventos míticos aparece nas próprias epopeias de Homero, como, por exemplo, no Canto IX da Ilíada, durante a embaixada à tenda de Aquiles. Fênix, que fora enviado juntamente com Ájax e Odisseu para convencer Aquiles a esquecer da sua ira, após relembrar o período em que fora tutor de Aquiles, conta ao herói a história do etólio Meleagro, filho de Eneu (v.525- 599). Assim, ele a introduz: Deste modo ouvimos falar da fama dos homens heroicos de antanho, quando a algum sobrevinha a cólera furiosa: eram permeáveis a dons e deixavam-se inflectir pelas palavras. Eu próprio me recordo deste feito de há muito (recente não é, de forma alguma!), como foi: a vós, todos amigos, o narrarei. (IX, v.524-28) Fênix, na abertura de sua narrativa, chama a atenção para a “fama dos homens heroicos de antigamente” (prósthen kléa andrṓn hērṓōn). Tanto os participantes da assembleia, quanto os da narrativa de Fênix, fazem parte, para a assembleia de Homero, da era dos heróis. Porém, Meleagro, numa possível cronologia entre esses heróis, está para Fênix e Aquiles, como Aquiles e Fênix estão para a audiência, ou seja, fazem parte do passado antigo dos personagens, fazem parte da sua história. Como ele mesmo define, esta é a história de um feito antigo (érgon pálai), o qual Fênix recorda e conhece por ter ouvido. Na cena em questão, Fênix não pede auxílio às Musas. Ele não é um aedo a cantar, mas um personagem que narra em seu discurso um evento passado. Ele conhece a narrativa de Melagro – talvez por ter ouvido um aedo a cantar-lhe a fama – e ela faz parte de seu repertório e, recordando-a, agora a reconta. Procedimento diferente ocorre nos cantos de Fêmio e Demódoco na Odisseia, que são aedos por profissão. Fêmio, no canto primeiro da Odisseia (I.325-359), distrai os pretendentes cantando “o triste regresso dos Aqueus” (I.326). Penélope, ao ouvir seu canto, doída de saudades de seu esposo cujo regresso Poseidon adia, se esvai em lágrimas e pede ao aedo que pare seu canto ou mude de tema, já que ele conhece “muitos outros temas que encantam os homens,/ façanhas de homens e deuses” (I.357-58). Telêmaco 36 responde à mãe que não deve ela culpar o aedo por cantar as desgraças dos gregos, já que a culpa cabe a Zeus, que estabelecera o destino aos homens; acrescenta ainda que “[...] os homens apreciam de preferência o canto / que lhes pareça soar mais recente aos ouvidos” (v.351-352). O tema do canto de Fêmio, então, é um canto que se assemelha ao próprio tema da Odisseia. Faz dez anos que Odisseu saiu de Troia e se perdeu no mar – nesses dez anos, a glória dos regressos tornou-se tema do épos. É um evento mais recente do que a própria guerra, tal qual a guerra de Troia era mais recente do que as batalhas de Meleagro. Há, então, nos mitos dos heróis uma concepção de sequência temporal que propicia o encadeamento cronológico dos eventos míticos, concepção esta que será fundamental na afirmação do discurso historiográfico. A passagem da narrativa de Fênix merece ainda uma última observação a respeito do feito de Meleagro que garante a ele o kléos, que o torna digno de ser lembrado e cantado. Todo grande herói deve fazer ações notáveis, que devem ser passadas de geração em geração e associadas com a história das próprias cidades. Os temas das canções épicas, que se desenvolveram em diversos territórios e épocas, são, em geral, aristocráticos e heroicos. A guerra e a aventura constituíam o palco de ação de uma nobreza, para quem os valores da honra e da coragem marcial sobressaem como meio de alcançar a fama. (KIRK, 1968, p.71). Mas qual é o feito realizado por Meleagro e por que este é lembrado por Fênix agora na narrativa? Cercados, os etólios lutavam para proteger a cidade e, enquanto Meleagro combatia ao lado deles, resistiam às investidas dos curetes. Porém, quando dele se apoderou a ira18, Meleagro saiu da batalha e refugiou-se no leito da esposa. A partir disso, os curetes começaram a ter vantagem na guerra. Os etólios então correm até Meleagro para pedir-lhe que retorne à batalha, prometendo muitos bens e riquezas pela sua ação valorosa, mas nenhuma dessas recompensas é capaz de fazê-lo mudar de ideia. Até que os curetes invadem, de fato, a cidade e tornam-se uma ameaça manifesta ao casal instalado no tálamo. A esposa de Meleagro suplica para que ele retorne à batalha, enumerando os males que acorrem à cidade e aos cidadãos, quando uma cidade é invadida e torna-se espólio de guerra. Comovido, Meleagro veste as armas e expulsa os invasores. Fênix, portanto, tenta convencer Aquiles narrando a ele uma narrativa “histórica” de um 18 Na batalha, Meleagro mata dois de seus tios, irmãos de sua mãe. Esta, com raiva, o amaldiçoou, invocando contra ele a cólera dos deuses. Meleagro, então, temendo a reação divina, retirou-se da batalha. 37 herói do passado cujos pormenores se assemelham à própria experiência do Pelida. Como Meleagro, Aquiles está possuído pela ira e afastado do campo de batalha, causando muitos males aos compatriotas gregos. Como Meleagro, Aquiles é insensível aos clamores dos companheiros, e só retornará ao campo de batalha quando Pátroclo, seu escudeiro e amigo fiel, falecer pelas mãos de Heitor. O passado de Meleagro, portanto, é um espelho para as ações de Aquiles que, como seu ouvinte, pode apreender ou negligenciar. A narrativa de Fênix demonstra que o passado é um complexo arranjo de ações com caráter educativo, que pode servir de exemplo, modelo de comportamento: historia magistra uitae est. Ao mesmo tempo, sendo as histórias de Meleagro e Aquiles comparáveis e, de algum modo, repetidas, a própria noção de tempo aí expressa assemelha-se àquela que Tucídides, séculos depois, expressará. Afinal, para o historiador ateniense, sua obra poderá ser útil no futuro, uma “aquisição para sempre” (ktḗma eís aeí), para “[...] todos os que quiserem ver com clareza o que aconteceu e que virá de novo a acontecer nalguma outra vez, em conformidade com que é humano, seja de igual forma ou de forma parecida” (I.22). O movimento de repetição é o mesmo da cena da épica – uma vez que o comportamento humano é limitado, motivado por paixões e ambições, há a crença de que no futuro pode se repetir o que já ocorreu no passado e de que, no passado, há uma fonte de exemplos para aprendermos como agir. Esse mesmo pensamento aparece em uma passagem da Ciropedia de Xenofonte (I.VI,45). Cambisses, o pai de Ciro, dá as últimas instruções antes que o filho parta para a guerra. No fim do discurso, pede a ele que nunca exponha a perigo a si e aos soldados, contrariando os oráculos e augúrios e que pode “[...] ele mesmo aprender das coisas que aconteceram” (gnoíēs d’ àn eks autṓn tṓn gignomímōn). Segue depois a descrição de alguns exemplos de erros possíveis a que um comandante está sujeito. O passado converte-se em lição para o presente – a história, narrativa do passado mítico ou histórico, é uma eterna e imprescindível fonte de exemplos. I.2. Epinício, mito e história. Se a poesia oral é a ponte que ligava o homem ao seu passado coletivo, a ausência de formas escritas fixas torna a recuperação desse passado fluido, variável, passível de ser reatualizado e reinventado no momento da representação (KRAUSZ, 2007, p.25). Embora não tenhamos outros exemplares da poesia épica do mesmo nível artístico das de 38 Homero e Hesíodo, ainda encontramos no século V a.C. rapsodos itinerantes como figuras comuns da sociedade que participavam de competições de recitação. Concomitantemente, surge nos séculos VII e VI a.C. uma série de gêneros poéticos líricos, composições destinadas à performance cantada em coro ou solo. Ragusa (2013, p.12) comenta que o uso do lírico para se referir a essas poesias é do período helenístico, relacionado à lira, instrumento principal nessas apresentações para acompanhar o canto poético. Segundo a estudiosa, o termo mais antigo para denominar esse gênero é mélica, derivado da palavra mélos, que reforça o caráter cantado e performático dessas poesias. Até o século V a.C. esta era a realidade da poesia grega, ela só existia em relação à uma performance pública, e esta performance não só era o espaço para a veiculação da poesia, mas também influenciava na própria composição e expectativa que a audiência tinha dela (SWIFT, 2010, p.34). Embora, portanto, acople-se, em geral, esses vários gêneros sob o rótulo comum, seja o de poesia lírica, seja o de poesia mélica, temos que nos atentar para cada um desses gêneros em separado, pois a performance é fundamental não só na estrutura literária da poesia, quanto também do tipo de conteúdo expresso nela, já que, não podemos esquecer, a poesia desse período continuava como veículo principal da disseminação de ideias morais e políticas (HERINGTON, 1985, p.3). Desse modo, pousaremos, primeiramente, a nossa atenção em um gênero que encontra no século V seu apogeu e declínio, o epinício. Epinícios são odes destinadas a celebrar os triunfos atléticos dos Jogos19, compostas, geralmente, sob o encargo dos próprios vencedores ou de familiares. É uma das modalidades da lírica coral grega. Sabe-se que desde o século VII a.C. as vitórias dos atletas eram glorificadas por um canto breve e simples, mas é nas obras do tebano Píndaro e Baquílides, poeta da ilha de Ceos, que o gênero alcança seu apogeu e, ao mesmo tempo, conhece seu declínio. As mudanças sociais que sobrevieram aos dois autores afetaram a estrutura social aristocrática e, com isso, a própria concepção de mundo dessas elites gregas. O gênero, profundamente enraizado no elogio de figuras aristocráticas, viu-se desprovido de interesse na nova formação social que nascia. Eram os aristocratas que, 19 Eram quatro os principais Jogos na Grécia Antiga: as Olimpíadas, as mais antigas de todas, celebradas na cidade de Olímpia, em honra a Zeus; os Píticos, realizados em Delfos e em honra a Apolo; os Ístmicos, em honra a Poséidon, na cidade de Corinto; e os Nemeus, em honra a Zeus, realizados na cidade de Nemeia. Esses quatro jogos eram pan-helênicos, ou seja, abertos a todos os helenos. No entanto, além desses, havia jogos de caráter local. 39 nos séculos VI e começo do V a.C., tinham uma formação atlética dedicada à excelência guerreira e, nas competições, podiam exercitar o espírito de competição para demonstrar uns aos outros as suas excelsas qualidades. A vitória conquistada nos Jogos significava a obtenção do kléos, a glória imorredoura capaz de tornar eterno o nome de quem a alcança. Seja no contexto da guerra, como em Homero, seja no dos Jogos atléticos, o kléos implica o triunfo de um homem sobre outro de igual valor social, em um embate cujo resultado é o triunfo de uma aretḗ, virtude, sobre a outra. Esse espírito aristocrático e agonístico é um componente do espírito guerreiro presente na épica, que como já vimos, faz das façanhas dos heróis o seu tema fundamental20. O valor da vitória atlética vinculava-se à honra conseguida através dela, não só para o próprio atleta, mas também para a sua cidade, já que o prêmio nessas competições era apenas simbólico: uma simples coroa de folhas. Muitos dos atletas recebiam ainda outras honras em suas cidades, pelo valor prestado a elas, como estátuas ou a cunhagem de moedas especiais. Os epinícios de Píndaro e de Baquílides são exemplos do uso do passado em um gênero que, primeiramente, parece essencialmente vinculado ao presente. Embora sua proposta seja louvar os vencedores das provas atléticas, ou seja, se desenvolve de um mote do presente, o passado se destaca nas odes desses poetas. De fato, sabemos muito pouco a respeito dos vencedores e, como observa Alfonso Ortega (1985, p.35), raramente as informações das competições esportivas são detalhadas ou mesmo comentadas, e, muitas vezes, o vencedor não passa de um nome na composição do verso. No entanto, todas as odes contêm narrativas de mitos e fazem dessas narrativas sua estrutura central. Composto para uma performance coral, o epinício era acompanhado de canto e dança, sendo, em geral, um dos momentos das festas em honra aos deuses21. No entanto, conforme nos lembra Grethlein (2010, p.41), isso não significa que o gênero estaria restrito a essa única ocasião. A sua primeira performance era, de fato, em um ambiente público, com o intuito de celebrar a vitória do cidadão em sua terra natal durante algum 20 No canto XXIII da Ilíada, após realizar o funeral de Pátroclo (v.1-261), Aquiles promove jogos fúnebres em honra ao seu amigo (v.262-897), nos quais participaram todos os chefes gregos. As disputas ocorreram através da corrida de carros (Il. XXIII. 262), pugilato (Il. XXIII. 653), corrida (Il. XXIII. 748-751), luta armada (Il. XXIII. 802-808), lançamento de “globo” (Il. XXIII. 826-835), arco e flecha (Il. XXIII. 852- 858) e lançamento de dardo (Il. XXIII. 884-888). 21 Cf. Introdução às odes de Píndaro por Alfonso Ortega. In: Píndaro. “Odas y fragmentos”. Madrid: Gredos, 1985. 40 festival, mas as odes podiam receber nova performance em simpósios. Os banquetes eram um espaço social e cultural de grande importância na Grécia antiga e ambiente propício para que os aristocratas estabelecessem sua identidade social e, através da repetição dessas odes, fizesse circular a glória dos vencedores das provas. Em um gênero socialmente ligado ao orgulho aristocrata, a presença do passado mítico se faz essencial. Não podemos esquecer que os aristocratas na Grécia usavam os mitos para justificar a sua hegemonia política pela linhagem divina e heroica e nos epinícios esse passado é constantemente resgatado. O mito, nesse sentido, aparece como fulcro essencial na composição dessas odes. Em artigo de 1992, Lasso de La Vega argumenta que os mitos durante muito tempo foram vistos como elementos acessórios, meras digressões nas odes pindáricas, pois os estudiosos não compreendiam as relações essenciais entre esses mitos e o resto da ode. De fato, a ode, seja pindárica, seja baquilídica, possui uma estrutura razoavelmente fixa e comum: I-) a invocação inicial à divindade, a que segue a menção dos dados da vitória e os primeiros elogios ao vencedor; II-) a parte central que se ocupa geralmente por um mito; III-) a parte gnômica e novos elogios. Na visão, por exemplo, de Wilamowitz e daqueles que o seguiram, haveria por trás dessa estrutura uma ideia moral predominante que seria repetitivamente exemplificada através de cenas míticas e de comentários gnômicos, sem, no entanto, que houvesse qualquer ligação estrutural interna entre as partes (DE LA VEGA, 1992, p.19- 21). Ocorre que, como já Lasso de la Vega e outros estudiosos apontaram, em uma análise mais atenta percebe-se que o mito não é uma irrelevante digressão, mas um elemento essencial que ilumina as outras partes. As partes são estrita e rigorosamente conectadas, não só pelo valor gnômico. Em sua análise da IIª Ode Olímpica de Píndaro, Grethlein (2010), por exemplo, procurou demonstrar como essa ode se estrutura ao redor do elogio a Terão, tirano de Agrigento e vencedor na corrida de carros na Olimpíada. Para o que nos interessa neste trabalho, a análise de Grethlein mostra que Píndaro correlaciona a figura de Terão tanto com o seu passado histórico, quanto com seu passado mítico, criando, assim, um elo entre esses passados gloriosos que culmina com a própria presença de Terão. Vejamos como se dá esse vínculo entre os passados e o presente nessa ode. 41 Depois da invocação a Hinos, questionando que deus, herói ou homem deveria celebrar, o eu-lírico aponta para Terão (v.5), pela sua vitória na quadriga durante as Olimpíadas. Em seguida, faz um breve elogio ao homem, primeiro enquanto tirano de Agrigento, “respeitador dos hóspedes,/ coluna de Ácragas” (ópi díkaion ksénōn/ éreism’ Akrágantos22), segundo enquanto filho “nobre de pais / ilustres e sábios no governo da cidade” (euōnúmōn te patérōn / áōton orthópolin), ponte esta necessária para o elogio dos ancestrais de Terão, que se instituíram como tiranos na cidade (v.10-12). Segundo Deisi Malhadas (1976, p.7), Terão é pela genealogia histórica um Emênida, descendente de Emenes, e se tornou tirano de Agrigento por volta de 488 a.C. e, no decorrer do século V, essa cidade converteu-se em uma das mais ricas e populosas do mundo grego. No entanto, pouco se sabe a respeito dos Emênidas, e é somente por meio da poesia de Píndaro que podemos conjecturar um papel importante deles na história da região, mesmo antes da tirania de Terão (MALHADAS, 1976, p.13)23. Na sequência da ode, Píndaro faz menção a Zeus e comenta que nem o tempo faz as ações injustas serem apagadas, mas que, com ajuda de um “fado venturoso” (pótmōi sýn eudaímoni), elas podem ser esquecidas: “Graças a nobres alegrias, a dor se extingue, / seu ressentimento odioso é refreado” (Eslṓn gàr hypò charmátōn pēma thnáskei / palínkoton damasthén). Esse mote gnômico imediatamente faz ressoar o nome de Cadmo e de suas duas filhas, Sêmele e Ino. A menção das duas narrativas exemplifica a verdade contida no comentário: Sêmele fora amada por Zeus e desta união nascera Dioniso. Enganada pela ciumenta Hera, Sêmele fora fulminada pelos raios de Zeus, porém, quando Dioniso desceu ao Hades para procurar a sua mãe, ela foi levada à morada dos deuses no Olimpo. Já Ino, após a morte de sua irmã Sêmele, criara Dioniso. Mas Hera enlouqueceu Ino e seu marido Átamas, que mataram seus próprios filhos. As divindades marinhas se apiedaram dela e a transformaram na Nereida Leucótea. Nos dois mitos, verifica-se um enredo em comum: as jovens sofrem grandes desgraças, em decorrência dos ciúmes de Hera, porém ganharam com isso a grande dádiva da imortalidade. 22 Tradução de Daisi Malhadas. A edição grega utilizada por nós é da Belles Lettres, com o texto estabelecido por Aimé Puech. 23 Malhadas apresenta uma série de árvores genealógicas possíveis a Terão, segundo os escólios dessa ode pindárica. No entanto, as divergências entre os testemunhos não nos permitem chegar a conclusões satisfatórias a respeito dessa genealogia. 42 Nos versos 56-72, Píndaro faz um novo comentário gnômico, dessa vez sobre a morte, a inconstância entre alegria e tristeza presente na vida dos homens e, com isso, menciona Édipo e Polinice, em referência às novas desgraçadas que se abateram na casa de Cadmo. Entretanto, sobreviveu a estes Tersandro, filho de Polinice e de Agia, filha de Adrasto. Reúne-se nesse sangue, então, o sangue de duas importantes famílias da mitologia heroica; mas, mais importante, é dessa raiz que descenderia Terão: Por isso, como desta semente é sua raiz, deve-se ao filho de Ainesidamo com cantos e liras elogiar. Se até esse momento a ode foca o passado, a partir de agora ela versará sobre o futuro que espera aquele que alcançou o kléos. Píndaro introduz uma série gnômica lembrando que o sucesso dissipa as tristezas, como se a glória alcançada por Terão finalmente dissipasse as tristezas deixadas pela memória dos Labdácidas. Além disso, aquele que viveu com justiça e riqueza encontrará, após a morte, uma eterna primavera na Ilha dos Bem-aventurados. Entre os que lá já estão, Píndaro novamente cita Cadmo, mas acrescenta dessa vez Peleu e seu filho Aquiles. Grethlein (2010, p.35) vê na menção a Aquiles, o vínculo com os versos (92-100) em que diz Píndaro: Em grande número, sob O braço, rápidas flechas Na aljava eu tenho, As quais atingem os espíritos lúcidos; para Atingir a todos, entretanto, de interpretes Se necessita. Sábio é o homem Que muito sabe por natureza. Os que, pelo contrário, tiveram de aprender, Violentos Na sua loquacidade, como corvos Em vão lançam sua voz Contra o divino passado de Zeus. Que visse agora o alvo O teu arco. Vamos! Coração! A quem lançamos As flechas que de meu espírito novamente Benigno partem? Sim, para Ácragas eu as dirijo. Píndaro afirma ter várias flechas, mas aponta, como seu alvo, Terão. Grethlein vê nisso a implicação de que nessa imagem há a presença do mito de Aquiles, que fora 43 referido no verso 75. Aquiles foi morto por uma flecha atirada por Páris, com o auxílio de Apolo, porém, com essa morte, ganhou a imortalidade na Ilha dos Bem-aventurados – temos aqui mais uma vez uma exemplificação da referida gnome e uma aproximação com o mito de Sêmele e Ino. Terão, através da flecha do poeta Píndaro, poderá então ascender à transcendência, ganhar a imortalidade, já que sua glória está sendo celebrada. A arte do poeta como a flecha de Apolo conduz o novo herói a um estágio de imortalidade. O que escapa ao estudioso na sua interpretação é a identificação entre Apolo e Píndaro, pois se ambos com sua flecha atingem aos mortais e trazem a imortalidade a eles, Píndaro não é apenas, como o poeta épico, um guardião das Musas, um provedor da memória que repete a tradição já guardada, mas também um criador da história, uma vez que, através da sua lira, ele pode granjear a glória ao cidadão e, com isso, conectar ao passado glorioso um evento recente. Píndaro acrescenta à lista de Labdácidas gloriosos o nome de Terão e este passa, assim, a ter um novo estatuto nesta genealogia. Como Apolo, como as Musas, ele cria o passado, tornando-o lembrado, enquanto o poeta épico “apenas” repetia aquilo que as Musas já haviam guardado como memória. Podemos assim resumir os movimentos temporais presentes nas odes: primeiramente, temos a figura “contemporânea” de Terão, que, de imediato, remete aos seus ancestrais, personagens históricos. A partir destes, o poeta remete aos tempos míticos, ao passado mítico. Além disso, o movimento temporal se completa ao comentar o futuro do indivíduo após a sua morte, ou seja, viajamos dos passados remotos até o futuro: Os antepassados representam o passado, que é retomado pelo mito, o su