LILIANE SANTANA A EXPRESSÃO DA ESTRUTURA ARGUMENTAL DOS NOMES DERIVADOS Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para a obtenção do título de Mestre em Estudos Lingüísticos (Área de concentração: Análise Lingüística). Orientador: Prof. Dr. Roberto Gomes Camacho SÃO JOSÉ DO RIO PRETO 2005 LILIANE SANTANA A EXPRESSÃO DA ESTRUTURA ARGUMENTAL DOS NOMES DERIVADOS COMISSÃO JULGADORA Titulares Prof. Dr. Roberto Gomes Camacho - Orientador UNESP – Universidade Estadual Paulista Profa. Dra. Cláudia Nívea Roncarati de Souza UFF – Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves UNESP – Universidade Estadual Paulista Suplentes Profa. Dra. Maria Beatriz do Nascimento Decat UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais Profa. Dra. Erotilde Goreti Pezatti UNESP – Universidade Estadual Paulista Ao meu avô Perciliano (in memoriam), um rio que passou em minha vida, humildemente dedico este trabalho. Sua memória permanece viva e se propaga no modo de ver o mundo que pessoas simples como ele plantam na alma de todos ao seu redor. AGRADECIMENTOS Ao Roberto, pela orientação segura, confiança, paciência e atenção. Meu encanto pela linguagem, minha formação acadêmica e minha trajetória como pesquisadora, que está apenas começando, têm as mãos desse ser humano de alto quilate, que, com a habilidade e a sutileza de um escultor, lapida o mármore, modelando-o. Sou especialmente grata pela amizade sincera, pela presença constante, pela alma gigantesca. Tuas escolhas foram minhas escolhas, minhas escolhas também foram tuas: este trabalho é nosso, é fruto do nosso esforço; À Erô e ao Carlos, pelas valiosas contribuições que deram a este trabalho, por ocasião do exame de qualificação. Meus mais sinceros agradecimentos são, sobretudo, pela amizade estimulante, por acreditarem em mim, por torcerem pelo meu sucesso, pela força e pelo incentivo de sempre; Aos meus pais, Valter e Neuza, e à minha irmã, Ana Maria, meu porto seguro, pela paciência e pela compreensão, que me deram a tranqüilidade necessária para concluir esta dissertação. Aos pequenos Amanda e Pedro, minhas paixões, pelos momentos pueris de distração; Ao Merso, meu grande amigo, pelo apoio e motivação, pelas sugestões e revisão. Ao Marcelo e ao Du, amigos de todas as horas, por dividirem comigo os momentos de preocupação e pela conversa fiada. Ao João Paulo, Clayton, Fino, Bel, Linaldo, Valéria e a todos os companheiros da luta, pelo sonho conjunto, por confiarem em mim, por compreenderam minha ausência nos momentos cruciais; Ao Grupo de Pesquisa em Gramática Funcional, pelas discussões de aspectos importantes para este trabalho e para minha formação como pesquisadora; À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior, pelo apoio financeiro, sem o qual seria difícil a conclusão desta dissertação; A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho, meu sincero reconhecimento SANTANA, L. A expressão da estrutura argumental dos nomes derivados. São José do Rio Preto, 2005, 166p. Dissertação (Mestrado em Estudos Lingüísticos – Área de concentração: Análise Lingüística) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Câmpus de São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista. RESUMO As nominalizações, como construção encaixada, constituem um tipo secundário de termo, usado para se referir a entidades de ordem superior; como termos, seus constituintes típicos são operadores, predicados, argumentos e satélites. Ao contrário de satélites, que consistem em informação adicional, argumentos são termos obrigatórios, requeridos pela semântica do predicado. Sendo obrigatórios, os argumentos da nominalização deveriam vir expressos. Entretanto, não é o que ocorre: dificilmente a estrutura argumental da nominalização é preenchida em sua totalidade. Esse comportamento das nominalizações motiva duas diferentes posições teóricas no interior dos quadros da Gramática Funcional: de acordo com Dik (1985, 1997), os termos das nominalizações são constituintes argumentais, enquanto para Mackenzie (1985, 1996), eles devem ser tratados como um tipo de satélite. Com base num baixo preenchimento argumental nas construções derivadas, este trabalho busca explicações para essa natureza controversa da estrutura argumental das nominalizações mediante análise da relação entre propriedades sintático-semânticas decorrentes da estrutura valencial das nominalizações e a natureza informacional de seus constituintes argumentais. O universo de investigação consiste num corpus constituído por inquéritos de Elocução Formal (EF), Diálogo entre Informante e Documentador (DID) e Diálogos entre Dois Informantes (D2) do Projeto NURC-SP (Castilho & Preti, 1986), e o processamento quantitativo dos dados é feito eletronicamente mediante o uso do pacote estatístico VARBRUL. Os resultados obtidos confirmam o baixo preenchimento argumental da nominalização; entretanto, mostram que o que determina a expressão argumental não é nenhum fator necessariamente formal, mas o estatuto informacional dos referentes envolvidos. Com efeito, caso sirva para introduzir um novo referente no discurso, o argumento respectivo deverá vir expresso; caso a função do nome derivado seja retomar uma informação, os argumentos da predicação input poderão ser expressos ou não, dependendo das condições textuais. Trata-se afinal de formas alternativas de expressão formal motivada por necessidades comunicativas de natureza pragmática. Com relação à expressão argumental, os resultados mostram que os argumentos recebem preferentemente o formato de um sintagma-de, e, havendo dois argumentos para serem expressos, é A2 na forma de sintagma-de que predomina. Uma vez mais, a confirmação desse fato tem um forte correlato pragmático, já que o argumento interno é normalmente dotado de informação nova e o argumento externo, de informação dada. PALAVRAS-CHAVES: Nominalização, Estrutura argumental, Predicação encaixada, Argumentos, Satélites. SANTANA, L. The expression of argument structure of derived nouns. 2005, 166p. Dissertation (Master’s degree in Linguistic Studies – Concentration Area: Linguistic Analysis) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Câmpus de São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista. ABSTRACT As embedded constructions, nominalizations consist of a secondary type of term, which is used to refer to entities of a higher order, and its typical constituents are operators, predicates, arguments and satellites. Unlike satellites, which consist of additional information, arguments are obligatory terms required by the semantic nature of the predicate. As obligatory terms, arguments of nominalizations should be overtly expressed, but not always this condition is applied, since argument structure of derived nouns is hardly filled up. This feature triggers two different theoretical positions in the Functional Grammar framework. According to Dik (1985, 1997) the terms of the nominalizations are true arguments, whereas according to Mackenzie (1985, 1996) they tend to be treated as a kind of satellite. On the basis of a real low frequency of argument structure filling, this work aims at explaining this controversial nature of argument structure of nominalizations by analyzing the relationship between the syntactic-semantic properties of valential structure of nominalizations and the informational status of its argumental constituents. The data consist of a sample extracted from the spoken material recorded from graduate informants by Urban Standard Norm Project (Projeto NURC)/Brasil) constituted by Formal Elocutions (EF), Dialogue between Informant and Documenter (DID) and Dialogue between Two Informants (D2) (Castilho & Preti, 1986) and the quantitative processing of data is made electronically by means of VARBRUL Program. The results confirm the low argument filling of nominalization; however they show that the argument expression it is not necessarily determined by a formal factor, but by the informational status of referents involved. In fact, if the function of the derived noun is to introduce a new referent in the discourse, the respective argument should be expressed; if its function is to resume an information, the arguments of the input predication may be expressed or not, depending on the textual conditions. They consist of alternative formal expressions which are motivated by communicative needs of pragmatic nature. As to the argument expression, the results additionally show that the arguments preferentially take the form of an of-phrase, and if there are two arguments to be expressed, it is the second one in the of-phrase form which stays on. Once again the confirmation of this fact has a strong pragmatic correlation, since the internal argument usually presents a new information, and the external argument, a given information. KEY WORDS: Nominalization, Argument structure, Embedded predication, Argument, Satellite. LISTA DE FIGURAS, QUADROS E GRÁFICOS CAPÍTULO I Quadro 1: Estrutura hierárquica da oração (Dik, 1989) ................................................ 25 CAPÍTULO II Figura 1: Princípio de Ajustes formais (Dik, 1997, p.158) ......................................... 44 CAPÍTULO V Gráfico 1: Distribuição do nome derivado quanto à derivação .................................. 98 Gráfico 2: Distribuição do nome derivado quanto ao estatuto informacional ............ 105 Gráfico 3: Comparação entre as valências potencial e real (A1) ................................. 107 Gráfico 4: Comparação entre as valências potencial e real (A2) ................................. 108 Gráfico 5: Preenchimento da estrutura argumental ..................................................... 108 Gráfico 6: Estatuto informacional de A1 expresso ...................................................... 114 Gráfico 7: Estatuto informacional de A2 expresso ...................................................... 114 Gráfico 8: Expressão argumental quanto ao tipo de inquérito .................................... 121 Gráfico 9: Recuperação de argumento não expresso quanto ao tipo de inquérito ...... 121 Gráfico 10: Expressão formal de A1 e A2 ..................................................................... 127 Gráfico 11: Função semântica de A1 expresso .............................................................. 129 Gráfico 12: Função semântica de A2 expresso .............................................................. 129 Gráfico 13: Preenchimento argumental de nomes deverbal e deadjetival .................... 131 LISTA DE TABELAS CAPÍTULO V Tabela 1: Distribuição da nominalização quanto ao tipo semântico .............................. 100 Tabela 2: Distribuição da nominalização quanto à valência potencial ........................... 101 Tabela 3: Distribuição da nominalização quanto à função sintática na predicação matriz . 102 Tabela 4: Mecanismos de preenchimento da valência não diretamente expressa de A1 111 Tabela 5: Distribuição da nominalização quanto à forma de expressão de A1 ................ 124 Tabela 6: Distribuição da nominalização quanto à forma de expressão de A2 ................ 125 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11 1. Justificativa e relevância do tema ...................................................................... 11 2. Objetivos ............................................................................................................ 16 3. Organização geral do trabalho ........................................................................... 19 CAPÍTULO I – O MODELO DA GRAMÁTICA FUNCIONAL ............................ 21 1.1. Introdução .......................................................................................................... 21 1.2. A versão standard da Gramática Funcional ....................................................... 21 1.3. A Gramática Funcional do Discurso .................................................................. 26 CAPÍTULO II – O TRATAMENTO DAS NOMINALIZAÇÕES NO QUADRO DA GRAMÁTICA FUNCIONAL ............................................................................... 29 2.1. Introdução .......................................................................................................... 29 2.2. A nominalização na GF standard ...................................................................... 30 2.3. A nominalização na GFD: uma crítica à noção de esquema de predicado na GF standard ....................................................................................................... 35 2.3.1. Uma proposta alternativa: esquemas de predicação na GFD ............................. 39 2.4. O modelo de ajustes na GF standard ................................................................. 42 2.4.1. A expressão de argumentos como sintagmas de possuidor ............................... 49 2.5. Relações básicas e diferenças entre construções verbais e nominais ................. 54 2.6. Por que nominalizar? .......................................................................................... 57 CAPÍTULO III – DIVERGÊNCIAS QUANTO AO TRATAMENTO DAS NO- MINALIZAÇÕES NO QUADRO DA GF STANDARD ............................................ 62 3.1. Introdução .......................................................................................................... 62 3.2. Preservação e redução de valência: diferentes perspectivas para as nominalizações ................................................................................................... 63 3.3. Argumentos ou satélites? ................................................................................... 73 CAPÍTULO IV – UNIVERSO DE PESQUISA E PROCEDIMENTOS METO- DOLÓGICOS ................................................................................................................ 76 4.1. Delimitação do corpus ....................................................................................... 76 4.2. Procedimentos metodológicos e técnicas de investigação ................................. 77 4.3. Hipóteses de trabalho ......................................................................................... 95 CAPÍTULO V – A ESTRUTURA ARGUMENTAL DAS NOMINALIZAÇÕES . 97 5.1. Introdução .......................................................................................................... 97 5.2. Características gerais das nominalizações ......................................................... 98 5.3. O preenchimento da estrutura argumental das nominalizações no PB .............. 107 5.4. A expressão argumental: formas de expressão e argumentos expressos ........... 124 5.5. A estrutura argumental dos nomes deverbais e deadjetivais .............................. 131 5.6. Sumário .............................................................................................................. 135 CAPÍTULO VI – A ESTRUTURA ARGUMENTAL DAS NOMINALIZA- ÇÕES: IMPLICAÇÕES TEÓRICAS ......................................................................... 139 6.1. Introdução .......................................................................................................... 139 6.2. Por uma estrutura de argumentos ....................................................................... 140 6.3. Uma proposta alternativa: esquemas de predicação na GFD ............................. 147 6.4. Regras para a expressão argumental das nominalizações no PB ....................... 154 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 160 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 164 INTRODUÇÃO 1. Justificativa e relevância do tema As posições de argumentos e de satélites, na estrutura subjacente da oração, podem ser preenchidas com termos, usados pelo falante para se referir a entidades de um mundo real ou imaginário. Esses termos permitem, ao destinatário, estabelecer uma representação mental de alguma entidade, ou identificar/retomar uma entidade já estabelecida em seu mundo mental (DIK, 1997). O tipo primário de termo, para a Gramática Funcional, é um termo nominal que pode ser usado para se referir a alguma entidade de primeira ordem, e o modelo de expressão típico para esses termos contém constituintes como determinante, quantificador, possuidor, adjetivo, nome, como em (1): (1) o cachorro pequeno (d1xi: cachorro [N] (xi)Ø: pequeno [A] (xi)Ø Termos também podem ser usados para se referir a entidades de ordem mais alta; são formados por nomes simples, ou por construções encaixadas (uma predicação, uma proposição ou um ato de fala) – que são termos complexos que funcionam como restritores.1 Os exemplos contidos em (2a-c) ilustram termos complexos que fazem referência a entidades de ordem superior: 1 A Gramática Funcional (DIK, 1989) descreve a estrutura de termos mediante o seguinte esquema: (Ωx1:Φ1(x1) Φ2(x1):...:Φn(x1)), em que (x1) é uma variável para termos, Ω é uma variável para operadores e cada Φ é uma predicação aberta em (x1), que restringe o ‘espaço de busca’ para o ouvinte, denominando, assim, o conjunto de referentes potenciais para termos. 12 (2)a. Pedro testemunhou a derrota de Amanda b. Pedro acreditava na derrota de Amanda c. Pedro questionou o porquê da derrota de Amanda Nos exemplos acima, a semântica do predicado é que determina o nível a que cada termo se refere. Desse modo, em (2a), a predicação [Pedro testemunhou] – interpretada como designando um estado de coisas – faz referência a um evento, uma entidade de segunda ordem, já.que atua no nível da predicação.2 Já em (2b), o status semântico é diferente; as coisas em que pessoas acreditam não são estados de coisas, mas proposições, conteúdos proposicionais, ou fatos possíveis. Nesse exemplo, portanto, faz-se referência a um conteúdo proposicional, uma entidade de terceira ordem. Por fim, em (2c), faz-se referência a uma pergunta, tratando-se, assim, de um ato de fala encaixado, uma entidade de quarta ordem (DIK, 1989, 1997).3 Certamente, o objetivo aqui não é o de estudar cada tipo de entidade que os exemplos acima designam, tampouco o espaço desta seção é o local adequado para iniciar uma discussão desse tipo; afirmar, contudo, que as entidades a que os termos se referem podem ser de ordem superior permite considerar que as nominalizações – estas, sim, o foco deste trabalho –, como formas de construção encaixada, constituem um tipo secundário de termo, usado para se referir a uma entidade de ordem superior, já que o tipo primário, prototípico, refere-se a entidades de primeira ordem. Como construções encaixadas, os ingredientes típicos das nominalizações são 2 O estado de coisas é o resultado da relação que se estabelece entre o predicado e seus termos, e indica que alguma coisa acontece no mundo real ou pode ser criado no mundo mental do falante e do ouvinte (DIK, 1989). 3 Lyons (1977) apresenta uma tipologia de entidades (três formas) que aprimora a tradicional distinção entre nomes concretos e abstratos. Distingue, assim, “entidades de primeira ordem” (como designada por termos de nível 1 da GF), que são objetos físicos, isto é, pessoas, animais ou coisas, localizados no tempo e no espaço, e são avaliadas em termos de sua existência; “entidades de segunda ordem” (estados de coisas, como designados pelas predicações da GF), que, por sua vez, são eventos, processos, estados de coisas, localizados no tempo, e são avaliadas em termos de sua realidade; e entidades de “terceira ordem” (fatos possíveis, como designados pelas proposições da GF), que são entidades avaliadas em termos de sua verdade. A GF acrescenta a essa tipologia “entidades de quarta ordem” (atos de fala, como indicados pela estrutura completa da oração). 13 π-operadores, predicados, argumentos e satélites (DIK, 1997). Em (2a), por exemplo, é possível notar, inicialmente, que a nominalização derrota atua como termo da predicação [Pedro testemunhou]. Assim, tem-se uma predicação – [a derrota de Amanda] – funcionando como termo (argumento objeto) de uma predicação hierarquicamente superior. O que interessa, entretanto, é que, na derivação nominal, os constituintes do predicado input (operadores, predicado, argumentos e satélites) devem ajustar-se ao termo nominal prototípico, adotando novos tipos de constituintes (operadores de termo – determinante e quantificador –, sintagma de possuidor, adjetivo, nome).4 Embora o campo de investigação das nominalizações seja amplo, é com base nas características de seus termos que este trabalho será desenvolvido. Note-se (3): (3) (xi : [caminhar (João)Agente] (xi)) A caminhada de João Observados os constituintes das nominalizações, uma questão pertinente que se coloca naturalmente se refere ao preenchimento da estrutura argumental desse tipo de construção encaixada e em termos de quais argumentos são expressos e qual é sua forma de manifestação. Em (3), o predicado nominal, em relação ao predicado input, preserva a valência, expressando o argumento possível por meio de um sintagma-de.5 4 No texto original, Dik (1985, 1997) usa a palavra possessor (‘possuidor’) ao definir o modelo de expressão para termos nominais, expressão um tanto inapropriada por referir-se a um tipo de função semântica, não a uma entidade formal, como de fato ela é. Por essa razão, traduzimos o termo possessor pela expressão sintagma de possuidor. Vale lembrar, contudo, que, ao usar o termo ‘possuidor’, Dik (1985, 1997) não está fazendo referência a uma relação real de posse, tal como ocorre com termos de primeira ordem, como em livro de Maria, mas a uma extensão metafórica deles, de acordo com Mackenzie (1996), já que o ajuste formal operado na nominalização faz com que os argumentos recebam expressão similar à de uma expressão de posse de um nome prototípico. 5 Na Gramática Funcional (1989), o esquema de predicado especifica informações quanto à (i) valência quantitativa, que se refere ao número de argumentos que um toma para formar a predicação nuclear, distinguindo-se predicados de um lugar (ou monovalentes), de dois lugares (ou bivalentes), de três lugares (ou trivalentes), e à (ii) valência qualitativa, que indica os tipos de argumentos que o predicado admite, bem como as restrições de seleção impostas sobre eles (cf. capítulo II, seção 2.2., p. 32). 14 Ao contrário de satélites, que, por consistirem em informação adicional, são elementos facultativos, argumentos são termos obrigatórios, isto é, são requeridos pela semântica do predicado e, por isso, não podem ser retirados da predicação sem que a informação essencial seja prejudicada. Sendo argumentos obrigatórios, os constituintes do predicado nominal derivado deveriam vir expressos. Entretanto, não é o que ocorre: dificilmente a estrutura argumental da nominalização é preenchida em sua totalidade, como (4) exemplifica6: (4) Embora ainda plantem laranja, eles já não dependem da colheita para sobreviver. Observe-se que, no exemplo (4), o nome colheita, cuja estrutura de predicado input poderia ser descrita como (xi: [colher (x1)Agente (x1)Meta] (xi)), não apresenta os dois possíveis argumentos formalmente expressos. É justamente essa característica da nominalização que subsidia a hipótese defendida por Mackenzie (1985, 1996, 2002) de que a predicação nominalizada prototípica é, na realidade, avalente. Por outro lado, Dik (1985, 1997) caracteriza os termos que acompanham as nominalizações como constituintes argumentais, fazendo um estudo detalhado da forma de expressão desses constituintes. Tem-se, assim, um impasse: qual tratamento dar aos termos das nominalizações – argumentos ou satélites? A posição de Mackenzie parece ser amplamente justificada se se considera que dificilmente a nominalização expressa formalmente os seus constituintes. Ora, se podem ou não vir expressos, não se trata, então, de termos obrigatórios e, por conseguinte, não há razão para tratá-los como argumentos. Entretanto, tomar como base pura e simplesmente o fato de o termo não vir formalmente expresso e, partindo desse princípio, afirmar que se trata de satélites parece não garantir um tratamento justo a esses termos. Um bom exemplo a atestar 6 Em uma análise de nominalizações bivalenciais do holandês, Dik (1985) observa que poucos casos apresentam de fato argumentos formalmente expressos, o que, para o autor, significa dizer que as nominalizações tendem a não expressar argumentos ou expressar somente A2. 15 essa afirmação é (4) acima, em que o nome colheita tem sua estrutura argumental garantida no cotexto, sendo, portanto, redundante enunciá-la. Observem-se, paralelamente, (5a-b): (5)a. (xi : [comprar (x1)Agente (imóvel)Meta] (xi)) Comprar um imóvel parece impossível nos dias atuais. b. (xi : [correr (x1)Agente ] (xi)) Correr tornou-se a atividade física mais comum entre os que procuram uma vida saudável. em (5a), somente o segundo argumento é expresso; já em (5b), o único argumento possível não recebe expressão formal. Tendo em vista os exemplos contidos em (5a-b), que não apresentam seus argumentos formalmente expressos, isso seria condição suficiente para se afirmar que, dada a possibilidade de os termos desse predicado verbal não virem formalmente expresso, não se trata de argumentos mas de satélites? Ou, dito de outra forma, o fato de os termos de uma predicação, seja ela verbal ou nominal, não virem expressos é suficiente para caracterizá-los como satélites? Obviamente, para se chegar a uma conclusão, é necessária uma investigação empírica e teórica mais profunda e alargada. Observada essa característica da construção encaixada nominalizada – baixo preenchimento formal da estrutura argumental –, cabe afirmar que este trabalho busca explicações para a natureza controversa da estrutura argumental das nominalizações mediante análise da relação entre propriedades sintático-semânticas decorrentes da estrutura valencial das nominalizações e a natureza informacional de seus constituintes argumentais. Desse modo, as questões levantadas e outras questões que surgirão durante a investigação mostram ser extremamente relevantes e por si só justificável conhecer as propriedades sintáticas, semânticas e pragmáticas dos termos dos nomes derivados. Esse 16 conhecimento certamente permitirá avaliar a natureza da atuação dos nomes derivados na estrutura da sentença matriz e, por extensão, na seqüência textual que os contém. 2. Objetivos Este trabalho de dissertação visa a investigar a expressão argumental de um tipo de construção encaixada do português brasileiro (PB), as nominalizações. Dada a divergência no quadro teórico da Gramática Funcional quanto ao tratamento dispensado aos termos da nominalização, resumidamente apresentada na seção anterior, o estudo do comportamento das nominalizações tem por objetivo principal verificar se, no PB, os complementos são satélites ou argumentos. Pretende-se investigar, inicialmente, o preenchimento da estrutura argumental das construções derivadas e, assim, pelo menos no PB, adequar o tratamento que é dado a esses termos. Além de proceder à investigação da valência real dos nomes deverbais e deadjetivais, pretende-se investigar, num segundo momento, quais termos são preferencialmente selecionados pelo falante para serem expressos nesse tipo de construção encaixada e, ainda, qual a sua forma de expressão. Considerem-se os exemplos contidos em (6a-g): (6) a. (xi : [construir (João)Agente (casa)Meta] (xi)) b. A construção foi demorada c. A construção da casa foi demorada d. A sua construção da casa foi demorada e. A construção da casa por João foi demorada f. A construção de João da casa foi demorada g. A construção da casa de João foi demorada 17 Em (6), tem-se um exemplo de uma predicação nominalizada que, dado o predicado verbal input (6a), pode não manter a mesma estrutura, ou seja, não preenche todas as casas valenciais, como em (6b). Essa mesma predicação pode apresentar um dos argumentos, como em (6c), em que o segundo argumento potencial é expresso, ou expressar os dois argumentos potenciais, seja por meio de um sintagma-de, um pronome anafórico ou pela preposição por, como em (6d-g). É necessário salientar que (6f) e (6g) são ambíguas entre uma interpretação realmente possessiva ou agentiva do sintagma-de. Resta saber se essa ambigüidade restringe o uso de nominalizações desse tipo. No caso dos nomes deverbais, o estudo da expressão argumental permitirá identificar os princípios que motivam a escolha de um ou de outro termo e verificar se às predicações nominalizadas do PB aplicam-se as características do sistema postuladas por Dik (1985), a serem apresentadas no capítulo II. Considerando que tanto o primeiro argumento potencial quanto o segundo podem ocupar a posição em um sintagma-de, pretende-se verificar, assim, num terceiro momento, de que maneira se resolve a competição entre esses argumentos para ocupar a posição de possuidor prevista por Dik (1985). Ainda com relação à forma de expressão dos argumentos nas construções derivadas, este trabalho visa a verificar se, no PB, é agramatical uma construção derivada de (6a), como a construção de João da casa, em (6f); ou mesmo a construção da casa de João, que é uma construção ainda mais complicada, em virtude de ambigüidade sintática com uma estrutura similar a (6g), em que o termo na função de Meta já é o sintagma complexo casa de João. Os nomes deadjetivais obedecem a restrições similares às dos nomes deverbais, como a expressão obrigatória de um argumento como sintagma-de, como é possível verificar em (7a-b): 18 (7) a. José está doente b. A doença de José A única diferença é que, nesse caso, não há competição entre os argumentos Agente e Meta para figurar na posição de possuidor e a função semântica é Zero, tanto na estrutura argumental do adjetivo quanto na do nome derivado. No caso de haver adjetivos primitivos, como fiel, cuja estrutura argumental já está preenchida por uma posição valencial independente da predicação com cópula-suporte, a competição que se dá com os nomes deverbais não ocorre, já que o nome derivado pode preservar intacta a estrutura argumental do adjetivo primitivo, como se observa em (8a-b): (8)a. João é fiel aos seus princípios b. A fidelidade de João aos seus princípios É relevante, mesmo assim, investigar o comportamento da estrutura argumental dos nomes deadjetivais para, num segundo plano, compará-los aos deverbais. Tendo-se explicitado os objetivos desta pesquisa, cabe salientar, de forma sucinta, a hipótese fundamental que norteia este trabalho. A principal conjectura é a de que estrutura argumental das nominalizações se mantém. O estatuto informacional da nominalização em si e de seus argumentos parece explicar de forma satisfatória a expressão formal dos argumentos; em outros termos, o preenchimento ou não da estrutura argumental é determinado pela distribuição de informação nova ou dada no texto. Analisando os pontos propostos neste trabalho, longe de apresentar fundamentos definitivos que caracterizam as construções nominalizadas no PB, será possível oferecer uma descrição do funcionamento da expressão argumental desse tipo de construção e, assim, avaliar a natureza das funções que definem a seleção de uma nominalização na estrutura da 19 construção encaixada. Pretende-se, assim, suscitar questões relacionadas a esse tipo de construção e abrir, no mínimo, perspectivas para estudos futuros, mais abrangentes, que forneçam explicações mais detalhadas. 3. Organização geral do trabalho Para formalizar essa proposta de trabalho, o capítulo I apresenta a perspectiva teórica que se pretende projetar. Constitui, portanto, a base teórica sobre a qual se fundamenta este trabalho e é parte necessária para a continuidade dos capítulos subseqüentes, já que nela se descreve o modelo teórico subjacente à análise do objeto de estudo deste trabalho de pesquisa, tratando dos princípios gerais da Gramática Funcional (DIK, 1989, 1997) e, paralelamente, apresentando o novo modelo teórico representado pela Gramática Funcional do Discurso (HENGEVELD, 2000). O capítulo II limita-se a descrever o tratamento dado às nominalizações dentro de um quadro teórico maior. Considera-se, assim, (i) o que a Gramática Funcional standard entende por nominalização, focalizando-se a noção de esquema de predicado dentro do qual essas construções se inserem, e apresentando-se, em acréscimo, a nova proposta da Gramática Funcional do Discurso para os esquemas de predicado; (ii) os princípios que regem a formação e expressão desse tipo de construção encaixada; (iii) o modelo de ajuste e expressão de argumentos, proposto por Dik (1985, 1997); (iv) as diferenças e semelhanças entre construções verbais e nominais, sob a perspectiva da GF standard. Descreve-se, por fim, (v) as vantagens para a escolha de uma nominalização, conforme aponta Mackenzie (1985, 1996). Considerando que o comportamento das nominalizações motiva duas diferentes posições teóricas no interior dos quadros da Gramática Funcional, no capítulo III, aborda-se a discussão da hipótese defendida por Dik (1985, 1997), a de que os nomes derivados 20 manifestam de fato uma estrutura de argumentos, e da hipótese sustentada por Mackenzie (1985, 1996), para quem os termos das nominalizações são satélites. Trata-se de uma discussão importante, visto que está diretamente ligada à hipótese defendida neste trabalho. O capítulo IV é um relato do aparato metodológico e universo de pesquisa utilizados para o desenvolvimento da tarefa aqui proposta; esse capítulo enfatiza ainda as hipóteses que fundamentam este trabalho. Na análise de um corpus do português falado, confinada ao capítulo V, faz-se a apresentação dos dados coletados, paralelamente à sua descrição e interpretação, e tenta-se mostrar as generalizações quanto à estrutura argumental dos nomes derivados do PB. O capítulo VI procura relacionar as interpretações, obtidas por meio da análise do objeto de estudo, aos postulados teóricos levantados nos capítulos anteriores e, principalmente, tenta comprovar ou rejeitar as hipóteses de trabalho, apresentadas no capítulo IV. As considerações finais apresentam os aspectos gerais a respeito dos resultados obtidos neste trabalho, bem como procuram apontar perspectivas para uma investigação futura. 21 CAPÍTULO I O MODELO DA GRAMÁTICA FUNCIONAL 1.1. Introdução Este capítulo faz alguns esclarecimentos a respeito da opção teórica assumida. Como, neste trabalho, verifica-se o uso dos nomes derivados no discurso, o ponto de vista teórico que se pretende adotar é o da Gramática Funcional, mais especificamente a corrente funcionalista holandesa proposta por Dik (1989, 1997). Por uma questão de espaço e pertinência, evidentemente não se pretende aqui sintetizar todos os princípios da Gramática Funcional, tal como concebidos por Dik. Almeja- se simplesmente explicitar, na seção 1.2., os princípios gerais sobre os quais essa teoria lingüística se assenta, como um subsídio para a sustentação teórico-metodológica do trabalho. Em adição, a seção 1.3. apresenta o modelo da Gramática Funcional do Discurso (HENGEVELD, 2000), que reconhece a necessidade de expansão do modelo representado pela versão tradicional da Gramática Funcional. 1.2. A versão standard da Gramática Funcional A Gramática Funcional (doravante GF) concebe a linguagem como um instrumento de interação social entre seres humanos, usada com o objetivo primário de estabelecer relações comunicativas entre os interlocutores. Sob essa perspectiva, a interação verbal, isto é, a interação social por meio da linguagem, é uma forma de atividade cooperativa estruturada. Os instrumentos empregados nessa atividade, as expressões lingüísticas que se manifestam sob a 22 forma de enunciados, são eles próprios estruturados, isto é, governados por regras. São as regras e as expressões lingüísticas que, juntas, constituem o sistema lingüístico. Do ponto de vista funcional, a lingüística tem de lidar com dois tipos de sistemas de regras, ambos ratificados por convenção social: (i) as regras semânticas, sintáticas, morfológicas e fonológicas e (ii) as regras pragmáticas. A GF permite estabelecer a relação entre a configuração formal da linguagem e os subsistemas semânticos e pragmáticos, visto que salienta não só as regras que governam a constituição das expressões lingüísticas, mas sobretudo as que governam os padrões de interação verbal nos quais essas expressões são usadas (DIK, 1989). De acordo com Dik, o sistema de regras (i) é instrumental em relação aos objetivos e propósitos do sistema (ii): a exigência básica do paradigma funcional é que expressões lingüísticas devem ser descritas e explicadas em termos do arcabouço geral fornecido pelo sistema pragmático da interação verbal. A interação verbal em si deve ser vista como integrada às funções cognitivas superiores do usuário da língua natural (ULN). Dois princípios de explicação funcional devem ser aplicados: (1) uma teoria da linguagem não deve se contentar em mostrar as regras e os princípios subjacentes à construção das expressões lingüísticas por si sós, mas explicá-los em termos de sua funcionalidade em relação aos modos como as expressões são usadas; (2) embora por si mesma uma teoria das expressões lingüísticas não seja o mesmo que uma teoria da interação verbal, é natural exigir que seja incorporada no bojo de uma teoria pragmática da interação verbal mais abrangente. O que se propõe é que a teoria da gramática deve ser um sub-componente integrado da teoria do ULN. 23 Reconhecida a função instrumental da linguagem, Dik (1989) propõe um modelo de interação verbal objetivando equacionar a consideração funcionalista do papel da expressão lingüística dentro da comunicação. Nesse modelo de interação, o falante e o ouvinte têm uma grande quantidade de informação pragmática. Ao dizer algo, a intenção do falante é efetuar alguma modificação na informação pragmática do ouvinte. Para tanto, deve ter algum tipo de intenção comunicativa, um tipo de plano mental concernente à modificação particular que deseja causar na informação pragmática do ouvinte. Do ponto de vista funcionalista, a relação entre a intenção do falante e a interpretação do ouvinte, na interação verbal, não é estabelecida, mas apenas mediada pela expressão lingüística. Segundo Dik, uma gramática funcional deve ser capaz de especificar todas as expressões lingüísticas de uma língua por meio de um sistema de regras e princípios em que as generalizações mais significantes sobre a língua são incorporadas; tem, assim, de apresentar três modelos de adequação explanatória: tipológica, pragmática e psicológica. Esses padrões de adequação são particularmente importantes para a teoria da GF. A adequação tipológica exige, assim, que a teoria seja capaz de prover gramáticas para qualquer tipo de língua, dando conta de suas similaridades e diferenças. A adequação pragmática, por sua vez, requer que uma gramática funcional revele as propriedades das expressões lingüísticas que são relevantes para o modo como são usadas, e que isso seja feito de tal modo que essas propriedades possam se relacionar às regras e princípios que governam a interação verbal. Isso significa que as expressões lingüísticas não são objetos isolados, mas instrumentos usados pelo falante para evocar no ouvinte a interpretação desejada. A adequação psicológica refere-se à relação, tão próxima quanto possível, entre os modelos psicológicos da competência lingüística e o comportamento lingüístico. Uma gramática funcional que almeja alcançar uma adequação pragmática e psicológica deve, de 24 alguma forma, refletir a dicotomia produção/compreensão: os modelos de produção definem como os falantes constroem e formulam as expressões lingüísticas; os modelos de compreensão, por sua vez, definem como os destinatários processam e interpretam as expressões lingüísticas. Na concepção da GF standard, o último nível de representação, a oração ou ato de fala (clause), é visto como uma rede intrincada de relações semânticas, sintáticas e pragmáticas. A arquitetura fundamental de uma GF envolve uma representação subjacente que encontra suas raízes na semântica, ou mais especificamente, na descrição lexical dos predicados que formam o esqueleto dessa representação. Essa representação deve conter, portanto, a informação que as regras de expressão necessitam para convertê-la num ato de fala. A descrição de uma expressão lingüística começa com a construção de uma predicação, formada por meio de termos, que representam as expressões lingüísticas usadas para se referir a entidades do mundo real ou imaginário, e predicados, que constituem estruturas (esquemas de predicado) que representam o ponto de partida para a construção de predicações.7 Os predicados e termos de uma língua podem ser básicos, se usados de um modo predeterminado, ou derivados, se formados a partir de regras de formação de predicados e de regras de formação de termos. Os predicados e termos básicos são listados no léxico, e o componente que os contém é chamado ‘Fundo’ da língua, dentro do qual há um estoque praticamente ilimitado de esquemas de predicado e de estrutura de termos para a construção de predicações. A estrutura subjacente da oração é construída a partir de um esquema de predicado, que contém, além do predicado, as posições argumentais, ocupadas por termos. A propriedade mais saliente da estrutura subjacente da oração é que ela é disposta em camadas; considera-se, 7 Os esquemas de predicado serão tratados mais detalhadamente no capítulo II (seção 2.3., p.35). 25 assim, que a configuração de uma oração que representa um ato de fala contém quatro camadas de análise, e cada uma está completamente contida na imediatamente superior. Cada camada pode ser modificada tanto por operadores quanto por satélites. Essa estrutura em camadas hierarquicamente ordenadas pode ser resumida no quadro 1, que mostra que cada oração, ou ato de fala (Ei, Ej), contém uma proposição (Xi, Xj), que, por sua vez, contém uma predicação (ei, ej) e esta consiste num predicado (fi, fj) e seus argumentos (xi, xj). Unidade estrutural Tipo de entidade Ordem Variável Oração ato de fala 4 Ei, Ej Proposição fato possível 3 Xi, Xj Predicação estado de coisas 2 ei, ej Termo entidade 1 xi, xj Predicado propriedade/relação fi, fj Quadro 1: Estrutura hierárquica da oração (adaptado de DIK, 1989) A GF standard segue o curso bottom-up, ou seja, a direção é ascendente, do nível mais baixo para o nível mais alto, o que significa que o falante seleciona, primeiramente, um esquema de predicado, que é gradualmente expandido em estruturas mais abrangentes até atingir o nível ilocucionário, para então serem finalmente aplicadas as regras de expressão. Apesar dessa tendência à representação de componentes discursivos na estrutura subjacente da oração, a GF standard não é capaz de ultrapassar o nível da oração para poder abranger também o nível textual-interativo. Dessa forma, passa-se a vislumbrar a extensão de uma Gramática Funcional da sentença rumo à construção de uma Gramática Funcional do Discurso. 26 1.3. A Gramática Funcional do Discurso Dik (1997) já menciona a necessidade de expandir o modelo da GF. Desde o começo dos anos 90, uma parte significativa da pesquisa desenvolvida dentro da GF tem sido direcionada à expansão do modelo de uma gramática sentencial para uma gramática do discurso. Segundo Hengeveld (2000), há duas razões para essa expansão. Em primeiro lugar, há muitos fenômenos lingüísticos que somente podem ser explicados em termos de unidades maiores que a sentença individual: partículas discursivas, cadeias anafóricas, formas verbais narrativas etc. Em segundo lugar, há muitas expressões lingüísticas que são menores do que a sentença individual, mas funcionam como enunciados completos e independentes dentro do discurso. Isso requer uma concepção de enunciados como atos discursivos e não como sentenças. Hengeveld argumenta, então, que um modelo adequado de gramática do discurso requer a integração dessas duas abordagens, ou seja, há a necessidade da aplicação de um modelo estendido de camadas e de reconhecimento de vários níveis de análise. O modelo de uma Gramática Funcional do Discurso (doravante GFD) é, portanto, hierárquico, visto que o nível discursivo é coberto por camadas adicionais hierarquicamente ordenadas, e modular, visto que o nível discursivo é administrado por um componente separado, ligado ao componente gramatical por meio de uma interface. Um aspecto principal do modelo, que o difere do modelo proposto pela GF standard, é que ele trabalha em um sentido top-down, ou seja, de cima para baixo, indo da intenção para a articulação, o que significa que o falante decide primeiramente seu propósito comunicativo, seleciona a informação mais adequada para atingir esse propósito, e, em seguida, codifica essa informação gramatical e fonologicamente para, finalmente, efetivar a articulação. 27 Para Hengeveld (2000), o modelo proposto pela GF standard tem uma orientação completamente diferente: começa com a seleção de esquemas de predicado, gradualmente expandidos para estruturas maiores, que, quando completas, são expressas por meio de regras de expressão. Essa organização caminha contra o padrão de adequação psicológica proposto pela própria GF, visto que o processo de produção da fala deve ser descrito como um processo descendente, que vai da intenção do falante à articulação fonológica, tal como propõe a GFD. Esse passo, segundo Hengeveld, além de ter um nível mais alto de adequação psicológica, é crucial para o desenvolvimento de uma gramática do discurso, já que, em um modelo top-down, a geração de estruturas subjacentes, e, em particular, a interface entre os vários níveis, pode ser descrita em termos das decisões comunicativas que um falante toma quando constrói um enunciado. A GFD distingue hierarquicamente três níveis de interação: o nível interpessoal, o nível representacional e o nível de expressão. A unidade central do nível interpessoal é o discurso (move), definido como o veículo para a expressão de uma intenção comunicativa do falante. Para atingir essa intenção comunicativa, o falante executa um ou mais moves, que consistem em um ato central, que pode ser sustentado por um ou mais atos subsidiários. Cada ato pode ser caracterizado em termos de sua ilocução, que são representadas como esquemas ilocucionários abstratos, que tomam os participantes no ato discursivo. Para construir o conteúdo comunicativo, o falante pode ter que executar um ou mais atos atributivos (ascriptive acts) e um ou mais atos referenciais (referential acts): é o falante que se refere a entidades usando expressões de referência; e é o falante que atribui propriedades a entidades aplicando predicados a essas expressões de referência. Ao transmitir sua intenção comunicativa, o falante tem que preencher seu enunciado com um conteúdo semântico básico, isto é, com descrições de entidades como elas ocorrem no mundo não-lingüístico, que caracteriza o nível representacional. Essas entidades podem ser 28 entidades de terceira ordem ou conteúdos proposicionais, entidades de segunda ordem ou estados de coisas, entidades de primeira ordem ou indivíduos e, finalmente, entidades de ordem zero, ou propriedades. Numa representação maximamente hierárquica desse nível, o conteúdo proposicional pode conter a descrição de um estado de coisas, que contém, por seu lado, a descrição de uma propriedade e a de um indivíduo. O terceiro módulo, ou nível de expressão, é uma representação da estrutura constituinte que começa no nível do parágrafo, que, por seu lado, consiste em uma ou mais sentenças, cada uma das quais pode conter uma ou mais orações, que podem conter um ou mais sintagmas predicacionais e sintagmas referenciais, cada um dos quais pode conter um ou mais lexemas. Dado esse panorama geral da teoria da GF standard e da GFD, os dois capítulos subseqüentes passam a ver como a nominalização é tratada nesses dois modelos teóricos, principalmente na versão tradicional da GF. 29 CAPÍTULO II O TRATAMENTO DAS NOMINALIZAÇÕES NO QUADRO DA GRAMÁTICA FUNCIONAL 2.1. Introdução No capítulo precedente, a preocupação foi a de descrever os princípios gerais do arcabouço teórico que fundamenta este trabalho, na tentativa de construir uma visão geral dessa perspectiva teórica. Este capítulo limita-se, agora, a abordar o tratamento que a GF standard (1989, 1997) confere à nominalização, a título de premissas que orientarão, por sua vez, os capítulos seguintes. A seção 2.2. é uma apresentação do esquema de predicado da GF standard, dentro do qual as nominalizações se inserem. Como uma proposta alternativa a essa noção de esquemas de predicado, a seção 2.3. apresenta a nominalização na GFD, abordando a noção de esquemas de predicação nesse novo modelo da GF. A seção 2.4., sob a perspectiva da GF standard, fornece os princípios que, segundo Dik (1985, 1997), regem a formação e expressão das nominalizações, bem como o modelo de ajuste das expressões verbais a expressões nominais. Posteriormente, a seção 2.4.1. trata especificamente da expressão dos argumentos, fundamentando-se nos ajustes propostos por Dik. Com base em discussão levantada na GF standard sobre as construções verbais e nominais, a seção 2.5. aborda as relações básicas e diferenças entre esses dois tipos de construção. 30 Certamente, mais do que fazer uma análise dos fatos, é relevante oferecer uma explicação de por que os fatos são como são; nessa perspectiva, a seção 2.6. descreve as vantagens para a escolha de uma nominalização (cf. MACKENZIE, 1985, 1996). 2.2. A nominalização na GF standard Dik (1989) considera que a estrutura subjacente da oração projeta-se sobre a forma real da expressão lingüística correspondente mediante um sistema de regras de expressão que determinam a forma, a ordem e o padrão entonacional dos constituintes da estrutura subjacente, conforme o esquema em (1) (cf. DIK, 1989, p.46): (1) ESTRUTURA SUBJACENTE DA ORAÇÃO REGRAS DE EXPRESSÃO EXPRESSÕES LINGÜÍSTICAS A estrutura subjacente da oração é uma estrutura abstrata complexa em que se devem distinguir diversos níveis ou camadas de organização formal e semântica, que pode ser representada muito simplificadamente em (2) (cf. DIK 1989, p.46): 31 (2) ORAÇÃO “ato de fala” PROPOSIÇÃO “fato possível” PREDICAÇÃO “estado de coisas” PREDICADO “propriedade/relação” aplicados a TERMOS “entidade/entidades” O núcleo da estrutura de uma oração subjacente é formado pela predicação, que pode ser, por seu lado, dividida em três diferentes níveis, a saber, predicação nuclear, consistindo apenas no predicado e seus argumentos, predicação central e predicação estendida, conforme a predicação nuclear é expandida pela ação de operadores e satélites com diferentes níveis de escopo. Como o capítulo anterior mostrou, os predicados podem ser básicos, quando contidos no léxico, ou derivados, quando produzidos mediante regras de formação de predicados. A estrutura básica da predicação nuclear é determinada pelas possibilidades combinatórias do predicado, tal como definido no esquema de predicado, que, como ilustração, segue em (3), se considerado o verbo dar: (3) darV (x1: (x1))Agente (x2)Meta (x3:( x3))Recipiente (cf. Dik 1989, p.68) Como se observa em (3), o esquema de predicado especifica (i) a forma do predicado codificada sob um tipo padrão de representação fonológica e, no caso de não ser necessário esse tipo de detalhamento, convencionou-se uma notação simplificada com o uso da forma escrita do infinitivo, quando se tratar, como é o caso de (3), de um predicado verbal. Além da forma, o esquema de predicado representa a categoria sintática do predicado, que é V nesse caso. Juntamente com o predicado verbal, a GF standard reconhece a existência de pelo menos predicados nominais e predicados adjetivais. O esquema de predicado deixa implícitas ainda certas subcategorias, que podem ser reconhecidas com base nas propriedades estruturais 32 do predicado em si mesmo, tais como a de predicado bitransitivo, propriedade inferível do fato de dar admitir três argumentos. Outras informações observáveis no esquema de predicado são a valência quantitativa e a valência qualitativa. A valência quantitativa se refere ao número de argumentos do predicado com base na predicação nuclear; as posições argumentais são simbolizadas em (3) pelas variáveis x1, x2, x3. Distingue-se, portanto, predicados de um lugar, ou monovalentes, predicados de dois lugares, ou bivalentes, e predicados de três lugares, ou trivalentes. A valência qualitativa indica os tipos de argumentos que o predicado admite, tais como especificados em (3) pelas funções semânticas de Agente, Meta e Recipiente e pelas restrições selecionais impostas sobre eles (Agente e Recipiente são necessariamente animados numa leitura comum, não metafórica, da predicação). Ao tratar de construções complexas e derivadas, Dik (1997) afirma que um predicado, se básico, e, portanto, codificado no léxico, ou se derivado, por meio de regras de formação de predicado, nunca é um item isolado, mas sempre uma estrutura, na medida em que predicados existem somente como parte de esquemas de predicado, que, como visto acima, definem a forma, o tipo e a valência quantitativa e qualitativa do predicado. Predicados básicos, armazenados no léxico, representam as propriedades e relações mais fundamentais que são passíveis de expressão numa língua. Todos esses predicados, juntamente com suas propriedades combinatórias, que são codificados nos esquemas de predicado, têm que ser separadamente aprendidos e memorizados para que o falante seja capaz de usá-los. Em razão de limites psicológicos óbvios quanto ao número de predicados básicos que uma língua pode conter, são as regras de formação de predicado que garantem a projeção dessas propriedades/relações básicas num conjunto muito maior de propriedades/relações (DIK, 1997, p.19). 33 Uma vez que predicados somente existem em esquemas de predicado, as regras de formação de predicados permitem derivar produtivamente novos esquemas de predicados a partir de esquemas já dados; portanto, são regras que projetam esquemas de predicado em outros esquemas de predicados. Regras de formação de predicados tomam um esquema de predicado como input e produzem um esquema de predicado como output. Assim, qualquer propriedade do esquema de predicado input é passível de modificação através de uma regra de formação de predicado. Isso significa que as várias propriedades codificadas no esquema de predicado fornecem uma base natural para distinguir diferentes tipos de processos de formação de predicados. Assim, segundo Dik (1997, p.6), é possível encontrar processos de formação que afetam cada uma das propriedades de um esquema de predicado, como forma, tipo e valência; além disso, uma regra complexa pode afetar diversos traços simultaneamente. No geral, esses processos de formação dão conta dos seguintes casos de valência quantitativa: (i) extensão de valência, em que um predicado intransitivo se transforma num transitivo, sendo o caso mais comum a regra de formação de predicado causativo; (ii) redução de valência, que envolve casos de incorporação de objeto, redução do primeiro argumento e redução do segundo argumento. De acordo com Dik, há reflexos visíveis desses casos de formação na área da valência qualitativa: com efeito, os processos de formação de predicado que alteram a valência quantitativa refletem-se em geral nas alterações das funções semânticas e nas restrições de seleção do predicado input. Um exemplo é o da formação causativa, a que é necessário adicionar um segundo argumento, na função semântica de Causado; também em processos de redução de valência, um argumento originalmente Meta pode passar a Processado, se o predicado é dinâmico e não-controlado, ou a Zero, em caso de não-dinâmico e não- controlado. 34 Dik (1985) procura uma explicação para esses reflexos entre forma e conteúdo, por meio de dois princípios: (i) pelo Princípio de Ajuste Formal (PAF), a expressão de construções derivadas tendem a se ajustar ao modelo de expressão típico de construções não- derivadas; (ii) pelo Princípio de Ajuste Semântico (PAS), na medida em que o PAF se aplica, a construção derivada tende também a se ajustar semanticamente às construções não- derivadas. O poder explanatório tanto do PAF quanto do PAS deriva do fato de que permitem fazer predições corretas não apenas em relação a manifestações de construções causativas num grande número de diferentes línguas, mas também em relação a outros tipos de construção, tais como as nominalizações. Por nominalização, Dik entende (1997, p.157-8) uma construção encaixada que tem uma ou mais propriedades em comum com um termo nominal primário. Essas construções são definidas como um tipo particular de predicação encaixada, que preenche a posição de algum termo em uma predicação hierarquicamente superior. Dik distingue, então, dois tipos de nominalização, nucleada e não-nucleada. No tipo nucleado de nominalização, a construção encaixada é adicionada ao núcleo nominal, que tem um significado geral, como ‘fato’ ,‘coisa’, ou ‘circunstância’. No caso de nominalização não-nucleada, é o predicado em si mesmo que assume certas propriedades nominais. Considerem-se os seguintes exemplos: (4) Eu ouvi dizer que João partiu. (5) Maria não deixa João partir. (6) Maria desaprova a partida de João. 35 Em cada caso, o constituinte em itálico é uma construção encaixada especificando o mesmo estado de coisas. (4) representa uma oração subordinada finita, (5), uma construção infinitiva, e (6), uma construção não finita, ainda que não haja, segundo Dik (1997), nada de ‘nominal’ nela. Em (6), vê-se que o constituinte Agente, no caso, João, aparece no genitivo, uma expressão especialmente adequada para expressar relações dentro de termos nominais. O fato de João, em (6), aparecer formalmente no genitivo, mas em função semântica de Agente, deve ser interpretado como uma propriedade nominal e, portanto, a partida de João deve ser descrita como uma nominalização. Nominalizações são construções encaixadas que se ajustam em alguma medida ao padrão típico de expressão de termos nominais primários, como um exemplo cabal de aplicação do PAF. Ao contrário de termos nominais primários, que consistem em entidades de primeira ordem, nominalizações, como construções encaixadas, consistem num tipo secundário de termo, usados para referir-se a entidades de segunda, terceira e quarta ordem, isto é, estados de coisas, fatos possíveis e atos de fala, respectivamente. 2.3. A nominalização na GFD: uma crítica à noção de esquema de predicado na GF standard Garcia Velasco & Hengeveld (2002) discutem o papel dos esquemas de predicado dentro da GF e apresentam a possibilidade de substituí-los por esquemas de predicação mais gerais, no interior dos quais os lexemas, listados no léxico sem esquemas, são inseridos por meio de aplicação de regras de ligação. A idéia de introduzir esquemas de predicação na GF foi proposta originalmente por Hengeveld (1992 apud GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002) como uma alternativa para a Regra de Formação Termo-Predicado de Dik (1980 apud GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002). Os autores argumentam que 36 a noção de esquema de predicado deve ser substituída, por um lado, por uma combinação de esquemas de predicação, por outro, por lexemas oferecidos com definições de significado abstrato e, finalmente, deve haver um mecanismo de ligação juntando esses dois. Os autores defendem o princípio de que essa passagem não é somente desejável, mas também ajuda a teoria a alcançar um certo grau de adequação psicológica, tipológica e pragmática. O modelo de adequação psicológica requer que a GF possa referir-se tão estreitamente quanto possível aos modelos de competência lingüística e comportamento lingüístico (DIK 1997, p.13). Esquemas de predicado desempenham um papel central na organização da GF padrão, na qual eles constituem o input para a geração oracional e contêm uma grande quantidade de informação sintática e semântica relevante ao processo interpretativo. Espera- se, então, que a evidência psicolingüística confirme seu estatuto privilegiado na produção e compreensão de sentença. Um caso interessante para avaliar a adequação psicológica dos esquemas de predicado concerne ao comportamento de verbos que permitem estruturas de argumento alternativas, como por exemplo, os que participam das chamadas alternâncias causativas, como ilustradas em (7): (7)a. Pedro abriu a porta. b. A porta abriu. (adaptado de Garcia Velasco & Hengeveld, 2002, p.97) A GF standard, como a seção anterior mostrou, trata essas alternâncias por meio de Regras de Formação de Predicado. De uma perspectiva psicolingüística, a abordagem da GF sugere que a interpretação e a produção dos esquemas output (8) terão que se referir à regra de formação de predicado relevante para estabelecer a relação com o esquema input e chegar à interpretação semântica apropriada do predicado derivado: 37 (8) REGRA DE FORMAÇÃO INCOATIVA INPUT: predV (x1)Agente (x2)Meta OUPUT: predV (x2)Processado (adaptado de GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002, p.97) Verbos que participam de alternâncias como a mencionada em (7a-b) acima não apresentam diferentes sentidos, mas diferentes estruturas de argumento. Quando se depara com um desses verbos, o falante/ouvinte terá que “decidir” a que esquema de predicado o verbo se vincula. A previsão que se origina da organização do léxico da GF é, primeiramente, que a sentença (7b) poderia ser mais extensa para processar que (7a), uma vez que ela requer a abertura da regra de formação de predicado relevante para chegar à interpretação correta do predicado. Para iniciar a discussão da adequação pragmática os autores mencionam o exame que Butler (1988 apud GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002) fez a respeito do conceito de esquema de predicado. Para Butler, o modelo de relação predicado-argumento, resumido no esquema de predicado, não é capaz de levar em conta o uso no discurso real do predicado e de seus argumentos (BUTLER, 2001, p.56 apud GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002). Examinando o uso do predicado verbal give (dar), Butler conclui que a estrutura apresentada em (3), repetida abaixo, é simples demais para levar em conta o uso real do verbo. Com efeito, em quase 20% dos exemplos, o agente não é animado como o esquema requer; o exemplo fornecido pelo autor está contido em (9). (3) darV (x1: (x1))Agente (x2)Meta (x3:( x3))Recipiente (DIK, 1989, p.68) (9) Seus anos de composição de versos gregos deram-lhe confiança (BUTLER, 2001, p.58 apud GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002, p.101) 38 A alta incidência de agentes não animados sugere, para os autores, que esse exemplo de Butler constitui não apenas uma violação às restrições de seleção do primeiro argumento, mas tem também implicações mais sérias. A GF define a função semântica de Agente como a entidade controladora de uma Ação, mas, mesmo nos testes usados por Dik para determinar se um estado de coisas é de ação, o primeiro argumento do exemplo contido em (9) aparece como um não-agente. O fato que isso acarreta é o de que é possível atribuir a esses argumentos inanimados uma função semântica não agentiva, sendo o mais provável candidato a de Força. Dada a produtividade dessa alternância, os autores consideram a possibilidade de formular uma Regra de Formação de Predicado dentro do arcabouço da GF com o seguinte formato geral: (10) REGRA DE FORMAÇÃO INSTRUMENTO - FORÇA INPUT: (f1: pred V (f1): {(f2: (x3)Instrumento (f2))} (f1)) (x1)Agente (x2)Meta OUTPUT: (f1: pred V (f1)) (x3)Força (x2)Meta SIGNIFICADO: Entidade instrumental (x3) provoca o processo denotado por predV (GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002, p.102) Argumentam, entretanto, ser muito excessivo o custo teórico dessa regra, já que ela conduz, em primeiro lugar, a uma alteração radical no esquema de predicado derivado, que, de qualquer maneira, oculta a relação semântica óbvia entre as duas variantes, e, em segundo lugar, ela nos força a aceitar que regras de formação de predicado podem admitir satélites no input, o que constituiria um postulado um tanto controverso em virtude de a aplicação de regras de formação de predicado ser restrita ao Fundo. Quanto ao princípio de adequação tipológica, os autores mencionam a tipologia de sistemas de classes de palavras ou partes do discurso de Hengeveld (1992a, 1992b apud GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002), que usa definições funcionais, isto é, 39 definições distribucionais para as classes de palavras. Segundo essas definições, é possível distinguir classes de palavras com base nas posições sintáticas que ocupam, como núcleo ou modificador de um sintagma de termo ou de um sintagma de predicado. O resultado da aplicação dessas definições a uma grande diversidade de línguas é o de que algumas delas dispõem de uma classe de lexemas somente em uma dessas posições sintáticas, enquanto outras permitem o uso de uma única classe de lexemas em várias posições sintáticas. Na terminologia de Hengeveld, as línguas do primeiro tipo consistem num sistema rígido de classes de palavras, enquanto as do segundo tipo consistem num sistema flexível. Línguas com sistemas mais flexíveis de classes de palavras usam uma classe única de lexemas para as diferentes posições sintáticas. Em línguas tipologicamente flexíveis, os esquemas de predicado não são uma propriedade intrínseca dos lexemas em si; ao contrário, os lexemas estão associados a um esquema de predicado em que eles são licenciados a ocorrer conforme requer a comunicação. Segundo os autores, para fazer justiça a esse aspecto de línguas flexíveis, é necessário separar os contextos sintáticos dos lexemas usados nesses contextos. Se línguas flexíveis requerem uma abordagem como essa, o mesmo se aplica a todas as outras línguas como uma decorrência da necessidade de adequação tipológica da GF (GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002, p.107). 2.3.1. Uma proposta alternativa: esquemas de predicação na GFD Um modo de resolver o problema que a noção de esquema de predicado apresenta com respeito aos padrões de adequação psicológica, pragmática e tipológica é dividir esquemas de predicado em predicados e esquemas, e ter um mecanismo de ligação que os associe na gramática. Assim, os autores dão preferência por usar o termo esquema de predicação para 40 esquema e lexema para predicado, de modo que o termo predicado torna-se então disponível para lexemas usados como predicados em contextos sintáticos particulares. Esquemas de predicação especificam as configurações (subjacentes) nas quais os lexemas podem ocorrer e o conjunto de esquemas de predicação não é idêntico para todas as línguas, nem sintática nem semanticamente. Ao definir os esquemas de predicação, Garcia Velasco & Hengeveld (2002) empregam o formalismo desenvolvido por Hengeveld (no prelo apud GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002), mediante o qual é possível estabelecer uma distinção básica entre unidades no nível interpessoal e representacional, respeitando a nova versão da GF, a GFD. Unidades do nível interpessoal são definidas em termos de sua função na comunicação. As variáveis usadas para formalizá-las são letras maiúsculas. As funções relevantes aqui são referência (reference) (R) e atribuição (ascription) (T). Em muitas outras abordagens, esta última função seria chamada de ‘predicação’, mas esse termo é reservado, na GFD, para uma instanciação lingüística de atribuição. Nos casos em que a função comunicativa é irrelevante usa-se a variável Φ (para “função”). Unidades no nível representacional são definidas em termos do tipo de entidade que designam. As variáveis usadas para representá-las formalmente são letras minúsculas. Os tipos de entidade relevantes desse nível são propriedades/relações (f), indivíduos (x), estados de coisas (e) e conteúdo proposicional (p). Nos casos em que o tipo de entidade é irrelevante, usa-se a variável τ (para “tipo”). Assim, mediante o uso de dois tipos de variáveis, separam-se rigorosamente funções comunicativas e categorias semânticas. Os dois níveis de análise são em princípio independentes um do outro. Todos os tipos de entidade podem ser referidos, e todos os tipos de entidade podem ser predicados. Assim, um ato referencial (R) pode fazer uso da descrição de um indivíduo (x), como em (11a), bem como da descrição de um estado de coisas (e), como em (11b). 41 (11)a. Ele viu o menino. (R1: (x1) (R1) b. Ele viu o menino fazer um desenho. (R1: (e1) (R1) (adaptado de GARCIA VELASCO & HENGEVELD, 2002, p.110) Da mesma forma, o inverso também é verdadeiro: pode-se usar a descrição de uma entidade de primeira ordem num ato referencial, como em (12a), e igualmente também num ato atributivo, como em (12b). (12)a. Estou procurando um carpinteiro. (R1: x1 (R1) b. Meu vizinho é carpinteiro. (T1: x1) (T1) Com base nas variáveis assim distinguidas, pode-se formular, como exemplo, os esquemas de predicação contidos em (13a-b) apenas para um tipo intransitivo de estados de coisas e para um tipo transitivo de núcleo de sintagma de predicado, sem consideração do tipo semântico de predicação, em que (♦) indica a posição em que um lexema pode ser inserido, e, em (14a-b), os esquemas de predicação exemplificam casos de núcleo de sintagma de termo (term phrase). (13)a. Estado de coisas intransitivo: (T1: (f1: ♦ (f1)) (T1)) (R1) b. Estado de coisas transitivo: (T1: (f1: ♦ (f1)) (T1)) (R1) (R2) (14)a. indivíduo: (R1: (x1 ♦ ( x1) (R1) ... (RN)) b. estado de coisas: (R1: (e1 ♦ (e1)) (R1) ... (RN)) O esquema de predicação de (14a) representaria, então, um termo, como coat em her new coat, enquanto o esquema de (14b), um estado de coisas, como wedding em her third wedding. Assim, o esquema de predicação para uma nominalização representa a idéia de que um termo referencial (R) tem a função semântica de representar um estado de coisas, o que dá 42 suporte ao caráter semanticamente ambíguo de nomes derivados. Esse formalismo é, como se vê, relevante para a determinação das nominalizações, como entidades que representam estados de coisas. Como lexemas não se confundem com esquemas, um problema a resolver é como lexemas se ligam aos esquemas de predicação em que ocorrem. Na GF standard, são os próprios esquemas de predicado que definem a valência quantitativa e qualitativa dos lexemas; quando, ao contrário, separam-se lexemas dos esquemas de predicação, torna-se crucial desenvolver uma solução alternativa para o problema da ligação entre léxico e sintaxe. O modo como Garcia Velasco & Hengeveld (2002) solucionam a questão envolve a introdução de definições de significado abstrato. Os componentes de significado abstrato servem como gatilhos da ligação entre o lexema envolvido e um esquema de predicação específico. Se o mecanismo de ligação se baseasse em definições concretas de significado, cada elo teria que ser especificado separadamente. 2.4. O modelo de ajustes na GF standard Como a seção 2.2. demonstrou, ao tratar de nominalizações, Dik (1985) aponta alguns princípios gerais no que tange à formação e expressão de construções derivadas nas línguas naturais.8 Segundo o autor, o PAF e o PAS governam as expressões formais e as propriedades semânticas das construções derivadas. PAF e PAS predizem, respectivamente, que construções derivadas, por um lado, são determinadas a ajustar sua expressão formal ao modelo de expressão prototípico, fornecido por construções não-derivadas, e, por outro lado, à medida que uma construção derivada se submete à pressão do PAF, tende a se ajustar 8 Na aplicação desses princípios, Dik (1985) trata de três tipos de construções derivadas, a saber: derivadas intransitivas, construções causativas e nominalizações. 43 também às propriedades semânticas do Modelo de Expressão Prototípico (doravante MEP). Esse modelo apresenta a seguinte definição: (a) predicados de zero-lugar não têm MEP. (b) predicados de um lugar: o MEP é o modelo de expressão para predicados de um lugar com um primeiro argumento específico. Ex.: João caminha/ a caminhada de João. (c) predicados de dois lugares: o MEP é o modelo de expressão para predicados de dois lugares com um argumento Agente e um argumento Meta. Ex.: João comprou o livro/ a compra do livro por João. (d) predicados de três lugares: o MEP é o modelo de expressão para predicados de três lugares com argumentos Agente, Meta e Recipiente. Ex.: João ofereceu o livro a Pedro/ a oferta do livro por João a Pedro (e) predicados de quatro lugares: não têm MEP.9 (f) termos: o MEP é o modelo de expressão para um termo com um nominal não-derivado como núcleo, possivelmente modificado por adjetivos atributivos e sintagmas de possuidor, e determinado por um ou mais operadores de termo. Ex.: a casa velha do meu amigo. Com base nos princípios acima expostos, Dik afirma que é o PAF que explica como predicações basicamente verbais adquirem propriedades nominais: uma predicação encaixada 9 De maneira geral, a valência do nome derivado corresponde à do predicado input. Dik (1989) considera que não há MEP para predicados tetravalentes justamente porque não há SN (nominal não-derivado) de quatro lugares que possa servir de modelo de expressão a esses predicados. 44 atua como um termo de uma predicação mais alta, e, por seu lado, termos se definem como expressões nominais. Para estar de acordo com o PAF, as predicações encaixadas necessitam adaptar-se à expressão de termos nominais. O esquema apresentado na figura 1 ilustra os ajustes: construção encaixada ∅ Π-operador Predicado 1ºº argumento 2ºº argumento Satélite ∅ Determinante Quantificador Nome Sintagma de possuidor10 Adjetivo termo de primeira ordem Figura 1: Princípio de Ajustes Formais (adaptado de DIK, 1997, p.158) Os ajustes mais comuns da predicação verbal encaixada à expressão do termo nominal são os seguintes: (a) um operador de predicado, como o morfema de número, pessoa e modo-temporal, passa a zero e, inversamente, zero, a operador de termo: (15) a. O presidente demitiu o ministro tardiamente b. a demissão tardia do ministro pelo (*do) presidente11 em (15a), o operador de predicado (tempo passado, por exemplo) passa a zero; em (15b), o que se vê é um operador de termo (determinante a); 10 Ver nota (4), p.13. 11 Em português, a expressão nominalizada não faz jus ao princípio de ajustes formais mencionado por Dik (1997), já que dificilmente a entidade agentiva recebe o mesmo tratamento formal de sintagma-de que a entidade afetada, ou Meta, como em a demissão do ministro pelo (*do) presidente 45 (b) um predicado verbal torna-se núcleo nominal: o predicado verbal de (15a), demitirv (presidente)Agente (ministro)Meta, passa a predicado nominal, em (15b), demissãoN (presidente)Agente (ministro)Meta. (c) o primeiro e o segundo argumentos podem tanto assumir a forma de um sintagma de possuidor quanto a de um adjetivo atributivo12: (16) a. Elegeu-se o presidente b. a eleição do presidente c. a eleição presidencial em (16b) o argumento de (16a) é expresso sob a forma de sintagma de possuidor, e, em (16c), por meio de um adjetivo; (d) um satélite adverbial só pode assumir a forma de um adjetivo atributivo: em (15b), o advérbio de tempo tardiamente de (15a) aparece como um adjetivo. A variação do número de ajustes e das combinações entre eles caracteriza a nominalização nas línguas em geral – e é por meio dela que, rigorosamente, as nominalizações no português falado do Brasil serão caracterizadas, tendo em mente o ponto de vista dos argumentos desse tipo de construção. Essa variação implica uma escala de possibilidades entre as construções puramente verbais e as puramente nominais, de modo que há nominalizações mais "verbais" e nominalizações mais "nominais". 12 A forma de expressão dos argumentos será discutida mais detalhadamente na seção 2.4.1, p.49. 46 Numa amostra de 30 línguas, Mackenzie (1996) distingue quatro graus de nominalização, ordenadas em uma hierarquia entre ‘completamente verbal’ e ‘completamente nominal’13: Grau 0: construção plenamente verbal: oração finita (17) John saw that Peter signed the cheque ‘John viu que Peter assinou o cheque’ Grau 1: deverbalização parcial: perda de diferentes propriedades verbais; os verbos encaixados são caracterizados como dependentes, não-principal e não-finito. (18) John saw Peter signing the cheque ‘John viu Peter assinar o cheque’ Grau 2: a construção encaixada é externamente marcada por preposições, que são indicadoras características de termos nominais. (19) John approved of Peter signing the cheque ‘John aprovou a assinatura de Peter do/no cheque’ Grau 3: presença opcional do possuidor ou algum outro termo dependente na expressão referida. Presença opcional ou requerida de operadores de termos, isto é, artigos, demonstrativos etc. 13 A tradução dos exemplos de (19) a (21) é aproximada, já que o português não dispõe de forma nominal em gerúndio que o inglês apresenta nesses casos. 47 (20) John deplored Peter’s signing of the cheque ‘John lamentou a assinatura de Peter do cheque’ Grau 4: alto grau de nominalidade, isto é, presença opcional de adjetivos, gênero e contáveis. A nominalização adquire outras propriedades características de termos nominais. (21) John disapproved of Peter’s repeated denials of the charges ‘John desaprovou as repetidas negações de Peter das acusações’ Os graus de nominalização identificados por Mackenzie podem ser apresentados como uma hierarquia implicacional: línguas que mostram as características de grau n também mostram as características de grau n - 1: (22) nominalidade (> operadores) > possuidor/dependente > marcas de função > deverbalização O que se vê é que as línguas começam com um final verbal e, então, gradualmente, aproximam-se dos tipos de nominalização de grau 4, completamente nominalizadas. Em sua amostra, Mackenzie descobriu que todas as línguas têm, ao menos, algum tipo de nominalização, e que as nominalizações de grau 4 são especialmente encontradas em línguas de posposição, como é o caso, por exemplo, do português, que é uma língua de posposição e dispõe, dessa forma, de nominalizações de grau 4. Em inglês, há estratégias de referência a entidades de ordem mais alta que recapitula a hierarquia dada em (22). Para caracterizar a gradação, Mackenzie (1996) fornece construções nas quais há um ‘deslizamento’ nominal que leva uma expressão completamente verbal para 48 uma construção completamente nominal, por meio de três tipos de gerúndio com um caráter parcialmente verbal e parcialmente nominal: (23) a. That John refused the offer came as a great surprise b. John refusing the offer came as a great surprise c. John’s refusing the offer came as a great surprise d. John’s refusing of the offer came as a great surprise e. John’s refusal of the offer came as a great surprise Segundo Mackenzie, em (23a-b), ambos os argumentos de refuse são obrigatórios; em (23c), somente o paciente é gramaticalmente requerido e, em (23d-e), nenhum argumento é requerido.14 Em (23a), o verbo pode ter propriedades totais de finitude, tempo e aspecto, enquanto (23b-c) somente a oposição de tempo entre passado (having refused) e não- especificado (refusing) é possível; em (23d-e) não pode haver nenhuma marca de categorias verbais. Quanto a marcadores de nominalidade, eles estão completamente ausentes em (23a); (23b) pode ser associado com a preposição (suprised about John refusing the offer, cf. Grau 2); (21c) aceita um demonstrativo (that refusing the offer of John’s, cf. Grau 3-Op.); (23d) permite um artigo definido (the refusing of the offer), adjetivos; e (23e), finalmente, mostra todas as características de um SN (cf. Grau 4). Há, assim, uma clara evidência de transição gradual entre construções completamente verbais e completamente nominais. No português, talvez o mais próximo do gerúndio do inglês, em termos de gradação verbal/nominal, seja o infinitivo, algo como: (24)a. João recusou a oferta e isso foi uma grande surpresa b. João recusar a oferta foi uma grande surpresa c. O recusar de João da oferta foi uma grande surpresa d. A recusa de/por João da oferta foi uma grande surpresa 14 A opção de herdar argumentos será tratada mais detalhadamente no capítulo III. 49 Em (24a), como em (23a), o verbo tem propriedades de finitude, tempo e aspecto e não há marcas de nominalidade (como há em (23c-d)). Já (24d), tal como (23e), mostra todas as características de um SN. Obviamente, essa é uma análise muito superficial do caráter de maior ou menor nominalidade no português. Investigações futuras podem examinar se há correspondência funcional relevante entre essas formas no português. 2.4.1. A expressão de argumentos como sintagmas de possuidor Como a seção anterior mostrou, uma propriedade distintiva, prevista pelo modelo da GF standard (DIK, 1985, 1997), é a de que a estrutura argumental do verbo ajusta-se ao modelo de um nome prototípico. O ajuste formal mais saliente e, por isso mesmo, o que Dik discute mais detalhadamente, concerne ao ajuste de argumentos à expressão de sintagmas de possuidor. Para Dik, é a forma de expressão do possuidor (genitivos ou pronomes possessivos) que constitui o modelo para a expressão de argumentos nas nominalizações. Os argumentos ajustados são tipicamente os centrais, entendendo-se por centrais o primeiro e o segundo argumento de uma predicação, tendo este último função temática típica de Meta. Há, além disso, certa dose de competição entre os argumentos centrais para ocupar a posição de possuidor. No caso de predicados de um lugar, o ajustamento é automático, sendo expresso como possuidor o argumento central único da predicação encaixada. Já no caso de argumentos de dois lugares, os nucleares concorrem por uma única posição disponível de possuidor. As regras para a expressão de argumentos centrais numa nominalização são assim formuladas por Dik (1985, p.24): 50 I. Se há um primeiro argumento compatível com as condições exigidas por possuidores pré- nominais, então (a) expressa-se o primeiro argumento como um possuidor pré-nominal (regra opcional). (No caso do português, isso ocorre por meio do emprego de pronome possessivo, possibilidade estendida para genitivos em outras línguas, como o inglês e o holandês, por exemplo). II. Se há um termo na função de Meta, então, (b) expressa-se Meta como um sintagma-de (regra obrigatória). III. Se, havendo um primeiro argumento, não se aplicam nem I nem II, então, (c) expressa-se o primeiro argumento num sintagma-de (regra opcional, mas preferida). IV. Expressam-se termos não especificados em a-c acima de acordo com sua própria função semântica. Observando-se, entretanto, o efeito dessas regras, no português, em predicações encaixadas de um lugar, como em (25): (25) (xi : [caminhar (João)Agente] (xi)), verifica-se que elas não se aplicam da mesma forma, já que a opção entre (a) e (c) equivale, na 3a. pessoa, a uma opção entre um possessivo e um sintagma-de. A condição anafórica do possessivo implica que haja uma menção anterior do termo correferente, diferentemente do sintagma-de, que implica, geralmente, menção pela primeira vez do termo referido. 51 Satisfaz-se a condição I, já que se pode expressar João como um possuidor prenominal; selecionada a opção (a), o resultado é, em português, sua caminhada (com as condições textuais naturalmente impostas a um termo anafórico como sua). Não selecionada a opção (a) e satisfeita a condição III, aplica-se, então, a opção (c). O resultado é, em português, a caminhada de João (considerando ser João um termo mencionado pela primeira vez). Caso (c) também não seja escolhida, a condição IV produzirá a caminhada por João, construção um tanto marginal no português. Considere-se agora um predicado de dois lugares, como em (26): (26) (xi : [comprarV (João)Agente (carro)Meta] (xi)) Novamente, satisfaz-se a condição I. Aplicada a opção (a) e a regra obrigatória (b), o resultado é sua compra do carro. Caso não se apliquem (a) e (c), o resultado é a compra do carro por João. Esse sistema apresenta, assim, as seguintes características: 1. Há uma forte preferência para que, pelo menos, um argumento central assuma a expressão de possuidor. 2. O argumento na função de Meta, se houver, deve assumir a expressão de possuidor, em posição pós-nominal. 3. Embora esse conjunto de regras possa produzir uma construção com dois argumentos centrais na expressão de possuidor, um deles ocupa necessariamente a posição pós-nominal e o outro, obrigatoriamente o primeiro argumento, ocupa a posição pré-nominal. (DIK, 1985, p. 26)15 Para Dik (1997), é incomum dois argumentos da nominalização serem expressões possessivas do mesmo tipo. Considerem-se os exemplos do inglês: 15 Cf. o original: 1. there is a strong preference for at least one central argument to take possessor expression. 2. if there is a Goal, the Goal must take possessor expression; this can only be done in postnominal possessor position. 3. the constellation of rules may yield a construction with two central arguments in possessor expression, but this is only possible when one of them is a prenominal possessor and the other a postnominal possessor, and when the prenominal possessor represents the first argument. 52 (27)a. the signing of the cheque of John A expressão acima não pode ocorrer porque se usam duas expressões possessivas do mesmo tipo. Para expressar o que está pretendido em (27a), teriam de ser usados (27b) ou (27c): (27)b. John’s singing of the cheque c. The signing of the cheque by John Em inglês, a expressão de dois argumentos por meio de um sintagma possessivo é possível, já que, como se observou em (27b), a expressão dos argumentos pode ser feita por meio de ‘s e de of (genitivo e sintagma-de, respectivamente). Como visto em (27a), é vetada a expressão de argumentos por meio de expressões possessivas do mesmo tipo (of, por exemplo). No português, há de se verificar se o sintagma-de permite expressão de dois argumentos em uma predicação nominalizada. Resta saber, ainda, como a mencionada competição entre os argumentos para ocupar a posição de possuidor se resolve de fato no uso real das expressões lingüísticas no PB. Há, na realidade, uma tendência inequívoca, detectada por Du Bois (1987), no sacapulteco, e por Pezatti (1992), no português, para ocorrência de orações com um único argumento lexical, geralmente na posição de Meta, implicando uma regra de estrutura preferida do tipo "evite mais de um argumento lexical na oração". No caso das nominalizações, quando dois argumentos são candidatos à expressão de posse em um sintagma possessivo pós-nominal, o segundo argumento é o preferido. Segundo Dik (1997), não é usual que os dois argumentos sejam expressos ao mesmo tempo: no caso de nominalizações baseadas em verbos transitivos, o segundo argumento será o único a ser 53 expresso; no caso de verbos intransitivos, obviamente, o primeiro argumento é o único que pode ser expresso. Numa amostragem do holandês, levantada por Dik (1985), observa-se um comportamento semelhante das predicações nominais derivadas, em que ocorre um único exemplo de predicado transitivo com a expressão tanto de Agente quanto de Meta. Isso implica – similarmente à regra de um argumento lexical, detectada por Du Bois, na predicação básica, não-derivada – que a expressão da regra nos casos de nominalizações pode resumir-se a "expresse o argumento central num sintagma de possuidor" (DIK, 1985, p.26).16 Essa regra resulta em um modelo de expressão que pode ser chamado de ergativo: o objeto transitivo é tratado do mesmo modo que o sujeito intransitivo, e o sujeito transitivo será tratado de modo diferente, com em (27c), aqui repetido: (27) c. The signing of the cheque by John Observe-se ainda a possibilidade de outros tipos de nominalizações, como em a compra foi proveitosa, em que nem mesmo aparece o argumento em função de Meta. Conforme entende Dik, predicações referem-se a estados de coisas, e termos, a entidades. Já predicações encaixadas referem-se a entidades que constituem estados de coisas. Conforme se verificou anteriormente, o PAS prediz que, quanto mais uma predicação encaixada se ajusta à expressão formal do termo nominal básico, tanto mais próprio de "entidade" é o seu significado. Assim, ao mesmo tempo em que operadores de predicado (como tempo, aspecto e modo) cedem gradativamente seu lugar a operadores de termo (como definitude, número, gênero), diminui proporcionalmente o número de argumentos e satélites. Esses ajustes conduzem a um aumento progressivo da referencialidade da nominalização. Uma taxonomia 16 Cf. o original: Express the central argument in a possessor phrase. 54 do nome necessita levar em conta esses casos para decidir o grau de "nominalidade" de ocorrências como compra, no exemplo mencionado, em termos de denominação e de descrição do denominado, que a aproxima de termos nominais concretos, em determinadas ocorrências. 2.5. Relações básicas e diferenças entre construções verbais e nominais Pensando especificamente nas construções verbal e nominal, como (28a-b), respectivamente: (28)a. O inimigo destruiu a cidade b. A destruição da cidade pelo inimigo nota-se que se trata de duas construções diferentes, já que (28a) é completamente verbal, enquanto (28b) é completamente nominal. Entretanto, reconhecidas essas diferenças, é impossível não notar que as duas construções descrevem basicamente o mesmo estado de coisas; além disso, seus predicados têm restrições de seleção idênticas e podem ser usados em circunstâncias similares. Para a GF (1997), observadas essas características, o problema básico que se coloca é como descrever essas duas construções de modo que suas relações sejam levadas em conta, sem desconsiderar as diferenças que há entre elas. A solução transformacional no modelo standard era uma derivação (LEES, 1966 apud DIK, 1997): supunha-se que as nominalizações, como a de (28b), seriam deriváveis da estrutura subjacente de sentenças completas como (28a) por meio de regras transformacionais 55 de nominalização. Esse tipo de descrição enfatizava as similaridades das duas construções em prejuízo de suas diferenças.17 Desde Chomsky (1970 apud DIK, 1997), abandonou-se a abordagem derivacional em favor de uma descrição lexical da nominalização. A idéia é de que o verbo destruir e o nome destruição entram no léxico como representantes verbal e nominal de um item lexical comum. Uma implicação disso é que a nominalização não é mais derivada da mesma estrutura subjacente como sentença completa. Por essa razão, surgiu a necessidade de um mecanismo para formular regularidades por meio de categorias sintáticas de modo a capturar as propriedades comuns de construções verbais e de construções nominais. A solução para esse problema foi a teoria X-barra, em que as regularidades sintáticas podem ser formuladas em termos da categoria variável X, que pode assumir valores como verbo (V), nome (N), adjetivo (A), ou preposição (P). Muitos problemas similares também surgiram no quadro da GF; dadas, porém, as posições teóricas básicas desse modelo, existem certas diferenças importantes. Primeiro, um princípio da GF diz que todos os predicados dotados de conteúdo lexical que não podem ser derivados de outros predicados por regra produtiva devem ser alocados no léxico. Uma vez que não existem regras produtivas no português para derivar o nome verbal destruição do verbo destruir, deduz-se imediatamente que esse nome deve ter sua própria entrada no léxico. Assim, o critério geral de produtividade faz cumprir a solução lexical para o problema. Em 17 A GF evita transformações no sentido de operações que modificam estruturas, na medida em que se baseia na suposição de que, uma vez que a estrutura foi construída, ela será mantida em toda derivação adicional da expressão lingüística. A derivação é, assim, uma questão de expansão gradual em vez de uma projeção transformacional de uma estrutura sobre outra. Há um componente do modelo da GF que, de fato, exige transformações de um tipo: o componente de formação de predicado. Regras de formação de predicado servem para derivar esquemas de predicado de outros esquemas de predicado, estendendo, assim, o conjunto de esquemas de predicados disponíveis no léxico para um conjunto de esquemas de predicado derivados, que podem, então, ser input para a construção de predicações. Alguns tipos de formação de predicados podem realizar mudanças no status categorial do esquema de predicado input, reduzindo ou estendendo número de argumentos, incorporando argumentos ao predicado, ou modificando as funções semânticas das posições de argumento do esquema de predicado. Tais transformações, contudo, são confinadas ao “fundo” da GF, o componente que contém o conjunto de predicados e o conjunto de termos a partir dos quais predicações podem ser construídas (DIK, 1989, p.19-21). Esse tipo de transformação não tem relação com regras transformacionais típicas do modelo standard da Gramática Gerativa, que eram de natureza sintática e não lexical, como são as regras de formação de predicado na GF. 56 segundo lugar, o fato de destruir e destruição terem entradas distintas no léxico não significa que se requeira uma nova teoria para considerar as similaridades entre essas duas entradas. Cada predicado é parte de um esquema de predicado, e não há nada que previna o fato de predicados nominais terem esquemas de predicado muito similares ou mesmo idênticos ao esquema de predicado de verbos relacionados. Nesse caso particular, postula-se o seguinte esquema de predicado para destruir e destruição: (29) Destruir [V] (x1)Agente/Força (x2)Meta (30) Destruição [N] (x1)Agente/Força (x2)Meta O fato de destruir e destruição poderem aparecer com o mesmo tipo de argumentos nas mesmas funções semânticas está plenamente representado nesses esquemas de predicados. Além disso, a relação entre esses predicados pode ser expressa na definição de significado de destruição: (31) Destruição [N] (x1)Agente/Força (x2)Meta = df ação/evento definido por Destruir [V] (x1)Agente/Força (x2)Meta O esquema de predicado para destruição pode ser usado em formação de termos de acordo com o modelo de uma construção encaixada: (32) (d1ei: [destruição [N] (o inimigo)Agente (a cidade)Meta]) o qual, por meio de regras de expressão que determinam a expressão formal dos argumentos dentro do contexto de uma nominalização, levará a algumas das seguintes ocorrências, como 57 a destruição da cidade pelo inimigo e a destruição pelo inimigo da cidade. Uma propriedade distintiva do modelo da GF é a de que, ao lado da derivação sintática completa e da listagem lexical pura, há também o mecanismo das regras produtivas de formação de predicado. Assim, em uma língua em que nomes verbais podem ser produtivamente derivados do verbo correspondente, as relações relevantes podem ser expressas em uma regra de formação de predicado. 2.6. Por que nominalizar? Como se trata de verificar o uso dos nomes derivados no discurso, é relevante saber as razões que levam o falante a selecionar uma nominalização. Os predicados nominais atuam como termo de uma predicação e, justamente por isso, são dotados de uma especificidade gramatical extremamente interessante: podem manter praticamente intacta a estrutura valencial do termo primitivo que lhes deu origem e funcionar como termo na predicação matriz, assumindo, assim, funções sintáticas, semânticas e pragmáticas que, de outro modo, não seria possível assumir, caso se mantivessem como verbos ou adjetivos. Segundo Mackenzie (1985, 1996), três fatores favorecem a escolha de uma nominalização: uma razão s