Fazendas da época do café estão ameaçadas de desaparecer. Pesquisa mostra que o incentivo ao turismo é a chave para preservar o ainda pouco valorizado patrimônio rural paulista À espera dos turistas 7 3 0 0 0 unespciência NANOTUBOS  A FORÇA DO MÚSCULO ARTIFICIAL PANTANAL  NO RASTRO DO VEADO-CATINGUEIRO MAR MORTO  NOVA LEITURA DOS MANUSCRITOS H ar ol do  P al o  Jr . –  C en tr o  de  M em ór ia  d a  U ni ca m p dezembro de 2012 ° ano 4 ° número 37 ° R$ 9,00 UC37_Capa_03.indd 1 27/11/2012 19:14:53 VARIEDADE DE TÍTULOS OPÇÕES DE PAGAMENTO SEGURANÇA EM SUAS COMPRAS www.livrariaunesp.com.br diag_anuncio.indd 1 21/11/12 16:10 ca rt a ao le ito r Governador  Geraldo Alckmin Secretário de Desenvolvimento  Econômico, Ciência e Tecnologia Paulo Alexandre Barbosa UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Vice-reitor no exercício da reitoria Julio Cezar Durigan Pró-reitor de Administração Ricardo Samih Georges Abi Rached Pró-reitor de Pós-Graduação Marilza Vieira Cunha Rudge Pró-reitora de Graduação Sheila Zambello de Pinho Pró-reitora de Extensão Universitária Maria Amélia Máximo de Araújo Pró-reitora de Pesquisa Maria José Soares Mendes Giannini Secretária-geral Maria Dalva Silva Pagotto Chefe de Gabinete Carlos Antonio Gamero Assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Imprensa Oscar D’Ambrosio   Presidente do Conselho Curador Julio Cezar Durigan Diretor-presidente José Castilho Marques Neto Editor-executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Superintendente administrativo e financeiro William de Souza Agostinho unespciência Diretora de redação  Luciana Christante Editor-assistente  Pablo Nogueira Repórter Luiz Gustavo Cristino Colunistas  Luciano Martins Costa e Oscar D’Ambrosio Arte  Hanko Design (Ricardo Miura) Assistente de arte  Andréa C. G. Cardoso Colaboradores  Alice Giraldi, Reinaldo José Lopes  (texto), Cristiano Burmester, Haroldo Palo Jr., Lucas  Albin, Guilherme Gomes e Luiz Machado (foto) Revisão  Maria Luiza Simões Projeto gráfico  Buono Disegno  Produção  Mara Regina Marcato Apoio de internet  Marcelo Carneiro da Silva Apoio administrativo  Thiago Henrique Lúcio  Endereço Rua Quirino de Andrade, 215, 4o andar,  CEP 01049-010, São Paulo, SP. Tel. (11) 5627-0323.     www.unesp.br/revista; unespciencia@unesp.br PARA ASSINAR www.livrariaunesp.com.br PARA ANUNCIAR anuncios@editora.unesp.br   Diretor-presidente Marcos Antonio Monteiro Diretora vice-presidente e financeira  Maria Felisa Moreno Gallego Diretor industrial Ivail José de Andrade Diretor de gestão de negócios  José Alexandre Pereira de Araújo    Tiragem  25 mil exemplares É proibida a reprodução total ou parcial de textos e  imagens sem prévia autorização formal. Filhos do café É irônico, para não dizer triste, que o Estado de São Paulo menospreze tanto a sua história, que só pode ser contada por meio do mundo rural, dos en- genhos de açúcar e principalmente dos cafezais. Exem- plo voraz de busca pelo progresso, nos últimos 50 anos os paulistas renegaram o campo e se amontoaram em cidades. E se esqueceram de que foi no ambiente rural, principalmente nas fazendas de café, que o Estado ga- nhou a musculatura econômica necessária para ser o que é, a mais desenvolvida unidade da federação, que abriga a maior cidade da América do Sul. Agora, os nossos castelos do café estão ameaçados de desaparecer. A reportagem de capa desta edição expõe a fragilidade das fazendas históricas paulistas, sufocadas pelo agronegócio ou pela especulação imobiliária, fecha- das à espera da partilha entre os herdeiros ou nas mãos de famílias que não querem se desfazer delas e buscam no turismo uma saída para preservar seu patrimônio e mantê-lo aberto ao público – o que não tem sido fácil. Trazemos a história de alguns desses proprietários, bem como as análises de pesquisadores envolvidos num belo projeto de pesquisa cujo objetivo é inventariar o patri- mônio rural paulista, o que ainda resta dele. E, como esta é a última edição do 2012, esperamos também que o leitor se anime e, quem sabe, coloque as fazendas da época do café no seu roteiro de viagem neste fim de ano. Pense nisso. Pode ser muito mais agradável e revelador que qualquer praia apinhada. Boas festas! Sh ut te rs to ck novembro de 2012 .:. unespciência 3 Luciana Christante diretora de redação UC37_Editorial_02.indd 3 23/11/2012 12:20:11 18 Patrimônio ameaçado Faltam incentivos para desenvolver o turismo rural em São Paulo, que ajudaria a preservar as fazendas históricas remanescentes no Estado. Levantamento inédito desse patrimônio revela um rico e pouco explorado acervo sobre o passado paulista, bem como a fragilidade econômica de muitas propriedades Muque de carbono Torcendo nanotubos é possível sintetizar músculos finíssimos capazes de levantar toneladas. A façanha foi realizada no Texas, em um projeto internacional de pesquisa do qual participam quatro brasileiros, entre eles um físico teórico da Unesp em Bauru Enigma do deserto Em Jerusalém, historiador de Assis estuda os Manuscritos do Mar Morto para entender como uma isolada seita judaica da Antiguidade conseguiu conciliar a obediência radical à religião com a convivência pacífica com os invasores romanos 26 30 su m ár io unespciência .:. dezembro de 20124 UC37_Sumario_02.indd 4 23/11/2012 12:11:46 Perfil José Carlos Figueiredo: um pioneiro da previsão do tempo no Brasil Como se faz Lodo de esgoto na agricultura é melhor que adubo químico Estação de trabalho Cavalos, jumentos e zebras são o xodó de veterinário de Botucatu Estudo de campo Observar o veado-catingueiro é como brincar de esconde-esconde Quem diria Explicada a súbita redução de tamanho dos fósseis de Lilliput Arte Noémia Cruz reinventa os bonecos de Estremoz Livros Pesquisadora brasileira derruba mitos da história da matemática Click! Sorria: armadilha fotográfica flagra atividade de bichos noturnos Ponto crítico Pensam-me; logo existo 48 12 6 36 16 44 46 50 42 A edição de outubro da Unesp Ciência tem uma excelente matéria de Reinaldo José Lopes sobre tubarões (“O ocaso de um predador” ). Valeu conhecer a identificação dos elasmobrânquios e a discussão sobre a preservação dos animais, bem como os fatos sobre abuso comercial e costumes alimentares dos chineses. Também muito importante foi o artigo de Luciano Martins Costa sobre o comportamento da “nova classe média” (“O novo conservadorismo” ). Os avanços sociais precisam ser acompanhados de uma melhor educação política e social. Por mais que haja avanço dos ganhos materiais, eles serão efêmeros se não forem acompanhados de um avanço na conscientização das pessoas. José Lemos da Silva Filho, coordenador do curso de eletroeletrônica do Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá, Unesp em Guaratinguetá, por e-mail A Comissão Gestora do Programa de Controle Populacional dos Animais do Campus de Assis foi criada há dois anos pela direção da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp em Assis, a fim de coibir a entrada e o abandono de gatos e cães no câmpus, além de conscientizar a comunidade sobre o valor inerente dos animais por meio de medidas como fixação de placas e cartazes, organização de eventos e distribuição de material educativo. Para realizar seus objetivos, a comissão estabeleceu uma parceria com o Coletivo Amigos dos Animais de Assis (AAA), grupo de voluntários que visa ao controle populacional e bem-estar dos animais, por meio de iniciativas como castração e doação. Juntos, a comissão e o AAA conseguiram, com o apoio da direção da FCL, castrar e vacinar 119 animais, além de doar 81 deles. Por tudo isso, gostaríamos de manifestar nosso repúdio à forma como foram retratados esses animais na reportagem “Berço de Quimeras” (edição de agosto de 2012). Os gatos vêm sendo abandonados nesse local há 25 anos, e são vítimas, inúmeras vezes, de agressões e atropelamentos. Sua presença causa polêmica, é verdade, mas eles são defendidos não somente por pessoas ligadas “aos cursos da área de ciências humanas”, como afirma o texto. Mensalmente, o AAA faz um levantamento do número de animais no câmpus de Assis e, graças ao apoio da direção da FCL, foram instaladas placas no local, a fim de promover um trabalho de conscientização, que tem sido feito diariamente por voluntários que esperam resolver o problema. Comissão Gestora do Programa de Controle Populacional de Animais da Unesp em Assis, por e-mail SIGA-NOS NAS REDES SOCIAIS revistaunespciencia @unespciencia 6 3 0 0 0 Uma década de pesquisa e trabalho trouxe de volta à vida áreas da Amazônia degradadas por mineração. O desafio agora é saber se a jovem mata um dia vai ser tão rica e diversa quanto a nativa Como ressuscitar uma floresta unespciência G ui lh er m e G om es novembro de 2012 ° ano 4 ° número 36 ° R$ 9,00 METRÓPOLE O ENIGMA DA PICHAÇÃO PAULISTA TECNOLOGIA BARCOS QUE LIMPAM REPRESAS INCAS IGREJA PERSEGUIU XAMÃS NOS ANDES UC36_Capa_05.indd 1 26/10/2012 12:23:07 cartas www.unesp.br/revistablog unespciencia@unesp.br dezembro de 2012 .:. unespciência 5 UC37_Sumario_02.indd 5 27/11/2012 17:58:45 unespciência .:. dezembro de 20126 UC37_Perfil_03.indd 6 11/23/12 12:39 PM José Carlos Figueiredo O “homem do tempo” de Bauru ba de encerrar um mandato de dois anos como presidente da Sociedade Brasileira de Meteorologia (Sbmet). Nesse período, concentrou esforços no desenvolvimento de uma política nacional de meteorologia A qui é o meu ambiente”, diz José Carlos Figueiredo, enquanto se senta numa das poltronas gira- tórias do centro de previsão do Instituto de Pesquisas Meteorológicas (Ipmet) da Unesp de Bauru. Nesse lugar, transitando entre as telas dos computadores dispos- tos sobre a longa bancada em “U”, que exibem imagens captadas por um radar 24 horas por dia, há 23 anos Figueiredo prevê o tempo para o Estado de São Paulo. O inquieto meteorologista atua princi- palmente na previsão do tempo de curto prazo, ou nowcasting, área em que o Ipmet foi pioneiro no Brasil. Por essa razão, ele desenvolveu a capacidade de conversar en- quanto consulta as telas, sempre vigilante. De hora em hora, preenche o formulário on-line do boletim meteorológico, assina e o publica no site do Ipmet. A maioria de nós não imagina, mas a profissão que Figueiredo abraçou requer mesmo atenção constante, pois envol- ve alto nível de responsabilidade. “Todo meteorologista tem de ser credenciado pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura e precisa assinar os boletins meteorológicos”, conta Roberto Vicente Calheiros, ex-diretor do Ipmet. “Se hou- ver prejuízo material em decorrência da falha na previsão do tempo a instituição onde está o centro previsor é responsabi- lizada. Se houver mortes, é o profissional que assume a responsabilidade.” Além de observar atentamente as con- dições do tempo, Figueiredo também tem focado o olhar sobre o próprio campo de trabalho do meteorologista, profissional que ainda compõe um pequeno grupo no Brasil. “De acordo com estimativas, somos perto de 800 meteorologistas brasileiros atuando no Brasil e no exterior”, diz ele, que aca- texto Alice Giraldi ● fotos Guilherme Gomes Um dos meteorologistas que criou o centro de previsão do Ipmet e defensor da categoria, ele é um dos incentivadores da graduação em meteorologia na Unesp, que começa no ano que vem José Carlo s F ig u eiredo, sobre a imprevisibilidade na p re vi sã o d o t e m p o Existem fenômenos que não têm explicação. Aqui em Bauru, por exemplo, temos observado uma chuva que surge do nada “ dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Perfil_03.indd 7 11/23/12 12:39 PM No ano passado, em evento em Brasília... e organizou eventos importantes para o setor, como o IV Simpósio Internacional de Climatologia, realizado em outubro de 2011 em João Pessoa, e o III Internatio- nal Symposium on Nowcasting and Very Short Range Forecasting, promovido em parceria com a Organização Mundial de Meteorologia no Rio de Janeiro, em agos- to. Figueiredo recebeu Unesp Ciência no Ipmet no mês passado e, entre um olhar e outro nas imagens do radar, concedeu a seguinte entrevista: Unesp CiênCia Qual é o percentual de acerto da previsão meteorológica hoje? José Carlos FigUeiredo O índice de acerto cresceu nas últimas décadas. No nowcas- ting, que é a previsão para os próximos 30 minutos a uma hora, a porcentagem é hoje de praticamente 100%. Eu diria que para cinco dias acertamos algo em torno de 60%, para três dias, 80%, e para 24 horas, 100%. Na minha opinião, previsão meteorológica com taxa de 50% ou abaixo disso não tem serventia, porque com essa informação o leigo sai de casa. A previsão útil é aquela capaz de dizer se chove ou não chove, se esquenta ou esfria. UC O que mudou na meteorologia para que ela chegasse a esse maior nível de precisão, a tecnologia ou os previsores? FigUeiredo Os previsores hoje em dia são muito mais qualificados. Aqui, no Ipmet, temos dois doutores, um mestre, dois dou- torandos e um candidato ao mestrado. Isso faz diferença na qualificação do meteoro- logista e no índice de acerto da previsão. A meteorologia tem uma coisa muito interes- sante: um dia jamais é igual ao outro, sempre há alguma novidade. Em meteorologia não temos padrões, mas características, que é algo bem diferente. A maioria das frentes frias, por exemplo, é definida como um fenômeno caracterizado por uma grande separação de massas de ar de diferentes comportamentos: uma fria e seca e outra quente e úmida. Isso forma um padrão de alta pressão, que geralmente traz chuva. Mas a verdade é que a gente já viu frentes frias de todo tipo. Há até aquelas em que surge um sistema de baixa pressão e pro- voca uma espécie de ciclone, produzindo uma coisa danada de feia. UC A meteorologia, então, trabalha com situações inexplicáveis? FigUeiredo Existem muitos fenômenos que não têm explicação. Por exemplo: aqui, em Bauru, temos observado uma chuva que surge do nada. Sabemos que a maioria das cidades grandes têm as chamadas ilhas de calor. Bauru já foi tão desmatada que em muitos aspectos adquiriu características de cidade grande. Então há algum tempo passamos a observar esse fenômeno, que é a chuva que aparece isoladamente em alguns pontos da cidade. Ela geralmente vem de algum lugar, então é possível ob- servar a sua aproximação. Mas esse tipo de chuva surge em determinados locais sem nenhum sinal anterior. Há também um outro tipo de chuva que se aproxima da cidade como uma tempestade, avisa- mos a defesa civil e tudo mais, e então ela desaparece e vai se formar de novo já na região de Botucatu, na direção de São Paulo. Por que esses fenômenos acontecem eu não sei, seria preciso pesquisar para entendê-los. Só sabemos que eles têm uma relação com o processo de urbanização. Passei quase 20 anos fazendo palestras em escolas e respondendo à seguinte per- gunta dos alunos: “Por que não há furacão no Brasil?” Sempre expliquei que era por- unespciência .:. dezembro de 20128 Romulo da Silveira Paz Professor do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal de Campina Grande Ele talvez seja um dos meteorolo- gistas mais antigos em operação no Brasil. Sua experiência é um patrimô- nio para a Unesp. José Carlos ajudou a consolidar as atividades de um cen- tro previsor dentro da academia, o que é uma raridade no Brasil. Augusto José Pereira Filho Professor do Departamento de Ciências Atmosféricas da USP Como presidente da Sociedade Bra- sileira de Meteorologia, José Carlos deu uma contribuição importante, que vai impactar o futuro dessa área no Brasil. Trabalhou pela política na- cional de meteorologia, que tramita em Brasília, pela atividade profissio- nal e pela educação nessa área. Roberto Vicente Calheiros Ex-diretor do Ipmet José Carlos é um homem muito co- municativo, ativo, sempre alerta. Atua numa área relativamente nova da previsão meteorológica, que é o nowcasting. Trata-se de um trabalho de altíssima responsabilidade, com- parável ao plantão médico, pois lida com proteção à vida e à propriedade. José de Lima Filho Professor aposentado do Depto. de Meteorolo- gia da Universidade Federal de Alagoas Ele é um previsor meteorológico de mão cheia, o melhor do Brasil. Não há outro profissional no país com a formação que ele tem. Isso se deve à sua vivência da previsão no dia a dia e ao fato de ter iniciado seus estudos muito jovem. O que dizem sobre José Carlos Figueiredo UC37_Perfil_03.indd 8 11/23/12 12:39 PM O jovem meteorologista (quarto, da esq. para a dir.) com colegas de turma em 1981... cumprimentando o então ministro de C&T A rq ui vo p es so al Figueired o , so b re a im portância do acompanhamento d iá ri o do c li m a O bom meteorologista não devia precisar de computador para prever o tempo. Mas isso só é possível depois de muita experiência errou. A cada erro, é preciso revisar os dados para compreender o que passou despercebido durante o monitoramen- to. Mas a meteorologia é uma ciência e, portanto, também é refém da tecnologia. Aristóteles inventou o pluviômetro 320 anos a.C. O seguinte instrumento meteo- rológico a ser inventado foi o barômetro, por Torriceli, já no século 16. A próxi- ma invenção foi o termômetro e, depois, só houve novidade nessa área durante a Segunda Guerra, quando começaram a aparecer os radares, e mais tarde, quan- do surgiram os primeiros computadores. Hoje dependemos muito da tecnologia e dos computadores. Os programas de modelagem numérica que utilizamos são de grande complexidade e, geralmente, as equações com as quais trabalhamos têm mais de uma solução. É aí que entra a experiência do previsor. UC A informação meteorológica no Bra- sil é de boa qualidade? FigUeiredo A qualidade da informação so- bre clima no país é terrível. Um de nossos pesquisadores decidiu fazer um estudo sobre pluviômetros, que são aqueles ins- trumentos que medem chuva. No Esta- do de São Paulo existem mais de 4 mil estações hidrometeorológicas do DAEE (Departamento de Águas e Energia Elé- trica), equipadas com pluviômetros, mas esse pesquisador, logo de cara, já teve de separar mais de 2 mil, porque não eram confiáveis. Quando começou a fazer os estudos de consistência estatística viu que era preciso descartar mais estações. No fim das contas, sobraram apenas 19 estações capazes de produzir informação confiável sobre o nível da chuva no Estado de São Paulo. Aqui no Ipmet há sempre alguém de plantão para fazer a observação meteoro- lógica, 24 horas por dia. Na USP também há uma estação muito boa, que já tem uns cem anos de idade. Há sempre alguém que cuida, seja sábado, domingo ou feriado, o técnico faz a medição e confere na hora, para ver se está tudo certo. Mas isso ainda é raridade no Brasil. que a água do mar por aqui é muito fria e não favorece a formação de furacões, como na região do Caribe, onde a água do mar é quente. Repeti essa explicação até 1994, quando o Catarina veio e causou enorme destruição no sul do Brasil. Até hoje os nossos modelos meteorológicos não conseguem simular esse fenômeno. O Catarina era um danado de um monstro meteorológico adormecido. Após a sua passagem, discutimos ao longo de um ano o assunto em simpósios, até chegar à conclusão de que se tratava de um furacão. UC O que vale mais para o previsor, a ciência ou a experiência? FigUeiredo A experiência é fundamental. Creio que para atuar profissionalmente o meteorologista deve ter pelo menos três anos de experiência no acompanha- mento diário das condições do clima. As palavras-chave nesse trabalho são obser- vação e monitoramento. A pessoa tem de conhecer as características do clima na região onde atua, como, por exemplo, o comportamento das frentes frias, o nível de umidade em cada época do ano, os ventos dominantes. O bom meteorologis- ta não deveria precisar do computador para fazer a previsão, coisa que só pode ocorrer depois de muita experiência. O importante na previsão meteorológica não é não errar, mas entender por que dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Perfil_03.indd 9 11/23/12 12:39 PM “Em sextas-feiras chuvosas, recebemos até 200 ligações. Atendo pessoalmente” bular na Universidade Federal de Campina Grande para o curso de engenharia elétri- ca e não passei. Então minha mãe sugeriu que eu passasse uma temporada no Rio de Janeiro, com uns parentes que moravam lá. Cheguei a prestar o vestibular na Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro, mas naquela ocasião havia 30 mil candidatos para engenharia elétrica e não entrei. Vol- tei para Campina Grande e, conversando com uns colegas do meu grupo de estu- do, surgiu a sugestão de que eu tentasse o curso de meteorologia, que tinha uma concorrência menor no vestibular. Prestei e entrei. O curso tinha dois anos básicos e eu estava com a ideia de seguir carreira na engenharia civil. Mas, antes de me decidir pela área de especialização, resolvi assis- tir a uma aula do curso de meteorologia. Sempre fui louco por matemática, então, quando entrei na sala e vi a lousa cheia de equações diferenciais, me decidi: se meteorologia era aquilo, eu queria saber mais sobre ela. Veja, até aquele momento a meteorologia era apenas um trampolim para a engenharia. Hoje não me vejo em qualquer outra profissão. UC Interessante que haja um curso su- perior de meteorologia tão antigo na Re- gião Nordeste... FigUeiredo Naquele tempo, o tema do clima era mais interessante para o nordestino do que para o povo do Sudeste, por causa da seca. O curso de meteorologia da Universi- dade Federal de Campina Grande era um sonho dos professores Linaldo Cavalcanti e José de Lima, que lutaram muito para que ele fosse criado. Na época, alguns profes- sores da universidade chegaram a deixar o curso de engenharia elétrica para fazer o doutorado no Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], a fim de compor o quadro docente do novo curso, criado em 1974. Ainda hoje existem poucos cursos de meteorologia no Brasil. Em nível de graduação, são apenas nove. Em Campi- na Grande, cada turma costuma formar apenas três a quatro alunos. Os índices de reprovação e desistência são muito gran- des, porque a maioria dos estudantes que ingressa no curso pensa que meteorologia é algo parecido com aquilo que vê na te- UC O senhor nasceu em Campina Grande, Paraíba. Como nordestino, a seca é uma referência forte na sua história pessoal? FigUeiredo Fui um cara privilegiado, mas a minha família tem um histórico com a seca do Nordeste. Meu avô morava no Sertão da Paraíba, numa cidade chamada Patos, que fica bem no meio do Estado. Ele contou que por volta de 1915 houve uma seca ter- rível por lá. Então ele, minha avó, meu pai ainda criança, acompanhados de algumas galinhas, bodes, vacas e um touro come- çaram a se retirar em direção ao litoral. Depois de vários dias viajando, tocando os animais no sentido de onde o sol nascia, viraram uma curva no mato e deram de cara com um bando de cangaceiros. Meu avô contou que os cangaceiros se juntaram em volta dele e começaram a rir, pular e gritar. Minha avó estava grávida e meu avô tentou protegê-la, dizendo: “Leve tudo, mas deixe a vida da gente”. Só que um deles disse que ia querer também aquela “ga- lega”, e apontou para a minha avó. Meu avô então levantou o facão e disse para o cangaceiro que, para levá-la, ele teria de matá-lo primeiro. Naquela hora, disse o meu avô, ele sabia que ia morrer, porque o sujeito estava armado com um punhal. Então, de repente, saiu do meio da mul- tidão o Lampião em pessoa. Ele mandou parar tudo e falou para o cangaceiro que ameaçava meu avô: “Dificilmente a gente vê um macho no Sertão e quando tem um você quer matar?” Depois virou-se para o meu avô e disse: “Vá embora!” Essa é a úni- ca história que eu tenho da seca, porque desde pequeno vivi numa cidade muito boa, que é Campina Grande, nunca passei fome ou necessidade. Havia uma época em que meu pai tinha uma situação econômica muito boa, então, na verdade, estudei em bons colégios públicos e privados. UC Como aconteceu o seu contato com a meteorologia? FigUeiredo A meteorologia entrou na minha vida meio por acaso. Em 1975 fiz um vesti- unespciência .:. dezembro de 201210 UC37_Perfil_03.indd 10 11/23/12 12:39 PM Figueired o , so b re o encontro dos avós paternos com o r ei d o ca n g a ço Lampião saiu da multidão e fez o o cangaceiro soltar meu avô: “É difícil ver macho no Sertão e quando vê um você quer matar?” vê, com uma moça bonita apresentando a previsão do tempo. Mas quando inicia o curso e dá de cara com muita física e matemática, acaba desistindo. UC Como foram os primeiros tempos no Ipmet? FigUeiredo Quando cheguei aqui, o Ipmet ainda integrava a Fundação Educacional de Bauru. Os meteorologistas costuma- vam telefonar para alguns órgãos em São Paulo, entre eles a Cesp (Centrais Elétricas de São Paulo), para coletar os dados de previsão do tempo. Depois combinavam os dados e divulgavam a previsão para o interior de São Paulo. A minha sugestão foi que criássemos o nosso próprio centro meteorológico, pois tínhamos habilitação para isso e, na minha opinião, havia com- petência também. Na época, o professor Roberto Calheiros era o diretor do instituto. Montamos o centro numa sala pequeni- ninha e começamos a trabalhar. Eu havia trabalhado anteriormente com o capitão Rubens Stock, na Cesp, e meu estilo de trabalho era inspirado na filosofia militar, com a ideia de sempre agregar novos re- cursos. Assim fomos expandindo o centro. UC Quando ocorreu o salto tecnológico do instituto? FigUeiredo Em 1974, com a instalação do radar meteorológico. A Unesp tem um radar aqui e outro em Presidente Prudente. Se você for em qualquer centro meteorológico da Europa verá algo igualzinho, em ter- mos de equipamentos, ao que temos aqui hoje. Desenvolvemos técnicas no Ipmet que estão sendo replicadas em outros lu- gares, por exemplo no Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia). É o caso do Titan (Thunderstorm Identification, Tracking, Analysis and Nowcasting), um software livre, introduzido em 2006 no Brasil, que foi adaptado por nossos especialistas em informática para uso na nossa região e na região amazônica. São poucos os centros no Brasil que trabalham com radar me- teorológico, porque a tecnologia requer uma capacitação específica. Não é todo meteorologista que sabe operar, mesmo porque o tema é tratado muito superficial- mente nos cursos de graduação. UC O recém-criado curso de graduação em Meteorologia da Unesp de Bauru apro- funda o tema? FigUeiredo Sim. Há uns 20 anos aspiráva- mos ter um curso de graduação no Ipmet. Mais recentemente o projeto se concreti- zou porque recebemos o apoio de dois ex-reitores, o [Marcos] Macari e o Herman [Voorwald]. Ambos não se conformavam com o fato de o Ipmet não ter um curso de graduação em Meteorologia e abraça- ram nossa causa. O primeiro vestibular vai ser realizado agora, no fim do ano. Então, vamos ter alunos aqui dentro, o que é muito bom. Se encerrássemos hoje as atividades do Ipmet já teríamos mate- rial coletado e temas suficientes para dez anos de pesquisa, que poderiam resultar em pelo menos dez doutorados de ponta. UC O senhor foi o presidente da Socie- dade Brasileira de Meteorologia nos últimos dois anos. Quais foram as suas principais bandeiras? FigUeiredo Minha principal bandeira foi a defesa do profissional da meteorologia. Durante a minha passagem na presidência fizemos três mandados de segurança para suspender concursos para professores de disciplinas de meteorologia em institui- ções públicas que não abriam vagas para meteorologistas, mas para engenheiros e outras especialidades. Assumi a presidên- cia da Sbmet com um propósito que não consegui levar até o final, que era o de fazer vingar uma emenda constitucional visando estabelecer uma comissão em âmbito federal para definir um orçamento específico para nutrir a pesquisa, a ca- pacitação e os equipamentos para a área de meteorologia. A constituição brasileira diz que cabe à União zelar pelo espaço aéreo. Então nenhuma instituição privada pode cuidar da meteorologia, isso é com- petência da União. Nos Estados Unidos, a meteorologia está alocada no Ministério do Comércio e sempre há recursos para investir em pesquisa, porque eles sabem que muitas pessoas morrem e proprieda- des se perdem como consequência de fe- nômenos do clima, como vimos acontecer recentemente com o furacão Sandy. No Brasil, a meteorologia está alocada em dois Ministérios: uma parte está no da Agricultura e outra está no da Ciência, Tecnologia e Inovação. Não há orçamen- to próprio e a discussão dos assuntos da área está espalhada em comissões de diferentes ministérios. UC O senhor é conhecido como “homem do tempo” na região de Bauru. O que acha do título? FigUeiredo Na verdade até me emocio- no quando me chamam dessa maneira. Dificilmente você vai ver alguém dizer “olhe lá o homem da engenharia”, ou “esse é o homem da medicina”. Mas eu sou o “homem do tempo”. Isso é consequência de um longo trabalho, foram anos fazen- do palestras sobre clima, meteorologia e sustentabilidade nas escolas públicas de Bauru. Recebemos, no Ipmet, telefonemas diários de pessoas querendo saber a pre- visão do tempo. Em sextas-feiras chuvo- sas chegamos a receber 200 ligações. Eu atendo aos telefonemas pessoalmente. Há pessoas que têm medo de raio, outras que temem inundação. E tem também o rapaz que vende churros e sorvete no estádio de futebol no fim de semana. Ele liga para mim no sábado anterior ao clássico regional e pergunta se vai fazer frio ou calor, para resolver se vende um produto ou outro. UC O senhor tem guarda-chuva? FigUeiredo Não tenho, porque não preciso. Em Bauru, só me molho quando quero me molhar. E, quando viajo, olho a previsão do tempo antes de sair do hotel. dezembro de 2012 .:. unespciência 11 UC37_Perfil_03.indd 11 11/23/12 12:39 PM LARANJAL EXPERIMENTAL em Botucatu. Plantas que receberam material compostado têm folhas mais escuras unespciência .:. dezembro de 201212 UC37_Como_03.indd 12 28/11/2012 16:41:40 Lodo fértil Ricos em nutrientes, resíduos sólidos provenientes do esgoto podem substituir adubos químicos na agricultura, sem trazer risco à saúde e reduzindo o volume de material depositado em aterros sanitários O manejo de um grande monte de lodo que veio da rede de esgoto jamais poderá ser uma imagem agradável. Mas, escondida sob o mau chei- ro, há uma boa notícia para os produtores rurais, que atualmente são forçados a fazer investimentos expressivos na compra de tipos especiais de adubos nitrogenados que usam em suas culturas. “O lodo de esgoto é um material extremamente rico em nutrientes, principalmente o nitro- gênio e o fósforo”, explica o engenheiro agrônomo Helio Grassi Filho, professor da Faculdade de Ciências Agronômicas (FCA) da Unesp em Botucatu. Pesquisas semelhantes às que ele e seu grupo estão fazendo estão em andamento nos Estados Unidos, na China e na Europa, o que de- monstra que a ideia é menos esdrúxula do que parece à primeira vista. Tudo começa com o reaproveitamento do lodo gerado pelo tratamento de esgo- to. Atualmente o material amontoa-se nos aterros sanitários. Em certos casos, chega a causar danos ambientais, devido à pre- sença de elementos contaminantes em sua texto Luiz Gustavo Cristino ● fotos Lucas Albin composição, como metais pesados. Mas há quem enxergue suas potencialidades. O lodo de esgoto consiste, basicamente, da matéria orgânica sólida presente nos resíduos, também chamados biossólidos, que chegam às estações de tratamento. Separados do restante do material por um processo de decantação, compõem aproximadamente 2% de todo o esgoto urbano. Apesar de o percentual ser pe- queno, o total de lodo produzido mensal- mente chega a toneladas. Desde 1999, Grassi e sua equipe estudam a viabilização do uso desse material como substituto dos adubos químicos nitrogena- dos e do esterco de curral, que também é oneroso para o pequeno produtor. O méto- do desenvolvido não apenas reinsere com sucesso o nitrogênio na cadeia produtiva, como também gera um ganho de até 30% de eficiência do material em relação ao adubo nitrogenado, cuja tonelada custa pouco mais de R$ 1.000. “O esgoto, por enquanto, sai de graça”, diz Grassi. As origens da pesquisa remontam ao ano de 1996, quando a Sabesp estava prestes a construir uma estação de tratamento de esgoto em frente à Unesp, na Fazenda Experimental Lageado. “Negociamos com eles, junto à Prefeitura, e conseguimos fazer com que a estação fosse construí- da dentro do câmpus, numa área pouco utilizada, para que o mau cheiro não che- gasse às salas de aula da universidade”, recorda Grassi. A partir daí, estabeleceu- -se a parceria que permitiu que o material fosse cedido para estudos. Nem todo lodo pode ser usado para esse fim. Metais pesados e patógenos como a salmonela podem contaminá-lo. “A empre- sa que processa o lodo é responsável pelo controle desses micro-organismos e pela concentração de metais”, explica Grassi. Devido à possibilidade de contaminação do solo, em 2006 o Conama (Conselho Nacio- nal do Meio Ambiente) baixou a resolução de número 375 para normatizar estudos do uso agrícola do lodo, bem como seu futuro uso comercial. A norma exige que o material passe por um processo chamado compostagem, que eleva o material a altas temperaturas, eliminando os patógenos. dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Como_03.indd 13 23/11/2012 11:18:36 QUÍMICA DO SOLO Em laboratório, a equipe determina a concentração de metais pesados e nutrientes como o nitrogênio (no sistema à esq.) nas folhas, além da umidade do solo (à dir.) INODORO Hélio Grassi (no alto) recebe lodo já compostado, sem mau cheiro; aplicado no solo, material aumenta disponibilidade de nitrogênio, o que dá mais brilho à folha (à dir.) Apesar de a compostagem ocorrer es- pontaneamente nesse tipo de material, a pesquisa de Grassi desenvolveu uma forma de otimizá-la. “É até possível deixar o lodo naturalmente ao sol, para se autocompos- tar, enquanto empregamos reagentes para atacar os micro-organismos e acabar com a contaminação por patógenos. Mas esse processo acabaria se tornando caro pa- ra um produtor”, justifica o pesquisador. As pesquisas foram desenvolvidas na própria estação da Sabesp, dentro do câm- pus da Unesp. No processo de composta- gem, um volume de 10 m³ (cerca de 10 ton) de lodo úmido foi misturado a outro ma- terial, fonte de carbono. Nesta etapa, o cheiro ainda era bem forte. “Misturamos cascas de eucalipto ao lodo, em camadas intercaladas às do material”, explica o en- genheiro agrônomo Thomaz Figueiredo Lobo, que foi orientado por Grassi durante seu mestrado, doutorado e pós-doutorado, sem- pre em pesquisas sobre lodo de esgoto. “Essas cascas fornecem matéria orgânica, aumentam a temperatura do monte e acele- ram o processo de decomposição”, diz Lobo. Depois, o composto foi disposto em pe- quenos montes, para aquecimento em estufa ou mesmo a céu aberto, chegando a atingir até 80 °C. Durante 60 dias, os montes eram revolvidos diariamente com um trator. O objetivo desta etapa era proporcionar ae- ração, estimulando assim a atividade dos micro-organismos responsáveis pela de- composição da matéria orgânica. No fim, para uma média diária de 15 ton de lodo somadas a 10 ton de cascas, o processo gerava por volta de 7,5 ton de composto. O total produzido por mês chegou a 200 ton. Muitas vezes, mesmo após passar pe- lo processo de decantação, o lodo obti- do mantém alto teor de umidade, o que prejudica a compostagem. “Já tive infor- mações de um lodo que saía com 96% de umidade, ou seja, apenas 4% de sólidos”, afirma Lobo. “Imagine as dificuldades pa- ra transportar um material assim!” Nesses casos, a compostagem é importante tam- bém para deixar o material mais sólido. Quando o composto está pronto, o as- pecto é semelhante a qualquer monte de terra. Os odores desagradáveis são elimi- nados, e nada sugere que sua origem é unespciência .:. dezembro de 201214 UC37_Como_03.indd 14 23/11/2012 11:18:58 um esgoto malcheiroso. A etapa seguinte consiste em testar a eficiência deste ma- terial como substituto do adubo químico. Os testes foram realizados com diversas culturas. “Trabalhei com girassol, laranja, feijão e até soja”, conta Lobo. Os cultivos foram feitos em sistema de rotação, como um meio de otimizar a potencialidade do solo. “É importante sempre nos preocu- parmos com a sustentabilidade dos nossos processos”, diz Grassi. No caso do girassol, os resultados obti- dos foram curiosos. “Conseguimos extrair mais óleo da semente quando usamos o lodo como substituto dos adubos quími- cos nitrogenados e do esterco de curral”, conta Grassi. A produtividade do óleo foi até 20% maior quando o material testado foi utilizado. “Isso porque, ao utilizar o lo- do, apesar do nosso foco no nitrogênio, estamos dando à planta o pacote comple- to de nutrientes para ela se desenvolver.” O professor explica, porém, que o lodo de esgoto não pode ser utilizado em qual- quer tipo de cultivo. “Os metais pesados do material tendem a se acumular no sistema radicular da planta, onde costumam ficar alojados”, conta ele, excluindo da lista de possibilidades legumes como a cenoura, a batata e a beterraba. Além disso, cultivos em que a parte comestível está constan- temente em contato com o solo, como a alface, também não permitem a aplicação do lodo de esgoto. “É importante tomar- mos todo o cuidado possível e, mesmo em casos permitidos, fazer sempre a checa- gem para garantir que nenhuma substân- cia prejudicial chegue ao fruto ou à parte comestível, garantindo assim a qualidade do alimento”, enfatiza. Para medir a qualidade dos alimentos cultivados, são feitos diversos procedi- mentos em laboratório, focando tanto os vegetais quanto o solo. Amostras desse último são analisadas para determinação de parâmetros como composição, flocula- ção (uma medida da capacidade do solo de manter-se em blocos, que está relacio- nada à abundância de nutrientes), e ca- racterização física (que determina o quão argiloso é o local em que os alimentos são plantados). “Por meio destes parâmetros podemos descobrir como estão os níveis de contaminação desse solo após a utili- zação do composto”, explica Grassi. O cuidado é necessário porque, por mais que o lodo seja tratado, ainda po- dem restar traços de metais pesados, em quantidades muito pequenas. Mas seu acúmulo gradativo pode resultar num problema ambiental. “Após 8 anos de es- tudos, concluímos que é possível utilizar o mesmo solo por pelo menos três séculos sem que haja contaminação, desde que o lodo tenha sempre a mesma composição”, explica o pesquisador. A necessidade de monitoramento cons- tante para detectar contaminação é a úni- ca desvantagem do uso do composto em relação ao adubo químico. Mas ela é com- pensada pelo ganho econômico propor- cionado pelo uso do lodo e também pelo ganho ambiental. O solo cultivado com lodo de esgoto torna-se mais rico e capaz de reter mais água. Rastro de nitrogênio Um elemento chave que determina a qualidade dos alimentos é a quantidade de nitrogênio disponível no solo para a planta. Como é difícil medir essa quan- tidade analisando o terreno, as análises são realizadas diretamente nos próprios vegetais. As folhas são secas, pulveriza- das e mergulhadas em uma solução áci- da “digestora”, que consome o carbono, e deixa o nitrogênio para ser medido por meio de análises químicas. “A absorção de nutrientes pela planta é facilmente detectável nas folhas, sendo um indicador mais preciso da eficiência da adubação”, afirma Grassi. Também são feitas análises para detecção de diversos metais pesados, como ferro, manganês, cobre, zinco e outros. A conclusão dos estudos qualitativos do grupo foi de que o composto feito a partir de lodo de esgo- to é um bom substituto para a adubação química, com vantagens econômicas e ambientais. O próximo passo é a deter- minação do total ideal de composto a ser usado em cada tipo de cultura. Outra aplicação do lodo de esgoto es- tudada pela equipe de Grassi, que já é praticada no Brasil, é a recuperação de solos de áreas degradadas. Mais uma vez, o estudo está ligado à parceria com a Sa- besp. A empresa tem a obrigação legal de promover a recuperação ambiental de uma área de tamanho equivalente ao terreno onde foi construída a estação de tratamento. Em seu pós-doutorado, Thomaz Figueiredo Lobo investigou a possibilidade de usar o composto para contribuir para esse processo. O estudo de Lobo também foi feito no câmpus experimental do Lageado. Ele selecionou uma área que foi dividida em duas partes. Metade foi enriquecida com adubo químico, e a outra metade com o composto. Visivelmente, a vegetação des- ta última está maior e mais bem desen- volvida. Ele também irrigou metade do terreno com água potável e a outra com água residuária (a água obtida após a de- cantação do lodo), não tendo identificado grande diferença entre as duas. Segundo Grassi, a maior dificuldade nesse tipo de experimento é acompanhar o desenvolvimento dessa vegetação depois da adubação e do plantio. Conduzir essa atividade dentro do câmpus é uma forma de superar esse problema, pois a ativida- de pode ser monitorada com facilidade. O pesquisador encabeça ainda um pro- jeto de pesquisa que visa ao aproveita- mento desse material como uma forma mais barata do enriquecimento de solos. “É um trabalho feito com a perspectiva de que, no futuro, quando houver lodo de esgoto disponível para fornecimento pelas estações de tratamento nas cidades, teremos um material preparado para ser utilizado pela agricultura com seguran- ça”, afirma Grassi. A necessidade de monitoramento constante é a única desvantagem do uso do composto em comparação ao adubo químico. Mas ela é compensada pelo ganho econômico e ambiental. O solo adubado com lodo de esgoto é mais fértil dezembro de 2012 .:. unespciência 15 UC37_Como_03.indd 15 23/11/2012 11:18:58 Antonio José Aguiar Especialista em anestésicos e com grande experiência no cuidado de animais grandes e pequenos, este professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia de Botucatu é um grande admirador dos equídeos, principalmente dos cavalos. Seu mais novo tema de pesquisa é, entretanto, o jumento nordestino. “São animais de grande importância econômica, principalmente para a atividade rural de subsistência. Mas como seus donos têm poucos recursos, raramente recebem cuidados veterinários e há pouca informação sobre essa espécie”, justifica. NAS PATAS DO ALAZÃO Comprada numa viagem a Nova York, a miniatura tem pernas totalmente articuladas, que podem ser colocadas em diversas posições PRIMA DISTANTE Espécie selvagem, a zebra também faz parte da família dos equídeos. Por isso, o veterinário guarda essa máscara, que veio da África do Sul DISPUTA HISTÓRICA Aguiar tem uma pintura do famoso “Palio” de Siena, tradicional evento equestre italiano. Só lamenta não ter visitado a cidade na época da corrida unespciência .:. dezembro de 201216 UC37_Estacao_01.indd 16 23/11/2012 11:15:59 AMIGO FIEL Presente de um amigo desenhista dos tempos da escola, esta gravura tem lugar cativo entre os quadros que o veterinário faz questão de manter na parede SORRISO ASININO Integrante de uma das ramificações da família dos equídeos, o jumentinho risonho é uma lembrança trazida de uma passagem por Natal Fo to s: L uc as A lb in dezembro de 2012 .:. unespciência 17 UC37_Estacao_01.indd 17 23/11/2012 11:16:11 Luciana Christante Cr is tia no B ur m es te r hora de carro da capital, onde ele recebeu a reportagem de Unesp Ciência numa manhã nublada e quente de novembro. Nas mãos da família Pacheco há 256 anos e tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) desde 1980, a Chácara do Rosário tem hoje 240 hectares, mas já foi três vezes maior. “Fomos engolidos pela cidade”, diz o herdeiro. O mesmo ocorreu a 120 km de distância dali, na Fazenda Quilombo, aberta em 1892 no que hoje é a perife- ria de Limeira, perto de Campinas (SP). E sta propriedade era uma gleba, que foi comprada no dia 30 de maio de 1756 pelo meu sétimo avô, filho do Manuel Pacheco Gato, que por sua vez era um primo do Manuel de Borba Gato. Todos eles eram bandeirantes”, diz o agrônomo João Pacheco Neto, 48 anos. Na sede dessa propriedade – uma casa bandeirista imensa e bem conservada, com paredes de taipa de um braço de espessura –, João Pacheco nasceu, cresceu e vive hoje com a mãe, a esposa e dois enteados, na periferia urbana de Itu, a cerca de uma Recente levantamento sobre as fazendas históricas do Estado de São Paulo mostra a necessidade urgente de se investir no turismo rural como forma de preservar esse patrimônio ironicamente pouco valorizado pelos próprios paulistas Os castelos do café “ unespciência .:. dezembro de 201218 turismo UC37_Turismo_Rural_03.indd 18 28/11/2012 17:04:40 Esta casa em estilo bandeirista é a sede da Chácara do Rosário, localizada na periferia urbana de Itu Os castelos do café dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Turismo_Rural_03.indd 19 28/11/2012 17:04:45 TURISMO PEDAGÓGICO Família Araújo Ribeiro vive na Fazenda Quilombo, em Limeira, fundada em 1892. Cria cavalos, gado e café, e recebe visitas agendadas de grupos, principalmente estudantes REFERÊNCIA Além de ponto turístico de São Carlos, Fazenda do Pinhal é um centro de ... EM SÃO CARLOS Fazenda Santa Maria do Monjolinho é aberta aos turistas e tem restaurante Próxima da zona urbana e vizinha de canaviais e laranjais, a Fazenda Quilombo ocupa 250 hectares e seu primeiro dono foi Ezequiel de Paula Ramos (1842-1905), que veio de Bananal, no lado paulista do Vale do Paraíba, e tornou-se senador pelo Estado de São Paulo. Atualmente a pro- priedade é administrada por seu bisneto Francisco de Araújo Ribeiro, 64 anos, que vive nela com a esposa, Maria José Ferrei- ra de Araújo Ribeiro, 68 (mais conhecida como Zezé), cinco filhos e duas netas. Tanto a Fazenda Quilombo, em Limei- ra, quanto a Chácara do Rosário, em Itu, fizeram parte de um projeto de pesquisa que nos últimos quatro anos fez um le- vantamento do patrimônio rural paulista. Os resultados revelaram, por um lado, um riquíssimo e ainda pouco explorado acervo sobre a história do desenvolvimen- to do Estado de São Paulo, e por outro, uma situação de fragilidade econômica em muitas dessas propriedades, que a atividade turística, ainda pouco explo- rada, não é capaz de contornar. Financiado pela Fapesp, o projeto en- volveu 16 fazendas, localizadas em 12 cidades do interior paulista (veja fotos ao longo desta reportagem). Do lado aca- dêmico, participaram 12 instituições de pesquisa, entre elas a Unicamp, a USP de São Carlos, a UFSCar, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e a Em- brapa de Campinas. Da Unesp participou Rosângela Custo- dio Cortez Thomaz, arqueóloga, especia- lista em turismo rural e coordenadora do curso de turismo no câmpus de Rosana. Problemas urbanos “A proximidade com a cidade não é boa para estas fazendas”, comenta Rosângela, sentada numa arejada e elegante sala de estar do século 19, na sede da Fazenda Quilombo, onde Zezé acaba de nos rela- tar o crime que havia ocorrido na noite anterior: “Roubaram cinco éguas nossas, todas prenhas”, conta Zezé, que é sociólo- ga e doutora em história pela Unicamp. A família Araújo Ribeiro cria fêmeas de cavalo para serem matrizes reprodutoras, e as que foram furtadas naquela noite ha- viam sido inseminadas artificialmente. “Para fazer um embrião desses são cerca de 3 mil reais”, diz a dona, que apesar do prejuízo não se mostra tão espantada. Afi- nal, não é a primeira vez que a Fazenda Quilombo é alvo de ladrões. “Já tentamos criar ovelhas aqui, mas se tornou inviável por causa do roubo.” unespciência .:. dezembro de 201220 turismo UC37_Turismo_Rural_03.indd 20 23/11/2012 12:00:43 MAIS PERTO DA REALEZA Uma das fazendas cafeeiras do Vale do Paraíba, a Nossa Senhora da Conceição, em Lorena, tem seus serviços turísticos integrados ao Circuito da Estrada Real ... documentação e pesquisa sobre família Arruda Botelho, a do conde do Pinhal Guarda o acervo de Ernesto Souza Campos, um dos fundadores da USP Cr is tia no B ur m es te r/ H ar ol do P al o Jr . – C en tr o de M em ór ia d a U ni ca m p Para João Pacheco, da Chácara do Ro- sário, a proximidade da cidade acarreta outro tipo problema. Como agrônomo, ele já tentou produzir feijão, milho, tomate, entre outras culturas, sem sucesso. “É difícil arrumar pessoas que queiram trabalhar na agricultura, elas preferem a indústria”, explica. Mecanizar a lavoura também é complicado. “As máquinas agrícolas não chegam aqui, numa área urbana.” Hoje ele se dedica ao gado de corte (“Que dá pouco trabalho”), aos cavalos (possui 30) e a passeios turísticos, como cavalgadas e visitas de grupos de idosos e de estudantes de escolas particulares, principalmente de Sorocaba e São Paulo. Em sua maioria remanescentes do ciclo do café (1800-1930), “essas fazendas são os nossos castelos”, diz Rosângela Thomaz, referindo-se às seculares construções euro- peias que atraem turistas do mundo inteiro, praticamente o ano inteiro. A comparação com o Velho Mundo, principalmente com a Espanha, é inevitável para a pesquisadora, que fez seu pós-doc em Santiago de Com- postela e orienta uma aluna de doutorado na região da Galícia. A principal diferen- ça, explica, “são os diversos incentivos do governo que os proprietários têm lá e que praticamente inexistem aqui”. Mas o turismo rural foi apenas uma das vertentes de pesquisa do projeto coorde- nado pelo historiador Marcos Tognon, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e beneficiado por um edital de pesquisa em políticas públicas da Fapesp. “Nosso objetivo principal foi inventariar esse patrimônio”, diz ele. Inventariar o patrimônio histórico, pros- segue Tognon, foi algo crucial para países europeus como Espanha, França, Itália, Alemanha, os que mais avançaram nas políticas públicas de preservação e no turismo histórico. “Num primeiro mo- mento, o inventário é mais importante que a própria preservação, por uma razão A principal diferença entre o turismo rural no Brasil e na Europa são os diversos incentivos do governo que os proprietários têm lá e que praticamente inexistem aqui, explica Rosângela Thomaz, coordenadora do curso de turismo do câmpus da Unesp em Rosana dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Turismo_Rural_03.indd 21 27/11/2012 18:14:49 RELÍQUIAS DE FAMÍLIA Várias das fazendas estudadas pertencem aos descendentes de seus fundadores e preservam o mobiliário do século 19, como nesta sala da Santa Maria do Monjolinho óbvia: para preservar é preciso conhecer o conjunto que se tem”, explica. Nos últimos quatro anos, os pesquisado- res se organizaram em grupos e fizeram visitas técnicas a cada uma das 16 fazen- das que concordaram em participar do projeto. Com caneta, papel, gravadores, câmeras fotográficas, filmadoras, muita conversa e cafés servidos em salas e va- randas cinematográficas, foram registran- do tudo o que há, ou ainda resta, nelas. “Priorizamos três níveis de aprofunda- mento”, enumera o historiador. A identifi- cação das construções e sua razão de es- tar naquele conjunto rural foi o primeiro deles. Em um segundo nível, o enfoque recaiu sobre o patrimônio móvel, que in- clui a mobília, os objetos e os documen- tos, fotos, roupas etc. Em terceiro lugar, procurou-se avaliar também o que sobrou do patrimônio imaterial, que ainda está muito presente na gastronomia. A quantidade de informação recolhida foi imensa, atesta Rosaelena Scarpeline, pesquisadora do Centro de Memória da Unicamp, responsável pela guarda do material. “Várias fazendas ainda estão nas mãos das famílias originais, que têm um acervo riquíssimo de móveis, obje- tos e peças de arte”, diz. “Não foi possí- vel registrar tudo, apenas o que mais se destacava, e já era muita coisa.” A ideia agora é, com esses dados, criar um sistema de catalogação on-line que possa receber novas informações. Desen- volver essa base de dados, usando uma linguagem adequada e que “converse” com outros sistemas de informação da área, é uma tarefa a cargo do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computa- ção da USP de São Carlos, para onde se muda a coordenação do projeto, numa nova fase que começa em 2013. Rejeição ao passado Talvez a mais dura conclusão deste levan- tamento do patrimônio rural de São Paulo seja o reconhecimento do pouco-caso que os próprios paulistas fazem de seu passado. Ainda que a maioria deles tenha noção de que a economia cafeeira foi o combustível da “locomotiva do Brasil”, essa importân- cia é largamente subestimada, explica Ana Luiza Martins, historiadora da Unidade “Foi o mundo rural e particularmente a economia do café que deram a musculatura econômica necessária para fazer do Estado de São Paulo uma referência industrial e financeira no país”, diz Ana Luiza Martins, do Condephaat de Proteção do Patrimônio Histórico do Condephaat (Conselho de Defesa do Patri- mônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), que acompanhou algumas discussões e visitas do projeto e espera usar seus resultados em futuras análises de tombamento pelo órgão. Segundo Ana Luiza, está sendo tardio o interesse pelo patrimônio rural paulista. O próprio Condephaat voltou-se para o tema apenas nos últimos anos. “É muito importante recuperar esse passado, por- que a história de São Paulo não pode ser contada sem o ambiente rural”, diz. “Foi o mundo rural e particularmente a economia do café que deram a musculatura econô- mica necessária para fazer do Estado uma referência industrial e financeira no país.” Estradas de ferro, eletricidade, bancos, imprensa, trabalho imigrante: o fenômeno cafeeiro em terras paulistas foi responsá- vel pela implantação desses e de outros serviços, numa velocidade e escala ini- magináveis para a época, explica Marcos Tognon. “Em 1750, São Paulo era uma das mais pobres capitanias do Brasil. Cem anos depois, já liderava a economia nacional. Isso perdura até hoje e não gratuitamente.” Diferentemente dos ciclos do cacau (no Nordeste) e da borracha (no Norte), com- para o historiador, o café exigiu um alto grau de articulação social e econômica. “Por isso, quando veio a crise de 1929 [com a quebra da Bolsa de Nova York], a cultura cafeeira declinou, mas a econo- mia se recuperou muito rápido com outras culturas, como o algodão, que se benefi- ciaram dessa rede já instalada”, explica. unespciência .:. dezembro de 201222 turismo UC37_Turismo_Rural_03.indd 22 23/11/2012 12:01:15 OSTENTAÇÃO Luxuoso quarto da Fazenda Restauração, em Queluz, que como outras situadas no Vale do Paraíba destaca-se pela imponência de seu conjunto arquitetônico H ar ol do P al o Jr . – C en tr o de M em ór ia d a U ni ca m p Das 16 fazendas inventariadas pe- lo projeto, 13 são do século 19 e foram abertas para a cultura do café. É o caso da Fazenda Quilombo, em Limeira, que anteriormente foi um matagal que serviu de refúgio para escravos, reza a lenda. A propriedade chegou a tê-los, mas não conservou as senzalas. “Logo vieram os colonos, inicialmente portugueses dos Açores e depois italianos”, conta Zezé. Das 50 casas da colônia ficaram cinco. Estão em pé também um galpão para o beneficiamento do café (que após a crise dos anos 1930 voltou a ser produzido na década de 1970) e uma tulha onde se guar- dava o algodão (que alcançou o auge nos anos 1940 e 1950) e que foi recentemente reformada para receber turistas e servir refeições. Além de estudantes de escolas públicas e particulares, a Quilombo costuma receber ainda grupos de estrangeiros que vêm para eventos nas cidades do entorno. A renda gerada pelo turismo rural, en- tretanto, ainda é modesta, explica Zezé, que gostaria de ter condições de receber mais escolas e de começar a fazer caval- Outro caso exemplar é o da Fazenda Capoava, em Itu. Apesar de pequena (121 hectares) e de ter passado por vários do- nos (o que levou à perda significativa de sua história e documentação), os atuais proprietários investiram na recuperação das construções, ergueram 25 chalés, montaram um restaurante na sede e con- seguiram incluir a propriedade na “Asso- ciação de Roteiros de Charme”. Do tempo dos bandeirantes A Fazenda Capoava e a Chácara do Ro- sário são as propriedades mais antigas do projeto, e provavelmente também do Estado de São Paulo. Ambas possuem sede em estilo bandeirista e passaram por dois ciclos econômicos: o do café e – antes dele – o do açúcar. A propriedade de João Pacheco, conhe- cida como Engenho Grande no século 18, foi uma das maiores produtoras de açú- car da Capitania de São Paulo. “Tudo era transportado no lombo de burro, imagi- ne”, diz. “Naquele tempo Itu era a ‘boca do sertão’ e os ‘campos de Araraquara’ estavam cheios de índios.” O engenho da Chácara do Rosário está preservado e dentro dele o fazendeiro ex- põe objetos históricos que mostra a seus visitantes. Enquanto nos apresentava as edificações, aproveitava para fazer uma avaliação rápida dos estragos causados pelo temporal que caíra na noite da vés- pera. De fato, em alguns pontos mais al- tos das paredes a taipa estava molhada. “Isso não pode acontecer”, comenta. “Se não arrumar, a tendência é cair.” Com o declínio do café, a casa bandei- rista da família Pacheco ficou fechada por décadas, servindo de tulha para o algodão produzido na fazenda e usado na tecelagem da família, na cidade. Restau- rada nos anos 1950, não deixou mais de ser ocupada e guarda muito da mobília e dos objetos originais. No centro da cons- trução está um alpendre com pé direito altíssimo, no qual cabem folgadamente cinco mesas de jantar (das grandes), e para onde se abrem os demais cômodos. Inclusive uma capela, que só “mudou” para o lado de fora da casa no século 19, explica o proprietário. gadas, como faz seu colega em Itu. “É caro manter uma propriedade desse tipo. Não podemos abrir mão das outras atividades que temos aqui, como os cavalos, o gado e o café.” Somando tudo, as contas fecham, mas demora muito para juntar dinheiro para investir, para adaptar melhor a fa- zenda para o turismo, explica ela. “Até há pouco tempo as pessoas que eu rece- bia usavam o banheiro da minha casa.” Mais por falta de investimentos do que de vontade de seus proprietários, a ativi- dade turística em boa parte das proprie- dades inventariadas está bem aquém do seu potencial. Mas há exceções, como a Fazenda Pinhal, em São Carlos, que é uma referência no ramo. Desde 1990 a propriedade é administrada pela Asso- ciação Casa do Pinhal, que funciona tam- bém como um centro de documentação e pesquisa sobre a famosa família Arruda Botelho. O patriarca, o conde do Pinhal (1827-1901), político e empreendedor de destaque, herdou do avô duas sesmarias, no que na época se identificava como os “campos de Araraquara”. dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Turismo_Rural_03.indd 23 23/11/2012 12:01:29 DE NAVIO Praticamente tudo que se encontra nestas fazendas veio da Europa, como este conjunto feminino do século 19 (ao lado) e esta mesa do século 18 (abaixo) PATRIMÔNIO MÓVEL Pesquisadores se preocuparam em inventariar também objetos mantidos pelos proprietários das fazendas, que contam a história da família e de toda uma época Cr is tia no B ur m es te r/ H ar ol do P al o Jr . Há 12 anos João Pacheco começou a in- vestir no turismo, para reforçar a renda da propriedade. Mensalmente recebe de duas a três escolas (entre 80 e 120 crianças), de dois a três grupos de idosos (entre 40 e 80 pessoas), que ali fazem um lanche e escutam seresta, e cerca de 100 visitantes que fazem as cavalgadas (a mais concorri- da é a da lua cheia). Para ele, ainda é pou- co. Seria possível receber mais gente. Até hoje não foi possível manter a fazenda só com a renda gerada dentro dela, explica. “As pessoas pensam que todo fazendeiro é rico, não é verdade”, diz. “Eu posso ter patrimônio, mas não tenho liquidez.” Patrimônio à deriva Deve haver cerca de 1.200 fazendas his- tóricas no Estado de São Paulo, remanes- centes dos séculos 18 e 19, com alguma atividade agrícola, não necessariamente turística, estima Ana Luiza Martins, do Condephaat. “Só no Vale do Paraíba deve haver umas 100”, diz ela. Nessa região es- tão as propriedades cafeeiras mais antigas, como a Fazenda Restauração, em Queluz, que participou do projeto e é uma das mais imponentes. Como o café chegou a São Paulo vindo do Rio de Janeiro, as fazendas do Vale do Paraíba, mais próximas da influência da família real, foram também as mais luxuosas. Uma das razões para a região abrigar hoje um número maior delas é a pressão imobiliária não tão avassaladora quanto a que atinge suas congêneres do oeste paulista, que na última década vive o novo boom da cana-de-açúcar – desta vez em proporções mais parecidas com as do ciclo do café do que com as dos precários engenhos bandeirantes. Certo é que a maioria das fazendas histó- ricas paulistas já desapareceu há um bom tempo, engolidas pela agricultura, pelo gado ou pela cidade, partilhadas por herdeiros, loteadas em condomínios. Incentivar o tu- rismo nas remanescentes é fundamental para preservá-las, como explica Rosângela. “Com esse projeto nós vimos que muitas propriedades já trabalham com turismo, cada uma com uma vocação específica.” A pesquisa revelou também que muitas vezes os proprietários não têm uma no- unespciência .:. dezembro de 201224 turismo UC37_Turismo_Rural_03.indd 24 23/11/2012 12:01:59 VESTÍGIOS DO CAFÉ Fundada em 1869, a Fazenda Aurora, em Santa Cruz das Palmeiras, vive da agropecuária e tem acervo bem organizado. Atividade turística é esporádica H ar ol do P al o Jr . – C en tr o de M em ór ia d a U ni ca m p ção precisa do seu próprio patrimônio, até pela convivência cotidiana com ele. “Sabendo do potencial da propriedade, conhecendo o que fazem as outras, os proprietários podem se organizar melhor para explorar a vocação da fazenda, seja a hotelaria, as cavalgadas ou o turismo pedagógico”, afirma a pesquisadora, que é autora de três cartilhas sobre turismo e marketing rural, de um conjunto de 30, dirigidas aos proprietários e que devem ser publicadas em 2013. Além do aspecto econômico, o turismo rural pode ser visto também como um instrumento de “educação patrimonial”, defende Tognon. “A pessoa vai lá, aprende a história, começa a valorizar e a entender a relação entre o natural e o construído.” Só não será muito simples convencer os paulistas a trocarem o litoral pela fazenda nos feriados ou nas férias. Mas Rosângela Thomaz é otimista e explica que a diver- sificação de destinos e a valorização do ambiente rural são uma tendência em alta nos últimos anos, não só no Brasil. “Mui- tos destinos tradicionais, como as praias paulistas, já estão saturados.” Vencer a rejeição que as pessoas da ci- dade criaram pelo ambiente rural é um dos grandes desafios para desenvolver o turismo rural em São Paulo. “Prevalece entre nós a ideia do mundo rural como o mundo do atraso, como algo que é preci- so abandonar”, diz Marcos Tognon. “Isso se vê claramente em Monteiro Lobato e Mário de Andrade, por exemplo.” A noção de progresso sempre esteve muito associada à cidade, embutindo uma negação do campo, acrescenta Ana Luiza Martins. “E São Paulo é o exemplo mais voraz, no Brasil, da busca pelo progresso. Isso ocorre a partir dos anos 1950. Até en- tão a população paulista era toda rural.” Também na academia o mundo rural paulista (e o brasileiro de forma geral) vem despertando mais interesse nos últimos anos, segundo a historiadora do Conde- phaat. “Durante boa parte do século 20, o ambiente rural foi deixado de lado por vá- rias linhas de pesquisa, que privilegiaram a história operária, sob a perspectiva da luta de classes”, explica. “Alegava-se, erro- neamente, que não houve luta de classes no mundo rural. Claro que houve, parte dela foi abafada nas senzalas.” É ótimo que os acadêmicos lancem so- bre o passado rural um olhar renovado. E melhor ainda que esse patrimônio seja inventariado. Entretanto, como enfatiza João Pacheco, muitos proprietários das fa- zendas remanescentes, que como ele não gostariam de se desfazer delas, precisam também – e talvez mais do que nunca – de incentivos, em curto e médio prazo, que lhes proporcionem sustentabilidade econômica para manter o patrimônio bem cuidado e aberto ao público. Como presidente da Câmara Setorial de Lazer e Turismo Rural, ligada à Secretaria Estadual de Agricultura, João Pacheco está batalhando por uma lei que regulamente a atividade. “Queremos que o turismo rural seja considerado atividade agrícola, o que para nós significa muito em termos de possibilidades de financiamento.” Para fortalecer a luta, 15 propriedades (praticamente as mesmas que participaram do projeto) formaram em 2007 a Associa- ção de Fazendas Históricas Paulistas. Zezé assumirá a presidência em março do ano que vem. “A gente vem tentando explicar nossa situação e pedir incentivos para o governo, como o Ministério do Turismo e as prefeituras. Mas até agora não consegui- mos nada”, diz. Desde então, três fazendas saíram da associação: duas porque foram vendidas e uma porque os donos morreram e os herdeiros estão fazendo o inventário. “[Essas fazendas] são como pacientes”, compara João Pacheco. Se não trouxerem logo o remédio, elas somem. Os donos morrem, os herdeiros não se entendem, as construções caem ou são derrubadas para virar lavoura, continua o agrônomo de sangue bandeirante, para quem as coi- sas estão andando, mas tinham de correr. “Dá uma certa agonia”, confessa ele. Muitos proprietários das fazendas remanescentes não querem se desfazer delas, mas precisam de incentivos de curto e médio prazo que proporcionem a eles sustentabilidade econômica para manter o patrimônio bem cuidado e aberto ao público dezembro de 2012 .:. unespciência 25 UC37_Turismo_Rural_03.indd 25 23/11/2012 12:02:07 Bíceps de grafite e parafina unespciência .:. dezembro de 201226 nanotecnologia UC37_Musculo_Nanotubo_06.indd 26 23/11/2012 11:11:50 Minúsculos tubos de carbono podem se tornar a base para poderosos músculos artificiais. A novidade vem sendo “cultivada” na Universidade do Texas, em um megaprojeto de pesquisa do qual participam quatro brasileiros grafite e parafina O s cientistas que estudam o mundo do muito pequeno já se acostumaram a esperar sur- presas. Objetos estruturados na escala dos nanômetros (ou bilionésimos de metro) tendem a se comportar de maneira inusi- tada e interessante, inspirando todo tipo de aplicação tecnológica. O trabalho de uma grande equipe internacional de pes- quisadores, da qual participa um físico teórico da Unesp em Bauru, está dando passos importantes para trazer uma des- sas possíveis aplicações para mais perto da realidade: músculos artificiais muito resistentes e poderosos, cuja principal matéria-prima é uma variação delicada- mente arquitetada dos átomos que formam o grafite de um lápis. Esses “bíceps sintéticos” são feitos com nanotubos de carbono, talvez os mais populares componentes dos dispositivos gerados pela nanotecnologia, como é co- nhecida a ciência que manipula a maté- ria na escala dos bilionésimos de metro. A estrutura desses tubos é relativamente fácil de entender. Toma-se um material feito inteiramente de átomos de carbono – de novo, o grafite é um bom exemplo – e corta-se o objeto de maneira a produzir uma folha finíssima, com um átomo de espessura. Vista de cima, tal folha pare- ceria uma colmeia nanométrica, formada pela conexão de inúmeros hexágonos, cujos vértices são os átomos de carbono. Agora, enrole mentalmente essa folha, formando um cilindro: eis o nanotubo. Não foi à toa que essa arquitetura mo- lecular aparentemente delicada ganhou status de pau para toda obra na pesquisa em nanotecnologia. Além de conduzir eletricidade e calor com alta eficiência, os nanotubos de carbono também são um material de força quase miraculosa. Um teste clássico, feito no ano 2000, mostrou que a resistência deles seria equivalente à de uma corda de apenas 1 mm de diâ- metro que aguentasse um peso de mais de seis toneladas sem arrebentar. Nada mais natural, portanto, que o material se tornasse o grande candidato para integrar músculos artificiais. Em essência, como define Mark Schulz, da Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos, merecem essa designação os ma- teriais capazes de mudar de tamanho ou forma sob a ação de algum estímulo, de maneira a realizar algum trabalho – erguer um peso ou girar uma hélice, digamos. O problema, porém, é encontrar uma recei- ta na qual os nanotubos desempenhem essa função de forma rápida, eficiente e reversível, como os músculos biológicos – e com vantagens de performance em relação a eles, claro. Uma das respostas mais promissoras está sendo esboçada em trabalhos lide- rados por Ray Baughman, do Instituto de Nanotecnologia Alan MacDiarmid, na Universidade do Texas. A chave pa- rece estar em dois fatores: torcer vários “fios” de nanotubos, criando uma espécie de corda; e “rechear” esse cordame com materiais como a parafina, o que facili- taria muito a contração e o relaxamento típicos dos músculos naturais. Reinaldo José Lopes dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Musculo_Nanotubo_06.indd 27 23/11/2012 11:11:50 MOVIDOS A CALOR Aquecidos, os nanotubos ganham volume e perdem comprimento, causando a contração do material. Mas o pulo do gato da pesquisa é também uma das limitações para seu uso em próteses, já que o corpo humano é sensível a altas temperaturas D iv ul ga çã o – Sc ie nc e A A A S 20 0 µ m 20 µ m 20 µ m Baughman tem colaboradores na Aus- trália, na China e na Coreia do Sul, entre outros países, mas algumas das contribui- ções mais importantes para os músculos artificiais estão vindo do Brasil. A descrição mais recente dos artefatos, em artigo publicado em novembro na re- vista Science, tem como principais autores os brasileiros Márcio Lima e Mônica Jung de Andrade, ao lado da doutoranda chine- sa Na Li – todos trabalham no laboratório de Baughman em Dallas. Também são coautores do artigo Ale- xandre Fontes da Fonseca, do Departa- mento de Física da Faculdade de Ciências da Unesp em Bauru, e Douglas Galvão e Leonardo Machado, do Departamento de Física Aplicada da Unicamp. “Márcio e Mô- nica fizeram a parte do leão do trabalho de caracterização dos músculos artificiais na nossa última publicação. Alexandre é um teórico brilhante, que nos ajudou a entender os resultados”, afirma Baughman. O físico da Unesp, que também já passou uma temporada no laboratório texano, ex- plica que a sua principal contribuição foi tentar explicar o comportamento dos fios supertorcidos formados pelos nanotubos, bem como a interação dessas estruturas com a parafina, que envolvem fenômenos bastante complexos. Florestas de nanotubos Ele conta que o primeiro passo para che- gar aos músculos artificiais é saber “culti- var” as chamadas florestas de nanotubos, que servem de matéria-prima para os fios usados pela equipe. É um processo complicado, que exige uma “mão” boa do pesquisador para funcionar – quase uma receita de bolo, compara Fonseca. Baughman concorda que o processo tem mesmo algo de receita culinária, “na medida em que envolve experimentos de tentativa e erro, mais do que uma compre- ensão teórica”. Pequenas mudanças nas condições experimentais podem acabar gerando florestas totalmente inúteis para o objetivo de produzir fios trançados. A saída, diz ele, é ajustar o processo delica- damente ao aparato que está sendo usado para produzir os nanotubos. “É uma receita guardada a sete chaves”, brinca Mônica. Em linhas gerais, no entanto, dá para dizer como o processo ocorre. Numa câ- mara a vácuo, os pesquisadores induzem o crescimento de uma película metálica em cima de um substrato, em geral óxido de silício. Depois disso, a câmara é inun- dada com um hidrocarboneto (composto de carbono e hidrogênio), como o aceti- leno, na forma de gás. “Os átomos de carbono vão se chocando com o substrato, o que leva à formação dos nanotubos”, diz Fonseca. Os tubos que se formam lembram bonecas russas: possuem seis paredes concêntricas, ca- da uma com a espessura clássica de um átomo de carbono, e diâmetro externo de 9 nanômetros. Os tubos de paredes múl- tiplas crescem verticalmente a partir do substrato, como se fossem árvores – daí o apelido de “florestas de nanotubos”. Para que a criação dos músculos artifi- ciais dê certo, é preciso que os cientistas unespciência .:. dezembro de 201228 nanotecnologia UC37_Musculo_Nanotubo_06.indd 28 23/11/2012 11:11:52 consigam puxar um maço desses “troncos” do substrato e possam trançá-los para formar fios. No ano passado, Fonseca foi coautor de um estudo na revista científi- ca ACS Nano no qual ele e seus colegas traçaram um modelo que explica em que situações isso é possível. O que ocorre é que, durante o processo de crescimento da floresta, é preciso que uma rede mais tênue de nanotubos se forme entre cada um dos “troncos”, como os cipós entre as árvores de uma floresta. Se esse cipoal se formar com regularidade e densidade adequadas, os fios podem ser trançados com eficácia; do contrário, nada feito. À primeira vista, o raciocínio por trás da ideia de usar os fios torcidos como músculos parece relativamente simples. Afinal, é a contração e o relaxamento das fibras musculares que faz um bíceps hu- mano funcionar. Nas catapultas primitivas, eram os tendões de animais, fortemente enrolados, que davam o impulso às pe- dras quando se desenrolavam. No caso dos nanotubos, porém, é preciso levar em conta uma propriedade contraintuitiva do material, explica Fonseca. “Muitos materiais, quando aquecidos, expandem-se. Já o comportamento térmico dos nanotubos é tal que, quando você os aquece, o volume deles aumenta, mas no comprimento eles se contraem”, diz ele. O pulo do gato, portanto, seria aplicar calor às cordas de nanotubos, que acabariam se contraindo, tal como acontece com os bíceps de alguém que puxa um peso. Em outro estudo publicado na revista Science, no ano passado, a equipe já tinha se dado conta de que essas mudanças no volume e no comprimento dos nanotubos podiam ser a chave para o funcionamento deles como músculos. A chinesa Na Li, coautora do estudo de novembro, foi a primeira a demonstrar que o processo podia ser potencializado por um material “hóspede” dentro dos nanotubos, enquanto os brasileiros Márcio Lima e Mônica An- drade verificaram que a parafina estava talhada para esse serviço. “A parafina é um material com enorme expansão térmica [ou seja, sofre grandes mudanças de volume quando a tempera- tura muda]”, explica Mônica. “E, por ser um hidrocarboneto, possui boa afinidade química com os nanotubos de carbono, o que facilita uma boa aderência.” A pesquisadora cita outras vantagens im- portantes da cera: custa pouco e é versátil do ponto de vista da temperatura com a qual os pesquisadores vão trabalhar, já que é possível variar a quantidade adequada de carbono usando parafinas formadas por cadeias de átomos de carbono mais modestas ou mais avantajadas. Um dos jeitos de incorporar a parafina aos na- notubos é depositar a cera em cima dos que foram arrancados da floresta antes de eles serem trançados para formar os fios. Com essa configuração, portanto, a ideia é que um empurrãozinho dado pelo ca- lor – gerado por uma corrente elétrica ou por uma fonte de luz, por exemplo – faça a parafina começar a derreter, alterando o volume do fio trançado. Isso provocaria um rearranjo da torção dos nanotubos, produzindo um trabalho capaz de puxar alguma coisa, digamos. Mas como isso poderia acontecer sem que a parafina simplesmente “vazasse” para fora da “corda”, que é o que acontece- ria no caso de uma trança macroscópica? A questão é que, na escala nanométrica, as reentrâncias dos nanotubos são tão nu- merosas, gerando forças de interação tão poderosas entre os materiais, que a para- fina simplesmente não consegue escapar. O resultado dessas interações minús- culas é surpreendentemente potente. No estudo da Science, a equipe mostrou que os músculos parafinados são capazes de erguer 100 mil vezes o seu próprio peso, gerando 85 vezes mais força mecânica do que as contrações de um músculo natural da mesma dimensão. As contrações são extremamente rápidas, da ordem de 25 milésimos de segundo. E, mais importan- te ainda, mostraram-se reversíveis por milhares de vezes – bastava aquecer ou resfriar o músculo que a parafina, mais derretida ou mais sólida, fazia o resto. Uso em próteses As aplicações desse tipo de sistema são potencialmente um bocado numerosas. Uma das possibilidades seria usar os mús- culos em tecidos inteligentes, que abri- riam e fechariam sua malha de acordo com a temperatura. Poderiam regular automaticamente a abertura de janelas ou servir como válvulas de segurança, reagindo diante da presença de alguma substância química tóxica. E a versão sem parafina poderia realizar tarefas em condições extremas de temperatura – 2.500 oC, por exemplo. E dá para pensar em possibilidades ainda mais futuristas, como a integração ao organismo humano. “Por enquanto, com a atual tecnologia, esses músculos artificiais já poderiam ser usados em próteses externas. Seria o caso de pessoas com pernas amputadas”, diz Mônica. “Os nanotubos de carbono em si possuem boa compatibilidade [biológica]. Mas, para usá-los em próteses dentro do corpo humano, precisamos buscar ma- teriais que não necessitem de variações de calor para atuar, já que nosso corpo é muito sensível a mudanças desse tipo”, acrescenta a pesquisadora. “Acho que o sucesso desse trabalho tam- bém se deve, em grande parte, à perso- nalidade peculiar do Ray, que consegue coordenar tanta gente em tantos luga- res diferentes”, diz Fonseca. O pesquisa- dor americano faz questão de devolver o elogio. “Tenho a sorte de trabalhar com pesquisadores extremamente talentosos e dedicados em quatro continentes. As contribuições seminais de colaboradores do Brasil são evidência clara do impacto que a ciência brasileira tem tido”, afirma ele, lembrando que sua colaboração com Douglas Galvão “em publicações de alto impacto”, como gosta de ressaltar, já dura mais de duas décadas. Uma das possibilidades seria usar os músculos artificiais em tecidos inteligentes, que abririam e fechariam sua malha de acordo com a temperatura. Poderiam regular automaticamente a abertura de janelas ou servir como válvulas de segurança dezembro de 2012 .:. unespciência 29 UC37_Musculo_Nanotubo_06.indd 29 23/11/2012 11:11:52 Jo se ph C al ev – S hu tt er st o ck com Deus e o invasor Pesquisando os Manuscritos do Mar Morto em Jerusalém, historiador de Assis procura entender como uma isolada seita judaica da Antiguidade conseguiu conciliar a obediência radical à religião e a convivência pacífica com os romanos Pablo Nogueira O deserto é uma região fronteiriça entre o mundo dos homens e o transcendental, tal como descrito nos textos bíblicos. Um lugar misterioso e transformador, que foi capaz de propor- cionar a Moisés uma visão de Deus e a Jesus, uma temporada com o diabo. Para o historiador brasileiro Fernando Mattiolli, o encontro com a grande paisagem deso- lada ocorreu em outubro passado, quan- do ele, partindo de Jerusalém, fez uma travessia de 22 km até Khirbet Qumran (pronuncia-se ‘‘kirbet kumeran”), uma ruína arqueológica ao norte do Mar Morto. Lá, o doutorando da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Assis passou a tarde sentado em meio a paredes semidestruí- das do que parece ter sido um mosteiro religioso erguido no século 2 a.C. Depois Mattiolli caminhou pelo deserto, buscando pequenas cavernas incrustadas no relevo montanhoso da região. “Quem eram as pessoas que viveram ali, até dois mil anos atrás? Como era aquele ambiente? Por que elas haviam escondido seus textos em cavernas? Só o fato de estar lá, lendo sobre os antigos moradores, fez surgir mais questionamentos interessantes”, conta ele, por telefone de Jerusalém. O povo que habitou Khirbet Qumran nessa época foi proprietário de um acervo com cerca de 900 manuscritos religiosos. Por alguma razão ainda ignorada, os do- cumentos foram escondidos em cavernas das redondezas no primeiro século da era cristã. E lá permaneceram, esquecidos, até 1947, quando sem querer um pastor os des- cobriu. Pasmos, estudiosos da arqueologia bíblica assistiram ao resgate dos milhares de fragmentos de textos ao longo dos dois anos seguintes. O conjunto de documentos ficou conhecido como Manuscritos do Mar Morto. Para muitos, a maior descoberta arqueológica do século 20. No deserto, unespciência .:. dezembro de 201230 história UC37_Mar_Morto_03.indd 30 27/11/2012 18:38:45 com Deus e o invasor Durante dois mil anos, os manuscritos ficaram escondidos em 11 cavernas próximas ao sítio de Qumran, na região do Mar Morto dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Mar_Morto_03.indd 31 27/11/2012 18:38:46 PUREZA E LIMPEZA Uma das muitas piscinas do sítio de Qumran, usadas pela comunidade para banhos antes das refeições. Indivíduos punidos podiam perder acesso ao ritual PRESERVAÇÃO Para proteger manuscritos da destruição, religiosos os esconderam em vasos Há quase dez anos Mattiolli vem se dedi- cando a entender as ideias e os costumes da comunidade que viveu em Qumran de meados do século 2 a.C. ao ano 68 da era cristã. Para isso ele está passando uma temporada em Jerusalém, que terminará em fevereiro de 2013. Ele faz suas pes- quisas no Santuário do Livro, uma com- binação de arquivo e museu que abriga os Manuscritos do Mar Morto, considerados um tesouro nacional pelos israelenses. Dada a importância das escrituras para a religião judaica – a ponto de os judeus serem conhecidos como “o povo do livro” –, a escolha do termo “santuário” para de- signar uma biblioteca não soa exagerada. “Muito da cultura judaica está embasado na sua literatura religiosa”, afirma o histo- riador Ivan Rocha, que orienta o trabalho de Mattiolli em Assis. “Mas os textos mais antigos, conhecidos até a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, datavam no máximo do século 8. Serviam como fonte para as traduções de que dispomos atual- mente da bíblia cristã e da bíblia hebraica.” Com a descoberta do tesouro em cavernas próximas de Qumran, estudiosos passaram a contar com cópias pelo menos 800 anos mais antigas de 38 dos 39 livros da bíblia hebraica. “É uma documentação mais ori- ginal do que a original”, diz Ivan Rocha. Muita gente apostou que a descoberta de tamanha massa de novos dados trouxesse informações capazes de sacudir o judaís- mo e o cristianismo. Mas foi o contrário. “As análises mostraram que o conteúdo dos textos medievais estava próximo das fontes mais antigas”, diz Rocha. Só pela possibilidade de permitir “che- car” a fidelidade dos escritos de que dis- pomos na bíblia cristã e judaica de hoje, a descoberta já seria valiosa. Porém, ape- nas 30% dos textos escondidos naquelas cavernas estavam relacionados ao câno- ne bíblico. Os demais forneceram uma janela para inúmeras pesquisas sobre o panorama religioso da Palestina na épo- ca em que se deu o nascimento tanto do cristianismo quanto do modelo atual de religião judaica. Partindo desses manuscritos, Mattiolli pretende reconstruir as práticas e leis que regulavam o dia a dia dos “qumranitas” (pronuncia-se “kumranitas”), o nome gené- rico pelo qual os especialistas se referem aos membros dessa comunidade religiosa. Os qumranitas eram um grupo iniciáti- co, em que os membros estavam organi- zados em diferentes graus hierárquicos, com funções específicas. É conhecida, por exemplo, a figura do “mebaqer”, uma espécie de gerente interno, encarregado, entre outras coisas, de avaliar os candidatos ao ingresso no grupo. A admissão levava Só por permitir “checar” a fidelidade das escrituras sagradas, a descoberta destes manuscritos já teria sido válida. Porém, 70% dos textos não se relacionam ao cânone bíblico e são hoje fontes de estudos sobre o panorama religioso e social da Palestina no século 1 unespciência .:. dezembro de 201232 história UC37_Mar_Morto_03.indd 32 27/11/2012 18:38:56 O POVO DO LIVRO Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, com réplica de um fragmento DEUS ESTÁ NOS DETALHES Estudiosos analisam ampliação de manuscrito, feita com infravermelho. Tradução de textos levou quase seis décadas e gerou acusações de cerceamento à pesquisa Co rb is (D C) – L at in st oc k/ W ik im ed ia C om m on s/ D iv ul ga çã o – Co ns ul ad o G er al d e Is ra el e m S ão P au lo dois anos. Após esse período o indivíduo tornava-se membro pleno, com direito a participar das refeições coletivas e dos banhos rituais com os mais antigos. Não podiam questionar ou desobedecer aos superiores, sob o risco de serem repre- endidos ou até banidos da comunidade. A escolha por viver no deserto não era gratuita; demonstrava a ruptura radical com outros grupos da comunidade judaica. Se- gundo a pesquisadora Clarisse Ferreira da Silva, que também já passou temporadas em Israel para pesquisar os Manuscritos do Mar Morto, existem algumas hipóteses para explicar o isolamento dos qumranitas. “A mais aceita é que o rompimento tenha sido motivado pela discordância em rela- ção à correta interpretação das leis”, diz Clarisse, autora de O Comentário (pesher) de Habacuc (Humanitas, 2010), em que analisa o manuscrito do mesmo nome. Vale lembrar que, na época, a lei judai- ca regulava não apenas as relações entre indivíduos, mas também as que ligavam os homens a Deus, bem como as ativida- des litúrgicas e religiosas. O principal res- ponsável pela correta interpretação da lei era o sumo sacerdote, que coordenava o Templo de Jerusalém, onde o próprio Deus vivia, numa sala conhecida como “Santos dos Santos”,como acreditavam os judeus. O templo de Jerusalém era, portanto, o centro da vida religiosa judaica. Isso num tempo em que a religião perpassava as mais diversas esferas da vida social do povo. Os qumranitas, por sua vez, não aceitavam que outros grupos seguissem interpretações da leis que fossem diferentes das suas, achavam que isso levaria o povo ao pecado e à impureza, explica Clarisse. “Por isso eles romperam com o templo e com a sociedade, e decidiram se separar.” Pelos textos deixados pelos qumranitas, é possível saber que eles advogavam, por exemplo, a proibição de qualquer prática sexual na cidade de Jerusalém. “Eles viam Jerusalém basicamente como a cidade do templo, tão santa que nada que não pertencesse à esfera do sagrado poderia permanecer”, prossegue Clarisse. Os qumranitas defendiam ainda regras mais rígidas para o shabbat, o período de descanso obrigatório no sétimo dia da semana. Enquanto os demais judeus não deixavam de tentar salvar um animal ou uma pessoa que caíssem num poço duran- te o shabbat, por exemplo, os qumranitas diziam que, no caso de uma pessoa, os sal- vadores não poderiam empregar no resgate cordas, escadas ou outro meio além dos próprios braços. Se o acidente envolvesse um animal, o resgate teria que ser adiado. Mas, no que diz respeito à punição dos pecados, os qumranitas parecem ter sido menos radicais que seus contemporâne- os, segundo Mattiolli. Em sua pesquisa de doutorado, ele procura entender por que o grupo preferia expulsar o pecador do gru- po em vez de matá-lo. “Naquele período, certos crimes associados à religião eram punidos com a morte”, diz o pesquisador. “A blasfêmia contra Deus, por exemplo, era uma ofensa tão grave que qualquer um poderia matar o ofensor, pois temia-se que as consequências recaíssem sobre todos.” Acontece que a execução de um indiví- duo por blasfêmia, por mais justificada que parecesse, significava arrumar confusão dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Mar_Morto_03.indd 33 27/11/2012 18:39:03 CIDADE DESTRUÍDA Quadro de Nicolas Poussin retrata repressão à rebelião judaica em 70... DOCUMENTO DE DAMASCO Centenas de textos encontrados nas cavernas foram reduzidos a pequenos fragmentos; deste manuscrito, que ensina a lidar com a impureza, restaram apenas 18 pedaços QUASE UM TEMPLO O Santuário do Livro, construído especialmente para abrigar os Manuscritos do Mar Morto, combina centro de visitação turística e atendimento a pesquisadores R ep ro du çã o/ W ik im ed ia C om m on s/ D iv ul ga çã o – Co ns ul ad o G er al d e Is ra el e m S ão P au lo com os não judeus. Durante grande parte de sua história, o antigo Israel foi ocupado por nações estrangeiras e desde 63 a.C. o poder militar estava nas mãos dos roma- nos. Com uma política imperialista rígida e que renegava os valores tradicionais dos povos submetidos, os romanos infligiram mudanças profundas dentro do sistema judiciário judaico. A pena de morte por motivos religiosos, por exemplo, teve de passar por uma releitura. Nesse período, as tentativas de apedrejamento motivadas por ofensa a Deus, descritas como algo co- mum em seus textos sagrados, começaram a enfrentar a intervenção dos romanos. A fragmentação entre a autoridade religiosa e a autoridade civil e militar forçou cer- tos grupos religiosos judaicos a procurar maneiras de conciliar sua prática religiosa sem criar atritos com o Estado. A forma pela qual os qumranitas lidaram com estas exigências pode ter sido uma inovação. Segundo Mattiolli, havia certas ofensas cuja punição indicada pelos líde- unespciência .:. dezembro de 201234 história UC37_Mar_Morto_03.indd 34 27/11/2012 18:39:18 ... Uma legião romana que seguia para Jerusalém arrasou Qumran res do grupo era a morte. Mas, em vez de chegar às vias de fato, eles preferiam ex- pulsar o infrator da comunidade. “É uma espiritualização da pena. O indivíduo será morto, mas por Deus, e quando Ele quiser. Desta forma, atendia-se à preservação da pena sem provocar interferência do Estado.” As leis judaicas de então previam dois tipos de punição, explica o israelense She- mesh Aharon, professor da Universidade Bar-Ilan e um dos maiores especialistas no grupo de Qumran. A exclusão, uma espécie de exílio temporário, era a pena mais branda e se destinava às pessoas que quebravam as leis sem intenção de se re- belar. Depois de um certo tempo, podiam ser readmitidas no grupo. A expulsão era a punição aplicada pelos qumranitas na grande maioria dos casos. Um trecho do manuscrito conhecido como Regra da Comunidade diz que “aquele que fala com ira contra os sacerdotes inscritos no livro, será punido e separado por um ano”. Já os que incorressem no pequeno filhos das trevas e dos filhos da luz serviu como forma de garantir a integridade da comunidade. “Se estes indivíduos [peca- dores] continuassem dentro do grupo, as lideranças perderiam autoridade. Mas eles não podiam ser mortos, pois isso implicaria na intervenção do Estado. A criação des- ta teologia permitiu justificar a expulsão daquele que era percebido como ‘laranja podre’, a fim de que não contaminasse os demais”,explica o doutorando. É possível que, posteriormente, outros grupos tenham adotado soluções parecidas, segundo Mattiolli. Ele enxerga um paralelo próximo na pena de excomunhão, criada pela Igreja Católica ainda nos primeiros séculos da instituição. Os excomungados eram proibidos de usufruir de itens da vida religiosa como rituais e sacramentos. Na Idade Média, as restrições chegaram a incluir até a proibição de conversar com os demais membros da Igreja – o que, na- quele período, equivalia à quase totalida- de do mundo cristão. “Ainda hoje muitos grupos religiosos seguem este modelo de expulsão e rompimento total com o ex- -membro”, afirma Mattiolli. “Lidando com casos similares entre os Testemunhas de Jeová, por exemplo, pude ver casos em que a própria família, também seguidora, rom- pera relações com o membro expulso. Há casos em que pais repudiam seus filhos.” Esquecimento No ano 66, teve início uma grande rebelião na Judeia contra a ocupação pelo Impé- rio Romano. Acredita-se que uma legião romana, que estava a caminho de Jeru- salém, arrasou o sítio de Qumran em 68. Não se sabe bem como a biblioteca resis- tiu à destruição. A repressão foi tamanha que resultou na expulsão dos judeus de sua terra natal pelos 20 séculos seguintes. Em compensação, acabou preservando o rico acervo dos Manuscritos do Mar Morto, pelos mesmos dois mil anos. É simbólico o fato de que esse material, venerado como tesouro nacional, tenha sido descoberto em 1947, mesmo ano em que a criação do Estado de Israel foi apro- vada nas Nações Unidas. Mais uma vez, o deserto estava lá para ajudar os judeus a (re)construírem sua identidade. Havia, portanto, os “filhos da luz” e os “filhos das trevas”, e pertencer a uma parte ou a outra não era uma questão de livre- -arbítrio. Os que pecavam não por ignorância, mas por desobediência eram considerados incorrigíveis e a exclusão era o seu destino grupo de infrações, que eram considera- das de alta gravidade seriam expulsos. A análise destas leis já revela certas par- ticularidades do grupo. “Punições nestes moldes só são viáveis em comunidades pequenas. Não temos registro de que ocor- ressem entre fariseus ou saduceus [outros grupos religiosos judeus da época, com muito mais seguidores]”, diz Aharon. ”Mas há registro de castigos semelhantes ocor- rendo em outras comunidades judaicas no século 3”, acrescenta o pesquisador. Além da pena, o pecador sofria outras consequências por seu mau comporta- mento. O mesmo manuscrito da Regra da Comunidade descreve uma praga a ser pro- ferida contra indivíduos expulsos. Nela se pede que o transgressor seja “desligado do meio de todos os filhos da luz, por ter, por conta própria, deixado de seguir a Deus”. O texto também faz menção aos que são “da parte de Deus” e “da parte de Belial”, o antigo nome hebraico para o demônio. Havia, portanto, os “filhos da luz” e os “filhos das trevas”, e pertencer a uma parte ou a outra não era uma questão de livre- -arbítrio. Assim, os filhos da luz também estavam sujeitos a pecar, por ignorância, e deveriam ser castigados. Mas, expiados seus pecados, podiam ser readmitidos. Já aqueles que cometiam faltas graves demos- travam que não pecavam por ignorância, mas por desobediência intencional. Eram os “filhos das trevas”, infiltrados na comu- nidade. Considerados incorrigíveis, a ex- clusão era seu destino. “Até onde se sabe, só este grupo [os qumranitas] adotava esta teologia”, diz Shemesh Aharon. Para Mattiolli, a criação da teologia dos dezembro de 2012 .:. unespciência 35 UC37_Mar_Morto_03.indd 35 27/11/2012 18:39:28 A caminhonete avançava lentamen- te pela região da Nhecolândia, uma das grandes áreas em que se divide o Pantanal no Mato Grosso do Sul. Sentado no banco de trás, o biólogo Pedro Peres procura algo através da janela. Ou melhor, alguém. “Aqui é onde mora o Luan Santana”, diz ele, sem tirar os olhos da paisagem. O xará do cantor que o pes- quisador procura é um cervídeo da espé- cie Mazama gouazoubira, popularmente conhecido como veado-catingueiro. Luan Santana, junto com outros seis “colegas” – que atendem pelos nomes de Enéas, Amy Winehouse, Wally, Açucena, Her- culano e Jesuíno –, está sendo objeto de uma pesquisa inédita e ambiciosa sobre a ecologia de sua espécie. A pesquisa envolve também o biólogo Francisco Grotta Neto e o ecólogo Ubira- tan Piovezan, e é fruto de uma parceria entre o Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos (Nupece), que funciona no câmpus da Unesp em Jaboticabal, e a Em- brapa Pantanal. Para acompanhar o traba- lho dos três pesquisadores, a reportagem de Unesp Ciência passou quatro dias na fazenda Nhumirim, uma instalação expe- rimental da Embrapa Pantanal a cerca de 600 km de distância de Campo Grande. Esta foi a décima primeira etapa de campo de Peres e Grotta, ambos recém- -graduados em biologia pela Unesp em Jaboticabal. Desta vez, a estadia da dupla na fazenda Nhumirim duraria pelo me- nos dez dias. Nesse período, eles deve- riam coletar o maior número possível de amostras de fezes dos cervos, recuperar dados de 20 armadilhas fotográficas e buscar contato visual com todos os ani- mais, para se certificarem de que eles estavam bem de saúde. Pantanal Esconde-esconde no É preciso muita sorte para ver um veado- -catingueiro. Por isso pesquisadores de Jaboticabal recorrem a colares eletrônicos, armadilhas fotográficas e até a um cão farejador para estudar os hábitos dessa arisca espécie de cervídeo texto Pablo Nogueira ● fotos Guilherme Gomes unespciência .:. dezembro de 201236 estudo de campo UC37_Estudo_03.indd 36 27/11/2012 18:44:54 ACHOU! Em raríssimo registro fotográfico, Enéas dezembro de 2012 .:. unespciência UC37_Estudo_03.indd 37 27/11/2012 18:45:05 INTIMIDADE COM A ESPÉCIE O convívio de Maurício Barbanti com os cervídeos começou antes de sua atividade acadêmica. Hoje ele ajuda órgãos federais na elaboração de políticas de preservação OLHA O PASSARINHO A fazenda Nhumirim é ponto privilegiado de observação da fauna, que durante a estação seca deixa a mata em busca de água Rastros de veado- -catingueiro podem ser vistos nas redondezas de Jaboticabal. Mas observar o bicho é raríssimo. O ruído de alguém pisando nas folhas é uma das coisas que estressa o animal, deixando-o alerta, pronto para dar um pinote e desaparecer dentro do mato Criado em 2007, o Nupece surgiu a par- tir do trabalho do veterinário Maurício Barbanti. Ele coordena o grupo que reúne, além de estudantes e professores da própria Unesp, pesquisadores das universidades federais de Pernambuco, Juiz de Fora, Pa- raná, da Universidade de La Republica, do Uruguai, e do Smithsonian Institution, nos Estados Unidos. Em Jaboticabal, as instalações abrigam laboratórios e um grande galpão onde vivem cerca de 60 cervídeos, pertencentes às oito espécies que existem no país. Entre os projetos desenvolvidos pelo Nupece destacam-se a reintrodução de espécimes em regiões onde os grupos na- tivos estavam quase extintos e a des