FERNANDA OLIVEIRA CUNHA Moralidade e bons costumes nos contos de Machado de Assis (Jornal das Famílias, 1864-1878) e de Marmontel (Mercure de France, 1761-1765) ASSIS 2020 FERNANDA OLIVEIRA CUNHA Moralidade e bons costumes nos contos de Machado de Assis (Jornal das Famílias, 1864-1878) e de Marmontel (Mercure de France, 1761-1765) Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientadora: Daniela Mantarro Callipo Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 ASSIS 2020 Cunha, Fernanda Oliveira C972m Moralidade e bons costumes nos contos de Machado de Assis (Jornal das Famílias, 1864-1878) e de Marmontel (Mercure de France, 1761-1765) / Fernanda Oliveira Cunha. Assis, 2020. 270 f. : il. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientadora: Dra. Daniela Mantarro Callipo 1. Literatura comparada - Brasileira e francesa. 2. Litera- tura comparada - Francesa e brasileira. 3. Literatura - Aspectos morais e éticos. 4. Moral e literatura. 5. Folhetins. I. Título. CDD 809.3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vânia Aparecida Marques Favato - CRB 8/3301 A Deus por ser meu ajudador e meu mestre.Ao Antonio e ao Isaque, pelo amor, companheirismo e compreensão. AGRADECIMENTOS A Deus que é a essência de minha vida, meu amigo em todos os momentos, que sempre me ensina e conduz. À minha orientadora, Dra. Daniela Mantarro Callipo, pela orientação, apoio, e por sempre acreditar em mim. Minha imensa gratidão pela nossa trajetória, que iniciou em 2010, data anterior ao início do mestrado. À Dra. Sílvia Maria de Azevedo que desde o mestrado acompanha meu trabalho e está sempre acrescentando seus conhecimentos a respeito da obra machadiana, e por participar, juntamente, com a Dra. Norma Domingos da banca de qualificação, na qual as sugestões levantadas me levaram a ter um novo olhar sobre o meu trabalho. Aos funcionários e funcionárias da Biblioteca, e da Seção de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, em especial, a Monique Gabriela Botelho Ireno Pereira e Marcos Francisco D’Andrea. À minha família: meus irmãos queridos - Luiz Fernando de Oliveira Lima pela disposição em me ajudar a resolver qualquer problema referente ao computador; e a Eliezer de Oliveira Lima por me ajudar, quando mais precisei. Também gostaria de expressar minha gratidão aos meus pais Luzia Aparecida de Oliveira Lima e Luiz Bosco de Lima, pelo amor e apoio que me deram para eu poder concluir esta tese. E em especial às minhas tias: Silvia Regina de Oliveira e Rosangela de Oliveira Reis. Ao meu esposo Antonio Marcos Cunha e ao meu filho Isaque Oliveira Cunha que sempre estiveram ao meu lado, compartilhando os momentos difíceis e também as alegrias. Vocês são a motivação da minha vida. E por fim, agradeço à Capes, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, cujo respaldo financeiro foi de suma importância para a realização deste trabalho e para minha formação. [...] Mes amis, retenez ceci, Il n’y a ni mauvaise herbe ni mauvais hommes. Il n’y a que de mauvais cultivateurs. Victor Hugo/ Les misérables CUNHA, Fernanda Oliveira. Moralidade e bons costumes nos contos de Machado de Assis (Jornal das Famílias, 1864-1878) e de Marmontel (Mercure de France, 1761-1765). 2020. 270 f. Tese (Doutorado em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2020. RESUMO As narrativas de Machado de Assis publicadas no Jornal das Famílias revelam a forma como os contos com teor moralizante circulavam pelo Brasil oitocentista. Marmontel, por sua vez, mostra-nos como o mesmo tipo de narrativa se difundiu no Mercure de France e entre as famílias francesas no século XVIII. Apesar da distância física e temporal que separa os dois escritores, é possível vislumbrar em suas obras pontos de contato referentes ao gênero que ambos praticaram em um dado momento de suas vidas. A aproximação entre eles permitirá compreender a importância da narrativa de teor moralizante para a elaboração de seus projetos literários. Trata-se, portanto, de uma pesquisa que abrangeu a leitura das obras dos dois autores publicadas nos periódicos em que eles escreviam. Como havia uma grande quantidade de textos assinados pelos dois autores, optamos por selecionar os contos que abordassem duas temáticas: o casamento e a criação de filhos, a fim de estabelecer um confronto entre os dois autores e verificar em que medida Machado de Assis se aproxima e se afasta do modelo francês criado por Marmontel, para criar um modelo nacional de contos com teor moralizante, modelo este mais adequado a seus objetivos. A pesquisa revelou como os dois autores retrataram os costumes de sua época e discutiram a moral da sociedade a que pertenciam. Palavras-Chave: Marmontel. Machado de Assis. Contos Morais. Jornal das Famílias. Mercure de France. CUNHA, Fernanda Oliveira. De la Moralité et des bons Moeurs dans les contes de Machado de Assis (Jornal das Famílias, 1864-1878) et de Marmontel (Mercure de France, 1761-1765). 2020. 270 f. Thèse (Doctorat en Lettres). – Université de l’État de São Paulo (UNESP), Faculté de Sciences et de Lettres, Assis, 2020. Résumé Les récits de Machado de Assis publiés dans le Jornal das Famílias révèlent la manière selon laquelle les contes avec un contenu moralisateur ont circulé au Brésil du XIXe siècle. Marmontel, à son tour, nous montre comment le même genre de récit s’est répandu dans le périodique Mercure de France et entre les familles françaises du XVII siècle. Malgré la distance physique et temporelle qui sépare les deux écrivains, il est possible d’entrevoir dans ses oeuvres des points de contact concernant le genre que le deux pratiquaient à un moment donné de leurs vies. L’approche entre eux permettra de comprendre l’importance du récit moralisateur pour l’élaboration de leurs projets littéraires. Il s’agit donc d’une recherche qui couvre la lecture des oeuvres des deux auteurs publiées dans les périodiques dans lesquels ils ont écrit. Une fois qu’il y avait une grande quantité de textes signés par les deux écrivains, nous avons choisi de sélectionner les contes qui abordaient deux thématiques: le mariage et l’éducation des enfants, afin d’établir une comparaison entre les deux auteurs et vérifier dans quelle mesure Machado de Assis s’approche et s’éloigne du modèle français créé par Marmontel, pour concevoir un modèle brésilien de contes possédant un contenu moralisateur, qui soit plus adapté à son but. L’ênquete a révelé comment les deux auteurs décrivaient les habitudes de leur époque et discutaient la moral de la société à laquelle ils appartenaient. Mots-Clé: Marmontel. Machado de Assis. Contes moraux. Jornal das Famílias. Mercure de France. CUNHA, Fernanda Oliveira. Morality and good morals enclosed in the tales of Machado de Assis (Journal of Families, 1864-1878) and Marmontel (Mercure de France, 1761-1765). 2020. 270 f. Thesis (Doctorate in Letters). - Paulista State University (UNESP), Faculty of Sciences and Letters, Assis, 2020. ABSTRACT Machado de Assis's narratives published in the Journal of Families reveal the way tales with moralizing content circulated in Brazil’s nineteenth-century. Marmontel, on the other hand, shows us how the same kind of narrative spread at Mercure de France and among French families in the eighteenth century. Despite the physical and temporal distance separating the two writers, it is possible to envision in their works points of contact regarding the genre both practiced at a given time in their lives. The approach between them will allow us to understand the importance of the moralizing content for the elaboration of their literary projects. It is, therefore, a research including the reading of the two authors works published in the journals they both used to write in. In view of the fact that there were a large number of texts signed by the two authors, we opted for the stories which addressed two themes: marriage and child rearing, in order to lay the scene of a confrontation between the two authors and see to what extent Machado de Assis approaches and withdraw from the French model created by Marmontel, in order to create a national model of tales with moralizing content, a model more suited to his objectives. The research showed the way the two authors portrayed the custom of those days and discussed the morals of the society they belonged to. Keywords: Marmontel. Machado de Assis. Moral Tales. Journal of Families. Mercure de France. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – Marmontel 19 Ilustração 2 – Machado de Assis 54 Ilustração 3 – Jornal do Comércio, 13 de janeiro de 1841 57 Ilustração 4 – Jornal do Comércio, 14 de setembro de 1841 57 Ilustração 5 – Jornal do Comércio, 27 de outubro de 1842 57 Ilustração 6 – Jornal do Comércio, 29 de julho de 1843 57 Ilustração 7 – Jornal do Comércio, 23 de novembro de 1844 58 Ilustração 8 – Jornal do Comércio, 26 de setembro de 1857 58 Ilustração 9 – Diário do Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1843 58 Ilustração 10 – Le Mari Sylphe 130 Ilustração 11 – Le scrupule ou l’amour mécontent de lui-même 143 Ilustração 12 – Laurette 157 Ilustração 13 – Le bon Mari 169 Ilustração 14 – L’école des pères 217 Ilustração 15 – La mauvaise mère 229 Ilustração 16 – La bonne mère 239 Sumário Resumo 6 Résumé 7 Abstract 8 Introdução 11 Capítulo 1 – OS CONTOS DE TEOR MORALIZANTE DE MARMONTEL E DE MACHADO DE ASSIS 19 1.1 “A arte da ficção é a arte de contar histórias” 21 1.2 O conto moral na França 24 1.3 O Mercure de France (1724-1791) 32 1.4 Biografia de Jean-françois Marmontel (1723-1799) 40 1.5 O conto moral de Marmontel 49 1.6 A imprensa e o surgimento do conto de teor moralizante no Brasil 55 1.7 Machado de Assis e o Jornal das Famílias: “mil nadas tão necessários ao reino do bom tom” 71 Capítulo 2 - TRANSFORMAÇÕES DE UM “SÉCULO ESFALFADO” 88 2.1 Matrimônio e patrimônio: negócio de família 90 2.2 A versão dos “Felizes para sempre” em “Astúcias de marido” 99 2.3 “Miss Dollar”: Os limites tênues entre matrimônio e patrimônio 107 2.4 O matrimônio na visão de “Uma Loureira” 120 2.5 O maravilhoso em um conto moral de Marmontel: “Le mari Sylphe” 131 2.6 A ilusão da realidade em “Le scrupule ou l’amour mécontent de lui-même” 144 2.7 O inocente amor de Laurette 158 2.8 Lusane o modelo do Honnête Homme em: “Le bon mari” 170 Capítulo 3 – BONS E MAUS CULTIVADORES 188 3.1 Temática da família com relação à criação de filhos 190 3.2 Memórias de “Frei Simão” 190 3.3 O ato moral de Julião em “Virgínius narrativa de um advogado” 199 3.4 A conduta moral em: “O pai” 208 3.5 Educação para pais em: “L’école des pères” 218 3.6 No ateliê do contista – Retrato de duas mães: “La mauvaise mère” e “La bonne mère” 230 CONSIDERAÇÕES FINAIS – A tessitura dos contos de teor moralizante de Marmontel e de Machado de Assis 259 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 265 11 INTRODUÇÃO 12 Introdução Antes de tratar dos pressupostos que norteiam a tese “Moralidade e bons costumes nos contos de Machado de Assis (Jornal das Famílias, 1864-1878) e de Marmontel (Mercure de France, 1761-1765)” e de apresentar os capítulos que a compõem, gostaríamos de relembrar a trajetória deste trabalho, que se origina de pesquisa realizada no mestrado, sob a orientação da Dra. Daniela Mantarro Callipo, com início no ano de 2012, e financiada pela CAPES, em que nos debruçamos no estudo da presença das fábulas de La Fontaine nas crônicas de Machado de Assis, pesquisa esta que resultou na dissertação Fábulosas Crônicas: La Fontaine nas crônicas de Machado de Assis apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Assis, em 2015. Durante a pesquisa, percebemos que, embora os romances de Machado de Assis sejam muito estudados, e seus contos tenham encontrado um campo fértil, atraindo pesquisadores, os contos publicados no Jornal das Famílias ainda carecem da atenção da crítica, sobretudo no que concerne a uma perspectiva comparatista.1 Os contos publicados antes de 1880 ainda não receberam a devida atenção de pesquisadores comparatistas e esta tese visa preencher esta lacuna. A tese “Moralidade e bons costumes nos contos de Machado de Assis (Jornal das Famílias, 1864-1878) e de Marmontel (Mercure de France, 1761-1765)” busca comparar os contos publicados por Machado de Assis no Jornal das Famílias com os contos morais de Marmontel, publicados no Mercure de France. Nosso objetivo é verificar as transformações realizadas por Machado na concepção dessas narrativas e os desvios efetuados com relação ao conto moral criado por Marmontel. Nossa intenção é contribuir com o avanço dos estudos relacionados ao conto moral, mostrando o modelo criado por Marmontel ao retratar sua época e a moral exigida pelos padrões da sociedade burguesa do século XVIII francês, imprimindo em sua obra uma crítica a esta geração que impunha castigos àqueles que não seguiam o padrão exigido. Veremos que Machado de Assis se afasta do modelo do conto moral 1 Silvia Maria Azevedo já analisou estes contos em sua tese de doutorado (1990) A trajetória de Machado de Assis: Do Jornal das famílias aos contos e histórias em livros, Daniela Magalhães Silveira escreveu a dissertação de mestrado Contos de Machado de Assis: leituras e leitores do Jornal das Famílias, defendida em 2005; Jaison Luís Crestani defendeu sua dissertação de mestrado em 2007, Machado de Assis colaborador do Jornal das Famílias do Romantismo para o centro da periferia literária brasileira, e em 2011 defendeu sua tese de doutorado Machado de Assis e o processo de criação literária: estudo comparativo das narrativas publicadas na Estação (1879-1884), na Gazeta de Notícias (1881-1884) e nas coletâneas Papéis Avulsos (1882) e Histórias sem data (1884). Em 2007, Alexandra Santos Pinheiro defendeu sua tese de doutorado Para além da amenidade – O Jornal das Famílias (1863-1878) e sua rede de produção. Eduardo Melo França também se debruçou sobre os contos machadianos em sua dissertação RUPTURA OU AMADURECIMENTO? Uma análise dos primeiros contos de Machado de Assis tese de mestrado de 2008. 13 marmonteliano, por fazer adequações em relação à sociedade brasileira do século XIX, contudo também revela a sua crítica fina e a sua subversão ao regime paternalista vigente. O corpus de nossa pesquisa será constituído de seis contos de Machado de Assis, publicados no Jornal das Famílias entre 1864-1878 e sete contos morais de Marmontel divulgados no Mercure de France entre 1761-1765. Embora não exista nenhum exemplar da produção de Marmontel na Biblioteca de Machado de Assis, a obra completa do autor francês pode ser encontrada no Real Gabinete Português de Leitura, local que o escritor fluminense frequentava com assiduidade e também na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde se encontram livros de Marmontel publicados no século XVIII. Além disso, a Revue des deux mondes, periódico que Machado lia, também divulgava os textos do contista francês. Pode-se, a princípio inferir, que Machado de Assis conhecia os contos morais de Marmontel, leitura obrigatória para quem desejava escrever contos que possuíssem um conteúdo moralizante. É importante ressaltar que não nos propusemos a buscar uma possível influência de Marmontel sobre Machado de Assis. Cada autor, a seu modo, elaborou contos com um teor moralizante, contos esses que foram gerados em ambientes, épocas e objetivos diferentes. No entanto, é certo que ambos os escritores extraíram seu repertório de leituras muito próximas, como se verá adiante, o que torna válida a aproximação entre eles. Ademais, percorreram um caminho semelhante ao inserir em suas narrativas temas como a educação das meninas, a importância do diálogo entre pais e filhos, a valorização da família, o desprezo ao materialismo e o cuidado com a idealização do amor romântico. Pode-se afirmar que o fato de terem valorizado a discussão a respeito dos valores que norteavam as famílias em suas épocas os aproxima e permite uma comparação entre suas obras. Colocados lado a lado, Marmontel e Machado de Assis possibilitam vislumbrar dois momentos do conto de teor moralizante nas literaturas francesa e brasileira. Com Machado de Assis, temos acesso à maneira pela qual o conto de teor moralizante circulou no Jornal das Famílias e, consequentemente, nos lares oitocentistas brasileiros. Marmontel, por sua vez, mostra-nos como o mesmo tipo de narrativa se difundiu no Mercure de France e entre as famílias francesas no século dezoito. Apesar da distância física e temporal que separa os dois escritores, é possível vislumbrar em suas obras pontos de contato referentes ao gênero que ambos praticaram em um dado momento de suas vidas. A aproximação entre eles permitirá compreender a importância da narrativa de teor moralizante para a elaboração de seus projetos literários. 14 Veremos no primeiro capítulo o quanto a população brasileira lia as obras francesas, e que dois contos de Marmontel chegaram, até mesmo, a ser traduzidos para o português, sendo aludidos por Machado em suas crônicas, o que comprova ter Machado de Assis lido Marmontel. Os contos de Machado de Assis foram publicados no Jornal das Famílias, portanto partiremos desta leitura que pode ser acessada na página da Hemeroteca Digital Brasileira 2, vinculada à Biblioteca Nacional. Também fizemos a leitura das publicações em livro, trabalhando com a edição nova Aguilar, 2008 e a edição da UFJF, 2003, organizada por Djalma Moraes Cavalcante, coletânea esta que conta com II tomos. É importante ressaltar que, para assinar essas narrativas, Machado de Assis ora se utilizava de seu nome ou das iniciais do mesmo, ora recorria ao uso de pseudônimos, que foram vários: “J.J”, “Lara”, “M.A”, “Job”, “Max”, “Victor de Paula”, “Otto”, “F”, “J.”, “M”, “Máximo”, “O.O”, ”B.B” e “Machado de Assis”. Esta pesquisa abrange o seguinte corpus da obra machadiana: “Frei Simão” (1864), “Virginius narrativa de um advogado” (1864); “O pai” (1866); “Astúcias de marido” (1866); “Uma Loureira” (1872). O único conto analisado e que não pertence à publicação do Jornal das Famílias é “Miss Dollar” (1870) que foi publicado originalmente na coletânea de Contos Fluminenses. Os contos morais de Marmontel foram escritos entre 1755-1765, abrangendo o total de vinte e três contos, sendo o primeiro “Alcibiade ou le moi”, publicado no Mercure de France em 1855, periódico que ele dirigiu entre 1755 e 1758. Somente em 1761, a primeira série de Contos Morais é reunida em coletânea. Em 1790, ele publica mais dezessete contos denominados Nouveaux Contes Moraux (Novos Contos Morais), totalizando quarenta contos. Nossa proposta é trabalhar com sete contos pertencentes aos três primeiros tomos de contos morais de Marmontel que aparecem entre 1761-1765, abrangendo o seguinte corpus: I Tomo - “Le scrupule ou l’amour mécontent de lui-même” e “Le mari Sylphe”; do II Tomo - “La mauvaise mère”, “La bonne mère”, “L’école des pères” e “Laurette”; para finalizar do III Tomo - “Le Bon Mari”. Os contos publicados no Mercure de France foram consultados na Biblioteca Nacional da França por meio do site Gallica. 3 Visamos, portanto, estudar os contos acima relacionados e que foram produzidos em dois séculos distintos, em países diferentes, na França do século XVIII e no Brasil do século XIX. A possibilidade de estudarmos os contos de Marmontel, e entrelaçarmos estas narrativas 2 Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx 3 Disponível em: https://gallica.bnf.fr http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx https://gallica.bnf.fr/ 15 com os contos do autor brasileiro Machado de Assis, confirma o agrupamento e entrecruzamento das várias manifestações dos textos literários como afirmado por Samoyault. Segundo a pesquisadora: A literatura se escreve certamente numa relação com o mundo, mas também se apresenta numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, a longa caminhada de suas origens. Se cada texto constrói sua própria origem (sua originalidade), inscreve-se ao mesmo tempo numa genealogia em que ele pode mais ou menos explicitar. Esta compõe uma árvore com galhos numerosos, com um rizoma mais do que com uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais. É impossível assim pintar um quadro analítico das relações que os textos estabelecem entre si: da mesma natureza, nascem uns dos outros; influenciam uns aos outros, segundo o princípio de uma geração não espontânea; ao mesmo tempo não há nunca reprodução pura e simples ou adoção plena. A retomada de um texto existente pode ser aleatória ou consentida, vaga lembrança, homenagem explícita ou ainda submissão a um modelo, subversão do cânon ou inspiração voluntária. 4 Partindo deste conceito, e ciente de que todo texto nasce de outros, Samoyault (2008) discorre sobre as imprecisões teóricas existentes que corroboram para que a teoria permaneça vaga diante da hesitação dos críticos, o que leva a pesquisadora a pensar a intertextualidade de forma unificada, “reunindo seus traços em torno da ideia de memória [...]” 5 o que proporciona [...] uma retomada melancólica, em que ela se contempla no seu próprio espelho, e retomada subversiva ou lúdica, quando a criação se subordina à ultrapassagem daquilo que a precede, a literatura não para de lembrar e de conter um desejo idêntico, aquele mesmo da literatura. 6 Pensando na trajetória da literatura, no longo caminho que ela percorreu, marcando a história de suas produções e origens, a ponto de ganhar diversas ramificações, possibilitando o surgimento de um texto a partir de outros textos é que podemos pensar na trajetória do conto moral. Este gênero textual provém da França e foi desenvolvido por Marmontel, que recebeu o título de pai do conto moral francês. Graças à leitura feita dos contos morais de Marmontel, é possível afirmar que Machado de Assis desenvolveu um conto moral à brasileira, retratando a sociedade do século XIX com muita perspicácia, humor e ironia, próprio de sua 4 Idem, 2008, p. 9-10. 5 Idem, p. 10. 6 Idem, ibidem. 16 pena, e assim, colaborando para que o leitor tenha outros pontos de vista sobre a condição humana, saindo amadurecido dessa experiência e vendo a vida por outro prisma. Aquilo que Fourgnaud afirma acerca da Literatura Francesa pode ser aplicado em relação aos contos machadianos analisados nesta pesquisa: “[...] trata-se de favorecer o mergulho do leitor no coração da ficção, a fim de fazê-lo sentir as contradições humanas e torná-las mais tolerante. [...]”. 7 Esta imersão do leitor na ficção, a fim de gerar um amadurecimento concernente aos fatos reais da vida, confirma a hipótese de Tiphaine Samoyault (2008) de que a intertextualidade vai além da história de suas teorias, da descrição de suas técnicas, pois ela: “[...] envolve uma verdadeira reflexão sobre a memória da literatura e sobre a natureza, as dimensões e a mobilidade de seu espaço, e especialmente sobre o jogo da referência – o remeter da literatura para si mesma – e da referencialidade – liame da literatura com o real”. 8 O que, conforme a pesquisadora: [...] torna possível definir a literatura, considerando-se essa dimensão da memória, na qual a intertextualidade não é mais apenas a retomada da citação ou da re-escritura, mas descrição dos movimentos e passagens da escritura na sua relação consigo mesma e com o outro. Os efeitos de convergência entre uma obra e o conjunto da cultura que a nutre penetra-a em profundidade, aparecem então em todas as suas dimensões: a heterogeneidade do intertexto funda-se na originalidade do texto. E pensar diferentemente a história dessa memória da literatura é servir-se da tensão entre a retomada e a novidade, entre o retorno e a origem, para propor uma poética dos textos em movimento. 9 É importante registrar que foram lidos os três tomos da obra de Marmontel, totalizando 23 contos, dentre os quais foram selecionados sete. Por sua vez, os contos de Machado de Assis, publicados no Jornal das Famílias, perfazem 89 contos, todos lidos e relidos várias vezes, para podermos selecionar dentre eles seis contos que fazem parte de nossa pesquisa. Levando-se em conta um corpus original tão extenso, decidimos privilegiar a análise das narrativas que abordassem o casamento, a educação e o relacionamento entre pais e filhos. 7 FOURGNAUD, Magali. Le conte à visée morale et philosophique de Fénélon à Voltaire, 2013. p. 11, 583 f. Tese de doutorado em Letras Modernas - Université Michel de Montaigne - Bordeaux III – França, 2013. Trad. nossa. No original, lê-se: [...] Il s’agit de favoriser la plongée du lecteur au coeur de la fiction, a fin de lui faire sentir les contradictions humanaines et partant le rendre plus tolérant. [...] 8 SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução: Sandra Nitrini. São Paulo: Editora Hucitec, Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 10-11. 9 Idem, 2008, p. 11. 17 Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, abordamos o gênero conto e a origem do conto moral na França, origem esta atribuída ao escritor francês Jean-François Marmontel, que foi denominado o pai do conto moral francês. 10 Conjuntamente ao estudo do conto moral percorreremos a biografia e Mémoire de Marmontel (1891) 11; o importante prefácio escrito pelo autor, pois nele o escritor faz uma apologia sobre o conto moral, e alguns artigos reunidos em Éléments de littérature, cujo teor aponta a diversidade dos termos que envolviam o estudo da literatura. O conhecimento de todas estas obras escritas por Marmontel é de suma importância, pois revela o pensamento do autor e o teor da discussão literária do século XVIII. Logo depois dissertamos sobre o periódico Mercure de France onde sua obra foi publicada, e realizamos uma análise de seus contos morais que revelam uma pintura do quadro social de seu século. Em seguida, visto que esta tese trata, também, da obra do autor brasileiro Machado de Assis era importante entendermos a forma como o conto moral surgiu no Brasil, portanto, mostramos que Marmontel era lido pela sociedade brasileira do século XIX, chegando até mesmo a ter dois de seus contos: “Les deux infortunées” e “Lausus et Lydie”, traduzidos para o português. Esta pesquisa nos levou a algumas crônicas de Machado de Assis, em que o autor cita Marmontel, revelando o conhecimento do escritor brasileiro da obra do autor francês. Para conhecermos um pouco mais as diretrizes que ajudaram a criar a estrutura do conto machadiano, nos debruçamos na análise do Jornal das Famílias, suporte onde os contos eram publicados, o que nos fez compreender ainda mais a sociedade brasileira do século XIX e a fórmula que estava tendo sucesso entre os leitores. A diversidade de assuntos abordados por Machado de Assis e Marmontel é muito grande, fazendo-se necessária uma delimitação temática para procedermos com a análise dos contos. Assim, o capítulo dois aborda o tema do matrimônio e do patrimônio na obra dos dois autores. As narrativas analisadas neste segundo capítulo são: “Astúcias de marido” (1866), “Miss Dollar” (1864), “Uma loureira” (1872) de Machado de Assis. E “Le mari Sylphe”, “Le scrupule ou l’amour mécontent de lui-même”, “Laurette” e “Le bon mari” de Marmontel. Todas as narrativas com edição de 1765. No terceiro capítulo, a temática abordada é a de pais e filhos, com ênfase na criação de filhos, que são a extensão do casamento e o resultado esperado na união do casal. A importância da dedicação dos pais na criação de seus filhos é de suma importância para 10 VEYSMAN, Nicolas. Le rictus moral de Marmontel. Féeries [En ligne], 5 | 2008, mis en ligne le 01 septembre 2009, consulté le 04 mai 2019, p. 115 (résumé). URL : http://journals.openedition.org/feeries/685. 2009. 11 Disponivel em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2135848/f40.item Acesso: 03/06/2019. http://journals.openedition.org/feeries/685.%202009 http://journals.openedition.org/feeries/685.%202009 https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2135848/f40.item 18 manter a moralidade e os bons costumes na família. Tanto Marmontel como Machado de Assis criam personagens que ora são exemplos de virtude e de zelo com os filhos, ora representam os vícios e os erros dos pais na educação moral de sua geração. Nesse capítulo, nós analisamos três contos de Machado de Assis: “Frei Simão” (1864), “Virginius narrativa de um advogado” (1864), “O Pai” (1866). E três contos de Marmontel: “L’école de père” (1765), “La mauvaise mère et La bonne mère” (1765). Passemos, então, ao primeiro capítulo e ao estudo do gênero conto. 19 Capítulo 1 Os Contos com teor moralizante de Marmontel e de Machado de Assis 20 Fonte: http://www.bort-les-orgues.com/jean-francois-marmontel/ Acesso: 06/11/2017 Ilustração 1. Marmontel http://www.bort-les-orgues.com/jean-francois-marmontel/ 21 1.1 “A arte da ficção é a arte de contar histórias” O conto é uma obra de curta extensão se comparado às novelas e romances. Nadia Battela Gotlib em Teoria do conto expõe questões antigas sobre esse tipo de narrativa: “[...] O que é o conto? Qual a sua situação enquanto narrativa, ao lado da novela e do romance, seus parentes mais extensos? E mais: até que ponto este caráter de extensão é válido para determinar sua especificidade? [...]”.12 Como podemos analisar, a discussão sobre a teoria do conto é antiga e esse gênero é de difícil classificação. Sabe-se que o conto resistiu ao tempo. Segundo R. Magalhães Júnior este gênero é “[...] a mais antiga expressão da literatura de ficção [...]”. 13 Ele teve sua origem na necessidade dos povos em contar histórias, lendas e mitos e da oralidade ele transita para a escrita no século XIV. Esta transição para a escrita, conforme relata Magalhães Júnior (1972), sofre alterações e ampliações para melhor enriquecer e embelezar o conto escrito, porém “[...] na Idade Média, conto, anedota, parábola, exemplos morais, fábula, novela e romance se confundiam”. 14 A problematização, segundo Gotlib, pode estar no fato de que nem todos admitem que exista uma teoria do conto. A narrativa vai sendo traçada, abrindo a possibilidade de haver diversos aspectos, pois este gênero tem uma liberdade de direção, o que problematiza a estética literária. Machado de Assis relata ser um “gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade”. 15 Toda esta dificuldade em se escrever um conto é ressaltada por Júlio Cortazar (2006) em “Alguns aspectos do conto” em que o autor se refere a esse “gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos”. 16 Trava-se uma batalha, pois é necessário haver uma ideia do que seja um conto, para depois escrevê-lo e atrair o leitor: Se não tivermos uma ideia viva do que é o conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência. 17 12 GOTLIB, Nádia Battella. A teoria do conto. digitalizada: Coletivo Sabotagem, 2004. p. 5. Disponível em: file:///E:/arquivos%20do%20note/Nadia%20Battela%20Gotlib%20%20Teoria%20do%20Conto.pdf Acesso: 02/05/2019. 13 JÚNIOR, Magalhães R. A arte do conto. Rio de Janeiro: Bloch, 1972. p. 9. 14 Idem, 1972, p. 10. 15 ASSIS. Machado. Instinto de nacionalidade. In: Obra completa. 3º Ed. Rio de Janeiro, Aguilar, 1973. p. 806. 16 CORTÁZAR, Julio. Válise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 149. 17 Idem, 2006. p.150-151. file:///E:/arquivos%20do%20note/Nadia%20Battela%20Gotlib%20%20Teoria%20do%20Conto.pdf 22 Magalhães Júnior (1972) relata que a forma embrionária do conto surgiu na França com a denominação de fabliaux, e este modelo foi seguido por diversos países, inclusive pelo Brasil. Esta forma de ficção literária podia ser breve ou longa, desde que obedecesse a algumas características próprias do gênero, que conforme o pesquisador caracteriza-se por: uma narrativa linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia dos personagens nem nas motivações de suas ações. Ao contrário, procura explicar aquela psicologia e essas motivações pela conduta dos próprios personagens. A linha do conto é horizontal: sua brevidade não permitiria que tivesse um sentido menos superficial. 18 Por seguir esta linha horizontal, o conto é episódico, diferenciando-se do romance que seria “[...] uma sucessão de episódios, interligados”, exigindo do autor “[...] tratamento diverso.” 19 A maneira encontrada para definir a diferença entre o conto e o romance primeiramente se valeu da extensão das duas narrativas, sendo que no conto a narrativa era mais curta, enquanto no romance era mais longa. Porém, este olhar simplista sobre os gêneros ocasionou no passado a confusão entre os três gêneros: o conto, a novela e o romance, a tal ponto dos próprios autores se equivocarem quanto à classificação: “[...] simples histórias curtas, como algumas que Voltaire escreveu, eram denominadas romances, por seus próprios autores [...]”. 20 Depois de muito tempo é que foi estabelecida uma fronteira entre os gêneros, o que possibilitou uma distinção melhor entre eles. Os contos ficaram conhecidos como “[...] breves relatos de episódios imaginários geralmente transmitidos ao leitor como fatos acontecidos”. 21 Esta definição é defendida pelo filósofo e enciclopedista francês Denis Diderot que, segundo Magalhães Júnior, distinguia o conto de três formas: o conto maravilhoso “[...] à maneira de Homero, de Virgílio de Tasso”, o conto agradável “à maneira de La Fontaine, de Vergier, de Ariosto e de Hamilton, em que o contista não se propõe à imitação da natureza, nem a verdade nem a ilusão; ele se lança a espaços imaginários” 22; e existem os contos realistas, os quais Diderot definia como históricos, cujos representantes eram Scarron, Cervantes e Marmontel. Estas narrativas são escritas de modo a convencer o leitor da verdade do relato. 18 JÚNIOR, Magalhães, 1972. p. 10. 19 Idem, p.10-11. 20 Idem, p. 11. 21 Idem, ibidem. 22 Idem, 1972. p.13. 23 A melhor definição do conto foi aquela usada por Aristóteles em sua Poética em relação ao drama, ao qual ele atribui dez características: o espetáculo, que no conto seriam o cenário e a atmosfera, sendo esta última a que: “[...] induz o leitor à melhor compreensão da história e das intenções do autor, explicando o estado de espírito dos personagens ou proporcionando o simbolismo visual necessário ao efeito emocional da narrativa”. 23 O caráter dos personagens analisa suas “[...] motivações, sua psicologia, personalidade, atitudes. [...]” 24, o que para Magalhães Júnior deve ser a preocupação máxima do autor, uma vez que ele pretenda imitar as ações dos seres humanos. O enredo ou fábula, cuja ação deve ter início, meio e fim, mas deve ter poucos detalhes, devido à brevidade do conto e isto mantém a intensidade desta narrativa que pode estar interligada com seu ritmo, pois o autor sabe que não tem o tempo como seu aliado; portanto, é preciso anular detalhes desnecessários e manter uma tensão contínua, atraindo o leitor para que este não interrompa a leitura. A peripécia mantém um conflito, uma descoberta ou revelação, pode acontecer por meio do: “[...] súbito despertar de uma personagem, que adquire um novo conhecimento de si mesma ou de seu mundo, é um dos temas capitais das histórias curtas modernas”. 25 A descoberta pode ser feita pela personagem ou pelo leitor que passa a ser um “[...] representante da personagem”. 26 A dicção indica que a linguagem é usada de forma apropriada às intenções do autor, sendo este aspecto fundamental para o ponto de vista em que ocorre a análise sobre o narrador ser onisciente ou apenas observador. Outra característica do conto é o pensamento ligado à proposição universal. A epifania, definição esta de James Joyce que é o ponto chave da narrativa “é o momento em que, num breve lapso de tempo, o caráter de uma personagem é posto à prova, revelando-se a sua fortaleza moral ou as suas debilidades [...]”. 27 E por fim, as imagens em que caráter, enredo e estilo devem “[...] convergir para um centro real: a súbita e integral revelação de determinado personagem e de um tema universal”. 28 A escolha do tema é de suma importância para o surgimento de um bom conto, esse tema pode ser simples, tirado do cotidiano, porém deve ser sempre excepcional, pois tem a função de despertar lembranças, sentimentos e ideias, enriquecendo, assim, o leitor que passa a ter outros pontos de vista sobre a condição humana, saindo amadurecido dessa experiência e vendo a vida por outro prisma, Segundo Ricardo Piglia (1994), “um conto sempre conta duas 23 MAGALHÃES, Júnior, 1972. p. 16. 24 Idem, ibidem. 25 Idem p. 16. 26 Idem, ibidem. 27 Idem, p.17. 28 Idem p. 18 24 histórias” 29 uma visível e outra invisível e o leitor tem uma função essencial ao decifrar o enigma. Para Antonio Candido: a literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária [...] 30 A importância da literatura é justamente esta roda viva entre o escritor e o leitor, pois ambos participam da tessitura de um conto. O autor lança seu enigma e o leitor tem a chave para desvendar os mistérios. A ficção é uma arte refinada na qual o mínimo detalhe se torna fator importante no processo de criação da obra. O autor que deseja escrever um bom conto deve se ater às características ressaltadas acima, sabendo trabalhar os entornos que ajudam a caracterizar um bom conto. Neste processo, o leitor é de suma importância, porque é nele que o conto vai encontrar o eco necessário para a aceitação da obra e a atração de novos leitores. Cientes do papel do leitor na arte da ficção, muitos autores estabelecem um importante diálogo com eles, como o faz Machado de Assis, sempre chamando a atenção de seus leitores, para que estes participem do processo da escritura, de forma a serem espertos, indo além daquilo que estão lendo, ou seja, passando a ler nas entrelinhas. Ler torna-se um processo misterioso no qual o leitor passa a decifrar o autor e o enigma em sua volta. Podemos inferir que, da mesma forma que o autor passa por um processo para aprender a escrever, o leitor também aprende a ler e com perspicácia consegue conduzir o seu olhar interagindo com a obra, a ponto de poder formular sua própria maneira de pensar e de analisar de forma crítica a ficção que tem em suas mãos. 1.2 O conto moral na França Ao buscarmos uma definição do conto, em específico, do conto moral, somos levados a pensar no papel que a literatura e a ficção exercem na vida humana e a refletir acerca da necessidade que o homem tem de criar personagens, registrar lugares, costumes, descrever a vida da forma mais verossímil possível. Mesmo quando a escrita trata de seres fantásticos, 29 PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 34. 30 CANDIDO, Antonio. 2006. Literatura e Sociedade. Ouro sobre Azul. Rio de Janeiro, 2006. p. 84. 25 como por exemplo, monstros, feras, fadas, silfos, a intenção da criação destes seres que passam a fazer parte de nossa vida desde criança, seja por meio de uma história lida ou contada, é agir sobre nosso espírito, nossa alma, e por meio da palavra satisfazer às necessidades humanas. Embora cientes de estarmos diante de uma ficção, todas as histórias que conhecemos penetram em nosso interior, marcando nossas vidas, tendo o poder de nos levar a vivermos outras vidas, em outros lugares, com outros costumes, pois nos identificamos com os narradores, com as personagens e suas oratórias. Histórias fantásticas permeiam nossa mente e com elas a diversidade de desfiles de caráter humano. O conto visa transmitir uma mensagem verdadeira e divertida ao mesmo tempo, o que o entrelaça aos contos de fadas, cujo teor fictício é maior por fugir da realidade. Com o passar do tempo, os contos de fadas ganham um novo formato, as personagens não representam mais os heróis de tragédias, mas uma nova filosofia animada pela ficção. Surge, portanto, a necessidade de uma nova categoria de contos que não sejam somente fantásticos, mas abranjam “uma visão moral ou filosófica.” 31 Esta relação entre o relato e a moral evolui a ponto do conto, da fábula e do mito ganharem autonomia e serem classificados como gêneros distintos. Desde então, surge a expressão “conto moral” ou “conto filosófico”. Segundo Camille Affaire (2011), “o adjetivo moral é proveniente do latim mores e significa “moral” e “costumes”. O « conto moral » é então, por consequência, uma obra que incita à virtude, por meio de pequenas lições” 32, lembrando o conto de fadas que é mágico e moral; mas contendo uma nova fórmula e outra maneira de ser decifrado. Conforme a pesquisadora é assim que surge em 1742, pela primeira vez, a denominação genérica conto moral em um subtítulo de um relato libertino de Crébillon 33, seguindo critérios intuitivos e implícitos, englobando uma gama de textos com registros variados, como “contos”, “histórias”, “anedotas”, “novelas”, e com variação também no conteúdo, podendo abranger textos pastorais, feéricos, libertinos, orientais dentre outros, contendo uma diversidade de temáticas. Além da diversidade de temáticas, podemos perceber que as narrativas vão do sério ao cômico: (2013) 31 FOURGNAUD, 2013. p. 10. Trad. Nossa. No original, lê-se: [...] pas seulement féeriques, qui affichent une visée morale ou philosophique. 32 AFFAIRE, Camille. L’utilisation des apparences en tant que production de réalité Le conte du Mari Sylphe de Jean-François Marmontel [recurso eletrônico]. 2011. p. 6. 47f. (Dissertação de Mestrado em Letras Modernas), Universidade de Letras e Artes – Grenoble, 2011. Trad. Nossa. No original, lê-se: L’adjectif moral est issu du latin mores et signifie à la fois « morale » et « moeurs ». Le « conte moral » est alors, par conséquent, un ouvrage qui incite à la vertu, en quelque sorte de petites leçons souriantes. 33 “Le Sopha”, conte moral. 26 [...] Por um lado, a denominação genérica, conto moral ou conto filosófico, que parece ter sido formulada a partir de critérios intuitivos e implícitos, reagrupa textos de formas e de conteúdos muito variados. De outro lado, esta subcategoria do conto aparece quando a qualificação (“moral” ou “filosófica”) sofre uma completa transformação semiológica: é preciso compreender com isso que a moral muda, mas que a palavra continua? ou que o subgênero se define precisamente porque a categoria a que ele pertence está em plena transformação e que ele serve para experimentar suas qualidades e seus limites? Enfim, as noções de moral e de filosofia estão de tal forma entrelaçadas no século XVIII que elas não podem constituir duas categorias distintas. Um panorama das definições parece então necessário, afim de melhor definir o que elas designam e compreender suas nuances. 34 Estamos diante de uma narrativa que possui formas e conteúdos variados e cuja moral modifica-se constantemente. Diante de tantas variações, a questão é: o que poderemos definir como moral? No Dicionário da Academia de 1694 35, moral é definida como “doutrina de costumes” e costumes são “hábitos naturais adquiridos para o bem ou para o mal”. Este conceito evidencia o aspecto religioso e dogmático da moral; no entanto, o termo moral pode ser concebido “[...] também pela maneira de viver e pelas inclinações, os costumes e as leis diferentes de cada nação”. Segundo Fourgnaud (2013), os filósofos enciclopedistas não consideram a moral como a separação entre o bem e o mal, o que os leva a pensar no termo como uma “ciência de costumes”, “[...] dependendo do clima, da religião, das leis, do governo, das necessidades, da educação, das maneiras e dos exemplos, como afirma Diderot, no artigo “Costumes” [...]” 36, portanto ligada à maneira pela qual cada ser humano vive, seguindo as leis de cada nação. Podemos inferir que a definição de moral na França do século XVII passa por uma transição, sendo que, para alguns, ela está entrelaçada à separação entre o bem e o mal, seguindo os dogmas da religião; e para outros, ela é uma “ciência de costumes”, quebrando os 34 FOURGNAUD, Magali, 2013. p. 14. Trad. nossa. No original, lê-se: [...] D’une part, la dénomination générique, conte moral ou conte philosophique, qui semble avoir été formulée à partir de critères intuitifs et implicites, regroupe des textes de formes et de contenus très variés. D’autre part, cette sous-catégorie du conte apparaît alors même que le qualificatif (« moral » ou « philosophique ») subit une complète transformation sémiologique: faut-il comprendre par là que la morale change mais que le mot reste? ou bien que le sous-genre se définit précisément parce que la catégorie qu’il recoupe est en pleine transformation et qu’il sert à en expérimenter les qualités et les limites? Enfin, les notions de morale et de philosophie sont tellement entremêlées au XVIIIe siècle qu’elles ne peuvent pas constituer deux catégories distinctes. Un panorama des définitions apparaît donc nécessaire, afin de mieux saisir ce qu’elles désignent et d’en comprendre les nuances. 35 Académie française. Article « Mœurs », Dictionnaire de l’Académie françoise, dédié au Roy, T. II, Paris, Vve de Jean-Baptiste Coignard, 1694. p. 77. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k50398c/f78.image acesso 21/05/2019. Trad. nossa. No original, lê-se: doctrine de moeurs/ habitudes naturelles ou acquises pour le bien ou pour le mal / Il se prend aussi pour la manière de vivre et pour les inclinations, les costumes et les lois différentes de chaque nation. 36 FOURGNAUD, 2013. p.15. Trad. nossa. No original, lê-se: dépend du climat, de la religion, des lois, du gouvernement, des besoins, de l’éducation, des manières et des exemples”, comme l’affirme Diderot, dans l’article “Moeurs” [...] https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k50398c/f78.image%20acesso%2021/05/2019 https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k50398c/f78.image%20acesso%2021/05/2019 27 paradigmas que prendem este conceito à igreja e passando este conceito para o universo do homem com seus hábitos de vida e de pensamento: “a moral torna-se assim uma filosofia dos costumes, e a filosofia dos iluministas pode definir-se como uma filosofia moral”: 37 segundo a qual “[...] o homem não é moral nem imoral e se ele torna imoral é por falta de uma educação moral, compreendida como um policiamento dos costumes”. 38 Este conceito transmite uma reforma da ordem humana e participa das ideias das reformas iluministas. Nas palavras de Fourgnaud (2013): Desde então, a moralidade do sujeito não repousa mais em sua força interior, em sua consciência íntima, mas em sua experiência prática: Trata-se de escrever os costumes, de contar as experiências para compreender o que é o homem e sua sociabilidade, a narrativa participando plenamente da reflexão moral. 39 Partindo deste conceito, podemos inferir que o conto moral propicia um retorno reflexivo do leitor sobre si mesmo e para tal o essencial está na experiência. O conto moral busca, por meio da ficção, a adesão do leitor e o estabelecimento de uma ilusão, enquanto o conto filosófico objetiva desiludir o leitor, tornando-o mais lúcido, criando assim um paradoxo entre eles. Outra característica é ativar uma reflexão particular e coletiva, participando da emergência de uma nova sociabilidade própria aos iluministas. A evolução do conceito de moral fez surgir uma nova concepção do leitor e também do escritor: A intenção destes autores é então a de instruir, não no sentido de passar uma lição, mas de oferecer ao leitor as condições propícias, afim de que ele possa fazer uso de seu próprio entendimento. Tal é a abordagem que o leitor é convidado a seguir, principalmente por Voltaire no Dicionário filosófico [...] 40 37 RUEFF, Martin. Article « Morale et mœurs », dans Dictionnaire européen des Lumières, Paris, PUF, 2007. p. 839. 38 FOURGNAUD, 2013. p. 15. Trad. nossa. No original, lê-se: [...] l’homme n’est ni moral, ni immoral, et s’il le devient, c’est faute d’une éducation morale, comprise comme une police des mœurs. 39 Idem, ibidem. Trad. Nossa. No original, lê-se: Dès lors, la moralité du sujet ne repose plus dans son force intérieur, dans sa conscience intime, mais dans son expérience pratique: il s’agit d’écrire les mœurs, de raconter des expériences pour comprendre ce qu’est l’homme et sa socialité, le récit participant pleinement à la réflexion morale. 40 FOURGNAUD, 2013. p. 19. Trad. nossa. No original, lê-se: L’intention de ces auteurs est donc bien d’instruire, non au sens de faire la leçon, mais d’offrir au lecteur les conditions propices, afin qu’il puisse faire usage de son propre entendement. Telle est bien la démarche que le lecteur est invité à suivre, notamment par Voltaire dans le Dictionnaire philosophique [...] 28 Como podemos perceber, o processo de aprendizado pelo qual o autor conduz o leitor o levará a um plano humano universal, cujo instrumento é a razão. A literatura tem um papel primordial no registro dos temas universais da humanidade; por meio da ficção, conceitos de toda uma geração são eternizados nos livros. Marmontel, para definir o que seria esta literatura, cujo gênero incita à moral e aos bons costumes, começa por dissertar em seu artigo “Littérature” sobre a erudição e a literatura, mostrando a diferença entre elas. Segundo o autor, a literatura é o conhecimento das belas letras, enquanto a erudição é: “[...] o conhecimento dos fatos, dos lugares, dos tempos, dos momentos antigos e dos trabalhos eruditos para esclarecer os fatos, para fixar as épocas, para explicar os monumentos e os escritos dos antigos” 41 e o homem letrado tem seu trabalho iluminado e com mais profundidade por meio da erudição, adquirindo o conhecimento de grandes modelos em poesia, eloquência, em história, em filosofia moral e política, seja de séculos passados ou de tempos mais modernos. Assim, a ficção busca elevar nossas almas, transmitindo-nos saberes e culturas que ainda não tínhamos, nos faz crescer como seres sociais que somos e amadurecer em nossas relações humanas; para isso, o leitor precisa fazer o pacto ficcional com a leitura, tomando as narrativas conhecidas como possíveis e reais, no momento em que elas estão fazendo parte de sua vida, no momento da leitura: “a ficção deve então ser a pintura da verdade, mas da verdade embelezada pela escolha e pela mistura das cores e dos traços que ela retira da natureza. Não existe um quadro tão perfeito na disposição natural das coisas, que a imaginação não precise ainda retocar”. 42 A obra de arte que flui da pena do autor embeleza a terra, a escolha das cores para compor o quadro que é uma representação da vida, da natureza, do homem, de seus hábitos, de suas paixões, virtudes e vícios é muito importante, pois define os costumes dos povos em diversas gerações. Estes costumes podem estar ligados a diversos fatores, como define Marmontel no artigo “Moeurs”: à burguesia, à vida no campo ou na cidade, ao homem civilizado ou inculto, à diferença dos climas que definem o grau de energia, de atividade, de sensibilidade, de calor, assim, o autor busca destacar a diferença do homem que nasce em um clima quente, em um clima frio, temperado; à diferença das idades refletindo o comportamento de cada fase da vida, sendo esta diversidade de costumes ligada à influência 41MARMONTEL, Jean-François. Éléments de littérature. apresentada por Sophie Le Ménahèze. Éditions Desjonquères, 2005. p. 697, Trad. nossa. No original, lê-se: [...] la connaissance des faits, des lieux, des temps, des monuments antiques et des travaux des érudits pour éclaircir les faits, pour fixer les époques, pour expliquer les monuments et les écrits des anciens. 42 Idem, p. 568, Trad. nossa. No original, lê-se: La fiction doit donc être la peinture de la vérité, mais de la vérité embellie par le choix et par le mélange des couleurs et des traits qu’elle puise dans la nature. Il n’y a point de tableau si parfait dans la disposition naturelle des choses, auquel l’imagination n’ait pas encore à retoucher. [...] 29 de hábitos, de instrução e de opinião, à diferença entre homem e mulher, tanto no plano natural como naquele da instituição; à diferença entre um povo caçador, um povo pastor, um povo trabalhador, um povo do campo ou da cidade, à diferença entre as profissões, a nobreza, a burguesia, estas distinções para Marmontel proporcionam à sociedade mil cores diversas. Segundo Magali Fourgnaud (2013), 43 para Marmontel esta permanência de cenários de um século a outro, de um gênero a outro, confirma a universalidade das ações humanas e os “sentimentos da natureza”. Aliás, por meio do estudo sobre a comédia imposta a ele por Boissy foi que Marmontel decidiu colocar em seu relato a crítica aos costumes: “[...] enfim eu tentei pintar os costumes da sociedade ou os sentimentos da natureza; o que me fez dar a esta Coletânea o título de Contos Morais. À verdade de caracteres, eu quis acrescentar a simplicidade das maneiras de agir, dentre as quais eu só destaquei as mais corriqueiras”. 44 O essencial no estudo a que se propõe o escritor é justamente a influência dos costumes sobre as leis: “[...] a constituição física, moral e política de diversos povos da terra, e tudo o que para o homem é natural de nascimento ou de instituição deve entrar essencialmente no plano dos estudos do poeta [...]”. 45 Com relação aos costumes, é necessário observar quatro quesitos: se eles são bons ou maus, convenientes, semelhantes ou iguais. As personagens podem refletir a bondade dos costumes ou a maldade caracterizada como vícios ou crime, havendo a distinção entre estes dois termos. O vício é algo habitual, tranquilo e lento, enquanto o crime é um sensor da desordem e do remorso. As personagens podem agir por meio dos bons costumes e da moral, ou passar desta para o vício e o crime. A moral procura restabelecer a virtude perdida, chamando à razão, e aos bons costumes aquele que se perdeu em meio ao caminho. O prefácio dos Contos Morais, publicado primeiramente no Mercure de France e depois incorporado à coletânea, é de suma importância para quem se propõe a conhecer a obra do autor francês, pois nele Marmontel comenta sobre o processo de produção de seus contos, explicando que procurou encontrar na natureza as regras e os meios de arte, percorrendo o quadro da sociedade e recolhendo algumas observações importantes. Estes traços recolhidos e pertencentes a sua coleção de caracteres humanos chama a atenção de seu amigo M. Boissy 43 FOURGNAUD, Magali. Le conte à visée morale et philosophique de Fénélon à Voltaire. 2013. p. 94, 583 f. Tese de doutorado em Letras Modernas - Université Michel de Montaigne - Bordeaux III – França, 2013. 44 MARMONTEL. Jean-François. Contes Moraux. Préface. op. cit, p. xj e xij, Trad. nossa. No original, lê-se: [...] Enfin j’ai taché partout de peindre ou des moeurs de la société ou les sentiments de la nature; c’est qui m’ a fait donner à ce Recueil le titre de Contes Moraux./ A la vérité des caractères j’ai voulu joindre la simplicité des moyens, et je n’ai guère pris que les plus familiers. [...] 45 MARMONTEL. Jean-François. Éléments de Littérature. Moeurs, p.724, Trad. nossa. No original, lê-se: [...] la constituition physique, morale et politique des divers peuples de la terre, et tout ce qui dans l’homme est naturel ou factice, de naissance ou d’instituition doit entrer essentiellement dans le plan des études du poète. [...] 30 que lhe pede uma narrativa para inserir no Mercure de France. Assim, o primeiro conto de Marmontel publicado foi “Alcibiade ou le moi”, em 1755. Marmontel toma para si as palavras de Perrault: “[...] este conto teve o sucesso que podia ter uma bagatela [...]”. 46 É muito importante percebermos ser este um recurso usado não para desprestigiar seu primeiro trabalho, mas para aumentar ainda mais seu sucesso, na verdade existe um jogo importante com as palavras usadas para terem outro significado, pois seu conto obteve sucesso imediato, já que sua narrativa buscava fazer um quadro dos costumes de sua época, o que era justamente o desejado pela sociedade em que vivia. O sucesso imediato propiciou a escrita e publicação do segundo conto e Marmontel acabou por escrever doze narrativas entre 1755 e 1759. Para Marmontel, o assunto é que lhe dava o tom, assim ele assume o papel de um observador: “[...] quando dou voz a uma personagem a única arte que emprego é a de estar presente na entrevista e escrever o que acho que ouvi [...]”. 47 Ele busca por meio de seus contos “[...] a mais ingênua imitação da natureza nos costumes e na linguagem [...]” 48, descrevendo os costumes de forma crítica para despertar no leitor um olhar diferente sobre a natureza humana, as instituições e as conveniências sociais. Para que seu texto alcance um fluxo rápido, a fim de captar melhor a atenção do leitor e dar voz a suas personagens, Marmontel propõe no artigo “Direct”, escrito para a Enciclopédia, a utilização do discurso direto: “[...] na história, dizemos que um discurso é direto, que uma palavra é direta, quando fazemos falar a personagem que está em ação [...]”. 49 É preciso retirar da narrativa o “ele disse”, “ela disse” que, segundo o autor, “[...] é a repetição fatigante destas maneiras de falar, ele disse, retoma ele, responde-me ela, interrupções que tiram a rapidez do diálogo, e deixam o estilo lento onde ele deveria ser mais animado. [...]”. 50 Esta fórmula de escrever alcança sucesso e é novamente mencionada pelo autor no prefácio do primeiro tomo de seu conto moral: “[...] eu propus, há alguns anos, em 46 MARMONTEL, Jean-François. Contes Moraux. Tome I. Préface. op. cit, p IJ, Trad. nossa. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1051592t/f13.image. Trad. nossa. No original, lê-se: [...] Ce conte eut le succès que pouvait avoir une bagatelle.[...] 47 Idem, op, cit., p.xiij, Trad. nossa. No original, lê-se: [...] Quand je fais parler mes personnages, tout l’art que j’y emploie est d’être présent à leur entretien, et d’écrire ce que je crois entendre. [...] 48 Idem, p. xiij, Trad. nossa. No original, lê-se: [...] la plus naïve imitation de la nature dans les moeurs et dans la langage [...] 49 MARMONTEL, Éléments de littérature. apresentada por Sophie Le Ménahèze. Éditions Desjonquères, 2005. p. 411, Trad. nossa. No original, lê-se: Dans l’histoire, on dit qu’un discours est direct, qu’une harangue est directe, lorsqu’on fait parler le personnage qui est en action [...] 50 Idem, p. 412. Trad. nossa. No original, lê-se: [...] C’est la répétition fatigante de ces façons de parler, Lui dis- je, reprit-il, me répondit-elle, interruptions qui ralentissent la vivacité du dialogue, et rendent le style languissant où il devrait être le plus animé. [...] http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1051592t/f13.image http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1051592t/f13.image 31 um dos artigos da Enciclopédia, tirar o ele disse, e os ela disse, do diálogo vivo e rápido. Eu experimentei isto nestes contos; e me parece que tive sucesso [...]”. 51 Seus contos foram traduzidos para o italiano, alemão e duas vezes para o inglês e foram representados nos teatros de Paris e Londres com sucesso. Para finalizar o prefácio, Marmontel afirma que está publicando novos contos: “Le mari Sylphe”, “Laurette”, “La Femme comme il y en a peu”, “L’amitié à l’épreuve” e o “Misanthrope corrigé”, e que para variar o tom e aproximar os contrastes é que ele mudou a ordem dos contos e acrescentou contos novos. A tabela abaixo evidencia essa mudança, ela contém as narrativas publicadas em 1761 e 1765 e os títulos em negrito correspondem aos contos acrescentados na coletânea de 1765. É importante ressaltar que embora tenhamos elencado os contos do autor na tabela abaixo, nós selecionamos alguns contos para compor esta tese. Contos morais de 1761 Contos morais de 1765 Tomo primeiro Alcibíades ou le moi Soliman II Le Scrupule ou l’amour mécontent de lui-même Les quatres flacons ou les aventures d’Alcidonis de Mégare Lausus et Lydie Heureusement Les Deux Infortunées Tout ou rien Le Philosophe soi-disant La Mauvaise Mère La Bonne Mère Tomo primeiro Alcíbiades ou le moi Soliman II Le Scrupule ou l’amour mécontent de lui-même Les quatres flacons ou les aventures d’Alcidonis de Mégare Lausus et Lydie Le mari Sylphe Heureusement Les Deux Infortunées Tout ou rien 51 MARMONTEL, Jean-François. Contes Moraux. Tome I. Préface. op. cit, xiij, Trad. nossa. No original, lê-se: Je proposai, il y a quelques années, dans l’un des articles de l’Encyclopédie, de supprimer les dit-il, et les dit- elle, du dialogue vif et pressé. J’en ai l’essai dans ces contes; et il me semble qu’il a réussi. [...] 32 Tomo segundo La Bergère des Alpes L’heureux divorce Annete et Lubin, histoire véritable Les Mariages samnites, anecdote ancienne Le bon Mari Le Connaisseur L’École des Pères Tomo segundo Le Philosophe soi-disant La Bergère des Alpes La Mauvaise Mère La Bonne Mère L’École des Pères Annette et Lubin (sans le sous-titre “histoire véntable”) Les Mariages samnites Laurette Le Connaisseur Tomo terceiro L’heureux divorce Le Bon Mari La Femme comme il y en a peu L’Amitié à l’épreuve Le Misanthrope corrigé Nestes contos, o autor procurou retratar sua época, pintando os costumes de sua geração e agregando aos contos morais o estudo da diversidade natural e estipulada pela sociedade; dos hábitos e costumes que saem do particular, ou seja, de um indivíduo e abrangem o universal, o costume de um povo, sua educação moral e institucional. Para melhor delimitarmos o conceito do conto moral é necessário o estudo de paratexto 52, e de dispositivos nos quais os textos se inserem: periódicos, coletâneas e corpus. Assim, passaremos no próximo subitem a conhecer um pouco sobre o Mercure de France, periódico em que Marmontel publicou seus contos morais. 1.3 O Mercure de France (1724 - 1791) Marmontel publicou primeiramente seus contos no Mercure de France, designando-os como histórias antigas, anedotas francesas ou anedotas morais. Para compreendermos um pouco mais o conto moral, é de suma importância conhecermos este periódico. Durante nossas pesquisas, encontramos a tese de Suzanne Dumouchel, “O jornal literário no século 52 MARMONTEL, Jean-François. Moeurs. IN : Éléments de littérature. apresentada por Sophie Le Ménahèze. Éditions Desjonquères, 2005. 33 XVIII: uma nova cultura de textos e de leitura (1714-1777)” 53, defendida em 2012, que discorre com propriedade sobre o jornal da época e servirá de base para nossas reflexões. O desenvolvimento do jornal na França foi estimulado pelo poder real, originando três tipos de periódicos políticos: a Gazeta, a revista acadêmica e o jornal literário. Vamos nos ater ao estudo do jornal literário, ao qual Mercure de France pertence, mas antes, é preciso ressaltar que este termo não aparece no século XVIII, mas por ser um periódico dedicado aos textos, à atualidade de novas obras e à crítica, passa a ter esta denominação na época moderna. Além de sua vocação crítica, o “jornal literário” se caracteriza também por produzir divertimento, o que leva os redatores a dedicarem uma parte privilegiada para seus leitores, chegando a atingir um público muito amplo. O periódico era produzido para um leitor alfabetizado, mas não forçosamente erudito e especialista, por isso, os assuntos eram acessíveis a todos, amadores e curiosos. Havia uma variedade de sentido dos termos “literatura” e “literário”, o que atribui aos periódicos funções e atribuições diversas, comportando iniciativas heterogêneas. No século XVIII, o sentido de literatura estava vinculado ao uso estético da linguagem escrita, ressaltando a categoria de Belas-Letras. Ao ampliar seu sentido, passou a designar o conjunto de produções escritas, remetendo à ideia de cultura. Foi assim que Marmontel e, logo após Mme de Staël, definiram a literatura. Segundo Suzanne Dumouchel (2012), as três concepções do termo literatura empregadas por Philippe Caron 54 como “crítica dos textos”, “cultura” e “uso estético da linguagem escrita” interagem nos jornais literários, favorecendo a criação destas edições de formas e conteúdos variados tal como o Mercure de France. O Mercure de France foi idealizado por Richelieu no século XVII; sua existência vai até o século XIX, tendo assim, muita longevidade, pois é um periódico que aborda diversos assuntos, abrangendo uma vasta área do domínio do saber, o que o distingue dos outros jornais. O periódico se destaca por sua perspectiva crítica, seja ela moral ou literária. É aclamado pelos leitores, tendo um público heterogêneo. Ele opõe-se à ideia de uma cultura reservada a uma determinada elite, tendo um espaço privilegiado para seu leitor que pode interagir com os redatores, constituindo, deste modo, um grupo de colaboradores que discorrem sobre o costume da sociedade de sua época. Nele as mulheres não são deixadas de lado, todos têm a possibilidade de realizar a leitura do jornal durante as refeições, abrangendo, desta forma, toda a família à mesa e os leitores que buscam se instruir sem serem 53 DUMOUCHEL, Suzanne. Le journal littéraire au XVIII siècle: une nouvelle culture des textes et de la lecture (1714-1777). Tese de doutorado, Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, 2012. 54 Il est linguiste français et enseigne à l’université de Poitiers. Disponível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/Philippe_Caron acesso: 15/08/2018 https://fr.wikipedia.org/wiki/Philippe_Caron 34 especializados nos assuntos, portanto o tom adotado é ameno. O jornal literário do século XVIII aparece como um ateliê literário, um lugar de experimentação da literatura, sendo de fato um fenômeno característico dos Iluministas. Segundo López (2017): O século XVIII, reconhecido pela História como “século das Luzes”, foi aquele de Voltaire e seu argumento da “crítica espontânea”, feita pelo público, da defesa da “arte útil” pelos enciclopedistas e da crítica de Diderot, que buscava aliar “gosto” e “experiência”. Nesse momento, o “trabalho histórico” do crítico, a partir do estudo das épocas, meios, causas físicas e morais, passou a ser exaltado. O primeiro Mercure de France foi difusor dessas propostas. 55 A análise dos jornais do século XVIII permite conhecermos as práticas culturais da época. É importante sabermos que o termo cultura nasceu nesse século e pode significar “conhecimentos e práticas”, portanto ela está inserida em um tempo, um lugar e uma determinada sociedade com seus códigos. A partir deste conceito, podemos analisar o jornal literário não apenas como uma coleta de conteúdo dito “cultura”, mas também como objeto significativo da cultura do século XVIII, logo, torna-se impossível estudar uma manifestação cultural sem levar em conta o modo de transmissão escolhido para difundi-la, o seu suporte. É importante ressaltar que o periódico passou por diversas mudanças, o que revela ser o Mercure de France do século XVIII totalmente diferente no século XIX. A pesquisadora Camila Soares López (2017) ressalta em sua pesquisa que “o título Mercure de France se fez presente em diferentes momentos da história do periodismo francês [...]” 56, e ela se propõe a estudar o jornal do século XIX, trazendo “[...] à luz particularidades das transferências culturais que pautaram as relações entre Brasil e França no século XIX e a inserção do Mercure de France nesse diálogo” 57, e para tal é de suma importância: “[...] considerar a maneira como os seus colaboradores, homens e mulheres da literatura se integraram ao seu formato, que foi próprio da época simbolista”. 58 A base de dados da nossa breve pesquisa sobre este periódico refere-se ao jornal do século XVIII em que foram publicados os contos de Marmontel. O Mercure de France (1724-1791) informava sobre a atualidade literária, era um jornal mensal estruturado por colunas bem definidas, contendo artigos de comentários, textos, 55 LÓPEZ, Camila Soares. O simbolismo no Mercure de France (1890-1898), 2017, 358f. Tese de doutorado em Literatura e Vida Social – Unesp - Assis, 2017. p. 168. 56 LÓPEZ, 2017. p. 24. 57 Idem, ibidem. 58 Idem, ibidem. 35 dissertações, textos de leitores e opiniões diversas. O diálogo e a conversação eram de suma importância, vindo desde o título do jornal que, no caso, comportava uma personagem mitológica em seu título “Mercúrio”, o deus mensageiro, dos outros deuses do Olimpo. Segundo López (2017), a humanidade era ávida por notícias e criou formas para que estas informações circulassem, assim, os romanos enviavam escravos às cidades para recolher os “mercuriais”, informações sobre os negócios e os preços das mercadorias, desta forma, surgiram “[...] diferentes veículos mensageiros das suas respectivas épocas, tal qual a figura mitológica [...]” 59, assim a publicação dos primeiros mercures começa no século XVII. Na direção dessa corrente, já no século XVII, nasceram os primeiros Mercures franceses; circularam, por exemplo, o Mercure François, publicado entre os anos de 1611 e 1648; o Mercure et fidèle Messager de la Cour, de 1622; e o Mercure d’Estat (Paris), de 1634. Essas datas são próximas do momento de fundação de La Gazette, em 1631, primeiro hebdomadário da França, por Théophraste Renaudot (1568-1653), médico de Luís XIII. Inferimos que esses Mercures foram criados e existiram em um momento de avanço significativo do periodismo e pareciam manter o ofício de “mensageiros”, anunciando os feitos de determinados grupos. E, se a lira de Mercúrio sugeria a declamação de versos, não é gratuito o fato de terem proposto, a partir de então, a proclamação da matéria literária, mantendo viva, na Modernidade, uma tradição já existente. 60 Como podemos constatar, existiram diversos Mercures, por isto a diversidade dos títulos e diretores pelos quais passou o jornal. Em 1672, Jean Donneau de Visé cria o Mercure Galant; em 1714 passa a ser denominado Nouveau Mercure Galant, depois de Nouveau Mercure, Mercure e enfim em 1724 de Mercure de France (Mercúrio da França) dedicado ao rei. Na verdade, esta sucessão de títulos revela uma sucessão de diretores por que passou o periódico, acompanhando as modificações importantes de seu conteúdo e cada um inserindo um modo particular de trabalhar. Os diretores do jornal foram: Dufresny (1710-1714); Lefèvre de Fontenay e Buchet até 1721; Dufresny, La Roque e Fuzilier até 1723; La Roque (1724-1744), ele quem nomeia o jornal de Mercure de France, título que ficará até 1778; Fuzelier e La Bruère (1744-1748) retomam a direção do periódico; o abade Raynal em 1755; Louis de Boissy fica até 1758, sendo substituído por Marmontel em agosto do mesmo ano até 1760. Lacombe (1768-1778) modifica o nome do jornal “por uma sociedade de homens de letras”; e ainda Panckoucke (1778), dentre outros. Alguns diretores entraram na direção após colaborarem na redação do jornal: Clèves Darnicourt, Marmontel, Rémond de Sainte-Abine. 59 LÓPEZ, 2017, p. 25. 60 Idem, p. 25-6. 36 O periódico contava com duzentas a duzentas e dezesseis páginas, sendo um volume bem avantajado; seu lema foi retirado de uma citação de La Fontaine: “diversité c’est ma devise” 61, e o jornal comportava grande diversidade de assuntos. Marmontel aí publicou fichamentos acadêmicos, obras dramáticas, os contos. O periódico apresentava partituras musicais, gravuras e vinhetas. Para privilegiar seus leitores, o volume comportava também cartas, jogos, poemas, relatos breves distinguindo-se da crítica, novidades literárias, novas obras, os espetáculos e novelas diversas. Os contos e anedotas ocupavam um lugar importante sob a direção de Louis Boissy que se dedicava às “artes agradáveis e úteis” negligenciando os apontamentos acadêmicos. Como já citado neste trabalho, foi Boissy que instigou Marmontel e o desafiou a escrever contos; como esta publicação obteve sucesso imediato, Boissy o incentivou a continuar. Esta diversidade de assuntos surgia de acordo com o ano e o interesse do diretor por determinado assunto. A grande inovação deste jornal foi ter uma parte privilegiada para a interação entre leitor e redator, um espaço importante do diálogo do saber. A sociedade participava da reflexão levantada sobre a literatura e a difusão da cultura, criando um jornal de crítica de textos, introduzindo a ideia de um saber em discussão, de uma cultura em formação. Para entendermos esta inovação, é necessário compreendermos a relação com o tempo, a época e o século, já que o estilo do jornal literário não informa somente a respeito de questões civis e políticas, mas transmite também questões culturais, instruindo de forma divertida e mantendo o gosto pela conversação. Esta variedade influi no sucesso do jornal que, cada vez mais, atrai leitores heterogêneos, abrangendo todas as classes sociais, inclusive uma das inovações do jornal é a participação das mulheres, tanto como leitoras quanto como escritoras, o que levou o periódico a publicar mais artigos sobre a produção feminina, valorizando a mulher. As mulheres escritoras em destaque na época foram: a Senhora Dacier, a marquesa de Châtelet, Louise d’Epinay, a Senhora Graffigny, a Senhora Riccoboni dentre outras. A diversidade de assuntos e o saber transmitido a ponto de divertir instruindo são fatores que atraíram mais leitores interessados em conhecer a pauta do dia, as atualidades ocorridas em sua época. Esta necessidade é transmitida pelo jornal literário que é um suporte inovador, acarretando a criação de uma comunidade virtual, pois os redatores, por meio da ficção, propõem outro relato ao mundo. O jornal criado para transmitir assuntos políticos e acontecimentos sociais, passa a divulgar textos, literatura, possibilitando ao escritor elaborar 61 “Diversidade é meu lema” 37 textos fictícios e de acesso a toda a sociedade de sua época, tendo assim o privilégio de divulgar a escrita literária para curiosos e amantes do tema. O periódico literário desenvolve três grandes práticas culturais: uma cultura “acadêmica”, “mundana” e “burguesa”. No século XVIII, a cultura acadêmica é adquirida por meio dos livros, supondo um saber mais intelectual que abrange a filosofia, a gramática, a análise das línguas e a moral. A história estuda os costumes, permitindo um conhecimento das práticas culturais dos povos, e a geografia tem perspectiva histórica e procura compreender a diferença dos povos para explicar os costumes e as culturas. Os periódicos literários refletem modalidades para entendidos e curiosos dispostos a conhecer um pouco mais as novas ciências, obtendo novos conhecimentos sobre o mundo. Paralelamente a estes conhecimentos, o periódico literário propõe a seus leitores informações mais anedóticas que oferecem um momento de divertimento e transportam a outras práticas culturais. A cultura mundana se desenvolve no século XVII, ela está ligada ao lazer, aos jogos, às festas, aos espetáculos, ao divertimento tão desejado pela sociedade. O relato destes acontecimentos no periódico deixa toda a população informada e familiarizada com as práticas culturais da época. A cultura burguesa comporta apontamentos de diversos assuntos: medicina, cirurgia, ciências exatas como a física, os grandes debates em torno da agricultura ou do comércio. Os assuntos tratados não são apenas de utilidades, mas também da cultura enciclopédica muito desenvolvida na época. Enfim, as três categorias culturais remetem a três funções da cultura: um conceito moral e pedagógico, um conceito de diversão e uma concepção aplicada. Em vista de tantos assuntos abordados e das três categorias culturais, os redatores valorizam a estrutura do periódico, facilitando a leitura e recorrendo ao sumário, sendo que cada periódico pode ser estruturado de uma forma. No início do século, o Mercure de France estabelece para seu sumário os títulos de cada artigo publicado, estruturado em colunas “Pièces Fugitives”, “Nouvelles Littéraires”, “Spectacles”, e “Nouvelles Étrangères”. 62 Os redatores têm um projeto moral que é a formação do leitor. Eles se aplicam em formar o espírito dos leitores, tanto no saber como nos costumes, levando-os à virtude e aos bons costumes, por meio de textos criativos que não transportam uma carga pesada, mas sim divertimento, que é justamente, o que a sociedade da época procura. Então, os redatores oferecem aos leitores uma variedade de situações e de personagens que participam desta formação do leitor e da vida em sociedade. Estes relatos podem ser tanto ficcionais, como podem conter partes do acontecimento da vida de uma pessoa real. O gênero fábula é bem 62 “Peças fugitivas”, “Novidades Literárias”, “Espetáculos”, “Novidades estrangeiras”. Trad. nossa. 38 próximo do relato moral e o periódico divulga contos, histórias reais ou anedotas verdadeiras, os textos tendem a ser curtos e conter os costumes da época. Trata-se de alertar os jovens, principalmente as mulheres, sobre o perigo do amor e dos sentimentos, as ilusões e os deveres particulares que cada um deve cumprir tanto na família como perante a sociedade. A representação de modelos de virtudes ou de personagens devastadas pelo vício é característica dos jornais literários. Enfim, certos relatos anunciam claramente, desde o início, o objetivo do texto como no exemplar de setembro de 1763 do Mercure de France que propõe o relato “Annette” subtítulo “Conto Moral” em que a protagonista percebe que cada situação tem suas vantagens e desvantagens. Então, a literatura difundida no periódico é um instrumento a serviço do bom exemplo e da formação do leitor. Os redatores diversificam as mensagens morais para que, desta forma, elas possam ser úteis para um grande número de leitores. Os textos se assemelham ao gênero novela sentimental, instruindo sobre fingimentos e dissimulações dos quais podem se valer alguns seres humanos, assim os relatos podem se apoiar em exemplos reais ou em fábulas apresentando personagens e situações que levam o leitor a refletir e que encorajam cada um a ter um ponto de vista diferente, como no exemplo de Annette; portanto os textos propõem modelos de conduta a seus leitores com o objetivo de informar. Os textos podem ter ou não comentários e são eles que têm a função de sua exemplaridade, levando os leitores a refletirem sobre as situações da vida, sendo, confrontados por meio dos princípios morais que fundam a sociedade humana, dessa forma: [...] Marmontel se atém por um momento sobre o conhecimento necessário dos costumes do século, um pré-requisito para qualquer comentário sobre o texto. Aquele que julga deve dominar perfeitamente os códigos sociais e morais de seu tempo, a fim de propor uma análise de acordo com o que os leitores têm o direito de esperar. Este conhecimento perfeito atesta a qualidade do crítico e, claro, participa no caso de nossos redatores, a torná- los figuras de autoridade. 63 Como podemos observar, Marmontel escreve contos que recebem outras definições até chegar ao conto denominado moral. Conforme vai ganhando experiência na escrita, as características que apontam ser a narrativa um conto moral vão se formando. É uma literatura 63 DUMOUCHEL, Suzanne. Le journal litteraire au XVIII siècle: une nouvelle culture des textes et de la lecture (1714-1777). 2012. p. 157, 608 f. Tese de doutorado em literatura francesa e comparada – Universite Nouvelle Sorbonne, Paris 3. Trad. nossa. No original, lê-se: [...] Marmontel s’arrête un moment sur la connaissance nécessaire des moeurs du siècle, un préalable à tout commentaire du texte. Celui qui juge doit parfaitement maîtriser les codes sociaux et moraux de son temps afin de proposer une analyse conforme à ce que sont en droit d’attendre les lecteurs. Cette parfaite connaissance atteste de la qualité du critique, et participe bien sûr, dans le cas de nos rédacteurs, à les ériger en figures d’autorité. 39 que está em formação, portanto não existe uma fórmula certa para escrever um conto moral. Percebemos na trajetória do autor francês, que este gênero de ficção deve transmitir uma lição, tendo como projeto a formação de um leitor que deve tirar suas próprias lições do texto lido e crescer com elas, tornando-se um cidadão melhor. A moral desejada é que cada indivíduo analise suas ações, distinga o bem do mal, separe o certo do errado e siga um padrão moral de consciência que lhe informe se suas ações são aceitas ou reprovadas pela sociedade e pelo padrão de conduta moral individual. É possível traçar o modelo pertencente ao conto moral, ele segue uma trajetória parecida com aquela dos contos de fadas, porém suas personagens são pessoas reais que vivem diversas circunstâncias apresentadas pela vida. Podemos encontrar nestes textos seres pertencentes à ficção como os silfos em “Le mari sylphe”, servindo para diferenciar o que é real do que é irreal. Eles revelam o quanto cada sociedade precisa das histórias para permear seu imaginário e levá-la a uma viagem, retirando momentaneamente a pessoa de sua realidade para justamente interferir na mesma. A característica do jornal Mercure de France influi muito na definição do conto moral, pois assim como o periódico, os contos agregam ora a definição de novela ora de anedota, desta forma os contos de Marmontel são uma produção híbrida, apresentando-se como conto de fadas, libertino, oriental, pastoral. Segundo Nicolas Veysman (2007) 64, os primeiros contos “Le Moi” (1755), “Soliman II” (1756), “Le Scrupule” (1756) et “Tout ou rien” (1756) eram denominados de relatos, pois até esta data Marmontel não escrevera contos morais. Assim, a variedade está presente neste gênero em que podemos encontrar contos pastorais, contos de fadas, e outras narrativas pertencentes ao conto moral. A variedade está também no conteúdo dos contos e na diversidade do público alvo, pois é uma escrita que procura conquistar um público muito amplo e para isto os autores fazem uma pesquisa social para inserir seus textos nos temas e desejos da época. Desta maneira, fica muito difícil esta nova fórmula não dar certo, é por isto que desde o primeiro conto Marmontel obteve sucesso imediato. A diversidade como lema, seguindo a máxima de La Fontaine como já vimos, leva a nova fórmula ao sucesso e também a esta dificuldade de definição do gênero. Conhecendo um pouco o periódico no qual Marmontel publicava seus contos, analisando sua escrita para o prefácio dos contos morais, podemos entender um pouco mais o que seja o conto moral, 64 VEYSMAN, Nicolas. Le féerique moral dans les contes moraux de Marmontel. Féeries, n°4, 2007. Disponível em: https://journals.openedition.org/feeries/413 Acesso em (01/09/2014) https://journals.openedition.org/feeries/413 40 embora ele não tenha uma regra, uma estrutura precisa, conseguimos traçar algumas características que apontam para este tipo de escrita. Realmente, estamos em um ateliê da literatura onde as obras de arte estão sendo criadas, tendo semelhanças e ao mesmo tempo sendo tão distintas, criando um paradoxo entre elas. Poderíamos tentar resumir as características do conto moral, mas tememos falhar nisto, já que este gênero foi criado na diversidade e engloba uma vasta estrutura. O conto moral participa da vida real do ser humano, cada cultura pode criar o conto traçando um panorama social de sua nação, por essa razão Marmontel, ao escrever o conto moral, revela costumes, gostos, desejos, caracteres do ser humano e em particular da cultura francesa, por isso, esta escrita percorre o individual e o universal, sendo possível enxergar características próprias de uma nação, seus costumes, mas também de qualquer indivíduo independente de sua raça, credo, ou religião. Em sua obra, Marmontel revela o conflito de opiniões, as tensões do ser humano, o domínio e a autoridade empregada contra a mulher, a força moral e a força dos sentimentos. O ser humano é uma fonte rica e inesgotável de pesquisa, assim diversas situações são criadas, várias personagens exemplificam a vida real e transmitem uma lição de vida. Marmontel trabalha para a formação do leitor, ele não pretende lançar um padrão de conduta a ser seguido, mas deseja que cada pessoa possa influir em suas atitudes, repensar seu estilo de vida, suas ações, seus dogmas, regras e rótulos, sendo levada a um confronto que a fará refletir por si mesma, avaliando e distinguindo a importância entre os valores materiais e do ser humano. 1.4. Biografia de Jean-François Marmontel (1723-1799) Jean-François Marmontel 65 nasceu em 11 de julho de 1723 em Bort-les-Orgues, na casa da família situada em Saint Thomas. Foi o filho primogênito de Martin Marmontel e de Marianne Gourdes que tiveram seis outros filhos: Anné (1727), Marie Jeanne (1728), Antoinette (1730), Jean (1731), Antoine (1738) e Jeanne (1739). Marmontel aprendeu a escrever no convento da Imaculada Conceição da Virgem em Bort com o Abbé Vaissière. Em 1734, com a idade de onze anos, foi admitido no colégio de Mauriac (Cantal), um colégio Jesuíta. Frequentando o colégio de 1734 a 1738, foi expulso aos 65 _____. Biografia. Dados da biografia de Jean-François Marmontel consultados em: (Marmontel, 2005) e nos sites: Disponível em http://www.bort-les-orgues.com/jean-francois-marmontel e http://marmontel.pagesperso- orange.fr/1723.htm acesso:16/11/2017. http://www.bort-les-orgues.com/jean-francois-marmontel http://marmontel.pagesperso-orange.fr/1723.htm http://marmontel.pagesperso-orange.fr/1723.htm 41 quinze anos por insubordinação e enviado a Clermont-Ferrand, por seu pai, para aprender o ofício de alfaiate. Rapidamente, ele retoma seus estudos em Clermont, depois em Toulouse onde participa do prêmio das Artes Florais, mas seu poema não chama a atenção do júri. Insatisfeito e indignado ele envia seus escritos a Voltaire que o aconselha a ficar em Paris e o encoraja a escrever. Mestre e discípulo trocam diversas correspondências, fortalecendo uma amizade que perdurará por trinta e cinco anos. Voltaire incentiva Marmontel a escrever para o teatro e esta escrita o faz conhecer a poética e os textos clássicos. Todos estes episódios que marcaram a trajetória do autor francês foram registrados por ele em suas memórias, de forma um pouco romantizada, com o título Mémoires d’un père pour servir à l’instruction de ses enfants 66, contando com quatro livros. No primeiro livro, Marmontel revela o motivo pelo qual decidira escrever suas Memórias É para meus filhos que eu escrevo a história da minha vida; sua mãe assim o desejou. Se por acaso outros a lerem, que me perdoem os detalhes que julgarem minuciosos, mas que eu creio interessantes para eles. Meus filhos precisam recolher as lições que o tempo, a ocasião, o exemplo, as situações diversas pelas quais eu passei me ofereceram. Eu quero que eles aprendam por mim a nunca perder a esperança, mas sempre desconfiarem de si mesmos; a temer as armadilhas da boa fortuna, e a passar com coragem pelas dificuldades da adversidade. 67 Alegando escrever para ensinar seus filhos, Marmontel deixa evidente que suas Memórias serão lidas por outras pessoas. Uma estratégia que ajuda a embasar sua intenção de escrever sobre si mesmo. Ao decidir escrever suas memórias, o autor nos presenteia com os fatos de sua vida relatados por ele mesmo e embora a narrativa memorialística faça parte da ficção literária, podemos conhecer os fatos do próprio punho do autor, o que enriquece muito nosso conhecimento sobre a trajetória de vida de Marmontel. No primeiro livro, ele relata sobre sua infância, seus pais e a importância do amor filial: Mas o que, em minhas lembranças, faz o encanto de minha pátria, é a impressão que me resta dos primeiros sentimentos dos quais minha alma 66 _____. Memoire de Marmontel. Memórias de um pai para servir a instrução de seus filhos. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2135848/f31.item acesso: 01/06/2019. 67_____. Mémoires de Marmontel. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:12148/bpt6k2135848/f31.item. p.1- 2. Trad. nossa. No original, lê-se: C’est pour mes enfants que j’écris l’histoire de ma vie; leur mère l’a voulu. Si quelque autre y jette les yeux, qu’il me pardonne des détails minutieux pour lui, mais que je crois intéressants pour eux. Mes enfants ont besoin de recueillir les leçons que le temps, l’occasion, l’exemple, les situations diverses par où j’ai passé, m’ont données. Je veux qu’ils apprennent de moi à ne jamais désesperér d’eux- mêmes, mais à s’en défier toujours; à craindre les écueils de la bonne fortune, et à passer avec courage les détroits de l’adversité. É importante ressaltar que toda transcrição deste trabalho foi feita a partir do francês atual, portanto, as citações sofreram correção na língua francesa. https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2135848/f31.item 42 ficou como embebida e penetrada pela inexprimível ternura que minha família tinha por mim. Se eu tenho alguma bondade no caráter, devo a estas doces emoções, a esta felicidade habitual de amar e ser amado, que eu creio dever-lhes. Ah! Que presente nos dá o céu quando ele nos dá bons pais. 68 Marmontel relata suas lembranças do tempo de colégio, seus estudos e os ensinamentos marcantes que recebeu de alguns professores, como aquele de P. Bourzes sobre a literatura: “[...] foi ele quem me ensinou que a antiga literatura era uma fonte inesgotável de riquezas e de bondades, o que me dá esta sede que sessenta anos de estudo não extinguiram ainda”. 69 Marmontel também relata que não desejava ser aceito no colégio jesuíta de Clermont por indicação, ele queria passar no exame, e para isto, usa de sagacidade para transformar sua oratória e ganhar a atenção do diretor. Relata que seu pai é quem tinha lhe ensinado tudo o que sabia, enquanto na verdade, havia estudado no colégio de Mauriac: Apliquei-me a mostrar no estratag