ROSECLAIR KELLER DE OLIVEIRA LIMA O LUGAR ATRIBUÍDO AO FILHO NA CENA DA DISPUTA PARENTAL JUDICIAL: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA ASSIS/SP 2024 ROSECLAIR KELLER DE OLIVEIRA LIMA O LUGAR ATRIBUÍDO AO FILHO NA CENA DA DISPUTA PARENTAL JUDICIAL: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Assis, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade (Linha de Pesquisa: Processos Psicossociais e de Subjetivação na Contemporaneidade). Orientadora: Profa. Dra. Mary Yoko Okamoto ASSIS/SP 2024 Ao meus pais, Oliveira (in memoriam) e Vera, que me banharam na fonte do amor. Ao meu marido Lincoln, com quem eu aprendo que o amor pode ser reeditado. Aos meus filhos, Pedro Henrique e Ana Júlia, que são, em mim e para mim, toda fonte de amor. AGRADECIMENTOS A Deus, por me manter viva, com amor e esperança. À minha orientadora, Professora Doutora Mary Yoko Okamoto, por se interessar pelo meu tema de pesquisa e me conduzir por este novo universo. Não há palavras para expressar todo aprendizado, com rigor ético cientifico, também capaz de instigar meu pensamento com afeto, que contribuíram não só para meu desenvolvimento acadêmico e profissional, mas para a vida. Sua paixão, competência e maestria pelo que faz é contagiante. Foi uma honra trabalhar sob sua tutela. A memória do meu amado pai, Sr. Oliveira, presença eternizada pelos vínculos de amor e vivência pautada no diálogo e na valorização pela busca contínua do conhecimento. Esta conquista é também um tributo a todo empenho e apoio desde sempre aos meus estudos, que cultivou o amor pelo conhecimento em mim. À minha amada mãe, Vera, rigorosa, impondo altas expectativas, aprendi a importância da disciplina e a superar os desafios da vida com determinação. Seu foco no esforço pessoal e sua admiração por cada nova conquista me fazem acreditar que será possível, basta se empenhar. Ao meu amado marido, Lincoln, companheiro de longa estrada, por se fazer presente com seu sempre amor, cuidado e carinho para comigo. Mesmo quando o tempo é corrido, espera-me para juntos seguirmos nessa especial viagem, que é compartilharmos nossas vidas, com amor e alteridade. Não só na minha ausência, mas o tempo todo, faz-se presente na vida de nossos filhos, sempre com muito amor e disposição, o que me possibilita poder voar com tranquilidade. Aos meus amados filhos, Pedro Henrique e Ana Júlia, pelo simples fato de existirem, fazerem parte de minha vida e terem suportado minha ausência sem nenhuma cobrança. O amor, a compreensão e o apoio incondicional de vocês, que a cada etapa vencida vibravam e renovavam o meu ânimo, têm sido fonte de minha motivação. Vocês, muito antes de nascerem, já eram sonhados e desejados com muito amor. Com vocês, aprendi que o apego faz sofrer e o Amor, faz crescer. Aos meus queridos irmãos, Kelinho, Rosy e Kelmo, que pelos nossos laços de sangue e amor, acompanham-me e valorizam todo meu empenho acadêmico e profissional e comigo celebram toda nova conquista com afeto e admiração. À minha tia Fátima, na pessoa de quem estendo o agradecimento a todos os meus familiares, que desde o primeiro momento sempre me incentivou e é fonte perene de inspiração não só acadêmica, como de vida. À estimada Rosângela Soares, minha colaboradora nas tarefas domésticas, a sua presença foi constante e discreta, porém não imperceptível, pois sentia a sua empatia, torcida e vibração. Mais do que uma presença no ambiente doméstico, tornou-se uma parte valiosa da minha jornada, proporcionando apoio não apenas às tarefas cotidianas, mas também ao meu desenvolvimento pessoal e acadêmico. Aos Professores Doutores Maria Antonieta Pezo Del Pino e Jorge Luis Ferreira Abrão, membros da banca do Exame de Qualificação, pela cuidadosa, afetiva e valiosa contribuição nessa minha travessia em direção ao conhecimento, possibilitando me sentir acolhida e respeitada. À minha amiga, Amanda Carolo, que ao perceber em mim o desejo latente pelo mestrado, me encorajou com seu caloroso apoio e start. Seu incentivo, orientação e confiança em meu potencial desempenharam um papel fundamental na tomada desta significativa decisão em minha vida. Embora a trajetória do mestrado tenha sido desafiadora, seu constante apoio e amizade iluminaram o caminho, além das atenciosas e críticas leituras, discussões e apontamentos necessários. Aos meus colegas do curso de Mestrado, pela amizade construída, especialmente a Kátia Silva e a Talita Tinelo, pelo companheirismo e pela cumplicidade nas horas de alegria e de dificuldade. Foi uma benção encontrá-las e poder ter com quem contar, aquilo que só se sabe quem está vivendo aquele momento. Aos colegas do LAPSIVI – Laboratório de Psicanálise Vincular, grupo vivaz e estudioso, pelo acolhimento, toda contribuição, trocas de conhecimentos e afetos. Permitam-me destacar a querida Caroline Trevisan, pessoa que admiro, inspirou-me e, de maneira sensível, partilhou comigo essa caminhada. Aos colegas do Grupo de Estudo sobre René Kaës: Any, Jane, Luís e Roana que, sob a coordenação da querida Dra. Maria Antonieta Pezo Del Pino, contribuíram para a imersão aos estudos da Psicanálise, sempre com trocas afetivas e calorosas discussões teóricas e metodológicas. Às queridas colegas do Grupo de Estudos sobre Vincularidades, sob a coordenação da querida Dra. Ana Rosa Trachtenberg, que me acolheram e, numa trama vincular, compartilham generosa e afetivamente trocas e experiências de conhecimento no campo da Psicanálise Vincular. Aos funcionários da biblioteca da Unesp, em especial a Vânia Aparecida Marques Favato e Auro Mitsuyoshi Sakuraba, minha especial gratidão pela sempre disponibilidade e pronta orientação na busca de recursos acadêmicos. Aos prezados colegas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, especialmente à minha amiga, Psicóloga Flávia Souza, por me acompanhar desde o momento inicial da minha pretensão ao ingresso no mestrado, incentivou-me e me encorajou com afeto. Sua colaboração de forma geral e, em especial, em indicar leituras, cursos e discussão de casos foram substanciais nessa minha trajetória. Aos respeitados, Juiz Corregedor, Dr. Arnaldo Luiz Zasso Valderrama e à Juíza Diretora do Fórum e titular da Vara de Família e Sucessões, Dra. Mônica Tucunduva Spera Manfio, pela anuência, interesse, orientações e incentivo para com a presente pesquisa. Ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pela autorização na realização das pesquisas decorrentes do meu trabalho de campo. Fica a expectativa de que este trabalho seja o campo fértil para propiciar a amplitude do legítimo superior interesse da criança, que nos casos de disputas parentais litigiosas, é a parte mais frágil e menos considerada. Ao Professor Toniato Freire Rodrigues, por aceitar fazer a revisão gramatical e normativa desta dissertação, acolheu-me com prontidão, respeito e muita paciência. Aos amigos que me apoiaram, escutaram e incentivaram ao longo do caminho. “Só se pode viver perto do outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. ” (GUIMARÃES ROSA) RESUMO A presente pesquisa objetiva compreender o lugar do filho como sujeito na composição familiar durante o processo judicial litigioso na disputa pela guarda. Trata- se de uma pesquisa qualitativa, baseada no enfoque teórico da Psicanálise e Psicanálise de Casal e Família, originada no cotidiano de trabalho da pesquisadora no Setor Técnico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Foi realizado o estudo de três casos, com amostra de casais com filhos entre seis e dez anos de idade, que viveram conjugalmente e que se encontram em processo litigioso pela guarda parental. A análise foi realizada a partir de reminiscências e de anotações dos casos, e em todos eles, durante o processo de avaliação, foram utilizadas entrevistas, observação da interação, observação lúdica e o Procedimento de Desenhos de Famílias com estórias – DFE (Trinca, 2020). Os dados apontam para o indicativo de que o lugar atribuído e a inserção do filho no psiquismo familiar foram cunhados a partir do estabelecimento da trama conjugal, a qual apresentava conflitos e dificuldades desde o início. Assim, diante do rompimento conjugal em meio a crises que se sucederam durante a história da família, o processo de litígio ocorreu como um caminho possível para a resolução de todos os conflitos que permeavam a vida do casal, incluindo o filho. Na realidade, a existência de crises conjugais, presentes desde o início, incidiram no estabelecimento do contrato narcísico, afetando tanto os investimentos narcísicos como o lugar oferecido à criança, tendo continuidade durante a disputa litigiosa. Dessa maneira, as necessidades e o sofrimento dos filhos não são considerados durante o processo, exacerbando o sofrimento filial, aliado ao desamparo e ao temor da perda vivenciados, demonstrando a desmalhagem dos vínculos familiares e o trabalho psíquico que será necessário para a recomposição do tecido familiar. Palavras-chaves: Psicanálise. Família. Disputa judicial. ABSTRACT The present research aims to understand the child's place as a subject in the family composition during the litigious legal process in the custody dispute. This is a qualitative research, based on the theoretical approach of Psychoanalysis and Couple and Family Psychoanalysis, originating in the researcher's daily work in the Technical Sector of the Court of Justice of the State of São Paulo. A study of three cases was carried out, with a sample of couples with children between six and ten years of age, who lived together and who are in litigation over parental custody. The analysis was carried out based on reminiscences and case notes, and in all of them, interviews, interaction observation, playful observation and the Family Drawing Procedure with Stories – DFE were used during the evaluation process (Trinca, 2020). The data point to the indication that the place assigned and the inclusion of the child in the family psyche were created from the establishment of the marital plot, which presented conflicts and difficulties from the beginning. Thus, faced with marital breakdown amid crises that occurred throughout the family's history, the litigation process occurred as a possible path to resolving all the conflicts that permeated the couple's life, including their child. In reality, the existence of marital crises, present from the beginning, affected the establishment of the narcissistic contract, affecting both the narcissistic investments and the place offered to the child, continuing throughout the contentious dispute. In this way, the children's needs and suffering are not considered during the process, exacerbating filial suffering, combined with the experienced helplessness and fear of loss, demonstrating the disintegration of family bonds and the psychic work that will be necessary to rebuild the familiar fabric. Keywords: Psychoanalysis. Family. Legal dispute. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................12 1 A INTERFACE DIREITO – PSICOLOGIA...............................................................20 1.1 A interface Direito e Psicanálise............................................................................24 1.2 A Guarda Compartilhada......................................................................................28 1.3 O fenômeno da Judicialização..............................................................................34 2 FAMÍLIAS – O PERCURSO ATÉ A CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA...............39 3 PARENTALIDADE..................................................................................................51 4 VÍNCULOS..............................................................................................................59 4.1 Etimologia e evolução do conceito........................................................................59 4.2 A perspectiva vincular na teoria psicanalítica........................................................62 4.3 Vínculo e as Alianças Inconscientes.....................................................................68 4.3.1 As Alianças Estruturantes..................................................................................70 4.3.2 As Alianças defensivas e patógenas..................................................................73 4.3.3 As Alianças ofensivas........................................................................................74 5 DA CONJUGALIDADE AO DIVÓRCIO...................................................................77 6 MÉTODO.................................................................................................................90 7 ANÁLISE DOS RESULTADOS...............................................................................95 7.1 APRESENTAÇÃO DOS CASOS..........................................................................96 7.1.1 CASO 1 SOFIA – “O rapto de Perséfone”...........................................................96 7.1.1.1 História da família...........................................................................................97 7.1.1.2 A Filha – SOFIA.............................................................................................100 7.1.2 CASO 2 – MOISÉS – “A caixa de Pandora”......................................................101 7.1.2.1 História Da Família........................................................................................101 7.1.2.2 O Filho – MOISÉS.........................................................................................104 7.1.3 CASO 3 - Moacir – “E os 12 trabalhos de Hércules”.........................................107 7.1.3.1 História da Família........................................................................................107 7.1.3.2 O Filho MOACIR...........................................................................................110 7.2 SÍNTESE DOS CASOS......................................................................................111 8 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS.......................................................................112 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................128 REFERÊNCIAS........................................................................................................132 12 INTRODUÇÃO O diabo existe ou não existe? Dou o dito. Abrenuncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, rebombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso... (GUIMARÃES ROSA) Todo ser humano, ao nascer, necessita de um lugar que já foi sonhado e idealizado e de um encontro inicial, a princípio fortuito (dois gametas diferentes que formarão um novo e diferente ser); para que seja necessário se criar o espaço para “sua majestade o bebê” (FREUD, [1914] 1978), a fim de que esse filho possa ser enlaçado por afetos e desejos por aqueles que serão os seus cuidadores e referências de pertencimento, portanto, “a consideração de que vida psíquica começa numa relação”. (PITLIUK, 2020, p. 37) Notadamente, a humanidade tem se deparado com significativas transformações nas sociedades contemporâneas – especialmente a ocidental – as quais têm ocorrido em um processo veloz, a ponto de se levar a indagar se a subjetividade tem conseguido acompanhar tal ritmo ou se, também, estaria em transição. Entretanto, de qualquer modo, de acordo com Pierre Benghozi, durante sua conferência no Congresso Internacional da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família, “ a subjetividade e a dignidade são preservadas pela manutenção dos vínculos entre os seres humanos!” A reflexão de que, a despeito das mudanças do mundo circundante, as bases para a constituição e subjetivação do humano se originam e se desenvolvem a partir de vinculações, aspecto relevante para o desenvolvimento humano, enquanto um ser psíquico na sua singularidade, sempre me acompanhou. Assim, desde a formação inicial acadêmica, ainda no processo de graduação, num período em que poucos se interessavam pelos estudos e atendimentos na clínica infantil, me deparei com o interesse por compreender o lugar e a importância da criança como sujeito de direito e sujeito desejante. Na minha trajetória de formação acadêmica e profissional, sempre busquei o viés relacionado tanto às questões do infantil como dos vínculos afetivos; pois, na especialização em psicoterapia psicanalítica, fui buscar estudar o amor enquanto pulsão de vida e os necessários afetos que agregam, juntam-se e se somam. 13 É a partir desta inquietação na prática diária profissional, no cargo de Psicóloga Judiciária no Tribunal de Justiça de São Paulo, que eu, como pesquisadora, tenho me deparado com as emergentes e crescentes demandas judiciais, no sentido de buscar a resolução de conflitos nos palcos do judiciário para questões muito íntimas e singulares de cada sujeito. Durante uma das minhas primeiras intervenções no campo da Psicologia Jurídica, surgiu o evento motivador da presente pesquisa, que está intrinsecamente relacionado com a minha prática profissional. Ao iniciar as atividades laborativas em uma instituição judicial, no cargo de Psicóloga Judiciária, deparo-me com uma situação peculiar: uma improvisada sala de atendimento lúdico, que costumava ser usada como copa pelos juízes, em uma pequena cidade do interior de São Paulo. Nesse ambiente, onde muitos não compreendiam minha função e, consequentemente, idealizaram-na ou subestimaram meu papel, frequentemente sem sequer conhecê-lo. Foi assim, neste panorama em que se demarcava um lugar técnico profissional, após dias de espera por alguma demanda, que chega um primeiro processo em disputa de guarda, da Vara de Família e, nestes casos, segundo a legislação e normas vigentes, torna-se necessária a avaliação do Setor Técnico Psicossocial Judicial, geralmente composto por Psicólogos e Assistentes Sociais, por envolver crianças ou adolescentes na lide parental judicial. Após atenta e cuidadosa leitura dos autos judiciais, identificamos que a disputa pela guarda judicial é de uma criança, um menino, de aproximadamente seis anos de idade, filho único de um casal heteroafetivo que, por determinado período, foram casados e, ao findar a conjugalidade, brigavam pela guarda do único filho e com quem este deveria fixar residência. Ao iniciar o contato com a criança - que prontamente aceitou acompanhar uma pessoa que nunca tinha visto, subir as escadas e se distanciar do tenso olhar de seus pais - logo ao adentrar aquela improvisada sala de atendimento lúdico, corre em direção à caixa de brinquedos e exala um longo e sonoro suspiro, enquanto a porta era ainda fechada. Indagada sobre o que seria tamanha falta/necessidade de mais ar, de maneira muito espontânea, gesticula abrindo os braços e diz: “É que me sinto repartido! ” Nesse diapasão, logo entrei em contato com o texto de apresentação de Lúcia Rabello de Castro, em seu livro “O futuro da infância e outros escritos”, que de maneira 14 poética, em seu prefácio por Fernanda Costa Moura, como é próprio dos poetas, toca- me visceralmente, a partir de uma nota de Guimarães Rosa: em que um menininho ia passando em frente a uma casa em demolição quando, maravilhado, puxou o pai pela mão e disse: “Olha! Estão construindo um terreno! ” (Prefácio de Tutaméia). (CASTRO, 2013, p.11). Pois bem, mais uma vez o infantil, através do olhar/sentir da criança, toca-me com a mesma vivacidade dos tempos iniciais de graduação, nesta hoje pós- graduanda, que nutre o sentimento epistemofílico acerca da compreensão do humano. Foi a partir da inquietação do primeiro e emblemático atendimento no Poder Judiciário, daquele “menininho”, reverberado no também “menininho” de Guimarães Rosa, e em todos os demais atendimentos das práxis cotidianas, que busquei discorrer questões tão fundamentais relacionadas ao lugar da criança durante a disputa parental por sua guarda. Buscou-se, com esta pesquisa, diante do complexo modo de subjetivação contemporânea, a partir de um olhar e escuta singulares nos processos judiciais que envolvem a disputa de guarda dos filhos advindos de relacionamentos conjugais desfeitos, compreender o lugar do filho – criança – na composição familiar durante o processo litigioso na disputa parental. O que mobiliza as pessoas a buscarem no sistema de justiça a solução de algo tão íntimo e subjetivo de suas histórias de vida? Seria apenas a imposição legal que a situação lhes impõe ou outros fatores estariam envolvidos? Neste contexto, consideramos relevante analisar os impactos da separação conflituosa no significado de família resultante para os filhos, além de buscar compreender como se configura o lugar ocupado por tais filhos durante a lide parental. Verifica-se que o Poder Judiciário se torna palco de verdadeiras batalhas em que os membros de uma família, com seus laços esgarçados, possivelmente em face das dificuldades em se lidar com os afetos daí emergentes, acabam por potencializar o sofrimento psíquico frente à nova realidade e às novas formas de relacionamento. Essa “judicialização dos afetos” provavelmente encobre sentimentos e situações, tal qual (e muito mais) que uma mera ponta de iceberg. Esse processo me fez, como profissional de Psicologia, questionar, também, se há possibilidade de outros caminhos a serem trilhados nessa trajetória. E, valendo- se deste conteúdo analítico da presente proposta, observa-se que o caminho a ser 15 percorrido nestes lócus científicos é amplo, uma vez que, ao se considerar o tema atual, ainda é pouco explorado, conforme apontaram as bases científicas no campo da Psicanálise, na interface com o Direito. Encontramos inúmeros estudos na área do Direito, que tratam das questões subjetivas dos fatos jurídicos, há quem defenda e atue na “clínica do Direito”, entretanto, há reduzidas pesquisas científicas específicas na área da Psicanálise, voltadas para esta problemática, a de se lidar com os conflitos familiares judicializados, durante a constância do processo judicial. Nesse debate interdisciplinar, surpreendeu-me que o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), dava importância às descobertas freudianas que revelaram ao mundo a existência do inconsciente e da sexualidade, indicando que esta última não se reduz à ordem da genitalidade, sendo muito mais da ordem do desejo. A partir dessas pontuações teóricas, Pereira ressaltou que não é mais possível pensar o Direito de Família sem a interferência da Psicanálise, considerando que os conhecimentos desse campo fazem com que os paradigmas que sustentam o Direito de Família – sexo, casamento e reprodução – sejam repensados e desatrelados um do outro, não sendo mais necessário o sexo para a reprodução e nem o casamento a única forma de legitimar as relações sexuais. (DUARTE, 2012, p. xvii) A abordagem teórica eleita foi a do campo científico do saber psicanalítico, que conforme nos aponta Birman (2014, p.26), com base nos estudos de Althusser, há três diferentes continentes das ciências: o da natureza, o da história e o continente do inconsciente representado pela Psicanálise. Destarte, ao se compreender que a Psicanálise é plural, no sentido de que historicamente o seu desenvolvimento e evolução, enquanto teoria e prática clínica, vem expandindo os conhecimentos e campos de atuação (GOMES, 2007, p. 28) e, assim sendo, a perspectiva da Psicanálise de Casal e Família vem ao encontro de se ampliar os modos de subjetivação, sobretudo ao se estudar, no campo teórico, clínico e ou institucional, as novas e contemporâneas configurações em grupos, famílias e instituições, pois: A noção de vínculo no campo da saúde mental na psicanálise e nas psicoterapias não nasceu aleatoriamente. Foi necessária uma longa gestação e um parto complexo, às vezes distorcido, para incorporar a perspectiva de que para se apreender e operar na subjetividade humana, deveria se incluir o papel determinante, constituinte, subjetivante dos vínculos familiares. (MOGUILLANSKY e NUSSBAUM, 2011, p.17) 16 É nesta perspectiva teórica que consideramos a Psicanálise que se ocupa dos grupos e dos vínculos, proposta pelo contemporâneo psicanalista francês René Kaës, que a partir dos ensinamentos de Freud, amplia o conceito de inconsciente, ao nos apresentar a metapsicologia do terceiro tipo, em que considera a concepção intersubjetiva do espaço psíquico articulada ao intrasubjetivo. Conforme nos apresenta Piva (2020): Especialmente Kaës busca articular a realidade psíquica do grupo e a realidade psíquica do sujeito, entendendo que uma parte do sujeito está fora dele à medida que algumas de suas formações inconscientes estão deslocadas e depositadas em lugares psíquicos que o grupo predispõe (KAËS, 2007). Sua teorização propõe que a realidade psíquica do grupo tem estruturas, organizações e processos psíquicos próprios: as formações de identificações comuns, as formações de ideal, as alianças inconscientes. Estas formações constituem-se como pontos de passagem e linhas de ruptura entre o espaço intrapsíquico e o intersubjetivo. (PIVA, p.16,2020) Assim, identificamos que a trajetória iniciada pela obra de Freud aponta para a importância desse encontro entre dois ou mais sujeitos, em que se configura a constituição intersubjetiva do ser, sendo um prenúncio para a Psicanálise de Casal e Família. No entanto, é importante destacar que, na psicanálise freudiana, que é considerada a forma clássica ou “ortodoxa” da psicanálise, a questão da intersubjetividade ainda não estaria claramente estabelecida. “Freud, para alguns, é o criador de uma psicanálise mais voltada para o intrapsíquico”. (GOMES, 2007, p.28) É nesta perspectiva, da Psicanálise de Casal e Família, que compreendemos o caminho a ser percorrido para pesquisar as questões afetas aos temas das relações familiares no contexto judiciário. Depara-se com o campo fértil, pois, segundo Kaës (2011), o psiquismo individual é constituído por organizadores inconscientes grupais que podem ser da ordem intra, inter ou transpsíquicos. Assim, a família, como grupo, desde o início, já delimita um espaço para cada novo membro que chega, pois a criança já é concebida e nasce dentro de uma trama/malhagem inconsciente grupal. Nesse contexto, somos capturados pelas significativas mudanças do mundo contemporâneo, no qual a família como grupo sociocultural está inserida e certamente tem sofrido influências e buscado novos arranjos em novas configurações. Zygmunt Bauman (1925-2017), um dos sociólogos de grande relevância na atualidade, foi um dos grandes pensadores da modernidade por sua originalidade, tendo publicado uma coletânea de obras ao que denomina “era líquida”, num crítico 17 olhar ao capitalismo globalizado. Bauman (2009) apresenta, a partir da metáfora do estado líquido, de como as instituições, as ideias e as relações estabelecidas entre as pessoas se transformam muito rápido, não sendo possível manter laços mais permanentes e, certamente, a efemeridade do viver, reflete no jeito humano de ser. Portanto, compreendemos que nesse universo no qual o homem contemporâneo está inserido, nesta “era liquida”, ecoa sobremaneira na organização vincular, especialmente no modo de se relacionar com os outros. Assim, interessa- nos focar sob o prisma das vinculações amorosas, no tangente às questões da conjugalidade, parentalidade e família. Para tanto, ao se observar que o conceito de família tem evoluído, acredita-se ser importante considerar o percurso sócio-histórico da família, uma vez que trataremos de tema pertencente ao Direito de Família, que recentemente no Direito Brasileiro passou a agregar o princípio interpretativo com valor jurídico do afeto e sua densidade normativa ao se considerar a relação e a vinculação familiar, vindo a influenciar na formulação de leis e, por conseguinte, nas decisões judiciais, conforme apontado por Rodrigo da Cunha Pereira em recente evento – I Seminário de Direito de Família e Psicanálise do IBDFAM: “Os afetos que nos afetam”, ocorrido no modo online em 02/10/2020. Afora muitas divergências e discussões, conforme salienta Brito (2008), fato é que, para os filhos, é fundamental que, mesmo após a dissolução dos vínculos conjugais, seja preservado o espaço familiar, muitas vezes atacado em um desiderato passional. Como assinala Rodrigo Cunha: “Parafraseando Freud, é o amor que nos humaniza e nos civiliza”. Para tanto, é fundamental aprofundar o estudo dos conceitos como: vínculo, parentalidade, conjugalidade, divórcio e judicialização. Compreendemos que a relevância social da presente pesquisa está relacionada com a aproximação da Psicanálise em sua interface de casal e família com o trabalho no sistema jurídico, além de considerar o elevado número de divórcios de casais com filhos pequenos, e por ser uma pesquisa que levou em consideração a minha experiência de pesquisadora nesse campo, possibilitou que a lupa se volte à fase durante o processo litigioso, dando voz e visibilidade ao lugar destinado e ocupado pela criança e com isso, podendo vir a contribuir para com a jurisprudência e até possíveis alterações de práticas, instituições e leis. Dessa maneira, esta dissertação está organizada em 09 capítulos, em que buscamos circunscrever o percurso a ser desenvolvido, de modo a convidar à leitura. 18 No capítulo 1, apresentamos a interface entre o Direito e a Psicologia, pois consideramos ser importante para contextualizar a área de atuação desta pesquisadora, e o franco campo em expansão da Psicologia enquanto ciência. Dedicamo-nos, de modo singular, à extensão para a interface entre a Psicanálise e o Direito. Ao falar em interface, consideramos que o aparato legal no tocante à legislação na Vara de Família e Sucessões se torna necessário para embasar aquele que não tem propriedade das questões legais. Assim, torna-se fundamental discorrer, ainda que brevemente, sobre a questão da guarda compartilhada bem como do crescente fenômeno da judicialização, indo do micro ao macro poder das relações, o que consideramos afetar as relações familiares. No capítulo 2, dedicamos especificamente às questões conceituais e constantes transformações pelas quais a família tem sofrido no decorrer dos anos em conformidade com sua contextualização sócio-histórica. No capítulo 3, apresentamos o fenômeno da parentalidade, ao considerarmos a importância e a necessária compreensão de aspectos próprios para a constituição e o desenvolvimento da parentalidade, frente à subjetivação dos filhos. No capítulo 4, os conceitos teóricos relacionados aos vínculos são apresentados, enquanto trama vincular. Além disso, apresentamos a perspectiva do casal, família e de grupo bem como o conceito de alianças inconscientes. No capítulo 5, torna-se importante contextualizar e apresentar a conjugalidade e o divórcio a partir da perspectiva psicanalítica, tendo em vista que a conjugalidade e a parentalidade se articulam no presente tema de pesquisa. No capítulo 6, consideramos fundamental discorrer a respeito das questões metodológicas que embasaram todo arcabouço deste trabalho científico que se deu por meio de uma pesquisa qualitativa, cujos estudos de três casos específicos foram significativos ao objetivo alcançado. No capítulo 7, apresentamos a análise dos casos estudados, procuramos mostrar os dados para a compreensão de cada caso, identificando as regularidades e as divergências peculiares a cada história que compõe o corpus deste trabalho. No capítulo 8, discutimos os resultados apresentados articulados à teoria da psicanálise de casal e de família, em busca de uma articulação necessária para a compreensão teórica dos casos apresentados. E finalmente, no capítulo 9, em nossas considerações finais, apresentamos as reflexões finais que pudemos atingir ao longo de todo o percurso desta pesquisa, com 19 destaque à compreensão do lugar do filho durante a disputa parental litigiosa no cenário judicial. Assim, diante do apresentado, fazemos o convite à leitura, na expectativa que tal trabalho possa produzir reflexões e reverberações, do singular ao contexto mais ampliado, de modo que, efetivamente, possa vir a contribuir para a valorização do trabalho do psicólogo realizado no Setor Técnico Judiciário onde se possibilita dar efetiva e almejada visibilidade à criança durante o processo da disputa parental litigiosa, como sujeito de direito e sujeito desejante. 20 1 A INTERFACE DIREITO E PSICOLOGIA Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos. (GUIMARÃES ROSA) Necessário se faz tecer, mesmo que em breves considerações, um diálogo entre as duas ciências, o Direito e a Psicologia, o que possibilitará maior compreensão frente às propostas que serão apresentadas no presente trabalho. Ao se falar do trabalho desenvolvido pelo Psicólogo Judiciário, cujas funções e atribuições são recentes, vemos a importância delas no sentido de assegurar políticas públicas relativas ao bem-estar e à dignidade humana, além de permitir o exercício de direitos e garantias individuais, asseguradas pela Constituição Federal e legislações infraconstitucionais, como as normas editadas pelo Conselho Federal de Psicologia. Nesse sentido, ambas as ciências têm contribuído sobremaneira para que litígios processuais se findem em menor tempo, com melhor satisfação para as partes, pois se busca a justiça, a equidade e a observância de direitos, obedecido o regramento legal estabelecido – quer pelo Direito, quer pelo regramento das atividades de Psicologia Judiciária frente ao caso concreto. A etimologia e o sentido do termo Direito, conforme apresenta Lages (2007): A palavra “Direito”, bem como ele próprio no sentido amplo da Ciência do Direito vem dos romanos antigos e é a soma das palavras DIS (muito) + RECTUM (reto, justo, certo), ou seja, Direito em sua origem significa o que é muito justo, o que tem justiça. Entende-se, em sentido comum, o Direito como sendo o conjunto de normas para a aplicação da justiça e a minimização de conflitos de uma dada sociedade. Estas normas, estas regras, estas sociedades não são possíveis sem o Homem, porque é o Ser Humano quem faz o Direito e é para ele que o Direito é feito. (LAGES, 2007, p. 2) Compreende-se, entre os estudiosos da ciência do Direito, que este sempre permeou a vida em sociedade, que a sua existência se dá quase que de forma simultânea, posto que o homem, a partir de sua existência, primeiro lutou por viver e para se fortalecer, vendo a necessidade de se agrupar a fim de garantir a sua sobrevivência. Justamente nesse momento de percepção dessa condição, dessa realidade, o ser humano se viu na necessidade de elaborar regras sociais, da 21 liderança, da distribuição de tarefas, ainda que essas normas tenham sido elaboradas a partir do uso da força, do exercício do poder de soberano ou de liderança. Daí decorre o aforismo jurídico atribuído ao jurista romano Ulpiano, no sec. I d.C. “Ubi homo ibi societas; ubis societas, ibi jus. ”, que, em apertada síntese, significa que onde houver um agrupamento humano haverá regras que serão elaboradas e a serem seguidas. Então, haverá uma sociedade, justamente porque é a existência de regras que irá propiciar a sobrevivência dos indivíduos e dessa sociedade. As regras, mesmo que impostas de forma autoritária por um líder ou que sejam estabelecidas de forma democrática, serão o pilar alicerçador da vida em sociedade, da continuidade da existência do grupo e da sua perpetuação, posto que o ordenamento será sempre elaborado nesse sentido, de garantia da vida em sociedade. Obviamente, nem sempre há de se falar em consenso nessas regras, e quaisquer reações contrárias, estabelecidos novos líderes, rapidamente se buscará um novo ordenamento social. No tocante à Psicologia, conforme descrito no dicionário Oxford online, é a “Ciência que trata dos estados e processos mentais, do comportamento do ser humano e de suas interações com um ambiente físico e social”. Nesse sentido, Serafim & Saffi (2019) argumentam que o psiquismo se constitui de dois importantes sistemas: o cognitivo e o emocional. A Psicologia, no Brasil, foi regulamentada em 27/08/1962, por meio da Lei Federal nº4119/62, entretanto, desde os primórdios, despertava o interesse sobre os enigmas da mente e a natureza humana, que incialmente eram associados a questões de cunho religioso ou espiritual. O estudo da ciência psicológica moderna é multifacetado, com vários campos e correntes de pensamentos, que se apresentam em diferentes perspectivas, até porque podemos considerar tal ciência como muito recente frente às outras. Dentro das várias áreas de atuação, é por meio da Psicologia Jurídica, uma subárea da ciência psicológica, que se destaca como campo fértil para a intersecção entre a Psicanálise e o Direito, à medida que se concentra no estudo do comportamento humano no âmbito das relações entre sujeitos e o Sistema de Justiça. Observa-se, no entanto, que esse campo, muito embora fértil, ainda vem se desenvolvendo e ganhando notabilidade e respeito, pois lida com a vida e direitos e garantias individuais que estão em lide, sofrendo ameaças. 22 Convém destacar que, no final do séc. XIX, (SERAFIM & SAFFI, 2019, p.9) com o avanço da Ciência Psicológica, especialmente via Psicanálise, que se aproxima e desperta o interesse da área jurídica, surge inicialmente a “psicologia do testemunho”, pela qual se investigava a fidedignidade do relato do sujeito em processo jurídico com especial interesse em se buscar a verdade dos fatos. Foi esse um passo inicial, talvez um importante marco para o início e o desenvolvimento do que temos hoje, em linhas gerais, a Psicologia Judiciária, cujo rol de atribuições vêm expandindo substancialmente. Nota-se que, apesar de a Psicologia ter se aproximado da área jurídica pela via da psicologia do testemunho, que naquele momento inicial teve a sua importância para poder se firmar como ciência, ainda carecia de base por dados de exatidão, de medidas, de testes, o que incrementou o psicodiagnóstico fundado essencialmente na psicometria, conforme reflexões da pesquisadora Leila Maria Torraca de Brito (2012). Segundo dados históricos (BRITO,2012), no Brasil, os primeiros psicólogos a atuarem na psicologia jurídica eram contratados ou auxiliares de médicos psiquiatras, exclusivamente para elaboração de laudos periciais voltados à psicometria. O estado de São Paulo foi o pioneiro a contar com psicólogos, quando, em 1979, duas psicólogas iniciaram trabalhos voluntários na extinta FEBEM (Fundação para o Bem- estar do Menor) com famílias vulneráveis. Em 1980, cria-se o cargo de Psicólogo Judiciário no Estado de São Paulo para atuar nas Varas da Infância e Juventude (à época, Juizado de menores), sendo que, no ano seguinte, na capital de São Paulo, houve contratações de psicólogos para atuação direta em audiências interprofissionais1 judiciais. Quatro anos mais tarde, em 1985, via o Provimento nº236/85, do Conselho Superior de Magistratura, normatizaram-se a atuação dos psicólogos e a organização dos Setores Técnicos (Assistentes Sociais e Psicólogos), mas ainda apenas na capital do referido Estado houve o primeiro concurso público, com 60 cargos efetivos e 16 de chefia. Foi a partir do momento da redemocratização do país (Pereira,2003, p.207), com a nova Constituição em 1988, em seu Art.5º e com o Estatuto da Criança e do 1 “Se constituíam numa forma de atendimentos de casos em juízo, por meio da prévia apuração da equipe técnica, composta por assistentes sociais e psicólogos. Tais profissionais tinham como dever não só apresentar as medidas cabíveis dentro de suas respectivas áreas, mas também, confeccionarem relatórios circunstanciados visando à decisão do processo. ” (Atuação dos profissionais de Serviço Social e Psicologia: Infância e Juventude - Manual de procedimentos técnicos, TJSP, 2017, p. 23) 23 Adolescente em 1990 – ECA, art. 150 e 151, Seção III dos Serviços Auxiliares, que, de fato, via legislação, passou a se considerar a Psicologia como obrigatória em compor equipes técnicas para assessorar os juízes. Assim, em 1991, foram criados vários cargos nas 56 circunscrições judiciárias de todo o interior paulista, e a capital teve seu quadro funcional ampliado. Em 2000, o CFP (Conselho Federal de Psicologia) cria a especialização de Psicólogo Judiciário. Atualmente, tem crescido, de maneira exponencial, as atribuições e demandas aos psicólogos com atuação no Sistema de Justiça, campo em franca expansão. Especificamente no Tribunal de Justiça de São Paulo, os psicólogos têm atuação demandada nas Varas da Infância e Juventude, Varas de Família e Sucessões, Varas de Violência Doméstica, Varas da Fazenda e Varas Criminais. Há também núcleos específicos de atuação, como o atendimento psicossocial clínico aos magistrados, servidores e seus familiares. Além disso, há programas específicos em vigor, como o projeto piloto denominado “acompanhamento terapêutico judiciário”, que está em andamento na capital paulista. Esse projeto envolve a participação de um psicólogo que acompanha os momentos de convivência entre o genitor descontínuo e os filhos, em casos de graves conflitos parentais, com objetivo de restabelecer um ambiente saudável de convivência.2 É fundamental a compreensão de que a Psicologia Jurídica na atualidade não se limita à elaboração de laudos, que tem constituído seu espaço e se firmado por meio de pesquisas ao que: A intersecção entre diversas ciências e o direto ocorre em uma relação bidimensional, na qual a ciência afeta o direito e o direito afeta a ciência, uma vez que, nessa confluência de saberes, as áreas de estudo do psiquismo humano se configuram como arcabouços fundamentais no subsídio ao operador de direito tanto na elaboração de leis quanto em sua execução. Esse processo derivou da multiplicação do conhecimento e, para a compreensão do comportamento humano, cria-se a necessidade do perito nas áreas de medicina legal forense, da psiquiatria forense e, por fim, da psicologia. Há de se ressaltar que as disciplinas do direito, medicina (psiquiatria) e psicologia analisam o comportamento, sob o prisma de seu referencial. (SERAFIM & SAFFI,2019, p.11). 2 “A Escola Paulista de Magistratura (EPM), em parceria com a Associação Nossa Casa de Família, realizou nos dias 3 e 4 de novembro de 2022, o II Congresso Nacional e Latino-Americano de Acompanhamento Terapêutico Judicial. O objetivo do encontro foi apresentar a clínica de acompanhamento terapêutico (AT) e sua aplicação no campo judicial, como medida de proteção de crianças e adolescentes envolvidos em conflitos familiares e/ou parentais, no exercício do direito à convivência familiar (visitação assistida). ” Site TJSP/EPM. https://tjsp.sharepoint.com/sites/Intranet/Paginas/Congresso-terapêutico-08-11-22.aspx https://tjsp.sharepoint.com/sites/Intranet/Paginas/Congresso-terapêutico-08-11-22.aspx 24 De maneira unânime, os estudiosos apontam para o crescente campo da interface Psicologia/Direito, bem como o Conselho Federal de Psicologia - CFP tem lançado orientações e portarias a fim de orientar e exigir, dos profissionais, responsabilidade ética na atuação técnica profissional com bases científicas sólidas, não se perdendo de vista um dos princípios fundamentais da Psicologia como ciência e profissão: o da promoção da dignidade humana, conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Observa-se que, com o avanço do campo da psicologia jurídica na prática cotidiana, bem como em decorrência de normatizações instituídas pelo Conselho Federal de Psicologia, cursos de especializações e/ou acadêmicos, ocorre uma relevância nas práxis advindas da psicologia clínica e, com isso, uma predominância da psicanálise como escola teórica, ainda que, na atuação do psicólogo no Tribunal de Justiça de São Paulo, presume-se a livre manifestação teórica e técnica. 1.1 O Direito e a Psicanálise Sigmund Freud, o criador da psicanálise, já em 1906, em uma conferência com juristas, esclarece a diferença da busca da verdade em termos objetivos para o Direito e em termos subjetivos para a Psicanálise, ao considerar que, no campo psíquico, nada é casual. Assim, diante da complexidade da natureza humana e de transformações no modo de vida, vai surgindo a necessária construção interdisciplinar, ao que poderá redimensionar a epistemologia de cada disciplina, conforme Groeninga & Pereira (2003). É nessa “fronteira institucional”, como nomeado pela psicanalista Caffé (2010), que ocorrerão a confluência, o diálogo, a parceria entre as duas áreas de conhecimento – Direito/Psicanálise – porém, não de modo não conflitivo, pois: Tudo se passa como se tivéssemos que, de um lado, vencer muitos obstáculos para enfim construir a referência de uma proximidade possível entre duas práticas institucionais distintas, construir uma região comum onde possam dialogar, construir nas diferenças e semelhanças entre seus objetos de estudo a experiência de uma complementariedade. Porém, em seguida, é preciso que recuperemos as contradições e paradoxos entre ambas, no intuito de re-situar um movimento que parece se impor inevitavelmente no transcorrer dessa tarefa: o movimento de se diluírem as diferenças entre ambas as práticas institucionais em jogo, de se alienarem na perspectiva de uma colaboração mútua de natureza harmônica, marcada pela continuidade. (CAFFÉ, 2010, p. 27) 25 Interessante observar a quão fluida é essa “fronteira institucional”. É notório que é do campo do Direito que a Psicanálise se aproxima, uma vez que o próprio Direito, em sua abordagem positivista, na tentativa de buscar compreender a complexidade da subjetividade humana, pode ser explorado no campo da Psicanálise. Isso permite visualizar a necessária troca de conhecimentos entre esses campos, levando em consideração as suas respectivas especificidades. Assim, a psicanalista Claudia Suannes (2011), pesquisadora e psicóloga judiciária atuante no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo- TJSP, chama-nos a atenção ao observar questões estudadas por Mara Caffé (2010) em sua pesquisa apresentada no livro: “Psicanálise e Direito”, que observa a noção de conflito abordada na psicanálise e no direito. Para tanto, Caffé (2010) contextualiza: (...) a escuta analítica, dispositivo teórico-metodológico central referente às práticas psicanalíticas, formula-se de acordo com uma concepção de sujeito psíquico que Freud constrói a partir do conceito de inconsciente. O autor afirma que a subjetividade humana se constitui na base de uma divisão fundamental, que opera/é operada por dois grandes sistemas psíquicos, o consciente e o inconsciente, cujos funcionamentos se estruturariam segundo regras e mecanismos distintos, mantendo entre si uma relação complexa e marcada por conflitos. (CAFFÉ, 2010, p.54). Com isso, seguindo o mesmo critério de observação das pesquisadoras acima citadas, observa-se que um dos pontos de convergência entre as demandas da Psicanálise, bem como no Direito, ao buscarem os tribunais de justiça, giram em torno de conflitos, em que a Psicanálise irá trabalhar com o conflito na perspectiva interpretativa singular para subsidiar o Direito, que terá que deliberar sobre o conflito em termos “decidíveis”, de acordo com as normas jurídicas. Ao refletir sobre a necessidade de normas jurídicas, compreende-se tratar de um conjunto de leis necessárias à normatização da vida em sociedade, em que o Estado, como expressão de poder, prescreve as leis com fundamento na razão. Entretanto, de onde e como se encontrar o ponto dessa razão? Hans Kelsen3 observa que a ciência jurídica apenas descreve a norma (o sistema positivado) “que é um comando de conduta, e é o sentido objetivo do ato da vontade”, pois será na antropologia, história e, principalmente, com luz à Psicanálise 3 Hans Kelsen foi um jurista e filósofo austríaco, contemporâneo de Sigmund Freud. No ocidente, especialmente nos países europeus e latino-americanos, é considerado um dos mais importantes e influentes estudiosos do Direito e o principal representante da chamada Escola Normativista do Direito, ramo da Escola Positivista. Wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Hans_Kelsen 26 que se irá fundamentar a lógica das necessidades e possibilidades de se viver em grupo, conforme os costumes de cada cultura (CUNHA, 2003). Nesse horizonte, encontramos em Freud (1913), ao estudar sobre os povos primitivos, a partir da história e da antropologia, em seu ensaio científico “Totem e Tabu” o que nos remete aos primórdios das leis. Ainda que nos dias atuais, tabu, que é um termo polinésio, não tenha uma tradução exata que exprima o seu significado, sabe-se que vai aludir ao que é proibido, que impõe restrições: (...). As proibições dos tabus não têm fundamento e são de origem desconhecidas. Embora sejam ininteligíveis para nós, para aqueles que por elas são dominadas são aceitas como coisa natural. Wundt (1906,308) descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem. É suposição geral que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a um período anterior à existência de qualquer espécie de religião. (FREUD, 1913, p. 38) O percurso de Freud, explorando as fronteiras entre o real e o simbólico, tem como objetivo evidenciar o objeto de estudo da Psicanálise: o sujeito do inconsciente. Neste ensaio antropológico, Freud inicia sua investigação a partir do contexto do banquete totêmico, do qual emerge o pai primevo, surge a “Lei do Pai”. Essa lei é compreendida como o ser superior, onipotente e onipresente, responsável por proteger e preservar a vida e o grupo social. Ela impõe interdições e limites, fundamentando proibições cruciais, em que se considera o incesto, o assassinato e o canibalismo como os principais interditos e a base de todas as proibições e restrições culturais. Portanto, o conceito primordial de lei se manifesta na família, na filiação e na herança, sendo fundamental para todos os seres humanos, independentemente de sua cultura ou época. Esse conceito de lei desempenha um papel essencial tanto no campo do Direito quanto na Psicanálise. “É a primeira Lei. É a lei fundante e estruturante do sujeito, consequentemente da sociedade e obviamente do ordenamento jurídico” (CUNHA, 2003, p. 27), vez que as normas jurídicas advirão de condutas e comportamentos de grupos sociais. A partir dessa primeira lei, fundante da interdição, foi possível, por meio da linguagem, o indivíduo perceber que havia outros totens e daí surge a cultura, que Freud descreveu como “vinculante inconsciente”. (CUNHA, 2003, p.27). Compreende-se, portanto, que com a interdição do incesto se delimita o espaço entre a origem natural e a cultural. Embora as leis jurídicas sejam orientadas por 27 normas e por imposições de proibições de cunho moral, religioso ou cultural, destinadas a regular a vida em sociedade, é essencial reconhecer que, antes disso, foi necessário se lidar com as leis psíquicas que se dão no plano do simbólico. Estas leis psíquicas desempenham um papel crucial no desenvolvimento do sujeito, uma vez que, através da interdição imposta pela função paterna e da subsequente elaboração do complexo de Édipo, o indivíduo se tornará um sujeito a partir de sua realidade psíquica, temos assim, o sujeito do desejo e anseios próprios. Em outras palavras, é graças à marca da “Lei do Pai” que o homem se torna capaz e obrigado a criar as leis da sociedade em que vive, estabelecendo assim um sistema jurídico que regula a convivência. Isso reflete a interligação entre as leis da psique individual e as leis da sociedade, como ressaltado por Cunha (2003, p. 27). Pois bem, na modernidade, com o desenvolvimento das sociedades e as inevitáveis mudanças no modo de subjetivação e configurações familiares, sendo o grupo familiar considerado como a primeira representação social, torna-se importante pensar o que Kaës chamou de “ funções metapsíquicas do grupo” ao se refletir como se configuram vinculações e pertencimentos comunitários a partir de crenças de certezas e de interditos fundamentais: Chamo de metapsiquicas formações e funções que enquadram a vida psíquica de cada sujeito. Elas se mantêm no pano de fundo da psique individual e entre estas e os enquadres mais amplos – culturais, sociais, políticos e religiosos – nos quais eles se apoiam. O desregramento, as falhas ou os defeitos dessas funções metapsiquicas afetam diretamente a estruturação e o desenvolvimento da vida psíquica de cada um. (KAËS, 2011, p.20) Para tanto, Kaës concluiu que três grandes grupos de falhas podem ocorrer, quais sejam: relacionados à vida pulsional do bebê, não havendo objetos internos estáveis, poderá levar a uma dificuldade no processo de simbolização e de sublimação; um segundo grupo são as falhas nos processos de identificação e das alianças estruturantes que são a base para o estabelecimento dos vínculos intersubjetivos (fundamentais para a vida em sociedade); e um terceiro grupo relacionado à capacidade de simbolizar, que, por meio do pensamento com afeto, desenvolve a formação da alteridade. Vejamos que são fatores diretamente relacionados às necessárias condições de vida saudável em sociedade a partir do intrapsíquico. 28 Assim nesse contexto, torna-se imprescindível pensar a interface entre o Direito e a Psicanálise a partir de uma abordagem mais ampla e contextualizada, considerando os avanços da pós-modernidade, que é caracterizada pela fluidez e incerteza, como descrita por Zygmunt Bauman (1925-2017) na conhecida metáfora da “era liquida”. Na abordagem da Psicanálise Vincular, encontramos um caminho para compreender que, apesar das mudanças na constituição da subjetivação humana, há algo que permanece sendo fundamental: a necessidade de simbolização. Nota-se que o sujeito se constitui na intersubjetividade, tornando-se um sujeito do inconsciente, em que a realidade psíquica do grupo se entrelaça com a realidade psíquica do sujeito singular. Nesse contexto, as leis são fundamentais para se manter essa convergência. Elas ajudam a estabelecer as bases para a convivência harmoniosa e para a necessária simbolização da construção da subjetividade, mesmo em uma era marcada pela fluidez e pela liquidez das relações sociais e das instituições. 1.2 A Guarda Compartilhada Da mesma maneira que sempre existiu uma família, (PEREIRA & GROENINGA, 2003) desde logo surgiu a necessidade de normas, regras e códigos para a convivência em sociedade de maneira universal. Esse é o papel do Direito e seus diversos ramos. Ao introduzir o presente estudo, no que tange à legislação, de modo preliminar, o ponto de partida será o da nossa atual Constituição Federal. A partir da promulgação de nossa Carta Magna, em 05 de outubro de 1988, passa a haver um novo ordenamento jurídico, marcado pelo movimento da redemocratização e término do regime militar no país, lei essa conhecida como a “Constituição Cidadã”, em que se prima por valorizar a condição de singularidade do ser humano e sua convivência pacífica em sociedade. (BICALHO, 2016) Assegurou em seu bojo as garantias necessárias com o objetivo de efetivar direitos fundamentais à vida das pessoas, de sua integridade física, saúde, segurança e outros, além da proteção do Estado Democrático de Direito. No título VIII, que aborda a Ordem Social, o seu Capítulo VII se dedica às questões específicas acerca da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso. 29 Especificamente, em seu art. 227, assegura o direito fundamental da pessoa viver em família e o dever da família, da sociedade e do Estado em assegurarem a proteção integral da criança, do adolescente e do jovem: Art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Nota-se que há uma nova configuração em relação à condição da criança e do adolescente, colocando-os como protagonistas de cuidados e, para viabilizar tais mudanças constitucionais ao se considerar as necessidades específicas da população infanto-juvenil, a partir de um processo de mobilização social, em 13 de julho de 1990, é promulgada a Lei nº 8.069, que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Instituído o ECA com a finalidade em definir políticas próprias no sentido de promover a tutela autêntica e completa, compartilhada entre a família, sociedade e Estado, estabelecem-se três princípios básicos: 1. A Doutrina da Proteção Integral; 2. Considera todas as crianças e adolescentes como pessoas humanas em processo peculiar de desenvolvimento, portanto, sujeitos de direitos civis, humanos e sociais; e, 3. Postula o Sistema de Garantia de tais Direitos. Observa-se que a jurisprudência busca, a partir das necessidades, desenvolver-se no sentido de melhor atender as demandas sociopolíticas dos cidadãos brasileiros. Ao se considerar que as pessoas vivem em família e que esta tem importância fundamental na constituição da subjetividade do indivíduo a partir das relações ali existentes, torna-se, assim, necessária a regulamentação das relações familiares por legislações específicas. A nova Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014, é a responsável por trazer modificações, definir regras sobre a guarda compartilhada no país, com a finalidade de tentar dirimir as dificuldades nas relações parentais após o término das relações conjugais. (CEZAR-FERREIRA & MACEDO, 2016) A Guarda Compartilhada é a modalidade de guarda de filhos menores de 18 anos de idade e não emancipados ou os maiores incapacitados, como a maneira mais 30 evoluída e equilibrada na regulamentação do exercício do poder familiar após a dissolução da união conjugal dos pais, pois no entendimento do legislador e estudiosos, a Guarda Compartilhada é considerada o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar para que os filhos possam usufruir do ideal psicológico de duplo referencial parental na sua formação.(CEZAR-FERREIRA & MACEDO, 2016) Deve-se operar na ótica do consenso e da mediação, promovendo uma educação parental, ao considerar a prioridade absoluta da criança e do adolescente para que seja atendida, de maneira equilibrada, por ambos os pais em suas necessidades emocionais, físicas e financeiras. Cuida-se para que seja preservada a necessária convivência e laços familiares existentes (Shine, 2021), com o que se possibilita respeitar a história e espaço familiar mais amplo, inclusive para além da convivência com os genitores e irmãos. A modalidade de Guarda Compartilhada foi inserida na legislação brasileira a partir da vigência da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o então denominado Código Civil Brasileiro4 . Entretanto, foi pouco difundida e valorizada, uma vez que se tratava de apenas mais uma possibilidade e não uma regra, conforme já ocorria em outros países (PEREIRA & GROENINGA, 2003). Em 2008, a Lei nº 11.698 foi sancionada para alterar os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil e instituir e disciplinar a Guarda Compartilhada. Contudo, como não trazia o caráter de sua obrigatoriedade e frente às muitas resistências e pouca aceitação pela sociedade, na prática, não atingiu as mudanças esperadas e necessárias, prevalecendo a modalidade de guarda unilateral, que segundo o Código Civil Brasileiro, em seu livro IV – Direito de Família, Art. 1583, é o modelo em que apenas um dos genitores ou alguém que o substitua fica responsável pela guarda do filho. E certamente por se tratar de uma modalidade nova e desconhecida em âmbito nacional, enfrentou resistência aliada às possíveis questões culturais numa sociedade de fundamentação patriarcal em que se acreditava e, por vezes, ainda se predomina o pensamento de que a guarda do filho naturalmente deveria ser obrigação da mãe- mulher. Assim, em 2014, é sancionada a Lei que em três artigos vem a modificar quatro artigos do Código Civil Brasileiro, em especial o que torna a Guarda Compartilhada 4 O Código Civil Brasileiro é um conjunto de normas que determinam os direitos e deveres das pessoas, dos bens e das suas relações no âmbito privado, com base na Constituição Federal. 31 como regra, sendo que apenas em casos excepcionais será deferida de maneira unilateral, em que o legislador chama atenção sempre em se considerar o melhor interesse da criança ou adolescente, colocando o filho como prioridade absoluta. Ocorre que, mesmo após muitas discussões em torno dos benefícios da Guarda Compartilhada, ainda há divergências especificamente quanto ao caráter de sua obrigatoriedade, uma vez que, em nossa legislação, com o término das relações conjugais, não se extingue necessariamente o Poder Familiar dos pais. A expressão Poder Familiar foi introduzida pela Lei 12.010, de 03 de agosto de 2009, alterando o Código Civil Brasileiro, em substituição ao termo Pátrio Poder, anteriormente usado no Estatuto da Criança e do Adolescente e outras leis, posto que, etimologicamente, referia-se apenas à figura paterna, contrariando a ideia de igualdade entre gêneros e de que o conjunto de direitos e obrigações referentes aos cuidados do filho menor de 18 (dezoito) anos de idade deva ser exercido pela lógica da parentalidade. (CEZAR-FERREIRA & MACEDO, 2016) Por Poder Familiar, o Art. 1.634 do Código Civil Brasileiro, alterado pela citada lei, diz o seguinte: Do Exercício do Poder Familiar Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) I - dirigir-lhes a criação e a educação; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014) IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014) (g.n.) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm#art2 32 É de se perguntar se os pais, dotados desse Poder Familiar, não poderiam, per si, em não havendo outros litígios em disputa, disciplinarem a questão da guarda de seus filhos sem recorrerem ao Poder Judiciário, posto que, antes da dissolução da sociedade conjugal, já vinham exercendo o poder familiar, teoricamente, em harmonia entre ambos. Assim, por que admitir a intromissão estatal se a legislação já lhes deferiu direitos e deveres sobre como administrar a vida de seus filhos? Entretanto, todos os casos que envolvam filhos menores e bens materiais serão judicializados. Já presenciamos situações em que o casal parental, num acordo pré-judicial, define todas as questões relacionadas aos cuidados para com os filhos, os quais também tinham conhecimentos dos acordos ao se considerar a nova dinâmica familiar no pós- divórcio e, mesmo assim, foram submetidos aos estudos técnicos psicossociais e sentença judicial. É importante que os filhos, ainda que bem pequenos, sejam comunicados sobre a decisão dos pais quanto ao fim do relacionamento conjugal, que seja oportunizado a eles se manifestarem, nomear os sentimentos para que um processo naturalmente doloroso não se transforme numa situação traumática, frente ao não dito que poderá vir a ser compreendido como interdito e gerando muitas fantasias, ao que Françoise Dolto (1991) nomeou de “ventilar os afetos”, a fim de se humanizar o processo de separação conjugal dos pais. Afora tais divergências e discussões, fato é que, para os filhos, é fundamental que, mesmo após a dissolução dos vínculos conjugais, seja preservado o espaço intersubjetivo familiar, muitas vezes atacado num desiderato passional. Destarte, interessa compreender quais afetos daí emergem - possivelmente vários; entretanto, necessário se faz delimitar o foco a ser analisado. Assim, o afeto a ser investigado no contexto da disputa pela guarda compartilhada foi o relacionado à angústia, segundo a concepção freudiana. Na hipótese, por estar relacionado ao sentimento de separação, vazio, desamparo e a necessidade de um “terceiro” como interditor – aqui depositado no Poder Judiciário. O filho que precisa ser visto e considerado como prioridade absoluta, na disputa parental pela guarda compartilhada, é comum se tornar invisível diante das feridas narcísicas dos próprios pais e do Estado na busca da emergente e assolapada decisão frente à montante demanda processual. 33 Freud, na obra “Além do princípio do prazer” (1920), evidenciou o sofrimento e a dor dos indivíduos nas suas formas de subjetivação em decorrência dos imperativos da modernidade. No cotidiano, tem sido possível observar que ainda que a legislação seja alterada, visando acompanhar as emergentes mudanças, a cada novo caso de família em litígio pela guarda compartilhada dos seus filhos, há dores, fantasias e certa confusão em administrar o momento de crise familiar, em que necessidades e dados de realidade concreta se confluem ao desejo e fantasias psicoemocionais. Joel Birman (2014), em “O mal-estar da atualidade”, adverte: (...) Como a separação entre corpo e psiquismo não é sustentável pela leitura freudiana da subjetividade, pretendo mostrar como essa dualidade está no fundamento da surdez atual do ofício de psicanalisar. Isso porque, nesse modelo que opôs o corpo ao psiquismo, grande parte do mal-estar na atualidade ficaria fora da modalidade psicanalítica de escuta. Além disso a questão não fica restrita ao corpo. Junto com este, seria o afeto que estaria sendo eliminado da psicanálise. A questão da afetividade é absolutamente crucial para que se possa ficar no mesmo comprimento de onda de sofrimentos atuais, já que a intensidade e o excesso pulsional seriam características marcantes desses sofrimentos. (BIRMAN, 2014, posição 314 e-book). Observamos que, neste excepcional momento histórico em que se viveu algo totalmente inusitado, com o isolamento social imposto pelo advento da pandemia SARS- CoV 2 (Covid 19), que mobilizou o mundo todo e ainda tem provocado reações das mais adversas, quando se tomou consciência de que o planeta é global e de que é nas relações, no encontro com o outro que nos reconhecemos, fica evidente o necessário olhar singular aos casos de litigio parental que chegam aos tribunais, em que a subjetivação dos filhos está implicada pela maneira que seus pais conseguirão ou não lidar no concreto com os afetos que emergem nesse momento de crise famíliar. Portanto, o presente trabalho de pesquisa, na proposta da interface Psicanálise e Direito vem ao encontro do que teóricos clássicos e contemporâneos têm assinalado: o que o ser humano quer e precisa é ser acolhido em suas demandas subjetivas e, para tanto, é fundamental se permitir afetar. Fazer um exercício de afeto e de coragem de pensar na perspectiva de mudança de realidade no sentido que possa promover reflexões de todos os envolvidos, sejam aqueles que elaboram as leis, os que as aplicam e, principalmente, os que a ela recorrem, valendo-se de seus afetos, em especial o amparo. 1.3 O fenômeno da Judicialização 34 O fenômeno da judicialização, de forma geral, na atualidade brasileira, está muito em voga, pois apesar da grande abrangência da legislação, ainda existem lacunas e possivelmente sempre existirão, de modo que se abre espaço para busca de resolução junto ao judiciário; no entanto, trata-se de um fenômeno de ocorrência mundial. Antunes (2010), conceitua que: O fenômeno da “judicialização” se insere no contexto de ampliação das competências do Poder Judiciário no processo de redemocratização da sociedade brasileira, que implicou numa crescente participação desta esfera na tomada de decisão sobre questões variadas, envolvendo desde temas políticos até os conflitos familiares. A judicialização é atribuída a um vácuo deixado pelos poderes Executivo e Legislativo, recebendo nestes casos, a denominação de “judicialização da política”, “da administração”, ou “das relações sociais”. No campo das relações familiares, o fenômeno é atribuído à uma lacuna deixada pelos pais no exercício da paternidade e da maternidade, sendo neste caso, designado de “judicialização das relações familiares” ou “dos conflitos familiares”. (ANTUNES, 2010, p. 61). Há também uma definição apresentada de maneira mais sucinta, a partir da compreensão segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Roberto Barroso(2009), que é um dos expoentes estudiosos sobre o referido tema, ao qual refere “judicialização da vida”, que tal fenômeno significa transferir ao Poder Judiciário o poder de decisão, seja de temas complexos ou simples, o que poderia ser decidido por outro Poder, seja Legislativo ou Executivo e até mesmo nos poderes familiares, ou seja, do macro ao micro poder, da universalização à singularidade. Em termos de surgimento e evolução do conceito do fenômeno da judicialização, não há dados históricos precisos, porém os indicativos são de que, após a II Guerra Mundial, houve uma crescente ascensão do poder judiciário independente e fortalecido, visando à garantia da manutenção da legitimidade da democracia, principalmente nos países ocidentais. No Brasil, esse fenômeno surgiu da própria separação dos três poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo), em que um deveria equilibrar o outro, em um sistema de freios e contrapesos, questão bem abordada com o advento da Constituição Federal de 1988. Na atualidade, é possível se deparar tanto com posicionamentos favoráveis como contrários ao crescente fenômeno da judicialização, tendo em vista a majoração do Poder Judiciário e a sua interferência nos outros poderes, bem como na vida privada do indivíduo. De acordo com Tomaz & Silveira, a partir da atual Carta Magna: 35 O governo brasileiro passou a participar e interferir na sociedade, abrindo espaço para a jurisdição, que teve como papel fundamental suprir lacunas deixadas por os outros poderes, desta forma o Judiciário passou a exercitar um papel decisivo na determinação e certos padrões respeitáveis. Diante do exposto é possível notar-se então, que a judicialização é muito mais que uma constatação, é em fim uma análise contextual da formação do cenário jurídico. Sendo gerada por fatores alheios à jurisdição, e a diminuição da judicialização não depende dessa forma somente de medidas efetivadas pelo Poder Judiciário, mas, do ajustamento que envolva todos os poderes constituintes. (TOMAZ & SILVEIRA, p.78, 2015). Assim, nota-se que o crescente fenômeno da judicialização ocorre em todos os setores, seja na política, na saúde, na sociedade, nas relações familiares, em âmbito privado e público, abordando tanto aos aspectos quantitativos e qualitativos, de tal modo que tem gerado um acúmulo de ações judiciais, o que tem provocado uma maior demora e uma grande despesa na resolução dos conflitos e, com isso, delineia-se uma das principais queixas em relação ao fenômeno da judicialização – o alto custo (econômico, emocional, de tempo, entre outros). Uma alternativa viável seria a educação pautada na comunicação não-violenta e que os conflitos de menor complexidade fossem resolvidos na fase pré-processual, durante a mediação e a conciliação, momento em que se proporciona a possibilidade de um diálogo reflexivo na busca de soluções dos conflitos. Entretanto, a prática como as pesquisas têm demonstrado a tendência atual do cidadão acessar o poder judiciário em busca da defesa de seus direitos, é notória a presente cultura adversarial, com postura altamente litigante, tanto em termos objetivos quanto subjetivos, na pseudo-tentativa da resolução de seus conflitos. Há quem diga que, na atualidade, vivemos, no Brasil, a década da hiperjudicialização. A judicialização das relações parentais no contexto da guarda compartilhada vem ao encontro do crescente movimento pela busca do Poder Judiciário na resolução de conflitos emergentes no modo de vida contemporânea, em que a subjetividade dos fatos chega ao Direito; ou seja, na interface Direito/Psicologia, deparamo-nos com o sujeito de direito e o sujeito de desejo. Dentre esses inúmeros “fatos”, encontra-se a separação conjugal e a necessidade de disciplinar a tarefa da continuidade do cuidado aos filhos. A presente inquietação tem mobilizado esta pesquisadora, que é uma profissional da área de Psicologia Judiciária, imersa no cotidiano forense, com o interesse epistemofílico voltado a observar o sofrimento do ser humano, o qual, 36 paradoxalmente, ao buscar o judiciário na tentativa de resolução de seus conflitos, tem os potencializado. Neste contexto, surgem as indagações: frente ao término do relacionamento conjugal, ao se deparar com o novo e desconhecido, os pais revivem a angústia de separação e o sentimento de desamparo? Com qual expectativa recorrem ao Poder Judiciário? A fim de saírem do modo binário, depositam na figura do juiz como o terceiro, aquele que dirá quem é o culpado, assumindo o lugar da interdição? Seriam capazes de sair da lógica da culpa para a responsabilização? Quais implicações na subjetivação do filho em disputa? O histórico do início e o término da relação conjugal têm correlação? São inúmeras as indagações e possibilidades de reflexão acerca da judicialização das relações parentais. Notadamente, é no Setor Técnico Judiciário – Setor Psicossocial – no qual a presente pesquisadora está lotada, que se inicia o diálogo da subjetividade, a partir da escuta técnica, mas que importa ser singular e acolhedora, e daí resultará um laudo que irá subsidiar a decisão judicial. Esta decisão deve ser imparcial, porém sabemos que nem sempre é neutra, sob a ótica da subjetividade. Tal fato suscita inúmeras reflexões que, certamente, implicam na qualidade do atendimento técnico do setor psicossocial judiciário e, até mesmo, na jurisprudência, a qual, ao adaptar as normas a partir de situações de fato, irá uniformizar padrões em decisões judiciais. Portanto, é fundamental que seja produzido conhecimento científico a partir da ótica de estudo criterioso da Psicologia na prática cotidiana no meio jurídico. Para tanto, a Psicanálise pode oferecer e, desde o seu início, tem contribuído com um pensar voltado às questões subjetivas que aqui se focará no Direito de Família, o qual tem recentemente admitido o valor jurídico da afetividade em sua demanda. Ademais, conforme demonstrado por Roudinesco (2003), a família ocidental ao longo do tempo tem sofrido várias modificações sócio-históricas e culturais, tendo se potencializado tais mudanças, seja em velocidade ou intensidade, de maneira exponencial nos últimos 50 anos, propriamente com o advento da revolução tecnológica, entre outros aspectos da vida contemporânea. De maneira que se torna fundamental documentar o saber que tem sido construído nas práxis de maneira sistemática - científica acadêmica. 37 Nesse cenário, verificamos mudanças e novos conceitos psicológicos, ou em construção, ou que tem se ampliado e ocupado diferentes áreas do conhecimento nas últimas décadas, apenas para ilustrar, dentre tais conceitos que têm se renovado e têm possibilitado originar outros, destacamos o de Parentalidade: Segundo Rosa e Lacet (2012, p. 362), [...] a cada nascimento de uma criança são postas em jogo as coordenadas que sustentam o grupo social e possibilitam o exercício das funções materna e paterna, que se operam a partir dos lugares (materno, paterno, filial) atribuídos ou não aos membros de determinada comunidade. Sua eficácia não é independente das coordenadas desse grupo, uma vez que a família é, ao mesmo tempo, o veículo de transmissão dos sistemas simbólicos dominantes e a expressão, em sua organização, do funcionamento de uma classe social, grupo étnico e religioso em que está inserida. (ROSA & LACET 2012, p. 362) Portanto, ainda que Freud tenha descrito em “O mal-estar da civilização” (1930), o que possivelmente viria pela frente, hoje, de maneira atemporal, vários estudiosos nos apontam para o mal-estar contemporâneo, em que é possível se observar um certo esvaziamento psíquico, com manifesta dificuldade em representar e transitar pelo simbólico, numa economia psíquica das relações. Neste empobrecimento, há uma tendência a se retirar das relações sociais, principalmente por não tolerar a alteridade, que sugere uma racionalidade dos afetos ao se imperar a posição polarizada numa perspectiva dogmática do Afeto versus Razão. Isto posto, não resta dúvida de que o tema dos afetos intrincado no modo de vida contemporâneo merece destaque, ao ser colocado como protagonista no campo que tem a sua especificidade, que é o judiciário. Trata-se de um tema complexo e atemporal, logo, campo fértil para se pesquisar. Com isso, tornam-se recorrente os temas sobre os afetos, encontros e desencontros nas múltiplas lives num engendramento compulsivo por uma cultura “Psi”, quase como uma reação reativa. Neste panorama, há um grande risco do que é cientifico se transformar numa panaceia ao ser capturado pela necessidade imediata de uma explicação, arraigada em estudos, muitas vezes, ultrapassados. Sobretudo Freud (1915, p.137) afirmava que “o avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições”. Neste especial aspecto, não se deve correr o risco de se colocar a ciência na “cama de 38 Procusto”5 para dar respostas aos inúmeros e emergentes questionamentos. Diante deste panorama dinâmico e efervescente, é que compreendemos a importância de criar espaços para dialogar de maneira científica, sobre a necessidade de se possibilitar reflexões que conduzam à construção de uma proposta integradora entre razão e emoção (Direito e Psicanálise, diríamos). A presente pesquisa contribuirá nos processos judiciais, acadêmicos, na jurisprudência e, essencialmente, em direção ao direito de Ser Humano. 5 O mito do leito de Procusto é muitas vezes utilizado como uma metáfora para situações que em que se pretende impor determinado padrão ou querer a todo custo obrigar que algo encaixe numa matriz pré-estabelecida ou pré-determinada, e, por isso, representa a intolerância humana. Disponível em https://www.sbie.com.br/blog/sindrome-de-procusto-o-que-e-e-como-identifica-la/. Acesso em 10 out. 2020 https://www.sbie.com.br/blog/sindrome-de-procusto-o-que-e-e-como-identifica-la/ 39 2 FAMÍLIAS – O PERCURSO ATÉ A CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é razoável sofrer. E a alegria do amor – compadre meu Quelemém diz. Família. Devera? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é...Quase todo mais grave criminosos feroz, sempre é muito bom marido, filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens. (GUIMARÃES ROSA) A família sempre existiu e é considerada o primeiro grupo social que o ser humano tem contato, “é a matriz básica do processo de subjetivação, no qual são atendidas as necessidades básicas do ser humano, desde a nutrição para sobreviver, aos cuidados afetivos e a proteção que aliviam o seu desamparo inicial. ” (CORREA, 2013, p. 27) Ao longo da história, tem passado por diversas alterações e modificações, com quebras de paradigmas. No último século, isso se acentuou, tendo agudizado nas últimas décadas em que os laços sociais são reeditados a partir de uma pluralidade de narrativas, conferindo, assim, grande diversidade de tipos de famílias. De acordo com Ariès (2019), de modo sucinto, a família passou por três grandes momentos históricos e o autor denominou a “família pré-moderna” (séc. XVI ao séc. XVIII) aquela organizada como um agrupamento extenso, no qual várias gerações coabitavam no mesmo espaço. Tinha como característica o domínio patriarcal absoluto enquanto a figura feminina era totalmente invisível e, portanto, desvalorizada. Não havia, naquele momento, a noção de infância, pois a criança era vista como um pequeno adulto. A ordem hierárquica era rígida, com forte presença da dominação da religião e da monarquia, e também não se considerava a afetividade (RIBEIRO & MARTINS, 2010, p.51) A “família moderna” (séc. XIX e XX), segundo Ariès (2019), surge a partir da Revolução Francesa em que se inicia um movimento em direção à contestação do patriarcado, porém a hierarquia estabelecida na supremacia da figura do homem ainda se mantém. Surge o sentimento de família e de infância. A mulher passa a ocupar o lugar de dona de casa e responsável pela educação e pelos cuidados dos filhos. O homem se ocupa da gestão dos espaços públicos e, nesse sentido, ainda se mantém como figura de poder e controle social. 40 Inicia-se uma preocupação com as condições de qualidade de vida e, com isso, a reforma sanitária e educacional, a fim de se buscar garantir e qualificar a mão de obra. Assim, a escola formal começa a ter a sua importância no fortalecimento moral dos vínculos familiares. Estabelece-se o modelo da família nuclear burguesa – pai, mãe e filhos, sendo subentendida a relação conjugal heterossexual. (RIBEIRO & MARTINS, 2010, p.51) Ainda, de acordo com Ariès (2019), a partir da década de 60, temos a família considerada “contemporânea” (séc. XX e XXI), a qual tem passado por significativa transformação, com o avanço da ciência medicamentosa, especialmente com a pílula anticoncepcional, possibilitando à mulher alcançar outro status na sociedade, com maior liberdade, perspectivas de avanço nos estudos e de entrada no mercado de trabalho, ocupando o espaço público anteriormente restrito à figura masculina. Os homens continuam no macro poder e, com isso, surge a necessidade de se terceirizar6 os cuidados das crianças que vão para creches e escolas mais cedo. (GOMES, 2017) Elisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista contemporânea, desenvolve pesquisas acerca das transformações sociais e culturais. Ao referendar Lévi-Strauss, destaca a família enquanto um fenômeno universal. Analisando o percurso histórico de transformações afetivas pelas quais o grupo familiar perpassou ao longo da história e corroborando com os dados apresentados por Ariès (2019),desenvolve estudos que irão apontar para um percurso que compreende que a família ocidental passou por três grandes evoluções: partindo da ‘família tradicional’ que servia, acima de tudo, para assegurar a transmissão de um patrimônio sem levar em conta a vida sexual afetiva e com total submissão patriarcal; numa segunda fase, passou para a ‘família moderna’ fundada no amor romântico, na reciprocidade dos sentimentos e desejo pelo casamento, características dos séculos XIX e XX; e, por último, para a ‘família contemporânea’ ou ‘pós-moderna’, que une dois indivíduos em busca de relações intimistas ou realização sexual, característica da década 1960 – tais como a liberdade sexual e o movimento feminista, em que, com a descoberta da pílula anticoncepcional, torna-se possível um planejamento familiar mais efetivo, o que colabora para inúmeras mudanças, dentre elas, a dissociação entre a maternidade como destino inevitável da 6 Até há pouco tempo, os pais contavam com uma rede extensa de familiares para os cuidados dos filhos e, com as atuais mudanças socioculturais que passam a modular as relações entre pais e filhos, surge a valorização dos especialistas, intermediado pelas intervenções de profissionais da saúde, educadores, representantes da lei, em que se prima por saúde, segurança e bem-estar, tanto dos pais como dos filhos. (GOMES; CAMPANA, 2017). 41 realidade feminina. Ou seja, possibilitou à mulher uma escolha pela maternidade e pelo momento no qual ela poderá ocorrer. Momento significativo para mudança de paradigma da família, em que se passa a considerar as funções simbólicas, e com isso vai sendo “dessacralizada”. (ROUDINESCO, 2003, p.19 e 20) No âmago das inúmeras mudanças nesse movimento de transformação da família ocidental, tem a contribuição significativa das ciências humanas (antropologia, sociologia, psicologia) que colaboram para a ampliação dos saberes acerca do funcionamento das famílias. Foi possível identificar uma queda da transmissão da autoridade ao se privilegiar a liberdade, em que a família deixa de estar necessariamente atrelada ao Estado, com normas divinas como um caráter sagrado, místico religioso e inviolável. Portanto, ao se valorizar a busca pelo prazer, é possível ser “dessacralizada”. Nesse percurso, observa-se, de modo mais explícito, a partir de 1960, que a organização familiar se alterou, sendo que a mudança da posição feminina na sociedade – movimento feminista - contribuiu significativamente para que a família se transformasse, visto que a mulher saiu de seu lugar fixo como mãe e dona de casa para que se permitisse também investir na carreira profissional. Com isso, o lugar do pai também se modifica, e assim, Roudinesco considera que a família nuclear ocidental burguesa está em “desordem”, ao se considerar a ordem até então vigente, no qual a organização dos lugares e funções eram predominantemente hierarquizadas, dão lugar à família contemporânea, horizontalizada. Além disso, o surgimento acessível de métodos anticoncepcionais seguros, a legalização do aborto e a instauração do divórcio permitiram, respectivamente, o planejamento feminino quanto à concepção e a dissolução da conjugalidade, gerando novas possibilidades de se viver em família (BIRMAN, 2007). Assim, o casamento também deixa de ocupar um lugar sagrado e eterno. Não é mais necessário, para se conceber filhos, ter que assumir o compromisso do vínculo conjugal, ou também o contrário, em que já se admitem pares conjugais que não desejam ter filhos e não se sentem cobrados ou culpados por isso. Tais perspectivas são corroboradas em minha prática cotidiana e se atualizam em minha pesquisa de campo, onde tem sido comum nos depararmos com casais que tiveram convivência conjugal diversa ao modelo tradicional do matrimonio, que ao se conhecerem estabeleceram um modelo de união livre, rápido e quase descompromissada e, ao terem tido filhos, estes têm participado involuntariamente 42 das disputas judiciais, por vezes intermináveis e se adaptado a novos modelos de família. Fato é que a família é tema complexo, de amplo interesse nas mais diversas disciplinas e é estudada sob perspectivas de múltiplos enfoques, desde o acadêmico científico ao senso comum. Para a psicanálise, interessa pensar a família como objeto de estudo que vai além de um organograma formal, “importa detectar no novo grupo familiar, em sua composição e função parental, quais são as condições de simbolização disponíveis para seus integrantes”. (CORREA, 2013, p.41) Bem sabemos que a capacidade de simbolizar estudada desde Freud, que a partir da metapsicologia freudiana, em que a noção de inconsciente se funda em três registros de experiências psíquicas: traços mnêmicos, representação da coisa e representação da palavra; até os psicanalistas contemporâneos em que “a compreensão e a interpretação do simbolismo inconsciente é uma das principais ferramentas de um psicanalista”. (RAHMI, 2021, p. 491). Assim, do ponto de vista da psicanálise, considera-se a família como o berço psíquico do indivíduo, pois a capacidade de simbolizar se desenvolve através das relações intersubjetivas, inicialmente pela mãe ou quem desenvolva a função do cuidado e do amparo primitivo com afeto e continência psicoemocional. Para tanto, é de fundamental importância o espaço psíquico que permite que as experiências emocionais possam ser simbolizadas por meio da linguagem onírica ou verbal, e esse espaço ainda ocorre na família, o primeiro grupo social a sonhar e dar um lugar ao filho como membro. Para tanto, ainda que a cultura e as configurações familiares se transformem, e até mesmo com os avanços tecnológicos, ou ainda que concebidos fora do casamento, é preciso, para se conceber biologicamente um novo ser humano, o encontro de dois diferentes, conforme observação da psicanalista Vera Iaconelli: A reprodução do laço social depende da relação entre sujeitos nascidos com diferentes competências biológicas para procriar, mediadas ou não pela medicina. A partir desse fato incontestável se faz a transmissão de valores da cultura, de lugares sociais, da transgeracionalidade em íntima relação com a estrutura mínima familiar. É nessa conjunção entre o real e a tentativa incessante de imaginarizá-lo e simboliza-lo que se produz sujeitos, razão última da psicanálise. (IACONELLI et al, 2020, p.13) É esse sujeito do inconsciente que, segundo Freud (1914), foi sonhado por seus pais antes mesmo de nascer, que traz consigo toda uma história transgeracional. 43 “A vinda de uma criança inscreve-se na organização onírica inconsciente do casal parental e da família ” (RAHMI, 2021, p.494) Ao se compreender o sujeito da psicanálise a partir do inconsciente e que a subjetividade se constitui na interação das relações intersubjetivas, depreende-se que “a família é o diferencial na nossa espécie, não só célula mater da sociedade, mas matriz de constituição do psiquismo, deste psiquismo humano que conhece para ser” (GROENINGA, 2003, p.128), ou seja, promove a constituição da identidade do indivíduo, do grupo e da sociedade. Isto posto, reconhece-se que Freud, em sua memorável obra, ao trazer ao mundo a descoberta do inconsciente, apresenta o sujeito inserido numa genealogia cultural e familiar que o torna humano, assim, sempre se reportou aos acontecimentos familiares na influência da vida constitutiva da psique do sujeito. A estrutura da família, apresentada por meio da mitologia de Édipo Rei, que nos remete à proibição do incesto, demonstra a articulação entre o desejo, a Lei e a imposição da realidade, que irá regular a organização psíquica do sujeito na trama dos desejos em família. A família surge em Freud especialmente no texto ‘O romance familiar dos neuróticos’ ([1909] 1976), em que aborda o cenário do drama edipiano que expressa o dilema humano da relação entre lei e desejo. Nesse cenário emergem a mãe e o pai como fundamentais à constituição do sujeito. A colagem com os atores sociais que cumprem essas funções perpassa toda a obra freudiana, gestada em plena modernidade, e podemos reconhecer seus efeitos subjetivos encenados em versões do Édipo. (ROSA, 2020, p.26) Portanto, a família sempre foi objeto de estudo da psicanálise, configura-se como um grupo primário, com características singulares, inserida no tempo e espaço, responsável por acolher e sustentar o psiquismo do novo integrante e a construção de todos os vínculos intersubjetivos, os quais constituirão a base de todo devir relacional e psicoafetivo do sujeito. Nota-se a complexidade e a extensão do campo familiar: Nesse espaço circulam fantasias, afetos intensos, o mundo pulsional, mecanismos de defesa e processos de identificação, assim como os diversos pactos e alianças inconscientes já assinalados. Consideramos a atividade da fantasia inconsciente como um dos motores da psicodinâmica familiar expressada nos sonhos, nas produções gráficas, na livre associação dentro do espaço terapêutico. (CORREA, 2013, p.38) 44 Não apenas na clínica e no espaço terapêutico, mas em diversos campos é possível se observar que a família tem se constituído a partir de incontáveis paradigmas, num contínuo processo, e num complexo sistema relacional de interações intersubjetivas, desde a dimensão publica social até a dimensão privada, pautada em vínculos afetivos íntimos. No campo social, conforme observado por Iaconelli (2020, p.16), para se perpetuar a reprodução do laço social7, é preciso se atentar para o que alertou Piera Aulagnier: “o contrato narcisista que se herda ao nascer e que promove as coordenadas da herança simbólica.” Trata-se de um contrato com função identificatória, a fim de que o investimento libidinal de autoconservação para o sujeito singular, bem como o seu grupo pertencente, possa ter continuidade. Assim, será possibilitado à criança, a partir do sentimento de pertencimento a uma estrutura familiar, renunciar ao desejo de ser o único objeto de investimento libidinal narcísico de seus pais e estabelecer novos laços. Para os pesquisadores contemporâneos, entre eles, Groeninga (2003), com base em estudos de Lévi-Strauss e Freud, a família é considerada como um fenômeno de alta complexidade e intensidade, além do seu caráter universal, que é dado por meio das leis de sua constituição fundadas no necessário interdito de impulsos básicos – canibalismo, incesto e parricídio – (FREUD,1913, Totem e Tabu), para estabelecer os seus limites que asseguram a continuidade. Ao que se destaca: É interessante notar que o interdito do incesto, segundo Lévi-Strauss, além de proibição traz também uma regra de doação por excelência, sendo precisamente este aspecto, em geral ignorado, o que permite compreender o seu caráter fundador das famílias. Esta proibição é menos que uma regra que proíbe casamentos consanguíneos do que uma regra que obriga a entregar a mãe, a irmã ou a filha a outra pessoa. A exogamia é a expressão do tabu do incesto. Assim, além de impeditivo, o tabu do incesto traz as leis da aliança. Às leis da aliança, somam-se as da filiação. É na constituição da mesma família que encontramos a passagem do privado para o público, dado pela relação de filiação que articula, em sua origem conjugal, sexual e privada, para o público exogâmico, que será na realizada pelo filho quando se constituir como adulto e fundar uma família. (GROENINGA, 2003, p. 134) 7 Laço social: conceito da escola psicanalítica lacaniana que faz referência ao campo do Outro onde “o sujeito não está sozinho com seu Isso”, posto que a constituição de si se encontra balizada pelo olhar de um Outro. “O que liga, faz laço, depende da presença desejante do Outro – necessária, mas também contingente -, depende do acaso dos encon