UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL JOSÉ PETRÚCIO DE FARIAS JÚNIOR SOFISTAS E FILÓSOFOS NA ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL: O OLHAR DE EUNÁPIO SOBRE A UNIDADE POLÍTICA DO IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO IV D. C. FRANCA 2007 2 JOSÉ PETRÚCIO DE FARIAS JÚNIOR SOFISTAS E FILÓSOFOS NA ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL: O OLHAR DE EUNÁPIO SOBRE A UNIDADE POLÍTICA DO IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO IV D. C. Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito à obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho FRANCA 2007 3 Farias Júnior, José Petrúcio de Sofistas e filósofos na administração imperial : o olhar de Eunápio sobre a unidade política do Império Romano no século IV D.C. / José Petrúcio de Farias Júnior. –Franca : UNESP, 2007 Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP. 1. Roma – História antiga. 2. Antiguidade Tardia. 3. Euná- pio – Vida dos filósofos e sofistas – Crítica e interpretação. CDD – 937 4 JOSÉ PETRÚCIO DE FARIAS JÚNIOR SOFISTAS E FILÓSOFOS NA ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL: O OLHAR DE EUNÁPIO SOBRE A UNIDADE POLÍTICA DO IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO IV D. C. Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito à obtenção do título de Mestre em História. BANCA EXAMINADORA Presidente:__________________________________________________________ Profª. Drª. Margarida Maria de Carvalho - UNESP/Franca 1º Examinador:______________________________________________________ Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho - UNESP/Assis 2ª Examinadora:________________________________________________________ Profª. Drª. Susani Silveira Lemos França - UNESP/Franca Franca, ___ de ________ de 2007 5 AGRADECIMENTOS À Deus destino meus primeiros agradecimentos, não por uma atitude meramente formal, mas pela presença constante em minha vida, especialmente no transcorrer desse trabalho. À minha orientadora, Profª Drª Margarida Maria de Carvalho, pelo carinho e atenção com que dirigiu essa pesquisa. Sua leitura minuciosa e crítica me ofereceu uma experiência ímpar na minha formação profissional como historiador. À CAPES, pelo apoio financeiro sem o qual os cursos de línguas bem como as viagens a congressos e a dedicação exclusiva à dissertação se tornariam inviáveis. A todos os funcionários e professores da pós-graduação da Unesp-Franca os quais, no transcorrer das atividades acadêmicas, mostraram-se sempre atenciosos e dispostos a nos ajudar em relação à entrega das atividades do programa. À professora Ana Teresa Marquês Gonçalves da UFG, pela atenção com que observou minha apresentação na Unesp de Assis e, posteriormente, os comentários críticos que me auxiliaram a lapidar as informações presentes no texto. Ao professor Gilvan Ventura da Silva da UFES, pela gentileza e preocupação em enviar textos que me pudessem esclarecer pontos específicos sobre o neoplatonismo, presentes nessa pesquisa. Às professoras Susani Silveira Lemos França e Maria Aparecida Lopes, membros da banca de qualificação, as quais permitiram um salto qualitativo na configuração da introdução e dos dois primeiros capítulos da dissertação. Ao professor Fernando Kolleritz da Unesp-Franca, meus especiais agradecimentos pelo incentivo e pelo voto de confiança que depositou em mim na entrevista que antecedeu meu ingresso no Mestrado. Ao meu amigo Patrick Falmbigl da Universidade da Áustria, Viena, o qual fez considerações importantes concernentes à estrutura do projeto de pesquisa. À toda equipe da Albert-Ludwigs Universität de Freiburg, Alemanha, em especial, aos professores Robert Blasiak, ao Dr. Klaus Gauger, à professora Uta Schroeder e Uta Rothmund pela hospitalidade e viabilização da pesquisa na referida universidade; certamente, essa foi uma experiência inestimável. 6 Ao professor Raymundo da Universidade Estadual de Maringá, pelo incentivo em publicar artigos científicos para a Revista Espaço Acadêmico e pelo apoio e convite para participar do conselho editorial dessa revista. De fato, essa atividade promoveu um expressivo amadurecimento como pesquisador. Aos meus professores dos cursos obrigatórios do mestrado, Alberto Ággio e Teresa Malatian, deixo também registrada minha gratidão pelos momentos construtivos em que estivemos juntos na sala de aula. À minha colega de pós-graduação, Semíramis Corsi Silva, pela companhia aos congressos e por ter despertado em mim a necessidade de considerar a magia, na obra de Eunápio, e suas relações de poder. À Helena Papa e à Nathália Junqueira, pela troca de informações em eventos que ocorreram durante o curso de mestrado. Ao meu amigo Renato Juvêncio, pessoa que admiro pela honestidade, humildade e confiança construída no decorrer de muitos anos e pelas dicas no que tange à clareza das idéias apresentadas nesse trabalho. E, principalmente, à minha amada família que me acompanhou em todos os instantes e apoiou-me em todas as atividades realizadas no mestrado: aos meus pais, Vera Maria Santos de Farias e José Petrúcio de Farias e ao irmão Guilherme Santos de Farias. Se houvesse espaço, certamente, escreveria, com prazer, outra dissertação apenas para indicar a importância que eles detiveram durante esse período. Como não há, contento-me em verbalizar meu amor, gratidão e respeito pessoalmente, em doses homeopáticas, todas as vezes que nos vemos. Enfim, a todos que colaboraram para que eu desse mais um passo na vida acadêmica, muito obrigado. Como pesquisador, sou produto dos esforços de todas essas pessoas, pois caminharam ao meu lado e incentivaram-me a produzir essa pesquisa, haja vista as dificuldades e preconceitos que enfrentamos em desenvolver uma investigação na área de História Antiga no Brasil. 7 “[...] o que tanto se lamenta não é bem o desaparecimento da história e, sim, o esfacelamento desta forma de história que, em segredo, mas de corpo inteiro, estava referida à atividade sintética do sujeito”. (FOUCAULT, M. A arqueologia do saber, 1986, p. 24). 8 RESUMO Pretendemos, com essa pesquisa, analisar a obra Vidas dos filósofos e sofistas, redigida pelo historiador e sofista grego Eunápio, em 399, o qual retrata as vidas de neoplatônicos pertencentes à Ásia Menor, em especial, Sardes, cidade na qual nasceu. No interior dessa obra, evidenciaremos a questão administrativa do Império Romano por meio da atuação profissional de filósofos e sofistas neoplatônicos que ocuparam cargos administrativos sob a vigência dos imperadores cristãos. Propor- nos-emos, dessa forma, discorrer sobre a maneira como Eunápio, por meio dos artifícios retóricos mobilizados pela filosofia neoplatônica, avalia o exercício do poder imperial ocupado pelas elites cristãs e, em contrapartida, constrói, em nível literário, a imagem de filósofos e sofistas neoplatônicos na sociedade romana oriental tardia com a finalidade de evidenciar a representatividade política das elites locais neoplatônicas da Ásia Menor, uma vez que, gradativamente, as famílias abastadas não-cristãs eram preteridas dos ofícios públicos por conta da orientação político- religiosa instituída, conforme sugere Eunápio, por Constantino e culmina em Teodósio. Palavras–chave: ����������� �� ���� ������� � �������� � ��������� � �� ���� ���� � ������ � 9 ABSTRACT We intend, with this research, to analyze the work "Lives of the Philosophers and Sophists" written by the historian and sophist Eunapius, in 399, which portrays the lives of the neoplatonicals belonging to Asia Minor , especially, Sardes, city in which he was born. In these work, we will put in evidence the administrative question of the Roman Empire through professional performance of neoplatonical sophists and philosophers that held administrative positions under the power of the Christian emperor. We propose, this way, to discourse how Eunapius, through rhetoric strategics, mobilized by neoplatonical philosophy, evaluates the exercise of the imperial power occupied by Christian elites and, in counterpoint, constructs, in literary level, the image of neoplatonical sophists and philosophers in the late eastern roman society to elucidate the political representative of the neoplatonical local elites of the Asia Minor, once, gradually, the non-Christian well-off families were far from public positions because of the religious-political orientation instituted, as suggests Eunapius, by Constantine and finalizes in Teodosian. Keywords: late antiquity; second sophistic; christianism; neoplatonism; Eunapius. 10 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS......................................................................................9 1 BIOGRAFIA E HISTÓRIA EM EUNÁPIO ..............................................................27 1.1 Considerações Preliminares ............................................................................28 1.2 Biografia e historiografia: problemas e contribuições para interpretação do gênero biográfico na Antiguidade......................................31 1.3 Eunápio e a compreensão histórica da Antiguidade Tardia: apropriações da historiografia anglo-americana...........................................44 1.4 Tendências para interpretação das biografias eunapeanas: especialistas em Eunápio de Sardes ...............................................................46 1.5 Eunápio e sua biografia histórica: a legitimação do registro biográfico como documento histórico ...........................................................49 2 FILÓSOFOS E SOFISTAS EM EUNÁPIO DE SARDES .......................................57 2.1 Tradição biográfica e Segunda Sofística em “Vidas de Filósofos e Sofistas” .........................................................................................58 2.2 Ásia Menor e a representatividade política das elites locais: um estudo sobre a Segunda Sofística.............................................................63 2.3 Sofistas e Filósofos: problemas de classificação em Eunápio.....................74 2.3.1 O conceito de filósofo .......................................................................................75 2.3.2 O conceito de “sofista” .....................................................................................85 3 FILÓSOFOS E SOFISTAS NEOPLATÔNICOS E ADMINISTRAÇÃO IMPERIAL SOB OS IMPERADORES CRISTÃOS..................................................................96 3.1 Considerações Preliminares ............................................................................97 3.2 Religião, Filosofia e Poder na Antiguidade Tardia .........................................97 3.2.1 Philotimia e Poder Imperial: o cenário político sob a perspectiva das elites locais ..............................................................................................................105 3.2.2 Eunápio e as elites locais da Ásia Menor: envolvimento político, redes de sociabilidade e intencionalidade na produção das Vidas ...............................109 3.3 Sofistas e Filósofos neoplatônicos e sua relação com o imperador em Eunápio ...........................................................................................................115 3.3.1 A ascensão do cristianismo no corpo administrativo do Império Romano no IV século nas Vidas de Eunápio................................................................125 3.4 Caminhos para reflexão e compreensão das biografias eunapeanas........130 CONCLUSÃO .........................................................................................................132 REFERÊNCIAS.......................................................................................................138 11 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 12 O resultado da pesquisa aqui apresentado insere-se no período denominado Antiguidade Tardia, o qual é produto de uma convenção compartilhada, a princípio, pelos historiadores alemães; depois, foi incorporado pelos historiadores norte- americanos e franceses, os quais, de acordo com W. F. Oliveira (1990, p. 5), acolheram o termo germânico Spätantike de Paul Hübinger (1952, p. 9) a fim de se reportar às especificidades históricas da sociedade greco-romana do IV e V séculos1 a qual se caracteriza pela desagregação das instituições políticas do Império Romano. Todavia, as historiografias anglo-americana e francesa divergem entre si no que diz respeito aos marcos temporais usados para delimitação desse momento histórico que está, a rigor, situado em uma fase de transição, isto é, nas fronteiras entre a Antiguidade e a Idade Média. (VOGT, 1967, p. 6). Dessa forma, as diferentes abordagens sugeridas pelos antiquistas resultaram em diferentes pontos de partida para delimitação do arco cronológico de pesquisas históricas que se desenvolvem sob a égide da expressão Antiguidade Tardia. A historiadora Averil Cameron (1996, p. 7), por exemplo, sustenta que um grupo de historiadores associa o início da Antiguidade Tardia à fundação de Constantinopla por Constantino em 330 d.C. e finaliza com a queda do Império Bizantino em 1453. Além disso, destaca a diferente perspectiva adotada pelos teólogos que, em virtude do Concílio de Cálcedo, atribui o início do referido período a 451 d.C. Para Oliveira (1990, p. 6) há mais duas tendências entre os pesquisadores em demarcar o ponto de partida desses estudos. Uma, prefere o ano de 395, data da divisão definitiva do Império Romano; e, outra, escolhe 475, já que indica a deposição do último imperador do Ocidente. Porém, Cameron (1996, p. 7) acredita que a maioria dos historiadores confortam-se em se referir à Antiguidade Tardia quando se reportam genericamente aos séculos quarto e quinto os quais podem ser denominados Baixo Império Romano ou Antiguidade Tardia. 1 Todas as datas expostas no corpo do trabalho são d.C., quando utilizaremos a abreviatura a.C. 13 Ficaremos com o último grupo de pesquisadores por três motivos: Em primeiro lugar, pelo caráter genérico da definição e, conseqüentemente, a falta de compromisso em hierarquizar fatos e sua importância na atuação como divisor de águas entre períodos históricos, haja vista as múltiplas abordagens e, em seguida, pelo fato de Eunápio ter ambientado suas narrativas biográficas justamente no IV século. E, por fim, a utilização do termo Antiguidade Tardia nos credencia, segundo Gilvan Ventura da Silva e Norma Musco Mendes (2006, p. 194-195), a uma perspectiva analítica que pretende apartar-se do estigma cunhado pela historiografia que compreende o IV e V séculos como período de decadência, declínio ou queda do Império Romano por um enfoque que possa valorizar as especificidades político- culturais de uma sociedade em fase de transformação. Com base nisso, ressaltamos os esforços da historiografia francesa e norte- americana, influenciadas pela ampliação documental sugerida pela Nova História Cultural em valorizar os aspectos culturais do IV século os quais, antes, não mereceram destaque por autores ora filiados a uma explicação de caráter eminentemente político, tais como Mikhail Rostovtzeff (1992), Ferdinand Lot (1985), Jones (1979) e F. Walbank (1969) ora a uma explicação materialista cujas análises enfocavam as contradições do modo de produção escravista e suas repercussões na esfera política, a saber: Anderson (1974), Ferril (1986) e Gibbon (1994) entre outros. Dessa forma, a valorização das especificidades cultuais do IV e V séculos ganhou, em 1977, com o historiador Henri-Irénéee Marrou em Decadência Romana ou Antiguidade Tardia? uma outra roupagem. O momento histórico antes designado como fim, declínio ou queda do Império Romano, ou seja, marcado por termos que exprimem juízos de valor assentados na inviabilidade da gestão da máquina administrativa pelos imperadores cristãos, recebe, por intermédio de Marrou, uma conotação definitivamente positiva. (SILVA; MENDES, 2006, p. 194-195). Sendo assim, antiquistas influenciados por Marrou, tais como Peter Brown (1998) e Cameron (1993), e adeptos, por extensão, da Nova História Cultural ofereceram uma abordagem culturalista que pretendia destacar das fontes históricas elementos da esfera político-cultural que tratavam a sociedade do IV e V séculos em suas particularidades; valorizando, assim, o referido período como reduto de um processo histórico que leva consigo o binômio: transformações e continuidades. (BROWN, 1971, p. 7) Com essa perspectiva, a sociedade romana oriental tardia apresenta-se 14 como um momento rico e dinâmico, diferente apenas da sociedade romana do período clássico. Como se observa, as explicações históricas para esse período de transição ainda se apóiam na esfera política, uma vez que o Império Romano constituía-se, antes de mais nada, em uma unidade político-administrativa, todavia o otimismo que tangencia as novas abordagens versa, justamente, sobre as singularidades culturais apreendidas das fontes históricas as quais são observadas sob a ótica do imenso instrumental teórico-metodológico de que hoje dispomos. Tal instrumental nos afasta irremediavelmente da concepção que marcou a corrente historiográfica do século XIX calcada em uma narrativa histórica descritiva dos fatos políticos. Conforme afirmamos, o momento histórico em questão é marcado por profundas alterações na política, na burocracia e nas instituições religiosas do Império Romano no final do terceiro e início do quarto séculos. Três desenvolvimentos particulares, para R. Miles, demarcaram, concomitantemente, o período em que Eunápio viveu, a saber: as mudanças na auto-representação e ideologia imperiais, o influxo de bárbaros e sua crescente importância nas tarefas militares e estruturas civis do império e a emergência do cristianismo como uma força política poderosa. (MILES, 1999, p. 5). Cada um desses desenvolvimentos tem sido bem documentado pelas fontes históricas do período, porém objetivamos, em particular, apresentar como tais transformações afetaram o caminho individual de alguns neoplatônicos da Ásia Menor na Antiguidade Tardia por intermédio das biografias eunapeanas. Sendo assim, é, no interior desse contexto, que Eunápio será situado, já que acreditamos ser sua obra biográfica, produto das dissensões políticas do IV século. Sofista e historiador grego, Eunápio nasceu em Sardes (347 d.C.), sua cidade nativa, na qual estudou sob a orientação de Crisântio, filósofo neoplatônico, e, aos dezesseis anos, foi para Atenas, onde se tornou um dos melhores alunos do cristão e sofista Proerésio da Armênia. Nessa cidade, Eunápio entrou em contato com as idéias que vigoravam na corrente neoplatônica ateniense, cujo principal foco de divulgação era a Academia de Atenas. Não se pode negar que a maioria dos escritores de diversas correntes literárias do IV século faziam alusão aos antigos escritores gregos, a saber, Pitágoras, Aristóteles e Platão. Tais autores foram objeto de inspiração tanto nos 15 assuntos quanto no estilo das obras reproduzidas pelos escritores do período, todavia foi o sistema filosófico de Platão que despertou um interesse maior e angariou mais adeptos. Sabe-se que seu pensamento, de um lado, vinculava-se à teoria das formas e a imortalidade da alma; de outro, submeteu todas as proposições a mais apurada crítica. Esses vetores de seu pensamento, de certa maneira, ajustavam-se à concepção de religião proveniente do cristianismo que perpassou o século IV bem como o espírito crítico em que os romanos estavam inseridos, já que vivenciavam um momento de profundas alterações dos paradigmas clássicos no qual a sociedade estava consolidada. (MEREDITH, 1988, p. 344). Lembremos que o resgate dos modelos clássicos gregos foi impulsionado, sobremaneira, pelo movimento conhecido como Segunda Sofística, designação legada por Filóstrato de Lemos em Vidas dos Sofistas a fim de aludir à importância dos sofistas como categoria profissional na sociedade romana oriental do segundo e terceiro séculos. Eunápio, no IV século d.C., por conseguinte, se apropriará dessa moldura literária bem como do ambiente de efervescência da sofística para delinear o estilo literário de suas biografias. Concordamos, então, com George Kennedy, (1994, p. 230) ao sustentar que a Segunda Sofística se refere ao movimento cultural e literário da sociedade romana oriental que começou no primeiro século e floresceu no segundo. Esse movimento era formado por professores gregos de retórica ou sofistas e filósofos provenientes, de modo geral, de famílias abastadas e muito influentes no cenário político os quais cultivavam a religião e os valores morais antigos que aludem àqueles vivenciados no século V a.C. É no interior desse movimento, o qual se perpetuará no século IV d.C., que compreenderemos as intenções de Eunápio com a produção das Vidas de filósofos e sofistas neoplatônicos que mantiveram relações de amizade com o autor ou que se notabilizaram como representantes do poder imperial na Ásia Menor. Trata-se, no limite, de uma pesquisa inédita na historiografia no que diz respeito à reflexão de alguns resultados da Segunda Sofística na Antiguidade Tardia. Segundo A. Meredith (1988, p. 343), o filósofo e historiador Plutarco (45-120?) teria propalado o gênero biográfico por todo o Império Romano e, no século IV, ainda se percebiam os reflexos de sua influência nas composições biográficas do período. Além disso, para a composição dos registros biográficos partir do II século, destacaram-se muitos outros filósofos que divulgaram o conhecimento de autores clássicos e os codificaram em torno de uma base filosófica denominada 16 neoplatonismo, entre eles, Máximo de Èfeso (do 4 º século2), Plotino (205-270) e o grande propagador das idéias de Platão no IV século, Iâmblico (245-345), os quais aliaram a popularidade das biografias na Antigüidade aos modelos clássicos ventilados com a Segunda Sofística. É, então, no calor das discussões sobre a filosofia clássica e produção biográfica que Eunápio incorporará um estilo semelhante aos declarados pelos intelectuais contemporâneos a ele, ou seja, sua obra, em geral, revela características de autores neoplatônicos, asserção aceita por muitos estudiosos. (WRIGHT, 1989; MEREDITH, 1988; BROWN, 1992; JONES, 1992; CAMERON, 1993; KENNEDY, 1994). No que diz respeito à trajetória específica de Eunápio3, depois de estudar em Atenas, entre 362 e 364, ele recebe o chamado de seus pais e retorna à sua terra natal (Sardes), em 367, onde passa o resto de sua vida e escreve a obra mais importante de sua carreira como biógrafo: A vida dos filósofos e sofistas escrita em aproximadamente 399 d.C.4 por meio da qual se tornou conhecido como biógrafo. A referida obra é uma coleção de biografias de 13 filósofos, 13 sofistas e 4 médicos, todos neoplatônicos que viveram antes de Eunápio e, em sua maioria, contemporâneos a ele. No tocante à estrutura de Vidas dos Filósofos e Sofistas, é possível dividi-la, consoante Buck (1992, p. 150) propôs, em cinco partes: primeiro, a escola neoplatônica de Plotino a Prisco a qual comporta todos os alunos de Plotino, (20– 270)5, filósofo egípcio, fundador do neoplatonismo, bem como os alunos de seus alunos. Compreende-se, dessa forma, além de Plotino, Porfírio de Tire (233 – 309), seu aluno, em seguida, Iâmblico de Cálcis na Síria (245 – 325?) e Alípio, ambos 2 Não conseguimos precisar as datas de nascimento e morte do filósofo neoplatônico Máximo de Éfeso. Sabe-se que ele atuou como membro da corte imperial de Juliano e foi morto por Festo na administração de Teodósio. 3 É interessante observar que os fatos históricos e personagens narrados nas Vidas seguem a própria história da vida de Eunápio. Esta, por sua vez, é-nos apresentada a partir de sua experiência estudantil em Atenas, momento a partir do qual o biógrafo fará diversas associações entre o que ele narra nas biografias e seu particular envolvimento e participação dos acontecimentos selecionados. Como se observa, é possível constatar elementos autobiográficos nas Vidas eunapeanas. 4 Em relação à datação da obra biográfica de Eunápio, mostramo-nos favorável à explanação do antiquista Banchich (1986, p. 319) o qual se apóia em outros pesquisadores tal como Paschoud (1976, p. 169-180) e Bonn (1980, p. 149-162). Tais estudiosos perceberam, nas Vidas de Eunápio, menção à invasão de Alarico na Grécia em 395-396, a qual fornece um terminus post quem, nas palavras de Banchich, para estas biografias, haja vista ser o último fato histórico abordado. 5 Infelizmente, não dispomos de todas as informações sobre a biografia de cada intelectual apresentado na dissertação, em especial, datas de nascimento e morte de cada um dos intelectuais arrolados nas biografias eunapeanas. Dessa forma, alguns intelectuais virão desprovidos de indicações precisas. Todavia, a partir dos intelectuais datados, situaremos o arco cronológico aproximado dos filósofos ou sofistas que não apresentam tais informações. 17 alunos de Porfírio; Sopater e Eustátio (contemporâneo do imperador Constantino), alunos de Iâmblico; Ablábio (floresceu em 330) e Edésio (morreu em 355), alunos de Sopater e Eustátio respectivamente; por fim, Máximo, Crisântio de Sardes (morreu nas mãos de Oribásio), Eusébio e Prisco, todos alunos de Edésio. Trata-se, destarte, da primeira geração de filósofos e sofistas neoplatônicos. Em seguida, relata-se a escola do sofista Juliano de Capadócia a Proerésio em Atenas. Essas biografias nos oferecem um cenário bastante amplo do ambiente político-cultural dos sofistas que se dirigiam a Atenas a fim de aperfeiçoar seus estudos com professores renomados, entre eles, Proerésio, aluno do sofista Juliano, Epifânio da Síria, Diofanto da Arábia (nasceu aproximadamente entre 200 ou 214 e faleceu entre 284 ou 298), Sopólis, Himério da Bitínia (314 – 386) e Parnásio. Exceto os sofistas Juliano e Proerésio, os demais foram apresentados em biografias breves. Na terceira parte, há exposição de intelectuais isolados como Libânio de Antioquia (314 – 394), Acácio de Cesárea na Palestina e Nimfidiano de Smirna, irmão de Máximo. A quarta parte versa sobre os iatrosofistas, sofistas versados em medicina, a saber: Zeno de Cipro, Oribásio de Pérgamo (320 – 400) e seus alunos Magno de Antioquia e Iônico de Sardes e, para finalizar, a última parte está focada na vida do filósofo Crisântio de Sardes, que aparece várias vezes na obra, e a escola neoplatônica contemporânea de Eunápio a qual era dirigida por Crisântio em Sardes. O fato de ser Eunápio natural de Sardes, ou seja, uma província do Império Romano e, por extensão, uma região periférica em relação à cidade onde se localizava a Corte Imperial, Constantinopla, e ter retratado intelectuais neoplatônicos, em grande parte, contemporâneos a ele, em um momento, de um lado, de acentuada fragmentação política, econômica e militar e, de outro, marcado pela a ascensão do cristianismo como força política, são indícios que nos levam a acreditar que as atitudes humanas reveladas nas biografias nos conduzem à imagem que Eunápio constrói a respeito da administração imperial, no que concerne ao exercício do poder, realizado entre os imperadores Constantino e Teodósio e seus respectivos oficiais, e a necessidade de projetar positivamente a imagem de intelectuais neoplatônicos no cenário político a fim de assegurar a representatividade política das elites locais não- cristãs. 18 Outro fator a ser considerado para fundamentar a questão político- administrativa veiculada pelas biografias eunapeanas é a oscilação das dimensões das biografias que se apresentam na obra. Observa-se que as Vidas que comportam um número mais expressivo de pormenores relacionados à vida pública e privada versam, justamente, sobre os intelectuais que ocupam cargos administrativos, são eles: Aedésio (Vit. Soph., p. 3776) , Eustátio (Vit. Soph., p. 393), Máximo (Vit. Soph., p. 427), Eumólpide (Vit., Soph. p. 437), Prisco (Vit. Soph., p. 445 ), Juliano de Capadócia (Vit. Soph., p. 467), Proerésio (Vit. Soph., p. 503 ), Heféstio (Vit. Soph., p. 520), Ninfidiano (Vit. Soph., p. 529) e Crisântio (Vit. Soph., p. 541). Tal constatação demonstra a inclinação do autor em externar sua concepção sobre o poder imperial bem como assevera a orientação política com que as biografias foram organizadas. Os demais filósofos foram apresentados sucintamente, dado que Eunápio se restringiu à descrição de suas características físicas, local de nascimento e a contribuição que delegaram à Oratória por intermédio de suas apresentações em disputas públicas, ou seja, demarcou alguns aspectos da vida privada, o ambiente cultural direcionado à arte sofística e alguns componentes religiosos da filosofia neoplatônica. Como pudemos observar, as Vidas de Eunápio é uma fonte que permite a análise do ambiente político-cultural, visto ser possível analisar em conjunto as menções do biógrafo à administração imperial por meio da conduta dos intelectuais biografados no exercício do poder. Na obra em questão, filósofos e sofistas neoplatônicos são apresentados no interior de uma sociedade em que as comunidades adeptas do cristianismo, possivelmente sob a proteção dos imperadores cristãos, cresciam gradativamente o que redundava em um clima de extrema competitividade, já que ambos os grupos sociais ambicionavam ascender a cargos administrativos do Império como demonstra a historiografia.7 Sendo assim, o objetivo principal dessa investigação é demonstrar a visão de Eunápio sobre a questão administrativa do Império Romano no século IV d.C. por meio das biografias de intelectuais neoplatônicos que ocuparam cargos públicos no período que compreende as gestões dos imperadores Constantino (306 – 337) e Teodósio (378 – 395) nas quais há um problema comum: o desgaste da unidade 6 A fim de facilitar a identificação dos biografados no corpo dos registros biográficos, disponibilizamos as páginas em que serão encontrados os supramencionados intelectuais. 7 Referimo-nos, especialmente, à historiografia anglo-americana, e nacional, entre os quais, destacam-se Carvalho (2002) e Silva (2003) as quais se encontram mencionados nas referências. 19 político-administrativa do Império Romano em função do modo como era conduzido o poder imperial. Trata-se, em primeiro lugar, de identificar em suas biografias de intelectuais ilustres do IV século os conceitos centrais que delinearam o caráter dos personagens bem como o palco de suas ações no sentido de compreender as categorias pelas quais Eunápio pensa o Império Romano no que diz respeito ao aspecto político, especificamente, a representatividade política das elites neoplatônicas da Ásia Menor no momento de ameaça de fragmentação do Império. Como se pode avaliar, nossa pesquisa não está concentrada apenas na identificação do estilo literário das biografias eunapenas, isto é, não nos preocupamos somente com a estrutura básica de uma biografia tradicional produzida na Antiguidade, tais como origem, vida e morte dos personagens biografados. Valorizaremos, por outro lado, a visão de Eunápio sobre o contexto em que está imerso, sua condição como cidadão romano, valores filosóficos e religiosos inerentes a sua formação intelectual, experiências vivenciadas nas viagens que possibilitaram a escrita da obra biográfica e, por extensão, a visão sobre o grupo social do qual faz parte. Esses, para nós, são elementos impressos na obra indispensáveis para nossa interpretação. Em relação à metodologia empregada para realização da pesquisa, importa- nos sublinhar que o afastamento temporal entre o sujeito-pesquisador, fonte histórica e o autor da fonte histórica, inevitavelmente, produz diferentes entendimentos acerca das informações veiculadas pela obra histórica, porquanto as leituras são sempre realizadas no presente em direção ao passado. Ler uma fonte histórica sempre pressupõe partir de valores, problemas, inquietações e concepções de vida de uma determinada época histórica o que nos permite entender que o passado é uma construção e uma reinterpretação constante do presente. Essa consciência, tomada de Jacques Le Goff (1994. p. 24-25) em História e Memória, autoriza-nos a fazer uso de métodos que nos afastem do anacronismo, isto é, não podemos projetar problemas ou indagações à fonte histórica se tais questões não existiam ou eram muito diferentes no tempo de produção da fonte histórica. Assim sendo, para minimizar o risco de nos equivocar e traduzir as representações e símbolos mobilizados pelas biografias eunapeanas, que não pertencem à época em que foram redigidas, consideraremos o manancial de informações sobre o contexto histórico do IV século proveniente de referências bibliográficas assentadas em pesquisas recentes sobre o período a fim de delinear 20 os aspectos gerais da sociedade romana oriental tardia e suprir, conseqüentemente, as lacunas apresentadas pelas Vidas de Eunápio. Em outras palavras, compreendemos que as referências bibliográficas funcionam como uma espécie de “tropas de reconhecimento“, haja vista a necessidade de conhecer o que há do “outro lado” e, com isso, efetivar um contato preliminar com o “passado“ em que a fonte se encontra inserida. Não deixaremos, entrementes, de valorizar as referências contextuais disponibilizadas pelo próprio biógrafo nas Vidas como contraponto ao contexto histórico sugerido pelos antiquistas, pois a bibliografia utilizada na presente pesquisa sobre os componentes contextuais apenas servirá como material complementar e não como essência da análise documental. Para além das questões concernentes ao contexto histórico, almejamos cercar autor e obra a fim de estabelecer caminhos que possam delinear a intenção do autor em lamentar práticas administrativas adotadas pelos imperadores cristãos no momento de ascensão do cristianismo e crescentes incursões bárbaras no território romano. Conforme aludimos, a penetração crescente de cristãos nos quadros administrativos apoiada pelos imperadores, que encontraram na proposta religiosa cristã uma maneira de fortalecer a legitimidade do poder imperial, preteria, conseqüentemente, as elites locais não-cristãs do cenário político. Partimos do pressuposto de que seja, no interior desse ambiente conflituoso, que Eunápio escreverá uma obra em formato biográfico com a finalidade de caracterizar e singularizar as habilidades políticas de cada membro das elites neoplatônicas, diferenciando-os dos demais. Com isso, o biógrafo justifica a desagregação das instituições políticas pelo afastamento desses intelectuais do corpo administrativo do Império. Com vista a apreender como, para Eunápio, o exercício do poder imperial era estabelecido, consideraremos as biografias relatadas em Vida dos filósofos e sofistas como portadoras de um sistema de representações capazes de propor a perspectiva histórica de Eunápio no transcorrer de sua obra (CHARTIER, 1990, p. 17) e, conseqüentemente, enunciar a concepção que se tinha a respeito da administração imperial, tendo em vista o local de onde ele escreve e o grupo ao qual pertence. (CERTEAU, 1982, p. 73). Examinadas por esse prisma, buscaremos constituir, como representações, as construções literárias as quais resultam em imagens simbólicas, constituídas pelas 21 práticas sociais realizadas pelos filósofos e sofistas neoplatônicos biografados, os quais exibem a maneira pela qual Eunápio os apreende e apresenta em sua fonte biográfica para satisfazer, a nosso ver, objetivos pré-determinados. (CHARTIER, 1990, p. 20-21). Ao associar as representações à configuração de imagens simbólicas, ou seja, símbolo, os quais apontam para o processo de codificação da realidade8, inclinamo- nos a segmentá-lo em duas metades9: o significante que versa sobre a parte concreta, ou melhor, corresponde ao conjunto de informações, de opiniões e de crenças referentes ao objeto de pesquisa (personagens biografados), ou, especificamente, todos os recursos discursivos impressos no texto para codificar, no plano literário, a figura de neoplatônicos que pudessem rivalizar, por intermédio de práticas políticas10, com os cristãos na administração imperial. Infere-se, com base nisso, que o significante é produto de uma interpretação do biógrafo que forja a 8 Referimo-nos ao termo “codificação da realidade” para fazer referência àquilo que se aproxima da realidade, posto que não acreditamos que se possa apreender ou codificar uma determinada realidade, tal como ela se apresenta, isto é, em sua essência, pois nós entramos em contato com ela sempre pelo olhar singular de um sujeito-pesquisador. 9 Nossa explanação acerca da proposta interpretativa para o conceito de “representação”, apreendido a partir da obra de Chartier (1988, p. 19), visa ao afastamento de uma investigação descritiva e estanque da fonte biográfica, uma vez que, como sugere Chartier o conceito de representação como “forma simbólica” “é um instrumento de um conhecimento imediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é”. (grifo nosso). Provavelmente, esse seja o motivo pelo qual o Professor Malerba (2000, p. 279) tenha constatado que as pesquisas enveredadas à vertente da Nova História Cultural, ou seja, centrada no conceito de representação, tenha produzido muito mais práticas historiográficas descritivas do que analíticas ou explicativas. Isso, na verdade, indica uma apropriação disforme da proposta teórico-metodológica de Chartier, pois o conjunto de seus escritos revela exatamente o contrário. De todo modo, diante dessa limitação conceitual, apoiamo-nos em uma proposta interpretativa proveniente da Lingüística desenvolvida por Saussure que entende o símbolo no interior da categoria do signo; este, por sua vez, apresenta duas faces, a saber: significante e significado, a partir das quais o símbolo será examinado. Assim, utilizaremos uma vertente analítica mais dinâmica para o conceito de “representação”, uma vez que não aventa apenas a “apropriação” da imagem mobilizada pela fonte histórica, mas oferece condições de instituir uma visão mais apurada sobre os dados presentes no documento biográfico. Reconhecemos, todavia, a relevância do historiador Roger Chartier e a importância de suas obras para renovação metodológica que impulsionou a corrente historiográfica denominada Nova História Cultural. 10 Entendemos por “práticas políticas“ a atuação ou conduta dos neoplatônicos no cenário político- cultural construído por Eunápio. É em virtude da apreensão dessas “práticas“ que o biográfico nos oferece “representações” de filósofos e sofistas de famílias abastadas da Ásia Menor as quais, no conjunto, atendem a determinados interesses sociais e políticos do grupo filosófico neoplatônico, consoante indicado anteriormente. Decorre disso o conceito de ideologia que, para nós, aparece como um projeto de agir sobre a sociedade, isto é, corresponde a uma determinada forma de construir representações para atingir determinados objetivos ou reforçar determinados interesses. (FIORIN, 2001, p. 26-29). Convém sublinhar ainda que, nessa investigação, o termo “ideologia” está circunscrito na dimensão do grupo filosófico neoplatônico da Ásia Menor, logo aplicado em campo restrito e limitado da sociedade romana oriental tardia. Não aprofundaremos essa discussão conceitual, pelos limites da pesquisa, porém assinalamos, com esse breve comentário, a relação mútua de complementaridade entre representações, práticas e ideologia. 22 realidade em virtude de uma intencionalidade subjacente ao discurso. Consoante propugna Paul Veyne (1998, p. 180), os valores não se encontram no que os autores dizem, mas no que fazem, e os títulos oficiais são, na maioria das vezes, enganadores. Queremos dizer com isso que Eunápio não expõe o real vivido por meio do significante, ou melhor, não se pode realizar uma interpretação positiva do documento, mas considerar que se trata de uma visão particular de um neoplatônico, Eunápio, que imerso em grupo filosófico com pretensões políticas, pretende justificar seus pares como líderes sociais ou agentes políticos. Já o significado versa integralmente sobre a parte da imagem simbólica apenas concebível, mas não representável. Essa parte requer a análise, pelo sujeito- pesquisador, da intencionalidade alimentada pelo autor da fonte histórica, inerente à imagem simbólica construída textualmente. Isso será possível ao situarmos a especificidade da plausível realidade histórica sugerida pelo documento biográfico a outros textos elaborados por grupos semelhantes ou diferentes no tocante à concepção filosófica. Essa é, mais uma vez, a justificativa para a importância do contexto histórico, sedimentado pela historiografia, como complemento da análise documental. Em outros termos, a restituição das representações depende da busca de pistas que nos permitam compreender o modo como o olhar do outro foi estruturado no tempo e no espaço e, assim, insinuar as convergências e divergências entre o dito (significante) e o sentido (significado). (SILVA, 2000, p. 90). Como se observa, a imagem simbólica presente no documento revela explicitamente apenas o significante o qual se apresenta como vestígio indispensável para construirmos o significado. Não acreditamos, portanto, que as representações presentes nas biografias eunapeanas correspondam ao objeto representado, pois é necessário que haja um olhar crítico do historiador que possa perguntar quais foram os motivos que conduziram o autor a realizar determinada imagem simbólica. Então, diante das representações mobilizadas na fonte histórica, resta-nos indagar, afinal, o que está por trás de determinada construção. Com tal indagação, estabelecemos nosso método analítico o qual se constitui, em princípio, na apreensão das imagens simbólicas sugeridas pelas Vidas para, em seguida, serem questionadas profundamente dentro dos parâmetros estabelecidos pelo contexto histórico em que a obra foi produzida, consoante referimos acima. (BURKE, 2004, p. 162-163). 23 Faz-se necessário, além disso, apresentar com mais especificidade a maneira como o conceito de representações, que nos credencia inevitavelmente a uma corrente histórica contemporânea, será utilizado em uma investigação que pretende atuar no ambiente político-cultural manifestado pelo documento biográfico. Bem sabemos que as experimentações da proposta investigativa do referido conceito se aplicam em várias linhas de pesquisa, entre elas, a Cultura Política, nossa vertente analítica. Diante disso, julgamos pertinente discorrer sobre como a representação nos auxiliará na análise documental. Apoiamo-nos, para isso, na pesquisa realizada pela historiadora Maria Antônio Alonso de Andrade (1996, p. 26) a qual advoga que o conjunto de orientações- atitudes, que, antes, se apresentava como objeto central das pesquisas históricas sob a perspectiva da Cultura Política; agora, no interior do domínio das imagens simbólicas, admite tais orientações-atitudes, no campo político, como uma dimensão de um fenômeno cognitivo mais profundo e complexo o qual se convencionou denominar de representações sociais. As representações são sociais porque são construídas socialmente, ou seja, surgem da interação dos grupos filosóficos neoplatônicos. Assim sendo, a estruturação do campo de representação e o seu sentido dependem da inserção dos indivíduos em grupos sociais, como se nota na obra biográfica de Eunápio a começar pelos intelectuais selecionados para compô-la. Logo, é possível estabelecer clivagens entre os grupos sociais a partir de suas representações, em geral, e de suas representações da política em particular. Portanto, a Cultura Política, redefinida pelo instrumental teórico-metodológico da Nova História Cultural, seria a estrutura das representações sociais a respeito do mundo da política, ou seja, o campo de representação a respeito do universo da política na Antiguidade Tardia. Percebemos que se mudou apenas o instrumental analítico dessa vertente historiográfica na qual nos encontramos, ou seja, houve uma redefinição da Cultura Política com base nas representações sociais e não mais nas atitudes político- sociais. Munido desse arsenal teórico-metodológico, compreendemos a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. A cultura seria, então, uma construção social que atribui sentido à realidade de uma determinada categoria social historicamente datada, localizada e com 24 interesses políticos definidos. Seria, por conseguinte, a tradução da realidade através de formas simbólicas, conferindo sentido às palavras, às coisas e às ações. De maneira geral, aplicadas ao território da História, as representações sociais aspiram, segundo Silva (2000, p. 94), enfatizar a interação entre indivíduo e sua época, posto que o sujeito se auto-representa na representação que faz do objeto, ou melhor, o sujeito imprime sua identidade naquilo que representa. Adicionado a isso, o termo permite investigar a maneira como o tempo elabora processos de subjetivações , isto é, a cristalização do passado no presente pelo prisma de um específico indivíduo. Para o pesquisador, essa é, em parte, a pretensão desse gênero bibliográfico. Em relação à produção das biografias, conceberemos o processo rememorativo como responsável pela seleção das situações representadas pelas biografias eunapeanas. Entendemos que a memória individual é portadora de uma memória coletiva, uma vez que faz referência a quadros sociais a partir dos quais ela é formada. Isso nos permite afirmar que a memória recuperada pelas Vidas representou fatos marcantes para Eunápio, visto que ela é produto da seleção das impressões do biógrafo sobre o passado as quais se relacionam com o mundo ou condições a que foi submetido. Com efeito, os fatos históricos indicados por Eunápio na construção de suas biografias elucidam seu próprio envolvimento ou interação o que reforça a idéia de que a lembrança que se tem do passado não representa toda a memória, mas sim, o que é relevante para o autor. Nessa perspectiva, os esquecimentos prefiguram informações tão importantes quanto as lembranças, porquanto contribuem para a apreensão da intencionalidade do autor. Desse ângulo, defenderemos que a memória, ou melhor, os fatos pretéritos recuperados pela memória, no presente, terão seus valores redefinidos. (NAXARA; BRESCIANI, 2001, p. 42). Resta-nos, antes de iniciar a exposição da maneira como o presente trabalho investigativo foi estruturado, vincular a Antiguidade Tardia, que representa o contexto histórico em que a obra foi escrita, à Segunda Sofística, que simboliza os aspectos culturais e literários em vigor a partir do II século e que se perpetua no momento em que Eunápio escreve. Dessa forma, o renascimento da Segunda Sofística, conforme nos alertou Filóstrato de Lemos em Vidas dos Sofistas, está, indubitavelmente, associado à atuação profissional de filósofos e sofistas não-cristãos os quais se manifestaram em 25 diferentes obras literárias como detentores de uma extensa produção de discursos assentados em modelos clássicos e avançadas técnicas de declamação para grandes públicos no teatro, entre elas, a improvisação, a qual ocupa um patamar superior se comparadas às demais apresentações discursivas. Por outro lado, ao relacionarmos esse fenômeno cultural e literário, idealizado por Filóstratos no III século, à Antiguidade Tardia, ou mais precisamente ao IV século, período em que Eunápio redigiu seus registros biográficos focados nos mesmos personagens que impulsionaram a Segunda Sofística, verificamos nítidas especificidades que se desenvolveram pelas novas relações de força que interceptavam a representatividade política das elites locais. A ascensão do cristianismo e sua posterior legitimação pela política imperial adotada por Constantino e seus sucessores metamorfosearam a dinâmica da ascensão política das elites locais não-cristãs, porquanto a nova orientação religiosa imperial passou a preterir dos cargos públicos indivíduos que não se ajustassem aos mesmos códigos sócio-religiosos incorporados pela corte imperial. Conforme demonstramos, acreditamos que seja essa a razão pela qual Eunápio bem como outros intelectuais não-cristãos se dispuseram a minar as bases filosóficas do cristianismo, ao apresentar a fragilidade política da administração imperial governada por membros das elites cristãs, em detrimento das habilidades e competências dos não-cristãos em executar ofícios públicos. Diante disso, as habilidades retóricas de intelectuais não-cristãos, propaladas por Filóstrato, em Eunápio, recebem uma conotação marcadamente política, pois tais habilidades, nos registros biográficos eunapeanos, denotam a principal estratégia argumentativa para legitimar a representatividade política da elite neoplatônica pertencente à província da Ásia Menor. Dito de outro modo, o caldeirão cultural mobilizado pela Segunda Sofística é, no IV século, utilizado, a nosso ver, para satisfazer dois objetivos: primeiro, atua como agentes legitimadores de uma categoria social que buscava, por meio de documentos literários, externar o poder que possuíam para representar os interesses da política imperial; e, segundo, serve como instrumento mantenedor da identidade do grupo ao qual o biógrafo pertence. Por fim, com a finalidade de cumprir com os objetivos de nossa pesquisa, disporemos nosso trabalho investigativo em três capítulos. O primeiro ambiciona demonstrar a discussão historiográfica entre as fronteiras dos gêneros biográfico e histórico nas sociedades clássicas no tocante à produção discursiva desses tipos de 26 texto. Com isso, oferecemos uma visão panorâmica a respeito dos elementos que compuseram os registros biográficos na Antigüidade e de como tais registros foram apropriados por historiadores que desenvolveram suas pesquisas entre o final do século XIX e o transcorrer do século XX com a finalidade de suprir lacunas para a compreensão histórica, em particular, da Antiguidade Tardia. Destarte, apreenderemos, sob a ótica da historiografia, a postura que foi sedimentada, entre os antiquistas, em relação à interpretação das referidas Vidas. Ao contrário do que muitos sustentam, defenderemos a proposição de que biógrafos e historiadores do IV século produziram discursos semelhantes; diferentes apenas no objetivo para o qual foram escritos. Partimos, então, do pressuposto de que não há uma fronteira que segrega, em absoluto, essas duas modalidades textuais no período em questão; proposição que será fundamentada com a análise de fragmentos das biografias eunapeanas. A necessidade de diferenciá-los é mais uma inclinação de historiadores contemporâneos do que de historiadores antigos. Apresentaremos, por conseguinte, uma nova perspectiva de abordagem para o documento biográfico. Conforme aludimos, tal perspectiva atuará como eixo a partir do qual repensaremos os atributos que norteiam a produção das Vidas e a plasticidade dessa modalidade textual em Eunápio, especificamente. Feitas essas considerações acerca do estatuto das biografias na sociedade romana tardia, migraremos, no segundo capítulo, para questões relativas às influências que o documento biográfico recebeu a partir do movimento intitulado Segunda Sofística, uma vez que observaremos as situações em que se encontram filósofos e sofistas neoplatônicos, particularmente, da Ásia Menor, à luz do ressurgimento desse fenômeno cultural na sociedade romana oriental do IV século e os possíveis motivos de seu desenvolvimento. Apropriar-nos-emos, em seguida, da tradição de escrita biográfica que envolveu o biógrafo Eunápio e o influenciou para a redação das Vidas. Por essa razão, recorreremos, brevemente, às figuras de Sótio (200 – 170 a.C.), Plotino (205 – 270) e Filóstrato (170 – 247), dado que se apresentam na obra de Eunápio como grandes referências para sua produção discursiva. Essa análise solidificará nossas reflexões acerca das pretensões do biógrafo com os registros biográficos e sua atuação como intelectual no Império Romano. Dado o papel central que filósofos e sofistas neoplatônicos ocupam nas Vidas, julgamos necessário, ainda nesse capítulo, conduzir nossa pesquisa para delinear as 27 referidas categorias profissionais e situar, por extensão, o próprio autor no interior dessa discussão conceitual. Para isso, desenvolveremos um trabalho de crítica segundo os parâmetros da análise filológica interna, haja vista a análise semântica dos termos filósofos e sofistas utilizados por Eunápio. Ao efetivar tal análise, partimos do pressuposto de que o intelectual, seja ele gramático, filósofo, sofista, panegerista, e assim por diante, é concebido a partir de sua atuação efetiva diante da sociedade, à medida que ele assume um papel e o externa por meio de suas obras ou práticas políticas. (HIDALGO DE LA VEJA, 1995, p. 49-51). Com esse manancial de informações que, primeiro, agasalha as Vidas em um movimento cultural em ascensão o qual veicula práticas e valores político-culturais definidos, em seguida, apresenta a inserção de Eunápio em uma tradição de escrita biográfica em desenvolvimento no IV século e, por fim, revela uma análise pormenorizada da maneira como filósofos e sofistas são representados, possibilitaremos a compreensão dos objetivos almejados nesse trabalho; já que, com esse capítulo, pretendemos apresentar o ambiente político-cultural que envolve o documento biográfico e a representação de intelectuais neoplatônicos para, a partir do próximo capítulo, penetrar nas intenções políticas de Eunápio, associando-as sempre ao plano político-cultural já comentado. Por essa razão, no terceiro capítulo, far-se-á alusão ao contexto histórico em que Eunápio está inserido. Versaremos, em especial, sobre aspectos político- administrativos e religiosos, já que a religião é um componente indissociável da política na Antiguidade, no reinado os imperadores cristãos (de Constantino a Teodósio), haja vista ser, sob esses imperadores, que as Vidas de Filófosos e Sofistas estão ambientadas. Com base na exposição desse momento histórico, desvelaremos as condições de produção das biografias bem como teceremos considerações pertinentes ao conjunto de influências e estímulos político-culturais que o impulsionou a elaborar os registros em formato biográfico. Em seguida, dirigir-nos-emos aos dados biográficos de Eunápio com a intenção de cercar o autor no interior de sua formação intelectual, atuação profissional e descendência em Sardes. Averiguaremos, sobremaneira, a categoria social a que o biógrafo pertence, ou seja, examinaremos as redes de sociabilidade que o envolveram e relacioná-la-emos à intervenção política que exerciam por sobre a administração imperial. 28 Importa ter presente que, com esse estudo, teremos, a rigor, uma visão mais pormenorizada da atuação do biógrafo na sociedade romana como intelectual e intenções alimentadas por ele na confecção das Vidas, porquanto, conforme defendemos, elas estão antenadas aos anseios do grupo filosófico-religioso ao qual ele pertence. Desse ângulo, o terceiro capítulo é uma extensão do segundo, visto que a diferença reside no fato de que nos ateremos, no segundo capítulo, ao movimento filosófico que impulsionava os intelectuais do IV e V séculos a redigir suas obras; já, no terceiro capítulo, centraremos nossas reflexões no biógrafo Eunápio e as condições políticas que o circundaram para construção das biografias. Trata-se, apenas, de um recurso didático que ambiciona um melhor aproveitamento do repertório de informações que nos permitiu solidificar os objetivos apresentados para realização da dissertação. Realizadas essas asserções iniciais, deter-nos-emos em fragmentos das Vidas que demonstram as ações políticas de filósofos e sofistas neoplatônicos na administração imperial com a finalidade de averiguar a inter-relação de filosofia, religião e poder como componentes centrais para constituir a autoridade desses intelectuais e sustentar, conseqüentemente, a representatividade política das elites locais da Ásia Menor das quais faziam parte, tendo em vista, na visão de Eunápio, o processo de corrosão administrativa, liderado pelos cristãos. Em outros termos, elucidaremos a perda de representatividade política de neoplatônicos pertencentes à elite da Ásia Menor, cuja perda, para nós, justifica os motivos que levaram o autor a denunciar a condução da administração imperial no interior dos reinados de Constantino a Teodósio os quais, para o biógrafo, foram os responsáveis pela fragmentação das instituições políticas imperiais. Para satisfazer nossos objetivos, usaremos como ponto de partida a crítica aos imperadores cristãos, a qual perfaz o caminho de Constantino a Teodósio, conforme aludimos, a fim de compreender as bases segundo as quais Eunápio pensa o Império em sua organização política. Contudo, ao nos centrarmos em Vidas dos filósofos e sofistas, não excluiremos a possibilidade de recorrer a outras obras do biógrafo para referendar nossas proposições. Nesse capítulo, elas desempenharão um papel significativo a fim de que a lógica do pensamento político de Eunápio seja delineada. E, à guisa de encerramento, reforçaremos, na conclusão, a intenção política com que as situações representadas nas Vidas foram organizadas e as estratégias 29 discursivas no campo da retórica mobilizadas por Eunápio com a intenção de reforçar a imagem de filósofos e sofistas adeptos ao neoplatonismo como agentes de poder. Indicaremos que, com isso, fica fácil perceber que o afastamento das elites neoplatônicas resultou em prejuízos para política imperial e que defender a questão da representatividade política das elites locais não-cristãs da Ásia Menor tornava-se uma necessidade, dado o avanço e a oficialização do cristianismo. 1 BIOGRAFIA E HISTÓRIA EM EUNÁPIO 30 1.1 Considerações Preliminares Abordar o tema da biografia histórica na Antigüidade Clássica e na Antigüidade Tardia implica, sem dúvida, discorrer acerca de um dos assuntos mais discutidos atualmente dentro dos estudos históricos, uma vez que, ao mesmo tempo reivindicada por certas correntes historiográficas como um dos temas fundamentais de investigação, é criticada e desqualificada radicalmente pelos pesquisadores de posturas ou tendências diferentes. Dessa maneira, o primeiro impasse que surge, ao lidarmos com o gênero biográfico, está relacionado às suas fronteiras em relação à História como ciência11. Tal impasse ainda é objeto de discussão de muitos historiadores contemporâneos e antiquistas, posto que percebemos pesquisadores que se apropriam dos registros biográficos ora como fonte literária ora como fonte histórica. Respeitamos os especialistas que consideram as biografias como mera variante da literatura; não compartilhamos, porém, essa idéia. Abster-nos-emos, nessa dissertação, de discorrer sobre as clivagens entre História e Literatura, visto que tal discussão, embora seja importante para delimitação das pesquisas históricas e, por extensão, da História no interior das ciências humanas na contemporaneidade, revela-se anacrônica se levarmos em consideração o momento histórico em que as Vidas de Eunápio foram produzidas. Sendo assim, como o debate não nos ajudaria a investigar o documento biográfico, 11 Compartilhamos a definição de ciência tal como pressupõe (Ruiz, 1996, p. 123-130) ao relacioná - la a um conjunto de procedimentos que redunda na produção do conhecimento científico, tais como conhecimento das causas, finalidade teórica e prática, métodos e controle das informações pelas evidências, entre outros. Embora alguns desses itens requeiram adaptações quando aplicados à História. 31 limitar-nos-emos à discussão historiográfica que envolve as interpretações elaboradas pelos antiquistas em relação às biografias da Antiguidade a fim de perceber como essas fontes históricas foram analisadas e categorizadas na contemporaneidade, em seguida, delinearemos os aspectos que tangenciavam o gênero biográfico e histórico nas sociedades clássicas, haja vista a existência desses dois tipos de texto no mundo antigo.12 Grande parte dos estudiosos que credenciam os documentos biográficos como fonte histórica orientam suas investigações ao aspecto estético presente neles, ou seja, os registros biográficos são traduzidos pela aplicação de procedimentos retóricos que ratificam, desse ângulo, o falseamento ou ilusão que o documento produz sobre a realidade, como sustentam os antiquistas Jones (1964), Moses Finley (1968)13 e o tradutor das Vidas de Eunápio, Wright (1921) bem como outros pesquisadores que vêem a obra biográfica como deformação da realidade e dos personagens biografados. Em grande parte dos casos, os estudiosos desse grupo tendem a analisá-las enfatizando suas características filosóficas e literárias e legam, conseqüentemente, ao esquecimento seus aspectos sociais e históricos. (MADELÉNAT, D. apud OLIVEIRA E SILVA, 2002, p. 25). Em nossa opinião, esse grupo restringe as possibilidades interpretativas das informações históricas que a obra biográfica antiga disponibiliza em nível puramente estrutural e estético. Sustentaremos, por outro lado, que Eunápio, de fato, constrói, em nível literário, isto é, escrito, ou melhor, em forma de texto, uma representação ideal de filósofos e sofistas neoplatônicos, todavia tal construção se coaduna às suas pretensões políticas, posto que o próprio biógrafo se apresenta como partícipe ou testemunha dos fatos históricos narrados bem como pertence à elite local e ao grupo filosófico dos personagens biografados por ele. Sendo assim, a manipulação dos artifícios retóricos, que remonta à importância desses intelectuais na administração imperial no IV século não resulta em um falseamento da realidade14 e, 12 Embora saibamos da amplitude do termo “mundo antigo“ para se reportar às sociedade clássicas greco-romanas, usá-lo-emos para aludir tanto à Antiguidade Clássica e quanto à Tardia. 13 Embora não tenham afirmado categoricamente que a biografia é uma vertente da Literatura, os historiadores Jones (1964) e Finley (1968) atribuem à Retórica o caráter ficcional em que as biografias antigas se apóiam. Ao tratar o documento dessa maneira e evidenciar em suas perscrutações apenas os elementos estruturais e estéticos, conforme revelaremos no próximo item, julgamos pertinente inseri-los dentro dessa corrente de pensamento. 14 Quando nos reportamos ao “falseamento da realidade”, queremos dizer que há um distanciamento sobre aquilo que se aproxima de uma dada realidade, posto que não temos condições de afirmar que podemos alcançar plenamente ou compreender totalmente uma realidade, entendida em sua concretude. 32 sim, obscurece marcantes interesses os quais se tornam evidentes com o envolvimento de Eunápio em seus registros biográficos. Para nós, a Retórica é concebida não como recurso falseador ou enganador, mas como ferramenta discursiva que auxilia o indivíduo a conduzir a narrativa para satisfazer determinados interesses pessoais ou coletivos o que não invalida a apreensão de elementos que delimitam, através das ações de personagens reais em um espaço e tempo definidos, as bases segundo as quais a prática política, a administração imperial e o ambiente cultural em que transitavam os intelectuais antigos eram pensados por Eunápio. Dessa forma, por não ignorar o ambiente político-cultural dos registros biográficos e ter consciência de que os personagens biografados estão insertos em um contexto histórico de fragmentação das instituições políticas e ameaça à manutenção da unidade imperial em vigor no final do IV século, o qual é aludido pelo próprio biógrafo, inserimo-nos no grupo de historiadores que concebem o documento biográfico como fonte histórica sem desconsiderar os procedimentos retóricos inerentes à narrativa. Porém, no interior do grupo que defende os registros biográficos como fonte histórica ainda identificamos duas posturas analíticas diferentes no que diz respeito à proposta investigativa, dado que parte dos estudiosos não considera o documento biográfico como um tipo de História, ou seja, defendem que os gêneros15 histórico e biográfico pertencem a categorias diferentes, logo incorporam objetivos divergentes o que, para nós, empobrece a análise, haja vista as redes de sociabilidade que norteiam o biógrafo no momento de produção da sua obra, a evidência do contexto histórico bem como as peculiaridades que envolvem os intelectuais da Antiguidade no tocante à sua posição social, consoante mencionamos, tudo isso contribuiu para 15 Recorremo-nos nesse trabalho à idéia de “gênero” para representar as semelhanças ou aproximações existentes entre modalidades textuais eleitas por escritos antigos, tais como a narrativa biográfica e histórica, os panegíricos, epitáfios, hagiografias entre outras. A própria origem da palavra oriunda do latim clássico, genus, significa “família”, “raça” que, na composição textual, quer dizer obras dotadas de atributos iguais ou semelhantes. Dessa maneira, a formação dos gêneros parte de um comportamento coletivo calcado na repetição/ imitação de um molde que se constitui por etapas sucessivas. Esse é o motivo pelo qual ao estudar uma fonte histórica, convém ampará-la em uma tradição de escrita já consolidada. Tomemos apenas o cuidado para não compreender o conceito de gênero como um conjunto de regras fixas válidas para classificar um discurso, mas, sim, considerá-lo categorias relativas dentro das quais cada intelectual se move à vontade. Assim, apoiamo-nos em Massaud Moisés ao afirmar que os gêneros textuais é que estão a serviço do escritor e não o contrário, já que, se assim fosse, a liberdade criadora do intelectual estaria tolhida e os gêneros acabariam sendo estruturas petrificadas ou inamovíveis. (MOISÉS, 1973, 38). À guisa de conclusão, gênero é o meio pelo qual o intelectual estabelece a tarefa de comunicação com os leitores a partir de molduras textuais já conhecidas e aceitas por eles. 33 o intercâmbio entre esses dois tipos de texto. Por fim, destacam-se aqueles que consideram o gênero biográfico como documento histórico e valorizam a perspectiva histórica com que esses documentos foram construídos, além disso, não descartam da análise o conteúdo político e cultural presente nelas, posto que, na Antiguidade Tardia, esse é um aspecto essencial das narrativas históricas.16 (CARVALHO, 2002, p. 31). Estes especialistas, a rigor, condizem com nossa proposta investigativa. Com base nisso, ambicionamos demonstrar, a seguir, a maneira como teóricos e historiadores em geral conceberam o gênero biográfico no interior das correntes históricas que perfizeram os séculos XIX e XX com a finalidade de demarcar as contribuições desses intelectuais aos antiquistas, uma vez que o estudo dos registros biográficos nas sociedades clássicas recebeu influências significativas de historiadores e teóricos que se especializaram em estudar o período moderno e contemporâneo acerca dos procedimentos analíticos necessários à utilização de biografias em pesquisas históricas. Em outras palavras, revelaremos o amadurecimento do procedimento investigativo de historiadores envolvidos com as fontes biográficas bem como as inovações que promoveram ao gênero no sentido de aprimorar a análise histórica para esse tipo de documento. Diante dessa proposta, mostraremos como os antiquistas acompanharam o manancial de teorias e métodos aplicados ao estudo das biografias. Por fim, em meio a esse imenso debate que envolve o estatuto da biografia na História, consideramos necessário adotar uma posição a partir da qual as biografias eunapeanas, em particular, serão compreendidas. Nesse sentido, sustentaremos, a partir de fragmentos extraídos das Vidas, que não há fronteiras sólidas entre biografia e história. Argumentaremos, por conseguinte, que tal contraste não se aplica à produção discursiva de seus registros biográficos. 1.2 Biografia e historiografia: problemas e contribuições para interpretação do gênero biográfico na Antiguidade 16 Infere-se, com a leitura do artigo de Levillain (1996), que a análise da esfera política, durante muito tempo silenciada, foi grandemente influenciada pela historiografia francesa após as críticas atribuídas à segunda fase dos Annales. Dessa forma, trata-se de uma contribuição contemporânea dos estudos históricos à análise das biografias. 34 Apenas no século XX, com a introdução de novas abordagens na História, houve um estudo mais apurado em relação ao valor funcional das biografias nas sociedades clássicas. Contudo, até alcançar definitivamente espaço significativo nas pesquisas contemporâneas em História, o gênero biográfico oscilou de acordo com as tendências estabelecidas pelas escolas históricas. Nesse sentido, propor-nos- emos discutir, em linhas gerais, a maneira como as novas abordagens foram solidificadas e a reação dos antiquistas diante delas. No século XIX, a rejeição dos documentos biográficos ocorreu, em grande medida, em virtude de o tipo de informação contida nelas não interessar à história universal. Nesse período, conforme afirma C. Rojas (2000, p. 10), os pesquisadores não consideravam as biografias convenientes para a narrativa histórica, apresentando em comum, a interpretação de que os registros biográficos tinham como fim a perpetuação de aspectos arbitrários da cultura greco-romana. O pensamento positivista, por outro lado, resgatou a importância das biografias para compreensão da História, porém a aversão de grande parte dos historiadores ao pensamento positivista - centrada nos grandes homens, grandes acontecimentos históricos e grandes batalhas - o qual contaminou a escrita da história no final século XIX e início do século XX, contribuiu para, mais uma vez, não considerar esse tipo de texto, haja vista o esforço dos historiadores em negar a influência do positivismo. Dessa forma, a biografia ficou desacreditada e sua utilização permaneceu apenas nos anacrônicos estudos positivistas. Isso nos levou a supor que esse fator tenha contribuído para a historia renovada ou antipositivista legar a segundo plano a importância das biografias para a análise histórica. Tudo leva a crer que influenciado pela corrente de pensamento positivista, Wilmer Cave Wright, professor de Grego da Faculdade de Bryn Mawr, em Londres, apresenta-se, em janeiro de 1921, como primeiro tradutor da obra biográfica de Eunápio, Vida dos Filósofos e Sofistas cuja interpretação foi movida por uma análise reconhecidamente estrutural e repleta de juízos de valor. Justifica-se, com base em sua habilitação profissional e a corrente de pensamento em vigor no período em que escreve, a ausência de uma proposta investigativa crítica e em perspectiva histórica. 35 Wright17, no prólogo da tradução, declara que, em relação aos demais filósofos, Eunápio era um intelectualmente inferior, dado que não obteve boa educação no que diz respeito ao estudo exaustivo dos clássicos. (WRIGHT, 1992, p. 324). Para ele, tal característica se reproduz em suas biografias, marcadas pelas baixas reminiscências de autores clássicos, no entanto, o único autor clássico que Eunápio conheceu bem, segundo Wright, e freqüentemente repetiu, foi Plutarco, ainda sim, não o citou corretamente. Para além dessas considerações, Wright encaminha sua análise aos aspectos estruturais e lingüísticos da obra. Ele considera o estilo de Eunápio difícil e às vezes obscuro. No que tange à linguagem, revela ser uma obra permeada por exageros em todas as ocasiões, dado o uso constante de superlativos e de palavras poéticas e grandiloqüentes para ações simples, tais como comer e beber. (WRIGHT, 1992, p. 322). Como se observa, além de atribuir juízos de valor em suas considerações sobre o autor das biografias, Wright está preocupado, exclusivamente, com a estrutura interna do gênero biográfico. Em outras palavras, o tradutor desconsidera o conteúdo histórico das biografias, até mesmo por não ser historiador, conforme afirmamos, já que vê, no esforço retórico, o ponto central das Vidas e a causa da manipulação dos fatos em Eunápio. Tardiamente18, influenciado por esse tipo de abordagem, o antiqüista norte- americano Arnold Hugh Martin Jones, em 1964, faz uma leitura das biografias eunapeanas muito próxima à interpretação sugerida por Wright. Jones afirma que o pagão Eunápio escreveu suas biografias nos caminhos mais altos da retórica. Sendo assim, tais fontes nada mais são do que a coleção de vidas de santos e anedotas em alto nível literário. Essas “Vidas”, nas palavras do próprio historiador, “não passam de inchados e pretensiosos elogios a simples narrativas da edificação do vulgar”. (JONES, 1964, p. 1010). Nessa perspectiva, percebe-se que os aspectos estruturais e lingüísticos foram mais uma vez supervalorizados. Jones, então, 17 Para realização desse trabalho utilizamos a 5ª edição da tradução de Wright, alem disso, tivemos o cuidado de conferir a tradução de alguns termos do grego para o inglês e deste para o português. 18 Segundo o professor David Frederick Buck, em contribuições oferecidas por e-mail, as referências às biografias eunapeanas pelos antiquistas britânicos e norte-americanos começaram a partir da década de 1960 em que as “Vidas” de Eunápio passam a fazer parte dos grandes manuais sobre Baixo Império Romano ou Antiguidade Tardia. Apenas no final da década de 1970 é que encontramos antiquistas especialistas em Eunápio, tais como Robert Penella, Kenneth Sacks e o próprio professor David Frederic Buck, entre outros que produziram artigos específicos sobre o biógrafo como demonstraremos a seguir. 36 considera que Eunápio teria composto seus textos voltados para a moral e para o valor artístico, sem observar a consistência histórica dos fatos. No interior da mesma corrente de pensamento, outro antiquista norte- americano, Finley, afirmou que os biógrafos do Baixo Império Romano: “eram homens de escasso mérito e ainda menos honra, e o que nos revelam consiste numa adulação ou difamação irresponsável, consoante o caso, com poucos fatos dispersos entre as fábulas”. (FINLEY, 1968, p. 158). Dado o exposto, averiguamos que, além da generalização descomunal a que eram submetidas, as biografias antigas receberam um estigma depreciativo em relação à história que contaminará o modo a partir do qual muitos estudiosos irão retratar os registros biográfico e histórico da Antiguidade. Sabemos que a retórica é um componente importante das obras produzidas pelas sociedades clássicas, já que perfaz um estilo de época, importa-nos sublinhar, tendo em vista as vertentes interpretativas supramencionadas, a cautela necessária para analisar o que está por trás do aspecto formal19 apresentado pela retórica, visto que a leitura do documento histórico enviesado somente pelos aspectos formais ofusca a realização de uma análise mais apurada. Não se observam, por exemplo, os jogos de interesse e a intenção do autor em redigir o documento. Na França, o retorno efetivo da biografia no cenário historiográfico ocorre a partir da década de 198020 com ensaios e colóquios sobre biografia no interior de uma proposta de renovação histórica expressa em coletânea idealizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora. Na verdade, as reflexões que objetivavam a renovação do campo das pesquisas em História se iniciaram na primeira metade da década de 1970, todavia, nesse momento, a biografia ainda não havia sido contemplada. Segundo Borges (2005, p. 208) até mesmo um dicionário organizado por Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel denominado La Nouvelle Histoire, publicado em 1978, não agasalhava a biografia no corpo da ampliação documental. Posteriormente, apenas em 1986, com Dictionnaire des Sciences Historiques, encontramos um verbete sobre “história biográfica” assinado por Guy Chaussinand- Nogaret. Nota-se, com isso, a inclinação tardia dos franceses em associar biografia 19 Associamos a retórica ao aspecto formal da fonte histórica, porquanto acreditamos que os artifícios retóricos sejam responsáveis pela configuração da forma como as informações são mobilizadas e disponibilizadas no discurso. 20 De acordo com a historiadora Vavy Pacheco Borges (2005, p. 208) a França atuou como referência à historiografia brasileira no que diz respeito à escrita da História. 37 e história, o que já era realizado pela historiografia anglo-americana, mesmo de forma rarefeita e com diversos problemas metodológicos.21 Em decorrência disso, dentro de uma proposta investigativa, oriunda da historiografia francesa, que ambiciona apresentar o retorno da esfera política nas pesquisas históricas em oposição à história total de Braudel e a história serial quantitativa (REIS, 2006, p. 82), cujo enfoque versava sobre o econômico e demográfico, característicos da segunda fase dos Annales, P. Levillain (1996, p. 144-145) atribui o retorno da biografia na França a uma transformação da própria historiografia francesa, tendo em vista as críticas e os limites apresentados pela história global idealizada pelos Annales. Diante disso, Levillain advoga que a reutilização das biografias como fonte histórica decorreu das relações entre a História e o desenvolvimento das ciências sociais e naturais no século XX, em especial, a Biologia, Sociologia, Psicologia e Psicanálise. As últimas, particularmente, contribuíram para renovação do individualismo a qual, segundo Levillain, pressupõe um enfoque voltado para o indivíduo no que diz respeito ao reconhecimento da liberdade de escolha do homem bem como o confronto entre ele e a sociedade no tocante à fixação de valores. De fato, o enfoque sobre o individual e, por extensão, suas relações com o coletivo promoveram novas abordagens para a pesquisa histórica e, conseqüentemente, um interesse maior pelos documentos biográficos. (LEVILLAIN, 1996, p. 167-168). Nota-se que o interesse pela biografia tornou-se evidente dentro de uma ampla renovação historiográfica francesa que se consolidou nas últimas décadas sob a alcunha do retorno da História Política, tal como designam os próprios franceses. Trata-se de uma renovação que ambicionava trazer para esfera das discussões sobre a pesquisa em História as questões políticas inerentes às fontes históricas as quais foram amainadas sob a vigência dos Annales e suas respectivas orientações investigativas que representavam um manifesto contra a predominância do aspecto político nas narrativas históricas. Dessa forma, associado ao retorno do gênero biográfico na França e pesquisas incipientes desempenhadas por historiadores norte-americanos sobre o 21 Sustentamos essa reflexão com base na observação da produção de artigos e manuais sobre a Antiguidade Tardia produzidos pela historiografia anglo-americana, posto que, entre as décadas de sessenta e noventa, verifica- se uma sólida utilização de documentos biográficos pelos antiquistas para composição da explicação histórica do quarto e quinto séculos. Já o período de “declínio” desse tipo de documento na historiografia francesa, é assegurado por Levillain (1996) e Borges (2005), principalmente. 38 gênero biográfico, vieram inovadoras propostas metodológicas para trabalhar com esse tipo de texto e, é claro, ao experimentar propostas investigativas aplicadas à biografia, diversos problemas metodológicos surgiram e ocuparam o centro das atenções de teóricos, historiadores e, entre esses, antiquistas. Queremos dizer com isso que, estabelecida a utilização da biografia como fonte indispensável para a compreensão histórica, encontramos um acalorado debate sobre as utilizações do gênero biográfico pelos historiadores. Nesse embate, destacam-se, em síntese, dois grupos de antiquistas com diferentes visões e abordagens sobre biografia.22 Ambos consideram a biografia como objeto de análise da história; o primeiro, porém, demarca a especificidade dos dois tipos de texto, ou seja, sustenta uma nítida diferença entre biografia e história nas sociedades clássicas; já o segundo grupo defende a aproximação dos gêneros biográfico e histórico e justifica, com base nisso, a biografia como um tipo de história, visão essa compartilhada por nós nesse trabalho investigativo. Em relação ao primeiro grupo, destaca-se o antiquista norte-americano Ronald Mellor o qual, em 1999, publicou Os historiadores romanos. Trata-se de uma obra que nos oferece, pautando-se em documentos romanos impressos, uma análise acerca da concepção de história e biografia para os romanos, porém o autor faz um sucinto contraponto à concepção grega sobre a especificidade das narrativas histórica e biográfica. A partir da leitura das obras de Cícero, Mellor relata que a escrita histórica romana era política e profundamente moral. (1999, p. 4). Objetivava-se registrar a tradição dos ancestrais a fim de que suas virtudes cívicas na família, no Fórum ou no campo de batalha ficassem registradas e fossem delegados às futuras gerações as quais, por imitação, manteriam a tradição. Em outras palavras, os romanos usaram a história para discutir a dimensão moral das questões políticas; já os gregos, por outro lado, estavam mais inclinados às discussões filosóficas. Dessas considerações podem-se extrair as seguintes ilações: para os romanos, o problema da fragmentação do Império está alicerçado em uma questão moral e a escrita histórica, por extensão, tornou-se a consciência do povo romano. Afirma-se, por extensão, que 22 Nossa intenção não é abordar a complexidade do tema de forma esquemática. A divisão se faz necessária apenas para garantir a clareza da exposição. Os autores selecionados para representar cada grupo partiu de uma seleção pessoal nossa. Isso posto, não descartamos a possibilidade de incluir outros pesquisadores para representar as principais tendências da pesquisa histórica com base nas biografias. 39 a História, era compreendida como uma coleção de histórias úteis e não um trabalho de análise. A partir desse prisma, a narrativa histórica associava-se a um treino de retórica; cabendo, assim, aos historiadores romanos embelezar os fatos a fim de que a leitura da narrativa se tornasse agradável, uma vez que o que, de fato, era essencial na escrita da história não era a verdade em si, mas a verossimilhança, ou seja, a aparência da verdade. Afinal, o objetivo dos professores de retórica inclinava- se à importância da construção de um discurso persuasivo. (MELLOR, 1999, p. 192). Ao analisar os historiadores que precederam Cícero, tais como Gneo Névio, Quinto Ênio, Fábio Pictor, Marco Portio, Gaio Graco, Coélio Antipater, Semprônio Asélio, Cláudio Quadrigário, Mellor repara que grande parte deles tem como motor da escrita histórica os anais, ou seja, estes registros, segundo Mellor (1999, p. 14), redundaram na estrutura da escrita histórica romana, a qual tendeu a acompanhar os fatos ano a ano. Todos os historiadores supra-referenciados apresentavam características semelhantes, uma vez que ambicionavam focar suas análises nas experiências políticas e militares com a finalidade de demonstrar a virtude dos ancestrais da aristocracia às gerações vindouras. Com isso, Mellor procura sedimentar aos leitores a formação de uma tradição de escrita histórica entre os romanos. Em relação às biografias, Mellor compartilha a opinião de Arnaldo Momigliano e do filósofo e historiador Collingwood ao afirmar que elas eram consideradas um gênero complementar à história. Vê-se, então, que os pesquisadores mantêm as categorias História e Biografia separadas. Para Momigliano (1992, p. 132), as biografias gregas e romanas não passavam de meras coleções de adágios ou anedotas, as quais se tornavam, com o tempo, “formas literárias populares” nas sociedades clássicas. Desse ângulo, segundo o autor, a finalidade de escrever acerca dos filósofos e sofistas em documentos biográficos vinculava-se à intenção de registrar seus pensamentos, provérbios e anedotas para que pudessem ser compartilhados. Ainda de acordo com Mellor (1992, p. 136), apoiando-se na popularização do gênero no mundo antigo, a idéia de biografia alcançou os romanos de duas maneiras: diretamente, por meio da escrita da vida dos gregos e, indiretamente, por intermédio das escolas de retórica. Tais escolas ofereciam a produção de biografias como treino para que os alunos pudessem desenvolver suas habilidades retóricas gradativamente em grego e em latim. Cícero, por exemplo, foi treinado dessa forma 40 e utilizou as biografias que produziu em seus discursos. Em virtude disso, o pesquisador investe na idéia de que os textos biográficos eram, a rigor, panfletos políticos ou discursos encomiásticos. Compreendemos, com base nisso, que Mellor se habituou a ver as biografias antigas de uma forma meramente biográfica o que, para nós, não condiz com a realidade biográfica a partir do segundo século depois de Cristo. Anterior a Mellor, o antiquista italiano Momigliano23, no final da década de 1970 e início da década de 1980, surge como referência no que diz respeito à análise das biografias do IV século, especificamente. O pesquisador foi o grande semeador da idéia de que a divergência entre os campos biográfico e histórico não é contemporânea, ela começa no Mundo Clássico, ou seja, é, a rigor, uma invenção grega. (MOMIGLIANO, 1983, p. 169-185). Convém ressaltar, porém, que as obras produzidas por Momigliano apresentam uma mudança gradativa em sua forma de conceber as fontes biográficas da Antiguidade Tardia. Em uma de suas últimas obras sobre o tema, O desenvolvimento da biografia grega (MOGLIANO, 1993), o referido historiador se dispõe a justapor as novas correntes investigativas que auxiliam a compreensão do valor funcional das biografias gregas nas sociedades clássicas. Por isso, não se deve generalizar as considerações em relação a Momigliano, arrimando-se apenas do que ele escreveu, nas décadas de 1970 e 1980; deve-se, sim, avaliar o desenvolvimento de suas pesquisas no transcorrer dos anos. Nesse sentido, afirmamos que Momigliano já considera as fontes biográficas como um tipo de história, mas ele mesmo ratifica nessa obra que tem dificuldades com esse viés interpretativo e confessa sua insegurança pessoal sob a justificativa de se tratar de um campo novo na historiografia, logo, não sedimentado ou experimentado a contento. (MOMIGLIANO, 1993, p. 7). Cumpre ponderar, no entanto, que, para Momigliano, tal dicotomia era mais evidente no quinto e quarto séculos a.C., uma vez que, na Antiguidade, o gênero histórico nesse período era fortemente marcado pelo modelo idealizado por Tucídides no qual o historiador deveria basear sua narrativa em informações das quais tivesse certeza, ou seja, o discurso deve se apoiar na evidência dos fatos e 23 Decidimos inserir Arnaldo Mogliano depois de Ronald Mellor com a finalidade de valorizar as obras mais recentes desse autor e indicar, por extensão, as mudanças de sua maneira particular de conceber o gênero biográfico na Antiguidade Tardia. Evitamos, com isso, focar nossa análise em uma única obra de Momigliano, pois consideramos e respeitamos a evolução de seu pensamento. 41 versar sobre a coletividade; já a biografia era escrita sem referência a Tucídides e relacionava-se com o particular: a vida de um grego ou romano. Com o tempo as particularidades que segregavam os dois gêneros foram, aos poucos, amainando-se até encontrarmos, a partir do segundo século, gêneros mistos e não tão delineados. (MOGLIANO, 1993, p. 12). Adicionado a isso, Carlos Augusto Machado (1998, p. 33) também constatou que Tucídides imagina ser o discurso histórico permeado por informações das quais pudesse ter certeza. Essa característica, com efeito, perpassou, por imitação ou repetição, a moldura textual das narrativas históricas de historiadores gregos e romanos com adaptações e ajustes, é claro, no transcorrer dos séculos. Todavia, é de se evidenciar a permanência de uma tradição da escrita histórica greco-romana no IV século influenciada por uma Paidéia24 assentada na leitura de escritores da Antiguidade Clássica. Conforme afirmamos, embora considere o conteúdo político presente nas biografias da Antiguidade Tardia, Momigliano, ao se referir a Eunápio, evidencia apenas o fato de o biógrafo ambicionar o registro de experiências da realidade sobrenatural influenciadas pela educação, iniciação aos mistérios e participação freqüente de reuniões de homens que falam com Deus. (MOMIGLIANO, 1987, p. 175). Afinal, essa continua a ser a inclinação investigativa de Momigliano. Ele está preocupado em recuperar elementos biográficos que possam ser úteis para compreender os grupos religiosos que estiveram em vigor no IV século bem como o papel que desempenharam no Império Romano, albergado pelo contexto de fragmentação institucional, invasões bárbaras e, especialmente, crescimento do cristianismo. (MOMIGLIANO, 1992, p. 271). Definimos, assim, a inserção de Momigliano no segundo grupo acima mencionado, já que ele reconhece, atualmente, a interpenetração dos gêneros biográfico e histórico. Sem pretender ser exaustivo, antes de prosseguirmos a exposição de antiquistas adeptos ao segundo grupo, evidenciaremos as contribuições de Michel Foucault para o amadurecimento do tratamento documental das biografias nas 24 De acordo Carvalho (2002, p. 20-31), emprega-se o termo Paidéia, nas sociedades clássicas, para exprimir a educação adquirida por cidadãos romanos e, possivelmente, granjear altos cargos político- administrativos na esfera governamental do Império. Há de se destacar ainda que não se concebe Paidéia sem Retórica o que demonstra a relação íntima entre esses dois campos do conhecimento para configuração das fontes históricas da Antiguidade. 42 pesquisas históricas o qual influenciou muitos antiquistas a não enxergar os registros biográficos em sua forma meramente biográfica. Assim sendo, de acordo com B. Schmidt (2000, p. 32), Michel Foucault é considerado um pesquisador preocupado em problematizar as fronteiras da história e trazer novas abordagens, uma vez que, ao se apropriar do pensamento de Hegel, Foucault alertou-nos para as noções de autor e obra, importantes para análise biográfica. Tais noções devem ser reproblematizadas a fundo bem como a relação entre indivíduo e contexto, atributo de Hegel, para que o gênero biográfico receba o estatuto de fonte histórica, posto que se apresentarmos biógrafos e biografados dentro do contexto em que atuaram, o indivíduo mesmo se apresentará tanto como criador quanto igualmente fruto desse próprio contexto, em virtude disso, a narração se torna uma fonte histórica pelo fato de ser produto de uma época e comportar valores dela. Particularmente em A Arqueologia do Saber, Foucault (1986, p. 63-66) confere uma nova roupagem à dialética entre indivíduo e contexto e viabiliza, ou pelo menos apresenta um caminho possível, para uma análise discursiva mais apurada dos registros biográficos em perspectiva histórica. Por meio dos esforços de renovação teórico-metodológicas no campo da história, torna-se, então, possível a apropriação das biografias, de modo geral, como discurso histórico, dado que as Vidas não serão interpretadas com um fim em si mesmas, mas em relação ao meio que colaborou para sua construção. Enfocada desse modo, a análise biográfica permite a renovação e enriquecimento de métodos e perspectivas de análises de historiadores. O indivíduo, sob a ótica dessa concepção analítica, é observado no interior de uma rede complexa a qual envolve vínculos de amizade, condição social, pertencimento a grupos filosófico-religiosos, região em que atuou, entre outros fatores. Isso posto, Foucault (1986, p. 27) propugna, em síntese, que o historiador deve ir além do já- dito, isto é, do discurso manifesto, porquanto, em todos os seus fragmentos, a obra se remete ao referente externo que envolve o autor. Essa estratégia analítica despertou os historiadores a perceber que havia, no entorno do biografado, a sociedade que o regulava e que interferia no curso da história.(OLIVEIRA SILVA, 2002, p. 26). Incorporaram-se, a isso, novos processos de leituras dos documentos biográficos enraizados no intercâmbio de informações entre os diferentes campos das ciências sociais. (BORGES, 2005, p. 208). 43 Seguindo a linha de antiquistas que concebem a relação mútua entre discurso histórico e biográfico, destaca-se Jaeger Werner o qual, influenciado pelas teorias da Psicologia Social da década de 1960, no prólogo de Biógrafos Griecos, defende que as biografias devem ser analisadas à luz da subjetividade. Nesse sentido, o relato do outro é, na verdade, a descrição do próprio biógrafo, haja vista a dificuldade de encontrar em outro algo que não tenhamos sentido ou experimentado previamente. (WERNER, 1964, p. 13). Outro elemento relevante para Werner é a falta de imparcialidade presente nas biografias, porém, em vez de um impasse, é uma ferramenta útil para compreender a maneira como o biógrafo filtra o contexto histórico bem como suas intenções a partir do que foi registrado. O pesquisador sustenta que as biografias do Baixo Império Romano, geralmente, representavam um repulsa em relação à situação atual do biógrafo (WERNER, 1964, p. 14-15) e esta, por sua vez, relaciona- se com o papel que o biógrafo ocupa na sociedade. Acreditamos ser bastante pertinentes essas considerações porquanto, em se tratando das biografias de Eunápio, as lamentações registradas nas biografias revelam, justamente, a consciência de que o Império Romano apresentava sinais de desgaste e que as elites neoplatônicas, portanto não-cristãs, da Ásia Menor estavam, gradativamente, sendo alijadas da administração imperial, conforme veremos no terceiro capítulo com mais propriedade. Ambicionamos declarar com isso que não é possível eliminar, por completo, o conteúdo histórico mobilizado pelo biógrafo ao relatar as Vidas ou utilizar o documento biográfico de maneira estanque como se não estivesse antenado ao lugar e ao tempo que colaboraram para sua construção. De maneira semelhante, com a finalidade de ampliar as fontes históricas e agasalhar as biografias, o historiador Jean Orieux, adepto da Nova História, faz um esboço da metodologia que deveria ser aplicada na biografia como fonte histórica e afirma que “o biógrafo tem de reunir o maior número possível de conhecimentos sobre um personagem histórico, a fim de se aproximar, tanto quanto possível, da sua verdade viva, com o máximo de precisão, de autencidade e de probidade”. (ORIEUX, [s.d], p. 39). O fragmento revela o esforço do autor em minimizar as fronteiras entre as biografias e o discurso histórico por intermédio da evidência das fontes utilizadas pelo biógrafo. Sendo assim, o que confere legitimidade histórica a uma biografia são as alusões que o próprio biógrafo faz a autores ou obras do período em que registra. 44 Esse procedimento condiz com a atuação de um historiador como pesquisador o qual se debruça em um vasto material de pesquisa para concretizar sua investigação. Então, constatado o compromisso do biógrafo em não abandonar o repertório de fontes de sua própria época, a biografia transforma-se, com efeito, em material histórico. No limite, o pano de fundo das biografias revela um material riquíssimo para o historiador.25 No interior desse pensamento, Oliveira Silva (2002, p. 1), em sua Dissertação de Mestrado, solidificou essa iniciativa ao abordar as biografias de Plutarco, Vidas Paralelas, como fonte histórica e, por extensão, assegurar Plutarco, biógrafo, na categoria de historiador. De acordo com a pesquisadora, o objetivo de sua Dissertação é