Revista  RBBARevista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina   Revista RBBA ISSN 23161205 Vitória da Conquista V. 3 nº 02 p. 86 a 107 Dezembro/2014   AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO- CULTURAL PARA A EDUCAÇÃO DO CAMPO AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL PARA A EDUCAÇÃO DO CAMPO Lígia Márcia Martins Universidade Estadual Paulista ligiamar@fc.unesp.br   Resumo Esse artigo tem como objetivo apresentar os pressupostos básicos da psicologia histórico-cultural tendo em vista elucidar suas contribuições para a educação do campo. Essa teoria psicológica, cujo estofo filosófico é o materialismo histórico- dialético, ao afirmar a natureza social do psiquismo humano e a apropriação de signos como esteira de seu desenvolvimento lança luz ao papel imprescindível da educação escolar na formação dos indivíduos. Nessa direção, aborda os seguintes temas: histórico e fundamentos filosófico-metodológicos da psicologia histórico cultural; diferenciação entre as propriedades psíquicas legadas pela natureza (funções psíquicas elementares) e aquelas formadas culturalmente (funções psíquicas superiores); expressões ontogenéticas da produção e internalização da cultura; relações de intercondicionabilidade entre práticas sociais e comportamentos complexos culturalmente formados. Á guisa de conclusão aponta as alianças entre a matriz psicológica em destaque e a pedagogia histórico-crítica, uma vez que para ambas as teorias não são quaisquer modelos de educação escolar que corroboram na formação das pessoas, mas sim, aquela que lhes disponibiliza os conteúdos culturais historicamente sistematizados e referendados pela prática social do conjunto dos homens. Palavras-chave: Psicologia Histórico-Cultural, Educação do Campo, Pedagogia Histórico-Crítica.   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     87  Lígia  Márcia  Martins     Resumen Este artículo tiene como objetivo presentar los supuestos básicos de la psicología histórico-cultural con el fin de aclarar sus contribuciones a la educación del campo. Esta teoría psicológica, cuya base filosófica es lo materialismo histórico- dialéctico, afirma el carácter social de la psique humana y la apropiación de signos como estera del desarrollo ilumina el papel indispensable de la educación escolar en la formación de los individuos. En este sentido, aborda los siguientes temas: historia y fundamentos filosóficos-metodológicos de la sicología histórico-cultural; diferenciación entre las propiedades psíquicas heredadas por la naturaleza (funciones síquicas básicas) y aquellas culturalmente formadas (funciones síquicas superiores); expresiones ontogenéticas de la producción y interiorización de la cultura; relaciones de intercondicionabilidad entre prácticas sociales y comportamientos complejos culturalmente formados. Como conclusión señala las alianzas entre la matriz psicológica resaltada y la pedagogía histórico-crítico, ya que para ambas teorías no son cualquiera modelo de educación escolar que apoyan la formación de las personas, sino más bien, una que les ofrece los contenidos culturales históricamente sistematizados y aprobados por la práctica social de todos los hombres. Palabras-clave: Psicología Histórico-Cultural, Educación del Campo, Pedagogía Histórico-Crítica. Introdução A psicologia histórico-cultural (i) desponta, desde as suas origens na década de 20 do século XX na então União Soviética – pelas mãos de LievSemiónovich Vygotski² (1896- 1934),Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e AlekseiNicolaevichLeontiev (1904-1979) –, como a realização de um intento: consolidar uma psicologia ancorada no materialismo histórico-dialético e, portanto, alinhada à concepção de homem, de sociedade e de relação entre eles presente nessa filosofia. Seu contributo central desdobra-se de seus fundamentos filosóficos e se expressa na afirmação da natureza histórico-social do psiquismo humano. A defesa dessa tese determinou a seus proponentes a explicitação das condições objetivas e dos mecanismos psicofísicos pelos quais o ser hominizado – dotado de dadas características graças à evolução biológica – humaniza-se, conquistando propriedades únicas que lhe conferem a condição de ser humano.   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       88   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   A natureza da atividade vital humana – dos modos e meios pelos quais o homem se relaciona com suas condições objetivas de existência transformando-as e sendo concomitantemente transformado, isto é, do trabalho – desponta como condição do salto qualitativo do antropoide ao homem e, igualmente, como alfa e ômega dos mecanismos psicofísicos que conquista. O trabalho, em seu significado marxiano, despontando como categoria de análise do desenvolvimento humano, conduziu a psicologia histórico-cultural ao seu princípio explicativo fundante: esse desenvolvimento resulta das contradições internas que se travam na atividade do sujeito entre natureza e cultura. Desse pressuposto desdobra-se um enfoque inovador no estudo da constituição do psiquismo, concebido agora como um processo histórico no qual o entorno físico e social induz suas transformações mais decisivas. Tais transformações identificam-se com a superação das chamadas funções psíquicas elementares em direção às funções psíquicas superiores. As primeiras são responsáveis pela manutenção da vida tanto do animal quanto do homem sobre uma base reflexa, que condiciona suas ações por aspectos fusionais entre estímulo e resposta. As segundas são aptas a sustentar comportamentos complexos à medida da ruptura na conexão direta entre a estimulação recebida e a conduta consequente. A descoberta do dado a quem compete provocar tais rupturas foi outro desafio assumido pela psicologia histórico-cultural e Vigotski encontrou na mediação de signos o elo que procurava. À medida que a atividade propriamente humana vai se convertendo em ato gerador de produtos que se desprendem do ato de produção, ou seja, que ela se objetiva, provoca modificações no ambiente que, consequentemente, retroagem sobre osujeito da atividade. Trata-se de um processo pelo qual os produtos das ações humanas se convertem em elementos norteadores de ações futuras, ou seja, em instrumentos para a otimização de sua conduta. Essa conduta otimizada identifica-se, pois, com o ato mediado, cujo conteúdo comporta dimensões físicas e simbólicas. Para Vygotski, o signo se apresenta na qualidade de mediação simbólica. Por essa via, ao postular o comportamento propriamente humano como comportamento mediado por signos, a psicologia histórico-cultural demonstra que as raízes da estrutura funcional do psiquismo assentam-se em bases sócio-históricas, ou por outra, que essa estrutura reflete as atividades sociais que sustentam a relação do sujeito com seu entorno histórico. Trava-se, assim, um entrelaçamento entre desenvolvimento social e   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     89  Lígia  Márcia  Martins     desenvolvimento individual, pelo qual o homem resulta, em tese³, produzido por aquilo que produz. Esse entrelaçamento coloca em relevo o traço decisivo das condições sociais de desenvolvimento. Elas exigem a participação do outro, impondo-se como um processo interpsíquico mediado pelos signos culturais. Há que se reconhecer, então, que os indivíduos não nascem humanos, mas humanizam-se em condições de educação. Mesmo contando com todos os requisitos naturais, biológicos - com todas as funções psíquicas elementares –, tais requisitos não conduzirão autonomamente à máxima conquista das propriedades verdadeiramente humanizadoras. Desse conjunto de premissas, apresentado panoramicamente, depreendemos o papel fundante da educação e, em especial, da educação escolar, a quem compete a disponibilização e conversão do universo simbólico elaborado histórica e supraindividualmente em universo simbólico individual, condição básica para que cada pessoa se efetive, de fato, como ser histórico e social. Destarte, consideramos que as contribuições da psicologia histórico-cultural para a educação e, como tal, para a educação do campo – tema central dessa exposição – radicam, especialmente, nos seguintes preceitos: “desnaturalização” do desenvolvimento psíquico e das diferentes formas de sua expressão; afirmação dos signos como estímulos que balizam a ação humana na realidade concreta; os tipos de atividades culturais dominantes condicionam a estrutura cognitiva dos indivíduos. Sobre essas questões, discorreremos na sequência. 1 A natureza social do desenvolvimento psíquico A psicologia tradicional, como ciência voltada aos aspectos psicológicos dos indivíduos, é marcada em sua história por um traço específico: a naturalização dos princípios explicativos adotados e, consequentemente, por um viés anistórico em suas proposições. Contra essa psicologia é que se impôs a teoria histórico-cultural, na medida em que seus proponentes destacaram o salto qualitativo que transforma a atividade vital humana em atividade produtora de objetivações. Esses autores explicitaram do ponto de vista psicológico as premissas lançadas por Marx e Engels acerca do trabalho como condição fundante da formação das propriedades humanas, das particularidades psicofísicas requeridas à sua realização e, da mesma forma,   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       90   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   como um processo que instaura um dinamismo específico de transmissão dessas conquistas às novas gerações, absolutamente distinto dos padrões animais. Partiram da tese segundo a qual a existência social instituída pelo trabalho engendra novas propriedades no homem, posto que ele edifica não apenas o seu contexto objetivo de vida, mas sobretudo o desenvolvimento de funções afetivo-cognitivas cada vez mais complexas. Luria (1979), referindo-se a essa complexificação e ao papel do trabalho na consolidação da atividade consciente, destaca três traços fundamentais, responsáveis pela mais absoluta distinção entre as características dos comportamentos dos animais e a atividade consciente dos homens. O primeiro desses traços diz respeito a que a atividade humana se desprende dos limites das necessidades biológicas e, mesmo ao visar atendê-las, o faz vinculando-as a outras e mais complexas. Assim, regendo-se por motivos humanos, construídos na atividade que possibilita o “encontro” entre dado estado carencial (necessidade) e o objeto apto a atendê-lo, o indivíduo adquire, continuamente, novos domínios mediadores não apenas na satisfação e atendimento dos motivos existentes, mas sobretudo na criação de novas fontes motivadoras ou necessidades socialmente edificadas. O segundo traço aponta o fato de que a atividade consciente, orientando-se pelo reflexo psíquico da realidade, suplanta os limites das condições sensorialmente dadas pelo meio. Abstraindo-as, o homem guia suas ações pelas conexões e interdependências que existem entre os objetos e não mais pela captação sensorial destes sob dadas circunstâncias. O conhecimento que se constrói acerca das dependências causais dos fatos e fenômenos torna possível a orientação de suas ações para além das impressões imediatas da situação exterior, ou seja, a atividade consciente guia-se por um conhecimento mais profundo das leis interiores, não imediatamente dadas, que sustentam as condições objetivas de sua realização. Esse traço encontra na previsibilidade uma de suas principais manifestações. O terceiro traço distintivo da atividade humana, consciente, aponta na direção de sua fonte mais decisiva: a assimilação dos resultados da experiência de toda a humanidade. Enquanto a atividade animal radica nos programas hereditários de comportamento e no produto da experiência individual passada, as ações e habilidades humanas resultam das apropriações do legado construído histórico-socialmente. Por essa via, a existência individual condensa habilidades que foram criadas ao longo de milênios.   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     91  Lígia  Márcia  Martins     Destarte, pode-se afirmar que as propriedades, as possibilidades e limites de que dispõe cada indivíduo não resultam de sua experiência individual, mas sim das assimilações da experiência das gerações passadas que se realizam, ou não, em sua experiência. Nessa direção, Luria afirmou que as estruturas psíquicas derivam do desenvolvimento da vida material e que elas se transformam, ao longo do desenvolvimento histórico-social, em atividade interna consciente, em processos psicológicos que dirigem volitivamente as ações empreendidas. Dentre os proponentes da psicologia histórico-cultural, Vygotski foi quem mais se dedicou ao problema das transformações psíquicas engendradas historicamente, isto é, à reorganização dos mecanismos naturais dos processos psíquicos como resultado da apropriação da cultura. Em toda a sua obra, esse autor se contrapôs às concepções de desenvolvimento que tomavam esse fenômeno como endógeno, isto é, controlado por fatores essencialmente interiores e, portanto, individual. Da mesma forma, Vygotski se opôs aos modelos que prescreviam o desenvolvimento de forma unilateral e linear, como sucessão de fases naturalmente predeterminadas, expressas mediante o acúmulo lento e gradual de mudanças isoladas. Nas análises que realizou acerca da gênese das funções psíquicas superiores consubstanciadas nos comportamentos complexos culturalmente formados, evidenciou os limites e artificialidade de tais modelos. Vygotski (1995) afirmou que até aquele momento a psicologia havia se limitado à descrição puramente quantitativa das conquistas do desenvolvimento, restando-lhe, ainda, o desafio de descobrir as leis que regem as mudanças e transformações qualitativas que esse processo encerra. Para tanto, propôs como condição fundamental a mudança radical na própria concepção de desenvolvimento. Assumindo esse desafio, o psicólogo russo demonstrou que ele não se identifica, em absoluto, com o processo de evolução biológica, no qual cada etapa já está potencialmente incluída na etapa antecedente, de tal forma que seu curso representa meramente a conversão de potência em ato. Segundo o autor, esse enfoque versa muito mais sobre um trânsito de crescimento e maturação do que sobre desenvolvimento na mais ampla acepção do termo. Diferentemente, em um enfoque histórico-social, cada etapa que se faz presente no desenvolvimento não resulta de prescrições pregressas, outrossim, do confronto, do “choque”, entre o legado de condições passadas e as forças vivas da situação presente. Para Vygotski, apenas a descoberta das bases reais do desenvolvimento cultural da criança tornaria possível à   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       92   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   psicologia tomar esse processo como objeto de estudo. Essa base real foi identificada às condições de ensino. Nessa direção, Vygotski (1997) conferiu outra ordem de condicionabilidade entre desenvolvimento e aprendizagem. Se, para a “velha psicologia” o desenvolvimento fora apontado como condição para a aprendizagem, a perspectiva cultural deixava evidente o oposto. Entrementes, esse autor chamou a atenção para um fato deveras importante, que subjaz no princípio segundo o qual é a aprendizagem sistematizada, isto é, o ensino, que promove o desenvolvimento. Analisando a inserção social em toda a sua abrangência, Vygotski demonstrou que não são quaisquer aprendizagens que o promovem, posto que os conteúdos disponibilizados nelas encerram aspectos qualitativamente distintos. Assim, a rigor, nem toda aprendizagem é, de fato, promotora de desenvolvimento. Identificado às transformações que incidem sobre as funções psíquicas elementares abrindo espaços para a formação das funções psíquicas superiores, o desenvolvimento resulta, então, da qualidade do emprego de signos. Diante do exposto e como síntese parcial, lançamos a seguinte interrogação: em que medida as proposições em pauta implicam a educação e, particularmente, a educação do campo? A nosso juízo, primeiramente, na medida em que apontam na direção da importância da transmissão, entre as gerações, do patrimônio de objetivações produzido pelo trabalho humano, com destaque aos produtos simbólicos. Nessa esteira, há a necessidade de se analisar a qualidade dos processos educativos disponibilizados aos indivíduos, sobretudo, na sociedade de classes, que não disponibiliza as mesmas condições objetivas de formação para todos. Além disso, ao suplantar concepções naturalizantes acerca do desenvolvimento psicológico, recoloca o papel das condições objetivas de vida e de educação no cerne da formação das pessoas, conferindo outra direção para a análise de diferenças individuais. Consequentemente, a educação desponta, em última instância, como promoção do desenvolvimento em cada sujeito particular das propriedades afetivo-cognitivas já alcançadas pelo gênero humano. No que tange à educação escolar, a promoção da referida humanização identifica-se com o universo simbólico — com os conteúdos disponibilizados às apropriações pelos indivíduos e com as formas pelas quais ocorre.   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     93  Lígia  Márcia  Martins     2 A apropriação de signos e a humanização do psiquismo Conforme sinalizado em momento anterior desse texto, a introdução do conceito de signo conduziu a psicologia histórico-cultural a um novo enfoque acerca do comportamento humano, desvelando objetivamente o dado fundante das especificidades da conduta humana complexa, a exemplo da memória e da atenção voluntárias, do pensamento lógico-discursivo, das abstrações do pensamento que culminam no ato criativo, etc. As explicações acerca desses fenômenos ainda não haviam recebido, por parte da psicologia, um tratamento apto a suplantar tanto explicações mentalistas e idealistas, quanto explicações materialistas mecanicistas, radicadas na teoria dos reflexos. O projeto de elaboração de uma psicologia ancorada no método materialista dialético lançou, aos pioneiros da psicologia histórico-cultural, a tarefa de superação dessa condição. Segundo Leontiev (1978), foram os trabalhos de Vygotski que, primeiramente, lançaram luz à assunção dessa tarefa à medida que identificaram na mediação de signos o elemento fulcral de transformação do psiquismo. Sem descartar que tanto os comportamentos animais quanto os comportamentos humanos se constroem sobre uma base natural reflexa, Vygotski postulou que, diferentemente dos animais, a atividade vital humana determina uma ruptura na fusão entre estímulos e repostas à medida que engendra conexões indiretas entre a estimulação e o comportamento resultante dela. Para esse autor, essas novas conexões abriram espaço para oato mediado por signos, isto é, para o ato instrumental, introduzindoas mudanças mais decisivas no comportamento humano. Entre o estímulo do ambiente e a resposta da pessoa se interpõe o novo elemento designado signo, que passa a operar como um estímulo de segunda ordem, como uma estimulação cultural que retroage sobre as funções psíquicas, transformando suas expressões espontâneas em expressões volitivas. Em suas palavras: No comportamento do homem surge uma série de dispositivos artificiais dirigidos ao domínio dos próprios processos psíquicos. Com analogia com a técnica, estes dispositivos podem receber com toda justiça a denominação convencional de ferramentas ou instrumentos psicológicos (VYGOTSKI, 1997, p.65).   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       94   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   Portanto, na qualidade de meios auxiliares para a solução de tarefas psicológicas os signos são concebidos pelo autor de modo análogo às proposições marxianas acerca das ferramentas ou instrumentos técnicos de trabalho. Tanto quanto as ferramentas, os signos sintetizam as estratégias de atendimento às demandas do metabolismo entre o homem e suas condições objetivas de vida e, na qualidade de objetivações legadas às apropriações, exigem adaptação do comportamento a eles, do que resultam as mudanças estruturais que promovem. Vygotski afirmou, ainda, que o significado real do signo na conduta humana só pode ser encontrado na função instrumental que assume e, para explicar essa premissa, recorreu a três proposições. A primeira diz respeito às semelhanças e pontos de contato entre o emprego de ferramentas e o emprego de signos; a segunda visa a suas divergências; e a terceira busca indicar as reais correspondências psicológicas entre eles. Em relação às semelhanças e pontos de contato, afirmou que ambos se incluem no conceito mais geral de atividade mediadora, isto é, um tipo de atividade que permite aos objetos que participem dela exercerem uma influência recíproca entre si a partir das propriedades essenciais que dispõem. A consecução do objetivo da atividade mediadora resulta, por sua vez, dependente dessa reciprocidade. Note-se que o conceito vygotskiano de mediação ultrapassa a relação aparente entre coisas, não se refere a um elo de intermédio, mas aponta na direção das intervinculaçõesentre as propriedades essenciais das coisas. Para o autor, a mediação é processo social ativo, uma interposição que provoca transformações, contém intencionalidade socialmente construída e promove desenvolvimento. É, enfim, uma condição externa que, internalizada, potencializa o ato de trabalho. Do ponto de vista psicológico, essa condição externa identifica-se com os signos, daí que Vygotski (1997) afirme-os como instrumentos psíquicos e designe a palavra como o “signo dos signos”. Dessa proposição depreende-se que os signos representem conteúdos simbólicos manifestos, sobretudo, na linguagem, graças à qual os objetos, sem perderem sua objetividade, conquistam outra forma de existência, qual seja, existência abstrata, isto é, simbólica. Todavia, não obstante a analogia que estabeleceu entre instrumento técnico e signo, Vygotski deixou claro que há entre eles uma distinção que não pode ser perdida de vista. Ainda que ambos operem como intermediários em relações, a diferença se define em face dos pólos que as constituem. Enquanto o instrumento técnico se interpõe entre a atividade do   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     95  Lígia  Márcia  Martins     homem e o objeto externo, o psicológico se orienta em direção ao psiquismo e ao comportamento. Os primeiros transformam o objeto externo, os segundos, o próprio sujeito. Nesse sentido, apontou que entre os conceitos de “ferramenta” e de “signo” existe uma relação lógica, mas não uma relação de identidade genética ou funcional. Porém, a adoção do vocábulo instrumentonão foi, para o autor, casual. Ele postulou que, da mesma maneira que o instrumento técnico modifica o processo de adaptação natural determinando as formas de operações de trabalho, isto é, o domínio da natureza, o uso dos instrumentos psicológicos modifica radicalmente o desenvolvimento e a estrutura das funções psíquicas, reconstituindo suas propriedades e possibilitando o autodomínio do comportamento. Eis, pois, para Vigotski, o nexo psicológico real entre o emprego de ferramentas e de signos no curso filo e ontogenético do desenvolvimento humano. Se pelo trabalho o homem colocou a natureza sob seu domínio, pelo ato instrumental (pelo emprego de signos) ele dominou a si mesmo, condição requerida à própria atividade laboral. Portanto, esses processos são reciprocamente condicionados e demonstram, ainda que por linhas genéticas diferentes, as vias concretas pelas quais o ser humano ultrapassou os limites de um tipo de atividade circunscrito pelo sistema orgânico - pelos atos reflexos, inaugurando as possibilidades sociais de seu desenvolvimento. Logo, a mediação de signos desponta como característica distintiva das funções psíquicas elementares em relação às superiores, evidenciando, sobretudo as origens das mudanças e transformações qualitativas presentes nos comportamentos complexos culturalmente formados. Levando em conta que a referida mediação ancora-se no trabalho e no desenvolvimento da linguagem, Vygotski considerou conclusivo que todo desenvolvimento psíquico se baseia nesse processo e, consequentemente, tem sua gênese na cultura. Afirmou que nas origens do desenvolvimento das formas superiores de comportamento encontram-se as relações entre os homens, a determinar a comunicação por meio de signos. Por conseguinte, a manifestação de toda função psíquica principia externamente, isto é, como determinação das relações entre os homens. Ao colocar em destaque a gênese social das funções superiores, Vigotski conduziu sua análise em direção ao conceito de interiorização, isto é, ao processo que transmuta formações externas em internas. Parafraseando Marx, propôs a tese segundo a qual o psiquismo humano é o conjunto das relações sociais transportadas ao interior e convertidas nos fundamentos da   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       96   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   estrutura social da personalidade. Essa tese, por sua vez, ancorou a formulação do que Vigotski chamou de “lei genética geral do desenvolvimento cultural do psiquismo”, segundo a qual: [...] toda função no desenvolvimento cultural da criança entra em cena duas vezes, em dois planos, primeiro no plano social e depois no psicológico, ao princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica. Esse fato se refere igualmente à atenção voluntária, à memória lógica, à formação de conceitos, e ao desenvolvimento da vontade. Temos todo direito de considerar a tese exposta como uma lei, à medida, naturalmente, em que a passagem do externo ao interno modifica o próprio processo, transforma sua estrutura e funções. Detrás de todas as funções superiores e suas relações se encontram geneticamente as relações sociais, as autênticas relações humanas. [...] Por isso, o resultado fundamental da história do desenvolvimento cultural da criança poderia ser denominado como a sociogênese das formas superiores de comportamento (VYGOTSKI, 1995, p. 150). A origem da complexidade psíquica corresponde, portanto, à própria complexidade objetiva da vida social e, nesse sentido, para a psicologia histórico-cultural, os comportamentos consubstanciados nas funções superiores não se manifestam nem como produtos da evolução natural nem como propriedades imanentes da vida mental, o que significa dizer: não estarão invariavelmente presentes na vida dos indivíduos. Sua formação resulta do desenvolvimento histórico, das formas ativas pelas quais o homem se relaciona com a realidade. O valor heurístico dessas ideias é imenso, ao destacarem a natureza das práticas sociais empreendidas por cada indivíduo como esteira de sua formação psíquica. Tendo em vista que a construção de formas complexas de reflexão sobre a realidade e a atividade ocorrem conjuntamente, provocando mudanças radicais nos processos funcionais que afetam essas próprias formas de reflexão, resulta evidente o grau de condicionabilidade entre atividade e consciência que pauta a vida das pessoas. Visando, então, uma segunda síntese parcial, cabe resposta à interrogação: em que medida a apropriação de signos implica a educação e, particularmente, a educação do campo? À medida que seus conteúdos se apresentem como um universo simbólico que ultrapasse a esfera da captação sensorial e imediata dos fenômenos, promovendo patamares de abstração cada vez mais elaborados. E, do ponto de vista pedagógico, há que se considerar os conteúdos de ensino como parâmetros para a delimitação das formas pelas quais esse universo simbólico   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     97  Lígia  Márcia  Martins     deva ser transmitido - o que significa dizer: os conteúdos prescrevem as formas e, ambos, adequadamente integrados, conduzem a aprendizagem. Nessa direção, cabe lembrar que não são quaisquer aprendizagens que promovem desenvolvimento, de sorte que os espaços educativos comprometidos com a humanização dos indivíduos despontam como condições azadas para tal promoção, diferenciando-se dos demais espaços sociais educativos. O que colocamos em causa aponta na direção de uma análise sócio-histórica da formação da consciência e, ela, como uma estrutura sistêmica e semântica engendrada pela atividade e condicionada por processos educativos. Portanto, à educação, especialmente em sua forma escolar, deve importar a análise dos processos formativos que engendram o “ser consciente”. E mais, cabe-lhe reconhecer que a ampliação da consciência ocorre, tanto filo quanto ontogeneticamente, como resultado das elaborações dos códigos abstratos, isto é, dos signos, requeridos à atividade social que sustenta a vida de cada ser particular. Mais do que isso, a relação entre a apropriação de signos e a humanização do psiquismo deixa evidente que alguns processos mentais não se desenvolvem na ausência de condições de vida e de educação específicas e, dentre esses processos, destacamos o pensamento abstrato, lume da imagem subjetiva da realidade objetiva e da atividade intencional, volitiva, do indivíduo nessa realidade. É essa questão que nos conduz ao próximo item. 3 Pesquisas interculturais e a condicionabilidade entre práticas sociais e formação de funções psíquicas complexas Conforme exposto, a psicologia histórico-cultural, ao suplantar as perspectivas lógico- formais de análise — sejam elas idealistas ou materialistas mecanicistas —, colocou em tela que o psiquismo humano se institui como um sistema interfuncional resultante dos modos e meios pelos quais o homem se vincula à realidade objetiva, da qual depende sua sobrevivência e a de seus descendentes. Colocou no centro da questão o metabolismo homem/natureza identificado na atividade vital humana, isto é, no trabalho. A psicologia histórico-cultural advogou, portanto, a existência de um paralelo histórico entre o desenvolvimento social e o desenvolvimento individual, dialeticamente instituído pela atividade mediada por instrumentos e, dentre eles, os signos. Para   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       98   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   aprofundarmos essa assertiva, recorreremos brevemente aos estudos interculturais realizados por Luria (2008) em 1931/1932 na Ásia Central, em regiões remotas da União Soviética. Com participação indireta de Vygotski4, esses estudos visavam à verificação da hipótese acerca da formação sócio-histórica dos processos mentais, questão central naquele momento de elaboração da psicologia soviética de base marxista. Mais precisamente: Nossa hipótese era a de que pessoas cujo processo de reflexão da realidade fosse primariamente gráfico-funcional mostrariam um sistema de processos mentais distinto daquele encontrado em pessoas cuja abordagem da realidade fosse predominante abstrata, verbal e lógica. Quaisquer alterações nos processos de codificação deveriam, invariavelmente, aparecer na organização dos processos mentais subjacentes a essas atividades (LURIA, 2008, p.33) Em face do desafio lançado, as regiões escolhidas para o estudo foram as do Uzbequistão e do Quirguistão – pelas características de que dispunham. Os povos que ali viviam, não obstante os vestígios de uma cultura importante no passado, eram assolados por um analfabetismo praticamente total; sua economia, voltada à prática agrícola de algodão e horticultura, baseava-se em modos de produção bastante primitivos; politicamente, viviam sob a forte e secular dominação e submissão ao czarismo, somada à grande influência da religião islâmica. Tratava-se, segundo Luria, de um modus vivendi típico da sociedade feudal. Com a “Revolução Russa de 17”, essas regiões sofreram drásticas mudanças sócio- econômicas e culturais, dentre elas, a coletivização da produção agrícola, mudanças radicais na estrutura de classes, emancipação das mulheres e, sobretudo, fortes investimentos na erradicação do analfabetismo. Luria relata que seus estudos se deram exatamente no período de transição, fato que possibilitou a investigação de grupos com diferentes perfis. Foram: “tanto grupos subdesenvolvidos e analfabetos (antigos moradores das vilas) quanto grupos já envolvidos na vida moderna, que experimentavam as primeiras influências do realinhamento social” (LURIA, 2008, p. 29). Todavia, aponta o autor, nenhum deles havia recebido, ainda, formação superior. Os procedimentos adotados compreenderam registros de campo advindos de “conversas informais” – do tipo troca de opiniões, com os moradores, e ocorriam tanto em locais nos quais os moradores passavam a maior parte de seu tempo livre (casas de chá), quanto em acampamentos de pastagens, ao redor de fogueiras à noite. Os conteúdos dos   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     99  Lígia  Márcia  Martins     testes, isto é, das situações-problema lançadas, foram preparados especificamente para o estudo, dotando-se de significados para os envolvidos e abertos a diversas soluções, indicadoras da atividade cognitiva em curso. Os processos cognitivos investigados foram: percepção; generalização e abstração; dedução e inferência; raciocínio e solução de problemas; imaginação; autoanálise e autoconsciência. Todavia, os limites impostos a essa exposição impedem-nos a apresentação dos dados e análises da pesquisa como um todo; mas, para efeito ilustrativo, colocaremos em tela, ainda que em linhas gerais, as investigações acerca de resolução de problemas – bem como autoanálise e autoconsciência. O quesito resolução de problemas voltava-se à análise da estrutura dos processos de raciocínio envolvendo operações de inferência lógica, dedução e relação entre experiência prática e raciocínio lógico–verbal. Foi solicitado aos sujeitos que resolvessem dois tipos de problemas. O primeiro trazia problemas simples e concretos em seu conteúdo. Já os problemas do segundo tipo, denominados como problemas hipotéticos ou de conflito, eram da mesma ordem, mas contradiziam a experiência prática real. Alguns exemplos dos problemas lançados: problema 1: De A para B são cinco quilômetros e de B para C são três quilômetros. Quantos quilômetros são de A para C? Problema 2: Uma pessoa demora três horas para andar de A para B enquanto outra, de bicicleta, anda três vezes mais depressa: quantas horas demora o ciclista para ir de A para B? Problema 3: São três horas para se ir de A para B e de B para C, duas horas. Quanto tempo demora para se ir de A para C? Nesses problemas, os pontos recebiam nomes de lugares conhecidos pelos sujeitos e as informações correspondiam à realidade. Já os problemas do segundo grupo, denominados como problemas hipotéticos ou de conflito, eram da mesma ordem, mas os dados anunciados não correspondiam à realidade. Participaram dessa prova 16 camponeses analfabetos moradores de vilarejos isolados e sete jovens com alguma instrução formal. Em relação aos problemas simples, o primeiro grupo apontou os seguintes resultados: de modo imediato, 25% não responderam às questões e 75% o fizeram. Com a introdução da colaboração do pesquisador (repetição da pergunta, explicação, objetos concretos para contagem, etc.), todos os participantes resolveram os problemas. Todavia, no que tange aos problemas conflitantes, 81% recusaram-se a fazê-lo, pois o proposto “não era verdade”, enquanto 19% venceram o desafio. Com ajuda, os índices   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       100   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   pouco se alteraram, passando para 75% e 25%, respectivamente! Diferentemente, o segundo grupo de participantes resolveu em 100% tanto as questões simples quanto as de conflito. Luria (2008) constatou, então, que as operações numéricas utilizadas nas contagens simples e nas questões práticas cotidianas se apresentaram sem grandes dificuldades, embora os cálculos se realizem, prioritariamente, por meio de operações concretas, mesmo nas situações que preteriam a colaboração do pesquisador (respostas imediatas). Tanto nesses casos quanto naqueles cuja resposta havia sido colaborativa, os obstáculos identificados referiam-se às dificuldades de realizar a tarefa de modo discursivo (dentro da ordem lógico- verbal do problema). Todavia, quando as condições do problema contradiziam a experiência prática real, determinando necessariamente a adoção de categorias abstratas, as operações lógicas não se expressaram significativamente. O autor destacou, ainda, que nos problemas de conflito os sujeitos recorriam com alta frequência às “adivinhações”. Em relação aos quesitos autoanálise e autoconsciência, Luria alertou, de partida, para as dificuldades no estudo objetivo de estados subjetivos. Nessa direção, esclareceu que as análises das respostas não incidiram rigorosamente em seus conteúdos específicos, mas na identificação da maneira pela qual os participantes se relacionavam com suas próprias características pessoais, com suas particularidades psicológicas, tomando-as como um tema de análise consciente. Ao longo de uma conversa, era então perguntado como a pessoa avaliava sua maneira de ser (seu caráter), como se diferia de outras pessoas e quais traços positivos e dificuldades identificava em si mesmo. Foram lançadas, também, questões semelhantes em relação a outras pessoas conhecidas (parentes, colegas de trabalho, moradores da vila, etc.). Participaram dessa série 52 sujeitos, sendo: 20 camponeses analfabetos, 15 membros ativos de fazendas coletivas com experiências de discussões grupais e 17 estudantes de escolas técnicas com, pelo menos, um ou dois anos de educação formal. Pela natureza dos dados em questão, optamos, nesse quesito, por apresentar alguns excertos de respostas. No que tange ao primeiro grupo e em questões relativas a si próprios, destacamos: Sujeito 1: “P: Você acha que as pessoas são todas iguais ou diferentes? R: Não, elas não são iguais. Existem pessoas diferentes... aqui tem um proprietário de terra, aqui tem um trabalhador rural... P: E você sabe quais são as diferenças entre os indivíduos? R: Apenas eles próprios sabem....” (LURIA, 2008, p. 198).   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     101  Lígia  Márcia  Martins     Sujeito 2: “P: Quais dificuldades e boas qualidades você tem? Como é o seu caráter? Você sabe o que é caráter? S: Sim... como eu posso falar sobre o meu caráter? Pergunte aos outros; eles podem falar a você sobre mim. Eu próprio não posso dizer nada. P: Que você gostaria de mudar ou melhorar em você? S: Eu era um trabalhador rural, eu tenho uma vida difícil e muitas dívidas, com uma medida de trigo custando dezoito rublos – isso é o que me perturba...” (LURIA, 2008, p. 199) Em relação a esse protocolo de pesquisa, Luria observou, primeiramente, que as dificuldades encontradas na análise sobre si foram gerais. O curso do diálogo não apontava compreensão por parte dos pesquisados de que as questões anunciadas estavam colocando em pauta suas características pessoais, de sorte que a temática, não obstante as indicações do pesquisador, eram conduzidas e giravam em torno de necessidades matérias e dificuldades concretas enfrentadas no dia a dia. Todavia, quando as questões voltavam-se para outras pessoas, o desempenho do grupo se alterou, e as respostas trouxeram mais evidentemente particularidades psicológicas, ainda que associadas a traços visíveis e práticos dos comportamentos alheios. Para o autor, no cerne dessa questão estava o fato que o outro se colocava como objeto de captação sensível, dado de difícil transposição para a autoanálise. Em relação ao grupo intermediário, composto pelos camponeses do trabalho coletivizado, Luria afirmou semelhanças em relação ao grupo recém-descrito, especialmente no que se refere ao aprisionamento às condições e situações materiais. Entretanto, fatos novos apareceram à medida que os respondentes mostraram uma tendência incipiente de análise sobre si na qual o eu e o outro despontavam em relação, sobretudo tendo o trabalho como referência. O autor atribuiu esse avanço à natureza do trabalho coletivo, para o qual as reuniões e avaliações conjuntas haviam se tornado uma exigência. Nas palavras do autor: “o papel da avaliação social, sob influência da qual a autoavaliação se estrutura, vem a ser mais e mais predominante” (LURIA, 2008, p. 203). Eis um exemplo: “P: Diga-me, que características boas e ruins você vê em si próprio? S: Eu tenho uma grande dificuldade: eu tomei emprestado 125 rublos e não posso devolvê-los.   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       102   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   P: É possível que você não tenha nenhuma dificuldade, que você não queira mudar nada em si próprio para melhorar? S: Eu sou uma boa pessoa, todo mundo me conhece, eu não sou rude com ninguém e eu sempre dou uma mão. Eu me sinto bem comigo, não há nada a mudar.” Ainda em relação ao grupo intermediário, mas em perguntas voltadas ao outro: “P: Conte-me sobre seus amigos e seus bons e maus aspectos. S: Meus amigos são bons em todos os aspectos. Eu não conheço nenhum aspecto ruim; eu não tenho maus companheiros. Em geral, eu não falo com pessoas ruins, mas lido apenas com as boas. Todos os meus amigos são kolkkhozniks, eles trabalham no kolkhoz. Isso é bom. Talvez eles tenham dificuldades, mas isso não aparece no trabalho na fazenda.” (LURIA, 2008, p. 206) Já em análise do terceiro grupo, dos jovens com alguma escolarização, Luria finaliza as conclusões acerca dos processos de autoanálise e autoconsciência destacando as mudanças qualitativas que se processam nos conteúdos da consciência desses sujeitos, para os quais se abriram novas esferas da vida social. Trata-se, segundo ele, da formação de novos sistemas psicológicos que, ao refletirem a realidade externa ultrapassam essa esfera, construindo possibilidades para a análise do próprio mundo interior edificado nas relações com as outras pessoas. O autor ilustra essa constatação com o seguinte episódio, dentre outros: “P: Que aspectos positivos e que dificuldades você conhece em si mesmo? S: Eu não sou nem bom nem mau...eu sou uma pessoa normal, embora eu seja fraco em alfabetização e não consiga escrever de forma alguma; e então eu fico muito mal e zangado, mas, mesmo assim, eu não bato na minha mulher. Isso é tudo o que eu posso dizer sobre mim ... Eu esqueço muito rapidamente, eu saio de um lugar e esqueço. Eu também não entendo muito bem; ontem me deram uma longa explicação, e eu ainda não entendi nada. Se eu fosse instruído eu faria tudo bem. Eu tenho de mudar minha dificuldade em educação. Eu não quero mudar nada do meu caráter; se eu estudar, ele mudará por si próprio (LURIA, 2008, p. 213). Para o autor, essa resposta evidencia o refinamento de análise conquistado, na qual o sujeito, diferentemente das descrições fornecidas pelos integrantes do primeiro grupo e, de   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     103  Lígia  Márcia  Martins     certa forma, também do segundo, distingue prontamente características psicológicas e as coloca sob um enfoque consciente e analítico. Com essa ampla pesquisa, aqui apresentada de modo extremamente reduzido, Luria conclui seu estudo afirmando a condicionabilidade entre as diferentes práticas histórico- sociais e os processos psíquicos funcionais, demonstrando que a estrutura da atividade cognitiva não é estática, mas se transforma ao longo do desenvolvimento histórico. Destaca, ainda, que os domínios da escrita e da leitura despontam como fatores decisivos na superação do predomínio das experiências práticas (gráfico-funcionais), em direção às elaborações abstratas acerca dessas mesmas experiências. Para ele: Ao lado das novas formas de relacionamento abstrato, categórico, com a realidade, vemos surgir também novas formas de dinâmica mental. Anteriormente, a dinâmica do pensamento ocorria dentro dos limites da experiência prática imediata, e os processos de raciocínio limitavam-se, em geral, a processos de reprodução de situações práticas estabelecidas; vemos agora, como produto da revolução cultural, a possibilidade de fazer inferências já não limitadas à experiência prática individual, mas também apoiadas em processos discursivos, verbais e lógicos (LURIA, 2008, p. 217). O conjunto de dados coletados possibilitou, então, ao autor, formular a premissa segundo a qual em sociedades caracterizadas prioritariamente pela manipulação prática de objetos o “pensamento prático” será prevalente, enquanto as sociedades culturalmente mais avançadas, tecnológicas, induzirão formas de pensar mais abstratas, próprias ao “pensamento teórico”. Essa questão se apresenta, portanto, como a terceira síntese parcial no tratamento das contribuições da psicologia histórico-cultural para a educação do campo. Apesar do grande valor dessa pesquisa, ela foi um dos elementos que corroborou a forte censura que se abateu sobre a obra de Vygotski e sobre os integrantes de sua equipe ao longo da “era stalinista”, na qual se tornara inaceitável qualquer coisa que pudesse parecer negativa em relação às minorias. A nosso juízo, esse episódio histórico ilustra a delicadeza e a complexidade presentes nas perspectivas multiculturalistas, tão em voga na atualidade, pelas quais se dilui a linha distintiva entre desigualdade social (material e simbólica) e especificidade cultural, também em defesa “das minorias”!   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       104   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   Considerações finais Para a psicologia histórico-cultural, o grau de complexidade requerido nas ações dos indivíduos e a qualidade das mediações sociais disponibilizadas para sua execução representam os condicionantes primários de todo o desenvolvimento psíquico, de sorte que o desenvolvimento das funções psíquicas tipicamente humanas (superiores) demandam atividades que as promovam. Dentre essas atividades, Vigotski (1996) e Luria (2008) destacaram a educação escolar, comprovando por meio de suas investigações a natureza das relações entre ensino e desenvolvimento, apontando a ordem de condicionabilidade do primeiro sobre o segundo. Conforme destacamos anteriormente, diferentemente das proposições naturalizantes e anistóricas veiculadas pela psicologia tradicional,os autores evidenciaram que é o ensino que promove desenvolvimento, na medida em que instala contradições entre o legado da natureza e o disponibilizado pela cultura, promovendo a ascensão das estruturas mentais “simples”, elementares, em estruturas “complexas”, superiores. Como demonstrado nas pesquisas interculturais, tanto para Vigotski quanto para Luria os conteúdos disponibilizados pelo ensino, em sua abrangência social, encerram aspectos qualitativamente distintos, de sorte que nem toda aprendizagem requalifica, de fato, as estruturas psíquicas. Para que ela promova desenvolvimento há que incidir sobre elas (trans) formando-as. Uma vez afirmado que tais transformações resultam da mediação dos signos, os autores suprarreferidos voltaram-se à análise dopapel da palavra, graças à qual os signos se instituem como “instrumentos” psíquicos. A palavra condensa a representação sensorial, material do objeto e igualmente sua significação, exigindo do psiquismo o salto qualitativo representado pela generalização e abstração. Por conseguinte, a transição de significações mais diretas e imediatas para conceitos mais gerais e abstratos se apresenta como condição para o enriquecimento tanto da linguagem quanto do pensamento, uma vez que o conceito mais geral, representado mais abstratamente pela palavra, contém interiormente um sistema de relações indispensável ao movimento do pensamento na captação do real. Por essa via, Luria (1979) postulou que a palavra que promove a formação de conceitos, muito mais do que aquela correspondente à captação sensorial do fenômeno convertendo-o em representação sonora, institui-se como o mecanismo mais decisivo do   Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     105  Lígia  Márcia  Martins     movimento do pensamento desenvolvido. Para ele, o que se apresenta é a estreita relação entre a fidedignidade da imagem subjetiva construída acerca da realidade e a história de desenvolvimento do significado da palavra. Igualmente, Vigotski (2001) assevera um vínculo de condicionabilidade recíproca entre a complexificação dos referidos significados e os diferentes estágios do desenvolvimento do psiquismo. Dentro desse enfoque, Vygotski analisou as relações mentais que se estabelecem entre “as coisas do mundo”, na base das quais os significados das palavras são construídos. Constatou por meio de seus experimentos que as mudanças nos significados das palavras unem-se às mudanças nas estruturas de generalização e, assumindo diferentes formas qualitativas ao longo do desenvolvimento dos indivíduos, tais estruturas conferem características específicas à formação de conceitos. Ou seja, a formação de conceitos acompanha a inserção social do sujeito, ela possui uma “história”, em razão da qual eles avançam de representações sensoriais, práticas e imediatas para representações abstratas, teóricas e mediadas. Os primeiros abarcam os conceitos espontâneos e de senso comum, os segundos compreendem os conceitos científicos, denominados por Vygotski (2001) como “verdadeiros conceitos”! Considerando que a formação de conceitos ocorre na base das articulações internas entre as funções psíquicas mobilizadas pela atividade, o autor afirmou que os conceitos científicos não se desenvolvem da mesma forma que os conceitos espontâneos, bem como o curso de formação dos primeiros não repete o dos segundos. Portanto, a formação de conceitos espontâneos e de senso comum não conduz por si mesma à sua superação, dado que confere à educação formal, sistematizada, um papel imprescindível no desenvolvimento do psiquismo. Tanto para Vygotski (1995; 2001) quanto para Luria (1979; 2008), os conceitos científicos formam-se na tensão problematizadora de uma vasta gama de atividades que colocam o pensamento em curso, daí que o seu ensino não se identifique com ações casuais e assistemáticas, mas com ações didáticas específicas. Diferentemente dos conceitos espontâneos, a formação de conceitos científicos incide na imagem subjetiva do real viabilizando a captação dos nexos abstratos que subjazem nele e, para tanto, determina o estabelecimento de uma rede de relações lógico-abstratas. Nessa direção, Vigotski afirmou que o verdadeiro conceito, na realidade, é um sistema de conceitos apto ao domínio das leis objetivas que regem a existência dos fenômenos.   Revista  RBBA   Revista  Binacional  Brasil  Argentina       106   As  contribuições  da  psicologia  histórico-­‐cultural  para  a  educação  do  campo.   Os conceitos espontâneos orientam-se por sua aplicação prática e imediata, limitando- se aos fins pragmáticos da ação, enquanto os conceitos científicos subjugam-se à orientação conscientemente dirigida, à voluntariedade e ao autodomínio da conduta, esferas que se revelam extremamente frágeis na adoção dos primeiros. No cerne dessa questão reside a afirmação da função precípua da escola, qual seja, operar como mediadora na superação do saber cotidiano expresso nos conceitos espontâneos, em direção aos conhecimentos historicamente sistematizados expressos nos conceitos científicos. Em suma, para a psicologia histórico-cultural, esperar que haja um salto de generalização espontâneo dos conceitos cotidianos para os “verdadeiros conceitos” fere as possibilidades reais de formação das operações psíquicas complexas, dentre elas, o pensamento abstrato. Por essa razão, ela postula a propriedade do ensino de conceitos científicos durante toda a formação dos indivíduos, de sorte que a educação escolar se impõe como condição inalienável do processo de humanização do psiquismo.1 Referências LEONTIEV, A. N. Desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. LURIA, A. R. Desenvolvimento cognitivo. São Paulo: Ícone, 2008. ______. Linguagem e pensamento (Curso de Psicologia Geral). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, v. IV. VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo I. Madrid: Visor, 1997. ______. Obras escogidas. Tomo II. Madrid: Visor, 2001. ______. Obras escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995. ______. Obras escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor, 1996. Notas i. Denominaremos como psicologia histórico-cultural o acervo teórico que integra as proposições de Vigotski, Luria e Leontiev, posto defendermos que a compreensão dessa matriz do pensamento psicológico requer o estudo conjunto das obras desses autores.                                                                                                                             Revista  RBBA     Revista  Binacional  Brasil  Argentina     107  Lígia  Márcia  Martins     ii. Ao longo desse texto adotaremos a grafia Vygotski tomando como referência o disposto em suas Obras Escogidas, publicadas pela editora espanhola Visor. iii. Em tese pois na sociedade de classes não há correspondência direta entre a apropriação da produção que enriquece o gênero humano e a vida particular dos indivíduos, isto é, por conta da alienação. iv. Nessa ocasião, a tuberculose que acometia Vygotski desde seus 17 anos já se encontrava bastante avançada, dado que o levou à morte em 1934 aos 38 anos de vida. Sobre a autora Professora adjunta da Universidade Estadual Paulista/ Unesp e de Pós Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras, campus de Araraquara. Membro dos Grupos de Pesquisa cadastrados no CNPq “Estudos Marxistas em Educação” e “HISTEDBR” (História da Educação Brasileira).