UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Araraquara PAULO VICTOR ALVES LIMA DA SILVA A INVENÇÃO DE GANIMEDES E OS MISTÉRIOS DE SAFO: naturalismo e dissidências sexuais nas obras de Abel Botelho e Alfredo Gallis Araraquara 2024 PAULO VICTOR ALVES LIMA DA SILVA A INVENÇÃO DE GANIMEDES E OS MISTÉRIOS DE SAFO: naturalismo e dissidências sexuais nas obras de Abel Botelho e Alfredo Gallis Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Estudos Literários Orientadora: Profa. Dra. Renata Soares Junqueira Coorientadora: Profa. Dra. Claudia Barbieri Araraquara 2024 S586i Silva, Paulo Victor Alves Lima da A invenção de Ganimedes e os mistérios de Safo : naturalismo e dissidências sexuais nas obras de Abel Botelho e Alfredo Gallis / Paulo Victor Alves Lima da Silva. -- Araraquara, 2024 155 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Renata Soares Junqueira Coorientadora: Claudia Barbieiri 1. Literatura portuguesa. 2. Naturalismo. 3. Dissidências sexuais. 4. Abel Botelho. 5. Alfredo Gallis. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Este trabalho busca analisar, em leitura comparada, as séries naturalistas dos escritores portugueses Alfredo Gallis e Abel Botelho, através da representação das sexualidades dissidentes em suas obras. Intenta-se, desse modo, contribuir para a bibliografia crítica produzida sobre esses autores, ainda pouco estudados no panorama da literatura portuguesa, e trazer à luz reflexões sobre as complexidades do naturalismo em Portugal sob perspectivas plurais, rompendo com estigmas acerca do movimento literário. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This work intends to analyze, in a comparative reading, the naturalist series of Portuguese writers Alfredo Gallis and Abel Botelho, focusing on the representation of dissident sexualities in their works. The aim is to contribute to the critical bibliography dedicated to these authors, whose resurgence in Portuguese literary studies is still very recent and, also, to shed light on the complexities of naturalism in Portugal from plural perspectives, challenging prevailing stigmas associated with the literary movement. PAULO VICTOR ALVES LIMA DA SILVA A INVENÇÃO DE GANIMEDES E OS MISTÉRIOS DE SAFO: naturalismo e dissidências sexuais nas obras de Abel Botelho e Alfredo Gallis Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Estudos Literários Data da defesa: 24/05/2024 Banca Examinadora: ______________________________________ Profa. Dra. Claudia Barbieri Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) ______________________________________ Profa. Dra. Anna Klobucka University of Massachusetts Dartmouth ______________________________________ Prof. Dr. Leonardo Pinto Mendes Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Dedico este trabalho a todos os paneleiros, fanchonos, safistas, invertidos, reversivos, degenerados, degenerescentes e... AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, à minha família. Ao meu pai, Paulo Roberto, pelo suporte ao longo de todos esses anos e por sempre acreditar em meus projetos. À minha irmã, Paula, por segurar todas as “pontas” que eu insisto em soltar. Principalmente, preciso agradecer à minha mãe, Neudely Lima, por todos os sacrifícios que fez para que eu pudesse sonhar, por ser o porto seguro que sempre acolhe minhas inseguranças, por entender as minhas ausências. À minha orientadora, Profa. Dra. Renata Soares Junqueira, por ter me introduzido ao tema desta pesquisa, e assim, transformado toda a direção dos meus estudos acadêmicos. Agradeço por toda a paciência e compreensão com meus prazos produtivos caóticos, pela confiança e incentivo, sem os quais esse trabalho teria sido imensamente difícil de realizar. Sempre serei grato pelas oportunidades que me proporcionou e carregarei comigo suas aulas como exemplos de compromisso e dedicação à atividade docente. À Profa. Dra. Claudia Barbieri, minha coorientadora, pela disponibilidade, acolhimento e leituras atentas, ademais de todas as contribuições e perspectivas valiosíssimas para esta investigação. À Profa. Dra. Anna M. Klobucka, pelas indicações bibliográficas preciosas e por ter me apresentado à obra de Alfredo Gallis. Jamais esquecerei da generosidade com que recebeu minhas inquietações de estudante que ainda “engatinhava” no meio acadêmico e aquele café descontraído em Lisboa, cinco anos atrás, que me tornou mais confiante na busca de meus objetivos. Ao Prof. Dr. Leonardo Mendes, por todas as sugestões durante o exame de qualificação que me auxiliaram a definir os rumos decisivos deste trabalho. A todos os professores que, de diversos modos, contribuíram fundamentalmente para minha formação e para a minha escolha pela carreira na docência. Em especial, à Profa. Dra. Doris Wieser, pela acolhida, pelas boas conversas, e por ter me oferecido apoio em um momento essencial. Aos meus amigos, em Pedregulho, Franca, Araraquara, Santo Estevão, Coimbra e Cracóvia, que sempre caminharam ao meu lado e demonstraram que, ainda que a pós-graduação seja uma estrada solitária, eu nunca estive sozinho. À Isabella Vido, pela companhia infalível desde o primeiro dia que entrei na universidade, e que segue mesmo com um oceano de distância; à Verônica Machi, por ser a pessoa que melhor me entende no universo e que proporciona as pequenas alegrias no meio do cotidiano atribulado; à Amanda e Isabela, por todas as fixações divididas e assuntos infinitos para discutir; À Maria Clara Reis, minha amiga de infância, em quem encontro o conforto certo para partilhar todas dificuldades e conquistas. A todas as pessoas que sempre se fazem presentes e com quem é um prazer compartilhar a vida: à Mariana Nogueira, ao Yago Cipoleta, à Carolaine Tomaz, ao Alexandre Luiz, à Ana Emília, ao Anderson Alves, à Kinga Rzeszutek, à Marina Hachich, ao Rafael Cardoso, à Josie Carla, à Celiane Vieira e à Luana Scarpini. Aos meus colegas e alunos do Colégio Natureza e da Escola Estadual Prof. Victor Lacôrte, pelas experiências trocadas nesse início da minha atuação como professor, em particular à Nucy Maggioni, Ana Carina e ao Lucas Zaffani. A esta universidade, UNESP/FCLar, e seu corpo de docentes e servidores, que mesmo com os percalços e precarizações do ensino superior público neste país, propiciaram-me um ensino gratuito e de qualidade, além de experiências e contatos com outras instituições e culturas que eu nunca imaginaria alcançar. Os oito anos deste vínculo, até agora, ampliaram e transformaram profundamente meus horizontes. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. [...] A beleza – Sempre foi Um motivo secundário No corpo que nós amamos; A beleza não existe E quando existe não dura. A beleza ᅳ Não é mais do que o desejo Fremente que nos sacode... ᅳ O resto é literatura. António Botto (2018, p. 36) To be a monster is to be a hybrid signal, a lighthouse: both shelter and warning at once. Ocean Vuong (2019, p. 11) RESUMO No quadro literário de Portugal, especificamente no percurso da campanha naturalista no fin- de-siècle, é possível destacar a relevância e a repercussão da publicação de ciclos de romances dedicados ao estudo das chamadas “degenerescências sociais”, como a série em cinco volumes Patologia Social, de Abel Botelho, e a Tuberculose Social, de Alfredo Gallis, que conta com mais de dez títulos. Seguindo o método do romance experimental defendido por escritores proeminentes como Zola, os autores dedicam-se à identificação e análise das “enfermidades” que acometiam o povo português, com a pretensão pedagógica de oferecer um alerta aos membros da sociedade para urgência de controlá-las antes de uma putrefação total. Em consonância com a difusão dos estudos médicos-científicos sobre as práticas sexuais desviantes, que despontavam desde meados do século XIX, a homossexualidade também é diagnosticada dentre essas patologias, entendida como “aberração” ou “inversão”, e é levada aos “microscópios” dos escritores naturalistas, que nas suas séries escrevem obras especificamente destinadas ao seu exame: O barão de Lavos (1891), de Botelho, e Sáficas (1902) de Gallis, que, respectivamente, tratam da homossexualidade masculina e feminina. À vista disso, a partir da leitura em justaposição crítica da obra de Botelho e Gallis, o que aqui se propõe é uma análise dos elementos que definem as abordagens das sexualidades dissidentes nos romances dedicados ao tema. O objetivo é evidenciar os diálogos e afastamentos de seus propósitos literários, e como os retratos da sociedade portuguesa esboçados nessas narrativas aproximam e distanciam-se dos princípios do naturalismo ao centralizar relações homossexuais femininas e masculinas pelo viés patologizante, mas com episódicas aberturas para expressões empáticas e licenciosas, examinando as manifestações dos desejos interditos nas diferentes trajetórias das protagonistas “degeneradas”. Palavras – chave: Literatura portuguesa; Naturalismo; Dissidências Sexuais; Abel Botelho; Alfredo Gallis. ABSTRACT In the realm of Portuguese literature, particularly during the naturalist campaign at the end of the nineteenth century, it is possible to emphasize the significance and impact of the publication of series of novels dedicated to the study of the so-called "social degeneracies", such as the five-volume series Patologia Social, by Abel Botelho and Tuberculose Social, by Alfredo Gallis, which included more than ten titles. Following Zola’s model of the experimental novel, these authors were dedicated to the identification and analysis of the "diseases" that plagued Portugal’s social structure, with the pedagogical aim of alerting members of society to the urgency of controlling them before a complete putrefaction. In consonance with the dissemination of medical and scientific studies on deviant sexual practices, which emerged since the mid-eighteen hundreds, homosexuality was also diagnosed among these pathologies, understood as "aberration" or "inversion", and was brought under the "microscopes" of the naturalist writers, who, within their series, wrote books specifically focused on its examination: Botelho's O barão de Lavos (1891), delving into male homosexuality, and Gallis’ Saphicas (1902), addressing female homosexuality. Based on this, through a critical juxtaposition of the works of Botelho and Gallis, the aim of this investigation is to analyze the elements that define the approaches to dissident sexualities in their novels dedicated to this subject. The main goal is to highlight the dialogues and differences between their literary purposes and how the portrayals of Portuguese society in these narratives align and diverge from the principles of naturalism by centralizing female and male homosexual relationships through a pathologizing lens. Yet, these narratives also feature occasional openings for empathetic and licentious expressions, making it important to understand how the forbidden desires are embodied in the trajectories of the “degenerate” protagonists. Keywords: Portuguese Literature, Naturalism; Sexual dissidence; Abel Botelho; Alfredo Gallis. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 13 2 SEXUALIDADES DISSIDENTES NO FIN-DE-SIÉCLE: A ABORDAGEM NATURALISTA ......................................................................................................... 18 2.1 A ESTÉTICA NATURALISTA: CIÊNCIA E SUBALTERNIZAÇÃO ..................... 18 2.1.1. Conferências e prefácios em Portugal: o naturalismo se fez carne (com vareja) e habitou entre nós... ..................................................................................................................... 22 2.1.2. Ovelhas negras e filhos libertinos: perspectivas plurais dos naturalismos ................... 33 2.2 LITERATURA PORTUGUESA E SCIENTIA SEXUALIS ......................................... 36 3 A INVENÇÃO DE GANIMEDES: HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA NA OBRA DE ABEL BOTELHO ................................................................................... 44 3.1 ABEL BOTELHO: NOTAS SOBRE SUA PRODUÇÃO E RECENSÃO ................. 44 3.2 CIÊNCIA, HISTÓRIA E MITO: A “GENEALOGIA DOS VÍCIOS” ........................ 51 3.3 O PINCEL NATURALISTA: OS ESCANDÂLOS E OS PRAZERES DA ARTE .... 56 3.4 O PEDERASTA E O EFEBO: A DEGENERAÇÃO PEDAGÓGICA ....................... 62 3.5 UMA ALMA TRASLADADA EM GRAVURA: A PERSISTÊNCIA DO RAPTO DE GANIMEDES ................................................................................................................ 69 3.6 AS ARMAS E OS BARÕES ASSASSINADOS: AS MORTES DE D. SEBASTIÃO .. ...................................................................................................................................... 78 4 OS MISTÉRIOS DE SAFO: HOMOSSEXUALIDADE FEMININA NA OBRA DE ALFREDO GALLIS ............................................................................................ 84 4.1 ALFREDO GALLIS: NOTAS SOBRE SUA PRODUÇÃO E RECENSÃO .............. 84 4.2 CHERCHEZ LA FEMME! O PREFÁCIO E OS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO FEMININA NO FIM-DE-SÉCULO ............................................................................ 93 4.2.1 Retratos da preceptora inglesa na literatura portuguesa ............................................. 101 4.2.2 Lésbicas no cotidiano, na história e nas ciências ........................................................ 106 4.3 A DONZELA, A FILÓSOFA E O VAMPIRO: AS SÁFICAS DESCRITAS POR SÁFICAS ..................................................................................................................... 111 4.4 AS SENHORAS DE FAMÍLIA: O REFORÇO DO EXEMPLO POSITIVO ........... 124 4.5 ESCAPAR DA OCIDENTAL PRAIA LUSITANA E ERIGIR NOVO REINO LIBERTINO ............................................................................................................... 129 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 134 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 137 APÊNDICE A – QUADRO DE EXPRESSÕES UTILIZADAS PELO NARRADOR PARA QUALIFICAR A HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA N’O BARÃO DE LAVOS .......................................................................................... 146 APÊNDICE B – QUADRO DE EXPRESSÕES UTILIZADAS PELO NARRADOR PARA QUALIFICAR A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM SÁFICAS .................................................................................................................... 151 DADOS CURRICULARES ..................................................................................... 154 13 1 INTRODUÇÃO David Baguley (1990), em sua visão entrópica do naturalismo literário desenvolvido na Europa a partir da segunda metade do Oitocentos, e em específico na França, postula que “no cerne da visão naturalista, há uma poética da desintegração, dissipação, morte” construída a partir de um “repertório de vidas desperdiçadas, de forças destrutivas, de energias gastas, de estruturas sociais e morais em ruínas” (p. 222, tradução nossa)1. Assim, os romances naturalistas operam um deslocamento da ordem para a desordem, do equilíbrio mental para a histeria, da retidão moral para a corrupção. A sexualidade é um dos agentes dissolutivos pelos quais a solidez das estruturas, normas e distinções sociais e o vigor dos corpos humanos são constantemente desafiados e esfacelados. Ao lado da hereditariedade, das doenças e das obsessões psíquicas, as práticas sexuais são perscrutadas pelos procedimentos narrativos da estética naturalista, como o emprego efusivo do subsídio das ciências naturais de seu tempo. Contudo, a abordagem das teorias científicas não se aplicava pelas concepções favoráveis da humanidade, mas justamente em seu viés desumanizador, nas tiranias e destinos degradantes, de homens e mulheres de todas as estirpes, ocasionados pelos fatores naturais. A prevalência de tais temáticas marca também a controvérsia do movimento junto ao público e à crítica coeva. Rejeitado e diminuído por seus “excessos”, ao mesmo tempo em que era procurado pela curiosidade gerada pelas “escabrosidades”, o naturalismo motivou polêmicas exaltadas nos circuitos literários e artísticos. O seu [escritores naturalistas] trabalho foi atacado pelos seus contemporâneos, não por ser sórdido e corrupto, mas porque desmanchava os mitos que disfarçavam o sórdido e o corrupto. Ofereciam imagens de ruptura a uma época que procurava desesperadamente a continuidade, de fracasso a uma época curvada ao sucesso, de desordem e atrofia ao invés da regularidade e do progresso, de fissuras nas relações de causa e efeito, de alicerces apodrecidos de edifícios orgulhosamente construídos. [...] Na época em que o homem descobriu a origem das espécies, eles desvelaram uma crise na espécie humana, traçando o descenso do Homem e a queda da Mulher (Baguley, 1990, p. 218, tradução nossa).2 1 No original, em inglês: “At the heart of the naturalist vision, then, there is a poetics of disintegration, dissipation, death, with its endless repertory of wasted lives, of destructive forces, of spent energies, of crumbling moral and social structures […]”. 2 No original, em inglês: Their [naturalist writers] work was attacked by their contemporaries, not because it was sordid and corrupt, but because it undermined the myths that disguised the sordid and the corrupt. It offered images of disruption to an age that desperately sought continuity, failure to an age bent on success, disorder and atrophy instead of regularity and progress, chinks in the chains of cause and effect, the rotting foundations of proudly constructed edifices. […] In the age when man discovered the origin of species, they uncovered a crisis in the human species, tracing the descent of Man and the fall of Woman.” 14 Esse reconhecimento da sexualidade como elemento de disrupção das pressupostas estabilidades da moralidade burguesa oitocentista, e nomeadamente de suas “amostras” não- hegemônicas, posto que no naturalismo coloca sua lupa sobre as existências marginais e “as inversões, reversões e perversões se tornam as normas”3, constitui o foco e o rumo deste trabalho de investigação, com o olhar voltado às manifestações estéticas na literatura portuguesa finissecular. Os primeiros contatos com o tema, que estimulariam esta pesquisa, foram na sala de aula do curso de graduação em Letras em 2018, acompanhando a disciplina de “Narrativa Portuguesa II”, ministrada pela Profa. Dra. Renata Junqueira. Quando o curso, após uma produtiva incursão pelas obras de Eça de Queirós e outros autores inseridos no contexto do naturalismo português, chegou à obra de Abel Botelho, nomeadamente O barão de Lavos (1891) e a série Patologia Social, fui surpreendido pela temática do romance, que centraliza o desejo e a subjetividade homoerótica masculina, e pela linguagem científica e patologizante dos trechos lidos e discutidos. No intuito de me aprofundar no assunto, desde esse primeiro momento decidi que direcionaria meus estudos com mais atenção para o cruzamento entre os estudos de gênero e sexualidade e o naturalismo. Poucos meses depois, tive a oportunidade de assistir à disciplina concentrada oferecida pela Profa. Dra. Anna Klobucka, intitulada “Sexualidades Dissidentes no Modernismo Português”. No excelente panorama da representação da dissidência sexual no decurso da literatura portuguesa feito pela professora, muito solícita em compartilhar suas referências bibliográficas, encontrei o nome de Alfredo Gallis e do seu romance Sáficas (1902), pertencente ao ciclo Tuberculose Social, e intrigou-me a semelhança e proximidade com o projeto de Botelho, desta vez direcionado às relações lésbicas. A leitura dos romances dos autores naturalistas em justaposição crítica se mostrou um caminho de investigação significativo a ser explorado. No ano de 2019, com a obtenção de uma bolsa de graduação-sanduíche pelo Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI/CAPES) na Universidade de Coimbra, em Portugal, pude mergulhar no estudo da literatura portuguesa, frequentando disciplinas específicas sobre as vogas realistas/naturalistas e ter contato com as edições raras de livros que teria dificuldade de encontrar em outros lugares, o que me motivou a seguir na área. Ao retornar ao Brasil, escrevi o trabalho de conclusão de curso que se transformaria no projeto para ingresso na pós- graduação. 3 Ibidem, p. 210. 15 Esta dissertação nasceu da inquietação devida ao fato de que, apesar das menções por vários pesquisadores acerca da presença da homossexualidade (masculina e feminina) nas obras de Botelho e de Gallis e dos breves paralelos de inspiração indicados nos seus ciclos naturalistas, ainda não existiam trabalhos de fôlego dedicados ao cotejo das duas séries naturalistas e aos limites de suas diferenças e similaridades. Assim, o presente estudo se lança ao desafio de contribuir para o preenchimento deste espaço nos estudos literários, no esforço comparativo de analisar os métodos de ambos romancistas para a apropriação das doutrinas naturalistas; dos discursos médicos, históricos e míticos; e dos eventos e polêmicas envolvendo gays e lésbicas presenciados na sociedade portuguesa do fim-de-século para construírem narrativas e protagonistas correspondentes aos seus respectivos projetos, estilos literários e ao público a que endereçavam seus romances. Sáficas e O barão de Lavos, com o óbvio peso do seu prisma patológico, são obras que não hesitam em conceder protagonismo aos desejos interditos e da homossexualidade desviantes, território que muitos naturalistas abordaram somente de maneira secundária, e entendê-las é também perceber como mobilizaram o debate (e o interesse) crítico e popular, e como afetaram e possibilitaram a abertura de outros caminhos representativos (Lugarinho, 2001). A fim de executar esta proposta de investigação, a dissertação divide-se em três partes. O capítulo inicial, “Sexualidades dissidentes no fin-de-siécle: a abordagem naturalista”, apresentará um panorama geral da literatura naturalista, partindo do lugar-comum de seus sustentáculos no método experimental de Émile Zola e posicionando os princípios teóricos e as obras teóricas produzida pelo braço português do movimento, na tentativa de perceber as bases e implicações de mecanismos recorrentes da estética. Os prefácios doutrinários que costumavam acompanhar os romances são essenciais para nossa leitura, uma vez que os ficcionistas utilizam largamente este espaço para a exposição dos seus projetos e de suas concepções de literatura. A intenção é problematizar a posição subalterna e a resistência que a corrente enfrenta por parte da historiografia tradicional e do público atual, ao convocar referenciais de análise que apontam para as possibilidades plurais de concretização e recepção do naturalismo no contexto do século XIX, e o escoamento de muitos dos seus princípios pelos períodos posteriores, que nos permite entender a existência de diferentes vertentes da estética e sua esfera transnacional e trans-histórica. Este capítulo de abertura também recopila algumas considerações sobre a “invenção” da homossexualidade nos estudos médicos e científicos da sexologia efervescente nas décadas que abrangem a publicação dos romances naturalistas, e os 16 seus contrapontos e contiguidades com o discurso social e literário português erigido através dos séculos. Feitos estes apontamentos iniciais, o capítulo seguinte “A invenção de Ganimedes: homossexualidade masculina na obra de Abel Botelho” dedica-se ao exame do romance O barão de Lavos (1891). Iniciando com breves discussões da trajetória literária e recepção crítica de Abel Botelho, pretenderemos indicar a sua inserção no naturalismo para além da “ortodoxia” e pelos “excessos” pelos quais se tornou conhecido na historiografia literária, buscando perceber as “pinceladas” descritivas que lhe posicionam na vertente decadentista do movimento e localizar as propagações do perfil médico da “inversão sexual” na definição do protagonista, D. Sebastião de Castro e Noronha, que antecedem a elaboração cientifica metódica pelos fisiologistas portugueses. Os subcapítulos desta seção buscarão desenvolver os elementos do retrato da homossexualidade no texto botelhiano, como a presença estruturante da arte pictórica no enredo e sua associação com o desejo homoerótico; a repetição e reatualização do paradigma da pederastia grega nas relações masculinas homossociais e sua interferência decisiva e “degeneradora” no triângulo afetivo estabelecido no romance; os contornos políticos do romance em sua denúncia da educação deficitária e da falência nacional, além de estabelecer como as concessões “empáticas” feitas pela narração do romance em relação ao protagonista “invertido” abrem caminho para a visibilidade de angústias subjetivas que extrapolam os limites da narração patologizante. No último capítulo, “Os mistérios de Safo: homossexualidade feminina na obra de Alfredo Gallis”, dedicamo-nos a detalhar os aspectos de Sáficas (1902). A partir da fama de pornógrafo e do envolvimento do autor com a literatura licenciosa, o capítulo esforça-se em definir os múltiplos perfis de lésbicas criados por Gallis, naturalista que definitivamente se aproveita da abertura libertina de sua carreira literária para compor variados perfis de personagens homossexuais. Para isso, nos debruçaremos, ademais dos substratos médicos e míticos citados diretamente no proêmio, sobre os valores que organizam a educação das filhas das elites em Portugal na viragem do século, no intento de identificar as nuances do cooptação da temática da instrução feminina gerida pela figura da preceptora estrangeira como ameaça à “pureza” da feminilidade portuguesa, através do perfil da “invertida inata” de miss Katie Watterson. Da mesma forma, buscaremos assinalar a particularidade que esse romance representa na voga naturalista, por balancear a presença de um reforço positivo e de um final que não condena as personagens “viciosas”. 17 Ao longo de todo o trabalho, também nos parece fundamental revisitar a fortuna crítica a respeito de Botelho e Gallis para construir diálogos com outros trabalhos acadêmicos e agregar aos estudos sobre os autores naturalistas, que ainda carecem de mais envolvimento acadêmico para rever os processos de apagamento que sofreram, principalmente no caso de Gallis. Por fim, indicaremos as últimas considerações desta investigação, reunindo as conclusões da leitura em justaposição crítica dos textos de Gallis e Botelho. Após essa seção final, acrescentamos ainda dois apêndices de nossa autoria, que ilustram uma tentativa de aproximação sistemática ao retrato da homossexualidade nos romances, organizando uma listagem de todas as expressões qualificadoras empregadas pelos narradores dos textos para assinalarem a natureza homoerótica das subjetividades e dos envolvimentos afetivos e sexuais instituídos entre os seus respectivos personagens centrais, com o objetivo de ressaltar a recorrência dos termos cientificistas e das heranças das mitificações da antiguidade grega. 18 2 SEXUALIDADES DISSIDENTES NO FIN-DE-SIÉCLE: A ABORDAGEM NATURALISTA 2.1 A ESTÉTICA NATURALISTA: CIÊNCIA E SUBALTERNIZAÇÃO Em Thérèse Raquin, eu quis estudar dois temperamentos e não duas personalidades. Este é o livro todo. Escolhi personagens soberanamente dominados por seus nervos e sangue, desprovidos de livre arbítrio, conduzidos a cada ato de suas vidas pelas fatalidades de sua carne. Thérèse e Laurent são bestas humanas, nada mais. [...]. Simplesmente fiz em dois corpos vivos o trabalho analítico que os cirurgiões fazem nos cadáveres.” (ZOLA, 1867, p. 5-6, tradução nossa) O excerto de Émile Zola, retirado do célebre prefácio à segunda edição do romance Thérèse Raquin, de 1867, considerado marco pioneiro no que concerne à elaboração dos princípios que regeram a estética do Naturalismo, nos introduz à afinidade que a literatura estabelece com a ciência e com o quadro social do século XIX. A “cartilha naturalista”, que em uma visão cronológica tradicionalista, “coexistindo e sobrepondo-se ao realismo do século XIX, [...] desenvolve-se a partir da década de 60 e pode considerar-se esgotado como modelo literário no final do século” (Santana, 2007a, p. 74), rege-se por esse desejo de expor, sem qualquer escrúpulo, as mazelas sociais e mostrar as relações humanas – de ódio, sexo, amor e culpa – pelo viés patológico, das “desordens orgânicas”, propondo a anatomia de personagens determinadas pela tríade hereditariedade, influência do meio e educação. Para utilizar a imagem elaborada por Moisés (1990), enquanto o romance realista manuseava a podridão social usando luvas de pelica, em atitude de quem sente repulsa pelos males sociais, ainda que queira saná-los, o naturalista, dominando as suas náuseas e recorrendo à ciência, colocaria luvas de borracha e chafurdaria as mãos nas depravações sociais para dissecá-las com precisão técnica e científica. Os fundamentos da escola são resultados do cruzamento das descobertas e desenvolvimento de teorias científicas que se propagaram amplamente durante o século XIX (Cunha, 2017), com a difusão do discurso positivista e determinista, estimulado pelos postulados de Comte (1798-1857) e Taine (1828-1893); da medicina experimental, de Claude Bernard (1813-1878); e da divulgação dos estudos no campo da biologia e evolução, com respaldo nos trabalhos de Herbert Spencer (1820-1903) e Charles Darwin (1809-1882). Essa euforia com a ciência foi transmitida à esfera literária, e inicia-se um movimento de aplicação das práticas de observação e análise científica também na arte, na tentativa de olhar para os indivíduos, numa aproximação máxima da realidade, e reconhecer as influências dos fatos sociais e as condições fisiológicas que definem a sua experiência no mundo. Nessa 19 vertente, o romance é o veículo mais apropriado para o “aprofundamento descritivo dos mecanismos e das condições psicológicas e sociais” (Cunha, 2017, p. 47). O apelo científico, na conjuntura desta literatura finissecular, não se restringe ao simples interesse temático ou mesmo à função de assegurar a verossimilhança da obra, mas é entendida como uma marca de originalidade, uma ferramenta potencial e significativa para a transformação e modernização do gênero romanesco (Baguley, 1990, p. 63). As esquematizações de Émile Zola, expressas em sua extensa produção literária e em seus trabalhos de discussão crítica, teórica e historiográfica da literatura francesa, tornaram-se referencial inescapável e ofereceram os padrões assimilados em diversos estudos do naturalismo (Baguley, 1990, p. 13). O romancista, apesar de ocasionalmente recusar o título, emerge como “chefe de escola”, o “novo imperador” da hegemonia naturalista4 que buscava caracterizar e difundir em seus escritos. Nesse sentido, ensaios como “Le Sens du réel” (1878), “Le Roman expérimental” (1879), “Les Romanciers naturalistes” (1881), e “Le Naturalisme au Théâtre” (1881) são de fundamental relevância. Zola, apropriando-se dos critérios esquemáticos de Claude Bernard, propôs o “romance experimental” como o formato que corresponde de modo mais adequado ao espírito da época, a “consequência da evolução científica do século” (Zola, 1982, p. 46). A execução deste novo paradigma exigiria também um outro perfil de escritor, que fosse simultaneamente “observador” e “experimentador”: a partir da dúvida, da observação do comportamento anômalo e misterioso, cabe ao romancista promover uma experiência, destrinchar os elementos envolvidos e conduzir os fenômenos para revelar a verdade dos fatos, isto é, como os seus mecanismos funcionam conforme as leis da natureza. À vista disso, Baguley (1990, p. 45) descreve como Zola reforçava o naturalismo não somente como uma escola ou um trabalho de um autor/grupo específico, mas antes de tudo como a aplicação de um método (experimental). O pesquisador ainda aponta alguns dos recursos empregados pelo teorizador francês, principalmente no início de sua campanha, para a construção da defesa combativa dos princípios da corrente e para condecorar os esforços de renovação literária propostos por ele e seus coligados. Por exemplo, o arranjo de suas interpretações da historiografia literária, utilizando grandes nomes – como Diderot, Stendhal, Balzac e Flaubert – para a concepção de uma “tradição mítica” das quais os naturalistas descendiam (e seriam continuadores) e, evidentemente, o desejo de acentuar de maneira incisiva 4 “The naturalists legions are winning the day, he asserts, and, despite his frequent disclaimers – ‘Je ne suis pas un cheg d’école, et je raie gaiement cela de mes papiers’ (XIV, 510) – Zola himself implicitly emerges as the new Imperator of this naturalist hegemony” (Baguley, 1990, p. 13). 20 a oposição aos ideais do romantismo – representado pela linhagem de Rousseau, Chateaubriand e Victor Hugo – visto como uma estética em franca decadência e fadada a ser vencida pela “nova ideia”5. Dentre seus argumentos para a superação da exacerbada imaginação romântica, o autor de Thérèse Raquin ressalta o imperativo da prevalência do “senso do real”: Insisto nesse declínio da imaginação porque vejo nisso a própria característica do romance moderno. [...] O grande negócio é colocar em pé criaturas vivas, representando diante dos leitores a comédia humana com a maior naturalidade possível. Todos os esforços do escritor tendem a ocultar o imaginário sob o real. [...] depois do senso do real, há a personalidade do escritor. Um grande romancista deve ter o senso do real e a expressão pessoal. (Zola, 1995, p. 24-30) Esses pressupostos resumem as linhas gerais do programa literário em voga na segunda metade do século XIX, e são a justificativa para a existência e publicação de diversos romances, e nomeadamente, das séries naturalistas que se dedicam ao estudo das “asperezas” e “hipertrofias” da sociedade oitocentista, como o ciclo dos Rougon-Macquart, de Zola, série de vinte romances publicado entre 1871 e 1893, voltada para as minudências da “história social e natural” de uma família marcada pela bastardia, seus fardos hereditários e a degradação da conjuntura coletiva que os circunda. Assim como as contribuições de Zola, as controvérsias em torno da recepção dos textos naturalistas na França também são um ponto crucial para a compreensão das nuances do movimento, e já foram amplamente apuradas e debatidas. As enérgicas querelas entre escritores, críticos e leitores reiteravam as posições divergentes acerca das obras e dos seus pressupostos teóricos. De um lado, defendia-se a sua validade como produto de um novo método; do outro, avultavam-se ataques, permeados por pensamentos conservadores e moralistas, à “sordidez” e “perniciosidade” dos episódios e personagens descritos (Baguley, 1990, p. 43). Esse ponto de vista negativo, que limita o naturalismo ao tratamento de assuntos “escandalosos” e “putrefatos”, reproduzido entre várias opiniões do público e da crítica, acabou por enraizar muitas das preconcepções e rótulos desdenhosos que perduraram nos períodos posteriores, e que se arrastam na forma como muitos manuais literários avaliam-no em retrospecto. Frente a esses julgamentos, uma estratégia comum era que os escritores “invocassem os contextos filosóficos, científicos e artísticos de suas obras como uma defesa contra os ataques aos conteúdos de seus textos literários”6, revelando uma determinada coerência nas definições 5 Ibidem, p. 13. 6 Ibidem, p. 42, tradução nossa, grifos originais. No original, em inglês: “Thus it frequently occurred, particularly in France, that in the heat of polemical exchanges raised by the appearance of naturalist texts, writers would invoke 21 do naturalismo em ascensão, uma vez que podemos encontrar noções discrepantes entre as distintas tentativas de teorização da escola. No primeiro contexto, é possível encaixar os argumentos que tendem a integrar o naturalismo em uma esfera filosófica mais ampla, como as afirmações generalizantes de Zola que o delineiam como elemento intrínseco à evolução da inteligência moderna, ou as interpretações que visam situar naturalismo e materialismo como conceitos unívocos, isto é, centralizam a noção de que todos os fenômenos são explicáveis por suas origens fixadas em fatos naturais recorrentes e cognoscíveis; A premissa científica é justamente a sua abstração como método abrangente, e que logo, é livre para ser aplicado em quaisquer tópicos que precisem ser analisados com objetividade, sejam eles “indigestos” ou não; Por fim, a justificativa artística refere-se a insistência na função essencial da arte como mimese absoluta da realidade. Nessa percepção, a formulação de uma estética naturalista que polemizava em favor do estabelecimento de suas “credenciais miméticas”7 expressava o intento de abster-se, ao menos em teoria, das próprias condições, expectativas e restrições inerentes a sua existência enquanto literatura, categorizada em gêneros delimitados. Obviamente, as contradições presentes nas relações entre ciência, realismo e literatura indicadas pelo autor dos Rougon-Macquart não escaparam ao escrutínio da crítica. Se para a concepção de uma obra, após o senso do real, é importante a “personalidade do escritor”, ou seja, se um grande romancista une “o senso do real e a expressão pessoal” (Zola, 1995, p. 30), ainda que esta expressão esteja submetida ao “controle da verdade”, ela não deixa de ser individual (Berretini, 2017, p. 120). Logo, o que se projeta é uma defesa paradoxal, que tenta conciliar a imparcialidade científica e o “temperamento” subjetivo, sendo este último também uma das premissas fundamentais do Romantismo, censurado com frequência pelo naturalista. Do mesmo modo, concretizar a aplicação absoluta de um método experimental na esfera literária esbarraria em evidentes entraves epistemológicas, uma vez que o “romance não se desenrola no mundo real, da experiência científica, e sim num mundo imaginário, sujeito à arbitrariedade do escritor”8. Assim, Baguley (1990) expõe como o trabalho doutrinário/literário de Zola, mais do que organizador de uma cartilha fixa e proselitista para ser seguida à risca, como muitas vezes é apresentado, é, na verdade, notável por manifestar com profusão todos esses valores estéticos the philosophical, scientific or artistic contexts of their works as a defense against attacks on the contents of their literary texts”. 7 Ibidem, p. 44-49. 8 Ibidem, p. 121. 22 em suas complexidades e dissonâncias, das quais o próprio romancista demonstrava estar consciente. Congregando perspectivas de importantes estudiosos da obra zoliana, como Henri Mitterand e Aimé Guedj, o pesquisador indica que, por mais que se possa desconfiar dessas teorizações e pontuar as impraticabilidades do romance experimental, não se pode negar que são posturas bastante compreensíveis quando vistas à luz de sua profunda conexão e atenção ao clima artístico e intelectual de seu tempo (intensamente marcado pelo impacto científico), e pelo seu contexto de circulação. As acirradas farpas trocadas em artigos e prefácios são partes integrantes da vida literária oitocentista, no que se justifica o intuito de polemizar para afrontar as formas canônicas e criar um discurso que imponha a credibilidade de novas estéticas que visam a revitalização das normas literárias. Assim, para Berretini (2017), a atuação renovadora exercida pelo autor na literatura francesa é incontestável, bem como a sua importância para a delineação de tendências que se estenderiam nos romances publicados nas décadas posteriores, dentro e fora da França. Afora o nome de Zola, outras figuras notáveis constituem a “constelação” do movimento: Os encontros e jantares literários de Flaubert, Edmond de Goncourt (os “mestres”, junto com Zola), Guy de Maupassant, Josi-Karl Huysmans, Paul Alexis, Henry Ceárd, Octave Mirbeau e León Hennique (“os discípulos”9) – como o conhecido episódio do dîner Trapp – e a composição do grupo de Médan10, são acontecimentos que nos auxiliam na compreensão da cronologia e dos enredamentos do naturalismo francês, e também da amplitude de possiblidades narrativas dos escritos desses autores, para além da ideia de que o modelo zoliano era o único a prevalecer. 2.1.1. Conferências e prefácios em Portugal: o naturalismo se fez carne (com vareja) e habitou entre nós... Ao olhar para as manifestações literárias em Portugal no Oitocentos, a análise de Santana (2007a, p. 63) assinala que as referências ao naturalismo começam a ser registradas na 9 Essa distinção entre “mestres” e “discípulos” aparece na nota publicada pelo periódico La République des lettres, que noticia o encontro dos “entusiastas do naturalismo”, e busca satirizar até o provável menu servido no jantar, do dia 16 de abril de 1877, no restaurante parisiense La Trapp: com “sopa de purê Bovary”, “truta à Fille Elisa” e “licor d’L’Assommoir”. Essa reação midiática acerca do jantar, segundo Baguley (1990, p. 16), demonstra que em algum nível, apesar das ironias, já se construía e divulgava o discurso da formação de uma aliança para o estabelecimento de uma nova escola literária. Cf.: CEARD, Henry; CALDAIN, Jean de. Le Dîner Trap: Flaubert et Huysmans. Les amis de Flaubert, n. 6, Rouen, [s.d] 1955, p. 16-20. Disponível em: https://www.amis-flaubert- maupassant.fr/wp-content/uploads/bulletins/Bulletin_06.pdf. Acesso em 13 dez. 2023. 10 Data de 1880 a primeira publicação de Les soirées de Médan, coleção de seis novelas escritas por Zola, Maupassant, Huysmans, Céard, Hennique e Alexis, grupo que se reunia frequentemente na residência de Zola em Médan, fato que intitula a coleção. 23 sequência da tradução dos primeiros romances de Zola, o que, para a autora, significaria a recepção de uma “estética já constituída”. Se as soirées naturalistas são eventos catalisadores da agenda estética na França, a projeção do Realismo-Naturalismo em Portugal está tradicionalmente ligada à Geração de 70 e a organização das “Conferências do Casino”, uma intervenção cultural e política sem antecedentes na sociedade portuguesa, e de relevante impacto crítico e furor midiático. Em especial, destaca-se a conferência de Eça de Queirós, de 12 de junho de 1871, sobre “A nova literatura – o realismo como nova expressão da arte”. A conferência, em que Eça exprime as conclusões de suas leituras das obras de Proudhon e Taine, foi marcada pela justificação filosófica do realismo como “roteiro do pensamento humano”, a “anatomia do caráter” que se opõe à “apoteose do sentimento” do romantismo (Reis, 1990, p. 138). A filiação realista de uma obra não seria definida somente pela presença de um estilo descritivo “fotográfico”, mas pela conjugação de fatores essenciais: a busca de material na realidade contemporânea; o procedimento pautado pela experiência e pela abordagem científica dos “temperamentos”; e a direção sempre voltada aos ideais de justiça e verdade11. Logo, o intuito moral necessário para a constituição do “belo” é uma das principais bandeiras levantadas na exposição de Eça sobre a “nova literatura”: deve-se, ao menos, “tentar a regeneração dos costumes pela arte”12. Com a edição dos romances O crime do Padre Amaro (a primeira publicação ocorre em 1875) e O primo Basílio (1878), que evidenciam com franqueza as pretensões de desmascarar a hipocrisia do decoro burguês e denunciar a falência dos valores morais, familiares e religiosos, Antônio Apolinário Lourenço (2019, p. 25) aponta que o trabalho de Eça é uma expressão precoce dos parâmetros naturalistas (visto que já tinha mencionado em sua conferência de 1871 a importância de Madame Bovary como modelo para o romance realista da “nova literatura”) e demonstra a sua circulação em solo português antes mesmo de atingirem significância internacional no quadro romanesco europeu, alçados pelo êxito dos romances de Zola, como L’Assommoir (1877) e Nana (1880). Esse argumento acaba por desfazer a ideia de que o naturalismo seria uma ocorrência “superficial e tardia” (Lourenço, 2017, p. 146) em Portugal. Com base nisso, o investigador conclui: [...] os jovens escritores portugueses dispuseram muito cedo de um modelo de narrativa naturalista na sua própria língua, no exato momento em que se começava a discutir por toda a Europa o romance naturalista. [...] o Naturalismo português foi fortemente condicionado por três fatores: a influência internacional (particularmente de Zola e do Flaubert de Madame Bovary), a prática narrativa de Eça de Queirós (que 11 Ibidem, p. 141. 12 Ibidem. 24 proporcionava um exemplo português, a que nenhum outro escritor foi imune) e o policiamento levado a cabo pelos prosélitos do Positivismo (Lourenço, 2019, p. 26). Levando em consideração os apontamentos de Furst e Skrine (1971), podemos entender a ascensão transnacional do naturalismo, dado que o movimento se manifestou em tempos distintos nos diferentes países, e adquiriu características singulares em cada território, de acordo com as conjunturas e tradições específicas nacionais. Certamente, a concepção da estética realista-naturalista em Portugal estava imersa no que Eduardo Lourenço denomina como a “obsessão temática capital” do Oitocentos: “repor Portugal na sua grandeza ideal tão negada pelas circunstâncias concretas de sua medíocre realidade econômica, social e cultural” (1992, p. 87, grifos originais). A consciência do declínio e o esforço de operar o autognóstico/diagnóstico da realidade portuguesa se propagarão pelas conferências, artigos, prefácios e textos literários. As sucessivas intempéries que atravessam a nação lusitana definem o compasso turbulento do século XIX. A “ferida” que se abre em 1808, e que coloca Portugal como um país “invadido, emigrado ou subalternizado pela presença militar ostensiva do Estrangeiro”13 até 1820, continua a inflamar ao longo do século, com os embates políticos e civis entre absolutistas e liberais e a crescente crise no império colonial português14. Antero de Quental, em sua conferência “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos” expressa a infelicidade generalizada da Geração por “descobrir que pertencia a um povo decandente”15 e expõe uma análise das origens do esfacelamento nacional que trouxeram o país até a penúria dos tempos contemporâneos. O predomínio dos preceitos católicos, a manutenção do absolutismo e a dependência das colônias ultramarinas são, respectivamente, os agentes morais, políticos e econômicos da decadência, que na visão do grupo intelectual, cercearam as liberdades sociais, perpetuaram a degeneração dos costumes e a estagnação da indústria, criando uma camada aristocrática ociosa que os colocara na contramão do progresso “civilizacional” percebido nas outras nações europeias. A única saída estaria em “respeitar a memória dos avós, mas não os imitar”: romper com este passado e abraçar o espírito moderno, regido pela filosofia, pela ciência, pelo trabalho livre e a industrialização (Reis, 1990, p. 126). Para utilizar novamente as palavras de Eduardo Lourenço, “não é apenas a mera realidade histórico-política de Portugal que vai ser questionada ou quem 13 Ibidem, p. 86. 14 A crise é marcada pela independência do Brasil, em 1822, e acentua-se nas décadas posteriores, culminando no Ultimatum britânico já aos finais do século). 15 Ibidem, p. 90. 25 questiona os actores das Conferências: é a totalidade do seu ser histórico-cultural” (1992, p. 89). Santana (2007a, p. 97) concorda que somente é possível delimitar uma campanha realista-naturalista em Portugal a partir da publicação dos primeiros romances de Eça de Queirós e das controvérsias críticas em torno da estética do realismo de matriz científica. As produções críticas e doutrinárias desempenham papel elementar para a sua consolidação, e o novo coletivo de escritores encontrou espaço para divulgação dos seus escritos e para a discussão literária/ideológica em periódicos de Lisboa, Coimbra e Porto como O Século (1876), o Museu Ilustrado (1877), A Renascença (1878), Revista Científica e Literária (1880) e Revista de Estudos Livres (1882)16. Na sequência, a década de 1880 estabelece-se o momento de solidificação da corrente naturalista portuguesa, encontrando esta uma recepção mais favorável com a publicação de autores como Júlio Lourenço Pinto, Fialho de Almeida e Teixeira de Queirós. Júlio Lourenço Pinto, escritor que acabou por tornar-se “figura um pouco mais que apagada” (Castilho, 1996, p. 5) na história da literatura, é um nome significativo para o curso do naturalismo português e um de seus principais teorizadores. Em uma coletânea de artigos originalmente publicados na Revista de Estudos Livres, e compilados em 1884 sob o título de Estética Naturalista, apresenta uma tentativa de compreensão teórica das principais doutrinas e questões estéticas que orientavam a “novidade literária”, discutindo e rebatendo as principais críticas direcionadas aos romancistas que se aventuravam nas primeiras vogas realistas- naturalistas17. O romancista português enfatiza que a preferência pelo naturalismo na literatura é uma atitude artística que parte da análise para a síntese, circunscrita ao que é acessível na realidade e sustentada por um critério científico (Pinto, 1996). Ainda que a rigidez analítica pudesse evidenciar as “cruas asperezas da realidade” e as “hipertrofias dos sentimentos” (que seriam inevitavelmente consideradas doentias, e logo rejeitadas em nome da necessidade de “decoro” e correção moral ou pelo gosto por um lirismo pudico e distante do real)18, ela seria o triunfo da estética, que se afirmaria como mecanismo de instrução social. Pinto defende que os procedimentos naturalistas, autorizados e confiáveis para o retrato inescrupuloso dos sentimentos, costumes e paixões, não são uma permissão para a licenciosidade ou a lascívia: 16 Ibidem, p. 109. 17 No prólogo do romance Margarida (1879), Lourenço Pinto também pontuou O crime do Padre Amaro e O primo Basílio como o inicio no realismo em solo português, obras que sacudiram a “sonolência da intelectualidade nacional (Pinto, 1880, p. 3) 18 Ibidem, p. 85. 26 são a edificação de uma genuína força social, um “instrumento de civilização” e “subsídio histórico”19, comprometido e preocupado com o destino humano. É interessante notar como Lourenço Pinto concebe o confronto entre a estética romântica “agonizante” e a renovação realista “triunfante”. A identificação das duas estéticas reside, em seu cerne, em uma contínua transição de revolução e evolução. O romantismo é reconhecido por seu valor como um movimento revolucionário, pela ruptura com a necessidade de recorrer à imitação dos modelos clássicos, e a instituição de uma orientação voltada para as fontes “naturais”, bem como a busca por liberdade no uso da linguagem; o realismo, por sua vez, é visto como evolucionário, e surge como a satisfação de uma dupla necessidade: como uma forma de corrigir e complementar a empreitada emancipatória que o romantismo iniciou (e não concluiu20), fincando-se de modo definitivo na verossimilhança e no quadro da natureza cognoscível, e como transformação evolutiva natural da linha de pensamento antecessora21. Os artigos da Estética são relevantes também pelo diálogo que estabelecem com as proposições de outros intentos teóricos. Como salienta Barbieri (2023, p. 144), o autor refuta o demérito da imaginação sustentado por Zola para o romance moderno, preferindo estabelecer uma distinção entre imaginação e fantasia. Nos termos de Lourenço Pinto, a fusão entre a imaginação e as práticas baseadas nas ciências é perfeitamente aceitável, posto que a imaginação seria uma ferramenta de complemento das manifestações racionais, e não representaria nenhuma contrariedade ao processo de observação. Este talento de representar mentalmente por meio de imagens os objectos que não estão presentes aos nossos sentidos, e reproduzi-los veridicamente sob uma expressão adequada, é necessário a qualquer escritor [...] A imaginação intervém para completar a obra da razão. [...] Na imaginação residem duas grandes forças vivas que o escritor, e muito menos o artista podem dispensar – entusiasmo e espontaneidade criadora – as quais se nos afiguram perfeitamente conciliáveis com uma positiva orientação filosófica e com a observação fiel da realidade. (Pinto, 1996, p. 77-79). A fim de amparar o argumento, o autor utiliza como exemplo o trabalho dos paleontólogos para a produção de ilustrações e reproduções gráficas da biodiversidade que habitou o planeta em tempos remotos, investigadores que pintam as “transformações dos seres desde as primeiras formas zoológicas” e demonstram um exercício científico que “ficaria incompleto sem o concurso da palheta do pintor e da imaginação do artista” (Pinto, 1996, p. 19 Ibidem, p. 89. 20 Na percepção do autor, o romantismo “desviou-se” do caminho, por exceder o quadro natural e incorrer em “abuso da fantasia”, não conseguindo construir uma obra duradoura sobre as convenções clássicas que logrou revolucionar (Pinto, 1996, p. 86). 21 Ibidem, p. 86. 27 78). O grande problema ocorreria com a passagem dessa habilidade em empregar a imaginação para “completar e bem-vestir as ideias” para o campo da “ilusão ou da alucinação”22. Excedidos os limites da “verdade natural”, não se trataria mais de imaginação, e sim de exageros da fantasia. Compreender essa distinção seria a reflexão fundamental para qualquer escritor: “A imaginação é conciliável com a verdade; só a fantasia é sempre mentirosa”23. Nesse sentido, a imposição exclusiva do senso do real não é uma atitude que pode ser aplicada de maneira ampla no romance, pois, na elaboração artística-literária, a análise exterior dos fenômenos precisa ser transformada internamente para sua apreensão total, e a imaginação é o centro dessa “laboração interna” envolvida na “pintura” da natureza. Lourenço Pinto assim resume os contornos gerais do perfil do romancista moderno: O romancista tem de ser necessariamente colorista, imaginoso sem artificio fantasista, eloquente sem entornos retóricos no descritivo que pinta com vigor e precisão a vida real, exacto sem superfluidades nem exagero de minudências, límpido e vivaz no estilo sem derramadas eflorescências que prejudiquem a correção, a elegância e a nitidez do traço. (Pinto, 1996, p. 78). Tal delineamento nos leva à questão do temperamento individual, que Lourenço Pinto também considera como um dos atributos primários para a renovação estética, indicando que o estilo pessoal não se determina pela adesão à cartilha naturalista, mas pelo talento do escritor24. À visto disso, Barbieri (2023, p. 145) destaca que o resguardo da liberdade criadora é um aspecto substancial da teorização reunida na Estética, visto que os artigos rejeitam a ideia de um modelo estático e rígido vigente entre os naturalistas e ressaltam as particularidades de cada estilo, fato que parece ser ignorado pela crítica que procura na obra (de Lourenço Pinto e dos outros naturalistas) uma transposição exata dos textos doutrinários. O autor questiona: “Onde está essa uniformidade e essa monotonia na variada galeria dos modernos escritores realistas, destacando-se todos em uma multiplicidade de aspectos diversos?” (Pinto, 1996, p. 88). A única uniformidade do naturalismo, segundo Lourenço Pinto, está no compromisso com a verdade, compartilhado entre todas as figuras da corrente. Por exemplo, acerca dos grandes nomes internacionais, interroga “em que se confundem Balzac, Flaubert, Zola, Daudet, Ivan Tourguenef, Goncourt, Texier, le Senne, a não ser no acordo de todos em respeitarem a verdade natural?”25 e explica que a fórmula naturalista admite a variabilidade das propostas artísticas e a agência de cada autor, pois “tanto cabe a exactidão fotográfica de Flaubert, a 22 Ibidem. 23 Ibidem. 24 Ibidem, p. 75 25 Ibidem. 28 exuberância opulenta de Zola [...], o colorido pitoresco e a distinção dos Goncourt ou a fluência e a graça cintilante de Daudet [...], ou a precisão eloquente de Pascal.”26 Em relação à sua obra literária, que ainda carece de mais esforços de pesquisa, os escritos de Lourenço Pinto possibilitam o vislumbre da incorporação dos ciclos de romances no naturalismo português. Conforme Santana (2007a, p. 144), a estratégia de seriação romanesca, de tonalidade sociológica/zoológica que remete à Comédia Humana de Balzac, é recurso difundido entre os romancistas portugueses nessa etapa da segunda metade do século, uma vez que oferece a “coesão ideológica” para os projetos de estudo dos documentos humanos, possibilitando que seu alcance descritivo e classificatório dos comportamentos sociais (e também suas intenções morigeradoras e corretivas) seja expandido, além de representarem óbvio apelo comercial. Nessa linha está a planificação das Cenas da Vida Portuguesa, título conjecturado por Eça de Queirós para agrupar seus romances. As Cenas da Vida Contemporânea, formadas por cinco volumes27, são as “tentativas de interpretação”28 naturalista feitas por Lourenço Pinto, seu “intuito modesto” de se inserir criativamente no movimento e colaborar com o florescimento da escola, com a perscrutação da verdade e o preparo das gerações para o “gradual aperfeiçoamento do viver social” (Pinto, 1880, p. 4-5). Ainda nessa vertente, podemos localizar o duplo projeto de Teixeira de Queirós, a Comédia do Campo (1876-1915) e a Comédia Burguesa (1879-1919). Entretanto, seguindo a linha temporal delimitada por Santana (2007a), o romance científico “mais ortodoxo”, que seria feito à risca do modelo zoliano com que abrimos este capítulo, do qual Thérèse Raquin e o ciclo dos Rougon-Macquart são representativos, não teria registrado grande popularidade no cenário literário português. Só numa fase tardia, nos anos finais do século XIX e início do século XX, momento em que os “funerais” do naturalismo já foram declarados no resto da Europa, e depois que Camilo Castelo Branco já havia parodiado as convenções cientificistas da escola em romances como Eusébio Macário (1879), é que encontraria seus expoentes nos escritores epigonais (e que, na visão da estudiosa, precisariam desse excesso de ortodoxia para convencer), como no caso de Abel Botelho, com a série Patologia Social. 26 Ibidem, p. 75 27 Margarida (1879), Vida atribulada (1880), O senhor deputado (1882), O homem indispensável (1883) e O bastardo (1889). 28 Ibidem, p. 147. Ver também: Barbieri, op. cit. 29 O barão de Lavos (1891) é a obra que inaugura o ciclo patológico de Botelho29, considerado o primeiro a abordar centralmente o tema da homossexualidade masculina na literatura portuguesa. Na segunda edição do romance, o autor insere um prefácio que elucida os seus objetivos ao escrever a Patologia Social: [...] Dentro de tres formulas fundamentaes se encerra todo campo de acção da nossa individualidade, do nosso ipseismo, do nosso modo de ser social e intimo. De tres sortes de faculdades, apenas, depende a solução do problema da nossa vida: - faculdades de sentimento, de pensamento e de acção. Quando o valor de todas tres é egual, ou pelo menos equivalente, no modalismo organico de um individuo, este realiza o typo physiologico, banal, sem interesse para o meu ponto de vista. O predominio, porém, de qualquer d’essas faculdades, no doseamento d’um caracter origina desequilíbrios, aberrações e anormalismo pathologicos, os quaes fazem objecto dos estudos d’esta minha série de romances. O Barão de Lavos e o Livro de Alda pretendem ser a analyse de dois exemplares humanos tyrannisados pela diathese das faculdades affectivas, - o caso mais comum. (Botelho, 1898, VII). Isso remete-nos ao que disse Zola sobre a escolha dos personagens em Thérèse Raquin, com a preferência por personagens de “exceção”, “dominados por seus nervos e sangue”, seres desequilibrados e reduzidos aos instintos, anormais, acometidos por “perversões” sexuais e “degenerescências de caráter”. Assim, os indivíduos fisiologicamente comuns e estáveis são desinteressantes para o seu propósito e descartados dos romances da série, que se concentraram em sujeitos com algum desequilíbrio em algumas dessas três faculdades fundamentais que definem a experiência humana. Na verdade, o desejo de estudar os efeitos da “tirania” das faculdades afetivas sobre os indivíduos dialoga com o prefácio à segunda edição de outro texto basilar do naturalismo, Germinie Lacertoux (1864), dos irmãos Goncourt. Nesse paratexto, os autores expressaram o anseio de, ao invés da narração dos atos de prazer por uma maneira “decotada”, realizar a “clínica do amor” (Auerbach, 2013, p. 444), ao detalhar as passagens eróticas e o descenso físico e moral de uma empregada. O romance dos Goncourt é essencial ainda pela reinvindicação do povo proletário e das camadas sociais marginalizadas como objeto romanesco, atitude de ruptura com a ambientação aristocrática/burguesa generalizada dos romances, tema que será igualmente esquadrinhado na obra botelhiana30. 29 A Patologia Social é composta ainda por: O livro de Alda (1895), Amanhã (1901), Fatal Dilema (1907) e Próspero Fortuna (1910) 30 Auerbach (2013, p. 86) faz a ressalva de que, embora louváveis os esforços experimentais e inovadores do romance, o retrato das camadas empobrecidas pela lente dos irmãos Goncourt ainda é motivado pelo apelo estético da miséria humana e do patológico, sem confrontar a estrutura social que oprime o povo. 30 Em 1901, publica-se uma nova série “epigonal” de romances com enfoque naturalista, dedicados à análise das “moléstias” sociais do Portugal finissecular: a Tuberculose Social, de Alfredo Gallis. Desde o título escolhido pelo autor, já identificamos uma óbvia aproximação com a Patologia Social de Botelho. No prefácio do primeiro livro da série, Os Chibos, Gallis repete a mesma correspondência entre o ofício de escritor e o exercício médico (Mendes; Moreira, 2021): Se ao médico pertence estudar as doenças phisicas da humanidade, e, por meio do estudo e dos recursos da sciencia, procurar as causas que as determinam, fazendo perceber ao vulgo essas causas e ensinando-o a precaver-se contra ellas, ao escriptor compete, sem duvida, a autopsia dos males sociaes e, enterrando fundo o bisturi, ir descobrir através das enganadoras apparencias da derme setinosa e alva, o furúnculo pustuloso que sob ella se oculta. (Gallis, 1901, p. 5) Botelho e Gallis reclamam para suas obras exatamente a exposição das “pústulas” sociais, característica que Camilo Castelo Branco ironizava nos romances da “Ideia Novíssima”, no prefácio à quinta edição de Amor de Perdição, em 1879. Comparando com o período da primeira publicação do seu romance, no contexto romântico, em que existia a decência de ao menos “enflorar as pústulas” e não “devassar alcovas”, para que as moças e senhoras pudessem ler em suas salas e não escondidas nos quartos, sobriedade que seria desfeita com o êxito dos romances de cunho naturalista, em que “a carne com vareja” era pendurada para que todos a notassem (Castelo Branco, 1879, p. 11). Os livros que compõem a Tuberculose Social foram publicados entre 1901 e 1904 e totalizam doze volumes31. Seguindo o modelo dos ciclos patológicos, cada livro é destinado à abordagem de algum dos “males” verificados em todas as classes sociais e que contribuem para a degradação da sociedade portuguesa, como o alcoolismo, a prostituição e o adultério, visando alertar e demonstrar “onde reside o perigo que gera a doença, como ela avança e quais as suas causas e origens determinantes” (Gallis, 1901, p. 3). Da mesma forma que Botelho, a homossexualidade também figura entre os vícios diagnosticados por Gallis, que no sétimo volume da série, Sáficas32, publicado em 1902, dedica-se exclusivamente ao tema. Assim define o autor as razões que esclarecem a escolha por trás da denominação de seu ciclo romanesco: 31 Os chibos (1901), Os predestinados (1901), Mulheres perdidas (1902), Os decadentes (1902), Malucos (1902), Os políticos (1902), Sáficas (1902), A taberna (1903), A casa de hóspedes (1903), A sacristia (1903), Mulheres honestas (1903), Os pelintras (1904). 32 Neste trabalho optamos pela grafia atualizada do nome do romance, ao invés da grafia Saphicas que é utilizada na edição de 1933. Entretanto, as passagens do romance diretamente citadas manterão a forma do texto original da versão de 1933, e o mesmo será feito com os outros textos cujas edições datam dessa época ou antes. 31 Dei-lhe o título genérico de Tuberculose Social, como o mais complexo e proprio para explicar e definir a generalidade da doença, tanto mais que os modernos estudos pathologicos, ensinam que a tuberculose póde atacar qualquer outro membro do corpo humano, não sendo apenas restricta aos pulmões. Como o corpo, também a moral póde estar tuberculosa em qualquer das suas múltiplas e complexas manifestações. (Gallis, 1901, p. 8-9) Do mesmo modo que o contágio da patologia física ocorre pelo contato com um individuo infectado, a tuberculose – como patologia de ordem social/moral – propaga-se, na opinião de Gallis, com a convivência próxima dos sentimentos saudáveis com os “pervertidos”33. Logo, a obra visa impulsionar as táticas preventivas da medicina também nas dinâmicas da sociedade, isto é, o isolamento dos sujeitos enfermos e a esterilização dos possíveis focos de transmissão. O romancista se coloca como o individuo experiente e qualificado para desmascarar as condutas enganosas e discriminar tais “pervertedores”. Pires (1976), em seu trabalho analítico que abarca as obras de Lourenço Pinto e Abel Botelho, sublinha a importância do viés doutrinário desses textos introdutórios nos romances portugueses do último quartel do século XIX, visto que os autores os utilizavam como ferramenta de intervenção nos comportamentos individuais e na reabilitação do corpo social, e, evidentemente, como ocasiões de debate das funções da literatura, realizando a apologia ao naturalismo. Gallis emprega este recurso, de modo até mais extensivo que seus antecessores, para a exposição e justificativa do seu propósito literário. Todos os volumes da Tuberculose (e de outros romances naturalistas que estão fora do ciclo) são acompanhados de extensos proêmios, em que o romancista lança mão de vários mecanismos a fim de estabelecer a competência das habilitações miméticas de suas produções. Além das correlações entre as atividades da “pena” e do “bisturi” presentes no romance inaugural, Zola é reverenciado no paratexto introdutório do quarto volume, Os decadentes (1902), como instituidor de uma nova escola e exemplo da literatura que, embora muito criticada, sobreviverá à decadência literária do fin-de-siècle, que constitui o tema do livro: E essa sobrevivencia resulta naturalmente de ela ser uma obra sentida e profundamente verdadeira, especialmente na sua primeira parte, onde os Rougon Macquart são a analyse d’uma sociedade, que na Thereza Raquin e na Nana tem a sua melhor e mais profunda autopsia. Fundador de uma escola nova, luctando heroicamente contra a critica e contra a hypocrisia indignada dos que se alarmaram em ver assim exposta a nú todas as esverdeantes chagas sociaes, Zola rompeu essa dura muralha, e o seu nome, hoje universalmente conhecido, impõem-se como o de um dos mais potentes cérebros contemporaneos (Gallis, 1902, p. 11-12). 33 Ibidem, p. 10. 32 No tocante à literatura produzida na sua “minúscula e desvalorizada” pátria no Oitocentos, Gallis assume um discurso bastante drástico e afiado, que demonstra certa afinidade com os trabalhos de alguns dos “Vencidos da Vida”. Ademais de criticar a falta de incentivo e de assistências para a manutenção produtiva das letras e das artes lusitanas em geral, sugere que somente as obras de Alexandre Herculano e, depois, as de Pinheiro Chagas e Oliveira Martins, possuem a força capaz de resistir ao crivo dos tempos vindouros. Os outros literatos, apesar de reconhecidos como vultos talentosos e contribuições primaciais para a nação, como Camilo Castelo Branco, Julio Dinis, Eça de Queirós, Fialho d’Almeida ou Guerra Junqueiro, possuem chances reduzidas de sobrevivência ou já mesmo começaram a enveredar no esquecimento. O nome de Antero de Quental talvez flutue nas “turvas águas onde todos os demais devem fatalmente afundar-se”34. Excetuados esses35, o restante não passaria de “tentativas doentias”, reveladores da carência de princípios e energia da vida europeia oitocentista. Afora as contendas literárias, os proêmios de Gallis são minuciosos na diligência de sumarizar as fontes por trás de sua argumentação e evidenciam um vasto repertório do quadro intelectual e científico do período. A classificação zoológica/sociológica dos perfis “pervertedores” (como as prostitutas, alcoólatras, pelintras e sáficas) e suas distribuições na estrutura social, explicadas antes de conhecermos os personagens ficcionais que as representam, resultam de um leque de referenciais: nomes como Comte, Schopenhauer, Hegel e Spencer são convocados para as discussões filosóficas sobre o estado das civilizações humanas; na medicina, os estudos de Cesare Lombroso, Jean-Martin Charcot e Paolo Mantegazza constituem as fontes das acepções psiquiátricas oportunas para as patologias analisadas; devido à inclinação historiográfica marcante na carreira do romancista, episódios e exemplos históricos e contemporâneos relevantes são igualmente elencados para exposição das origens e percursos das ditas “turberculoses”36. Sobressai-se ainda a “seriedade” (de inegável pretensão cômica) com que Gallis explicita os encargos de “observador” e “experimentador” do escritor naturalista, pois apresenta experiências e testemunhos pessoais para tentar conceder mais confiabilidade aos seus “diagnósticos”37. As doutrinas evolucionistas e eugenistas emergem em alguns dos textos de 34 Ibidem, p. 20. 35 A “lista de talentos” portugueses evocados por Gallis ainda inclui: Rebello da Silva, Mendes Leal, Thomaz Ribeiro, Soares de Passos, Guilherme Braga, Moniz Barreto, Teófilo Braga e Carlos Malheiro Dias. 36 Para observar essa profusão de argumentos históricos, científicos e filosóficos, ver especialmente os prefácios de Mulheres perdidas (1902), A taberna (1903) e Os pelintras (1904). Os pormenores do prefácio de Sáficas serão explorados no terceiro capítulo deste trabalho. 37 Um exemplo interessante dos relatos pessoais de Gallis ocorre no prefácio do décimo primeiro volume, Mulheres honestas, em que descreve seu envolvimento com uma mulher casada: “Era por demais uma mulher robusta, expansiva, inteligente e muito animada. Dei-me ao trabalho de estudar esse curioso specimen da espécie humana. 33 modo contundente, como justificação da “mentalidade superior” dos povos europeus em relação às populações indígenas e defesa da reprodução entre os sujeitos “robustos” e “saudáveis” para o fortalecimento da espécie humana38. Somente os prefácios da Tuberculose, e nesse ponto concordamos com Moreira e Mendes (2021, p. 367), pelo largo conjunto de temas e teses que pretendem abranger, já mereceriam um estudo específico. 2.1.2. Ovelhas negras e filhos libertinos: perspectivas plurais dos naturalismos Apesar da relevante contribuição pedagógica oferecida pelos estudos críticos tradicionais, ao delinear essa organização cronológica do naturalismo português que abordamos até este momento, para o entendimento dos contextos gerais em que se desenvolvem os projetos literários dos autores mencionados, é preciso considerar algumas precauções para não cairmos no estabelecimento de hierarquizações restritas entre “modelos” e “expressões tardias”, com base em juízos de valor sobre as suas qualidades e pertinências como literatura. Se por um lado não podemos negar o alcance das obras de Zola, acaba tornando-se reducionismo colocar os escritores que despontaram em seguida como meros reprodutores de uma norma pré-concebida, sem considerar as especificidades que os acompanham, como já alertara Lourenço Pinto (1996). Do mesmo modo, é também limitante fixar-se unicamente em critérios temporais, que apontam o naturalismo como algo “esgotado” e “superado” aos finais do século XIX, ignorando as diversas manifestações da vertente que reivindicaram, reatualizaram e repercutiram as estratégias naturalistas de aproximação e representação literária/artística da realidade, e suas bases estéticas, nas décadas subsequentes. Como expõem Catharina e Medes (2015, p. 1), o naturalismo sempre enfrentou um processo de subalternização, obliterado e menosprezado pelos manuais de ensino, apresentado como uma escola em que “faltavam” muitas coisas: “faltava bom senso, decoro, arte, beleza, ambiguidade e até – por suprema ironia – verdade”. Tornou-se lugar comum na historiografia que o movimento seja circunscrito ao cientificismo determinista, ao seu aspecto antirromântico e ao método experimental, e logo colocado na categoria de “literatura menor” ou de desdobramento “exagerado” da literatura realista. Travei com ella relações mais intimas, chegando a verificar a fogosidade do seu temperamento de uma sensibilidade extrema [...] Constatei que durante os períodos em que lhe proporcionava o desafogo de seu sensualismo, ella era amável, dedicada, alegre [...] ao passo que quando esses períodos se davam ao inverso, tornava-se implicante, desconfiada, agressiva. (Gallis, 1903, p. 18-19) 38 Ver os prefácios de Os decadentes (1902) e A sacristia (1903). 34 Diante disso, é fundamental trazer à discussão abordagens que escapam à direção convencional e apresentam leituras ampliadas da corrente. O trabalho de Baguley (1990), focalizado no naturalismo francês, conforme destacamos anteriormente, desmonta alguns dos “mitos” erigidos em torno de Zola (e sua posição na voga naturalista francesa) e levanta tópicos propícios para o reexame da forma como encaramos tais demarcações convencionais. Para que se compreendam os pressupostos genéricos do naturalismo, necessita-se primeiro romper com a expectativa de que é possível delimitá-lo em etapas evolutivas organizadas e bem definidas, dado que isso só significaria a substituição de um modelo historiográfico por outro. Portanto, o pesquisador sugere então uma forma mais produtiva de enfrentar a tarefa classificatória onde, através de uma analogia com a própria obra zoliana, propõe a possibilidade de delinear as “semelhanças familiares” nas diversas ramificações e desmembramentos espalhados pelo contexto literário, em que as manifestações individuais mantêm os traços representativos legados por sua ascendência, ainda que “miscigenados” com outras linhagens. Trata-se, portanto, de um conjunto complexo de características e de códigos herdados que relacionam as obras entre si e formam uma tradição, mas uma tradição que está constantemente sujeita a modificações conscientes e a acidentes de reprodução que alargam o escopo do gênero e provocam, eventualmente, a sua assimilação a outras linhagens. Tal como a família de Zola, aliás como em muitas outras, possui as suas divisões - e sua porção considerável de ovelhas negras e escândalos. (Baguley, 1990, p. 39-40, tradução e grifos nossos)39 Contra a ideia de um programa teórico padronizado entre os ficcionistas, o pesquisador distingue ao menos duas vertentes naturalistas: o tipo goncourtiano, que emprega o molde trágico da queda do herói, exibido como um longo processo de degeneração (provocado pelos elementos da tríade educação-meio-hereditariedade) que avança em estágios distintos (esperança, excesso, comoção e deterioração), e apresenta um momento epifânico, no qual os protagonistas desditosos demonstram alguma lucidez dos fatores sociais e biológicos que os degradam; e o tipo flaubertiano, marcado pelo desajuste dos sujeitos à condição humana, com personagens “espectadores” da desilusão da vida cotidiana e resignados a um esquema circular de existência, em que repetem-se as frustações banais e domésticas sem uma direção específica, seja de queda ou ascensão.40 39 No original, em inglês: “We are concerned, then, with a complex set of features and inherited codes that relate works to one another and form a tradition, but a tradition that is constantly subject to the conscious modifications and the accidents of reproduction that broaden the scope of the genre and bring about, eventually, its assimilation into other strains. Like Zola's family, indeed like most others, it has its divisions - and it has more than its fair share of black sheep and scandals”. 40 Ibidem, p. 95. 35 No que diz respeito à diferenciação entre realismo e naturalismo, Baguley concorda com o estabelecimento do realismo como um modo ficcional, trans-histórico e trans-genérico, pautado por uma soma de práticas de linguagem voltadas à representação verossímil da realidade, modo esse que alicerçou o realismo como corrente estética literária, periodizada historicamente no século XIX. De tal modo, o naturalismo constitui-se como uma das viabilidades de realização do modo realista e seus preceitos miméticos, e que, obviamente, possui uma contiguidade histórica e compartilha muitas características com o movimento realista. Entretanto, é um juízo limitante utilizar essa acepção para colocá-lo como escolha pelo “exagero” ou hiperrealismo, visto que “dispõe da sua própria combinação particular de temas e procedimentos”.41 Pellegrini (2018) e Sereza (2022), em suas investigações minuciosas acerca das reverberações da literatura realista e naturalista no Brasil, nos auxiliam a entender alguns desses procedimentos distintivos do naturalismo e como eles ecoam e se reformulam criativamente na dinâmica transnacional da estética. O aspecto central, de modo inequívoco, está no alinhamento convicto do escritor naturalista com as ciências e doutrinas em avanço proeminente no Oitocentos (como a medicina, biologia, psicologia; e o socialismo, positivismo e determinismo) para compor uma profunda sondagem dos personagens e sua relação a conjuntura social (Sereza, 2022, p. 18). Outro elemento basilar está na consolidação da postura empenhada do romancista (Pellegrini, 2018, p. 138), que se coloca a examinar a realidade ao seu redor e precisar os seus contrastes e hipocrisias com a finalidade de promover alterações significativas. Ademais da postura e do método, Pellegrini (2023, p. 293) realça a seleção temática como um dos pilares em que se denotam as particularidades do naturalismo, posto que se verifica a evidência crítica dada a conteúdos pouco explorados, ou retratados de maneira idealizada e caricata, enquanto matéria literária: os dilemas da camada proletária, a violência, o estado e os hábitos cotidianos dos sujeitos marginalizados, as nuances da sexualidade, a condição feminina. A escolha por esses assuntos, muitas vezes considerados pela crítica como “escabrosos”, aliados à noção de estética do “excesso”, que enraizaram a rejeição da escola na historiografia e das quais os romancistas/teorizadores procuravam se defender, como já discutimos, igualmente incidiu na distinção das duas correntes. Tendo a alcunha de “naturalista” ganhado peso negativo, é frequente que críticos, para valorizarem a obra de um romancista, retirem-no do quadro naturalista, como ocorre em alguns casos com Eça de Queirós (Sereza, 2022, p. 92). 41 Ibidem, p. 48. 36 Sobre o apelo temático ligado à sexualidade, Mendes (2019) articula um vasto prisma da circulação do naturalismo nas prateleiras dos livros eróticos, ou da “Literatura para Homens”. Com base no trânsito dos textos naturalistas entre Europa e Brasil nos finais do Oitocentos, é viável considerar o movimento como participante na tradição secular da literatura licenciosa, e, ao contrário do que a crítica da elite intelectual quis excluir pejorativamente, essa leitura libertina da escola era usual entre a coletividade leitora e se erigiu como fator que garantiu popularidade e interesse do público, agitando o comércio livreiro. Como leitura a ser feita “às escondidas”, os romances alcançaram parcela considerável de êxito, e revelam que o naturalismo já era encarado em outras possibilidades, que ultrapassam a etiqueta de fórmula “superada” ou de tentativa moralizante, pois entre muitos de seus consumidores, “o livro naturalista estava ligado a prazeres secretos, ao entretenimento, à pornografia e à masturbação” (Mendes, 2019, p. 78). O pesquisador também estabelece contato propício com as ponderações de Baguley (1990), ao reafirmar uma ótica plural para a estética, e, portanto, apropriada para abranger os “naturalismos” exercidos a partir dos mesmos princípios distintivos. Em adição aos modelos trágicos e desenganados, também são identificáveis vertentes como o naturalismo decadentista, o “gótico-naturalismo”, e o “naturalismo sensacionalista”, que acionava com mais liberdade o subsídio dos tópicos picantes.42 2.2 LITERATURA PORTUGUESA E SCIENTIA SEXUALIS Foucault, em sua História da Sexualidade, descreve a relevância da scientia sexualis do século XIX, caracterizando um período de multiplicação dos discursos sobre a sexualidade, mas que não se restringe aos seus contornos “convencionais” e heterocêntricos, visto que se explora especificamente a curiosidade para o estudo das práticas sexuais periféricas, as “aberrações”, que passam a ser interrogadas, especificadas e nomeadas (2010, p. 46). Assim, o filósofo aponta que, a partir dos discursos médicos e científicos que se avolumam no decorrer do século as dissidências sexuais são inseridas em uma concepção objetiva da realidade e incorporadas à natureza e fisiologia dos indivíduos, mesmo que obviamente, definidas nas fronteiras da patologia e degenerescência, onde esses discursos também se afirmam como um dispositivo de poder, condenação e vigilância dos corpos. Opera-se, então, a transferência do homossexual da categoria reincidente de sodomita para a composição de uma “espécie”43. 42 Ibidem, p. 83-86. 43 Ibidem, p. 51. 37 Na França e na Alemanha, despontam os trabalhos de Jean-Martin Charcot, Julien Chevalier, Valentin Magnan, Karl Westphal, Paul Moreau de Tours e Richard von Kraft-Ebing (que publica Psycopathia sexualis em 1886), que têm em comum a abordagem da homossexualidade no campo das perversões e das doenças nervosas, como uma inversão sexual, expressão que será incorporada nos discursos e produções sobre o tema. Nesses estudos, podemos encontrar as primeiras tentativas de categorização dos tipos de “invertidos” e de examinar a origem dessas “degenerações”, ponto que deu azo a opiniões divergentes quanto ao seu “diagnóstico” como patologia congênita ou adquirida. Todavia, é preciso ponderar que os contextos de circulação desses ensaios da ciência sexual, que se proliferavam, também eram mais complexos do que somente a sua assimilação como informação científica. Bull (2014), debruçando-se sobre a conjuntura da Grã-Bretanha a partir de 1810, constata a composição de uma “zona cinzenta” em que transitavam a publicação, a venda e o público leitor desses ensaios e livros científico-sexuais, “onde o conhecimento sexual e o entretenimento sexual se cruzam e permaneceram regulados de forma desigual ao longo do século” (Bull, 2014, p. 12). Ou seja, havia uma linha tênue e complexa entre a obscenidade e a legitimidade no modo como os leitores oitocentistas negociavam os discursos sexuais emergentes. Com o desenvolvimento da sexologia e de outras áreas de pesquisa científica, que ainda não possuía meios de divulgação e publicação plenamente consolidados, era comum que livreiros e editores, em condições mais ou menos clandestinas, explorassem e capitalizassem o potencial erótico e a abordagem explícita desses estudos (também variantes em rigor e metodologias) produzidos no Reino Unido ou importados de outros países, produzindo esse fenômeno de divisões incongruentes entre a acessibilidade do conhecimento científico sobre a sexualidade e a sua conexão com a literatura pornográfica de massa44. No caso de Portugal, como aponta Curopos (2018b), o discurso social e literário sobre a homossexualidade antecede as ciências médicas, ainda incipientes nesse tema. Dessa maneira, é necessária certa cautela ao lidar com a “invenção do homossexual” pelo discurso médico, pois as noções sobre homossexualidade que eram “importadas” da França e Alemanha vão se defrontar e conviver com uma comunidade de indivíduos com vidas sexuais desviantes do padrão, e seus ambientes e práticas de socialização já constituídos e visíveis (Curopos, 2018b, p. 108). A inversão sexual, de Adelino Silva, é o primeiro estudo dedicado ao assunto, publicado somente em 1895, posterior ao O barão de Lavos, sendo prosseguido pela publicação de vários 44 Ibidem. 38 outros após a virada do século. Outro trabalho relevante é o do psiquiatra António Egas Moniz, que dedica um extenso capítulo ao tema em A vida sexual, de 1902. Essas obras são seguidas, ao longo das primeiras décadas do século XX, pela divulgação de outros estudos, como Amor sáfico e socrático (1922), de Arlindo Monteiro, e Evolução da pederastia e do lesbismo na Europa: contribuição para o estudo da inversão sexual (1926), de Asdrúbal Aguiar. O trabalho de Silva (1895), resultado da sua tese defendida na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, é na verdade um grande compilado tradutório dos estudos dos proeminentes sexologistas alemães, franceses e ingleses. Assim, não oferece resultados de observações, estudos de caso e experimentos realizados pelo próprio médico, porém, tem o seu valor no esforço de acessibilizar os discursos que transitavam no resto do Europeu para o debate médico português, além de estabelecer as matrizes sócio-históricas e literárias que dialogam com as definições modernas de sexualidade. A partir dos ensaios de Chevalier, Westphal e Kraft-Ebing, o autor define o conceito de inversão sexual como “o amor mais ou menos exclusivo entre dois ou mais indivíduos do mesmo sexo, com indifferença, antipathia ou repulsão pelo sexo opposto, qualquer seja a causa” (Silva, 1895, p. 44). A menção sobre “qualquer seja causa” é importante, visto que um dos principais pontos de discussão na sexologia era a divisão dos “invertidos” entre a transmissão congênita, desequilíbrio mental (a histeria) ou aquisição de “vicio” no meio social. Na tentativa de “classificar as espécies”, o médico propõe as definições dos tipos principais de inversão: safismo/lesbianismo (homossexualidade feminina) e uranismo (homossexualidade masculina), definindo inclusive os seus subtipos e sua distribuição nas camadas sociais lusitanas, com muita terminologia em latim para evitar descrever as minúcias “desconfortáveis” em português. O lesbianismo, define o médico: Lesbianismo é o conjuncto de beijos, caricias, palpações diversas e différentes praticas de manualisação reciproca, trocadas entre pessoas do sexo feminino. Pode-se satisfazer de três maneiras principaes: o tribadismo, o clitoridismo e o saphismo. Esta enumeração, não tem, porém, nada de limitada; ha outros meios de praticar o lesbianismo, a sua terminologia é que ainda não está bem assente. Limitamo-nos por tanto a descrever somente os principaes. Tribadismo, consiste no coito simulado por meio d'attritos e simples contactos dos órgãos genitaes externos. Clitoridismo, é o mesmo processo com mais um tempo, consistindo na intromissão vaginal d'um clitoris exagerado, desenvolvido até à anomalia; d'aqui a raridade d'este modus faciendi. Saphismo é o coito buccal, o processo mais comum. (Silva, 1895, p. 281, grifos originais). 39 A proposição de uma definição do uranismo, por sua vez, busca distinguir o termo de outros que usualmente eram considerados sinônimos, como a pederastia: [...] A atracção d'um homem por outro pode manifestar-se de diversas maneiras. Em certos casos é um homem que excita um individuo do seu sexo. É esta mesmo a única causa do uranismo no sentido mais restricto da palavra. se chama hermaphrodismo psycho-sexual. Em todos os invertidos sexuaes ha sempre dois indivíduos: um que tem a direcção, outro a subordinação, a obediência, a execução; um é o activo, outro o passivo. O uranismo comprehende os pederastas, os onanistas, os sadistas, etc., que só se entregam a estas perversões com indivíduos do mesmo sexo a que pertencem. Muitos auctores ainda hoje confundem o uranismo com a pederastia; não deve ser, porque esta representa unicamente o grupo de indivíduos que immissio penis in anum. É portanto um caso particular de uranismo. (Silva, 1895, p. 162, ). A tese de Silva ressalta também as disputas em relação à moralidade do trabalho com temas tão controversos e as possibilidades de leitura de tais estudos não como construção de conhecimento, mas como obscenidade e pornografia. A patologização do uranismo e do safismo implica, na visão do médico, que devem ser tratados como qualquer outra doença, cumprindo a obrigação da medicina e sem espaço para intolerâncias. Dirige-se aos seus colegas para dizer “Liberte-se de preconceitos”45, e indicar que devem estudar e contribuir com os debates sobre a inversão, pois seria uma contribuição para a cura de seus pacientes e para a generalidade do bem-estar social. Segundo Silva, os autores não poderiam ficar presos a uma postura pudica e temerem ser taxados de pornógrafos ou de inconvenientes pelo conteúdo de seus ensaios, dado que o “caráter verdadeiramente extraordinário” dessas práticas sexuais estão presentes em todas as sociedades e em todos os períodos históricos, e cabe aos médicos analisar se esses indivíduos são vítimas de “deformação congênita” ou se são condicionados por fatores sociais, “alienados a que seja preciso tratar”.46 Os estudos de Klobucka (2009; 2021) sumarizam e debatem alguns momentos fulcrais do surgimento de personagens não-heteronormativos na literatura e cultura portuguesas, e os estereótipos e estratégias narrativas que regulam estas representações. Desde as cantigas trovadorescas medievais é possível destacar tais aparições, pela ótica da sátira agressiva e da ridicularização, características das cantigas de escárnio e maldizer, como os diferentes versos direcionados aos gostos sexuais do meirinho Fernão Dias47 e a composição de Anfonso Anes do Cotom sobre a soldadeira Maria Mateu, descrita como “desejosa de cono”: 45 Ibidem, p. 263. 46 Ibidem, p. 158. 47 Por exemplo, o trovador Airas Peres Uitorom, ao comentar a nomeação de Fernão Dias para a função de “adiantado” de Asturias, ironiza a preferência do meirinho por “ir atrás”: “E pois punhastes sempre d'ir atrás / ar 40 Mari'Mateu, ir-me quer'eu daquém, porque nom poss'um cono baratar: alguém que mi o daria nõn'o tem, e algu[é]m que o tem nom mi o quer dar. Mari'Mateu, Mari'Mateu, tam desejosa ch'és de cono com'eu! (B 1583, V 1115)48 Até adentrar categoricamente o campo das enfermidades no final do Oitocentos, as condutas sexuais entre pares do mesmo sexo atravessaram o discurso social, desde o século XVI, pelos mecanismos regulatórios da Contrarreforma Católica, da Revolução Científica e do Iluminismo (Higgs, 2006, p. 54). Os autos dos tribunais da Inquisição Portuguesa ocupados da repressão aos atos de sodomia exibem a maneira como os inquisidores encaravam e condenavam as “perdições demoníacas” carnais e pormenorizam algumas das práticas “pecaminosas” que se transformaram em alvoroço público49, e que poderiam desdobrar-se na condenação ao degredo ou à morte na fogueira. Nas relações entre homens, dois tipos principais de casos podem ser distinguidos: os encontros entre homens de idades assimétricas, em que o componente mais jovem (geralmente, adolescentes de situação vulnerável) era sodomizado por um homem mais velho; e os episódios que revolvem em torno do perfil do fanchono, identidade associada a homens efeminados, que desempenhariam a posição passiva nos contatos sexuais com homens viris, e que manteriam suas volições sodomitas mesmo com o avançar da idade, sendo o status de sua masculinidade rebaixado. A primeira configuração era “uma relação de poder”, enquanto a segunda era “movida pelo desejo”50. Nas relações entre mulheres, Braga (2011) discorre sobre os testemunhos da documentação dos tribunais do Santo Ofício que censuram e condenam as “amizades ilícitas” do sexo feminino, que transcorrem nos espaços privados de convivência feminina. Assim, encontram-se denúncias de encontros sexuais entre mulheres casadas, viúvas e solteiras; e a punhad'agora d'ir adeante.” (B 1480, V 1091). Ver: LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA, 2011-. Acesso em 26 jan. 2024. Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant= 1514&nl=21&tr=6&pv=sim. 48 LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA, 2011-. Acesso em 26 jan. 2024. Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1607&pv=sim. 49 Ibidem. 50 Ibidem, p. 38, tradução nossa. No original, em inglês: One can distinguish between two major categories. The first comprises the cases dealing with age-unequal encounters where a younger partner usually under 20 years of age is sodomized by an older male. […] The second category comprises assumptions revolving around the effeminate fanchono (‘fairy’) identity, often with campy speech and sisterly sociability, of men who sought to be bottoms to virile men and retained that desire as they aged. The first was a power relationship while the second was one driven by desire. 41 proximidade “suspeita” dos vínculos entre freiras, abadessas e clarissas dentro dos conventos e monastérios, além da associação das práticas lésbicas com os atos de misticismo e feitiçaria. De volta ao contexto oitocentista, é pertinente assinalar as sexualidades dissidentes como objeto dos livros de cunho pornográfico, as “leituras para homens”. Os serões do convento (1862), cuja autoria é atribuída a José Feliciano de Castilho, foi um projeto editorial de grande êxito em Portugal e no Brasil no ramo dessa literatura voltada ao êxtase e desafogo lúbrico do público masculino (Maia; Lugarinho; Curopos, 2018). O volume oferece cenas “picantes” através do enredo que enfoca os serões organizadas por freiras de um convento para o compartilhamento de histórias e aventuras eróticas, e que compartilham intensas carícias entre si após as sessões narrativas, indicando também a devassidão e o apetite sexual desmesurado como maneira de articular a sátira anticlerical. Contudo, necessita-se ponderar a leitura dessa obra não só como afirmação e satisfação masculina, mas também pela notável “transgressão e desterritorialização da normatividade de gênero e da sexualidade”51. Portanto, seja sob o influxo da libertinagem, e/ou dos instintos fisiológicos naturais e da patologia proveniente das ciências52, observa-se a multiplicação, em determinado grau, de perfis destes personagens que se relacionam eroticamente com o mesmo gênero na segunda metade do século. A inversão sexual de Silva (1895) também inventaria as manifestações literárias do lesbianismo no fin-de-siécle, que na sua percepção deveriam ser lidas com muita cautela, porque poderiam despertar nas mulheres o interesse em sentir as sensações descritas nas obras, e depois ir repassando o conhecimento para as amigas. A lista de romances elencados por Silva ressalta a notoriedade do assunto na literatura ocidental: Diderot occupou-se d'elle na Religieuse, Balzac na Fille aux yeux d'or, Ernesto Feydeau na Contesse de Chalis, Theophilo Gauthier na Mademoiselle de Maupin, Emilio Zola na Naná, Paulo Bourget na Physiologie de l'amour moderne, A. Belot, na Mademoiselle Girand, ma femme, Baudelaire nas Fleurs du mal, Femmes damnées-Delphine et Hippolyte. G. Mendès descreve-o nos seus explendidos contos, Jô, Zô, e Lô; Verlaine nas suas Amies. [...] O illustre romancista russo Dostoïewsky estuda no seu bello livro Ame