A TRAJETÓRIA DAS ALTERAÇÕES SEMÂNTICAS NAS LÍNGUAS E OS SEUS REFLEXOS NO CAMPO DO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA E DA TRADUÇÃO THE PATH OF SEMANTIC CHANGES IN LANGUAGES AND THEIR CONSEQUENCES IN THE FIELD OF FOREIGN LANGUAGE TEACHING AND TRANSLATION Marilei Amadeu Sabino* RESUMO: O objetivo deste estudo é refletir sobre algumas lexias for- malmente semelhantes, pertencentes a diferentes línguas estrangeiras que, embora tenham tido a mesma origem, apresentam, hoje, senti- dos que se desviaram consideravelmente dos seus significados origi- nais. Esse complexo processo é compreendido, entretanto, quando se estabelece um percurso diacrônico das lexias de interesse, de modo a encontrar justificativas ou ocorrências prováveis para as causas que desencadearam as alterações semânticas observadas. Estas reflexões pretendem fomentar discussões sobre os reflexos de tais alterações no surgimento dos chamados “falsos cognatos”. PALAVRAS-CHAVE: mudanças semânticas, línguas românicas, en- sino de línguas, tradução, falsos cognatos. ABSTRACT: The purpose of this study is to reflect on some formally similar lexical units belonging to different foreign languages that although having had the same origin, their meanings today are considerably different from their original meanings. This complex process is understood, however, when a diachronic path of these lexical units is established in order to find justification or probable occurrences for the causes that triggered the semantic changes observed. These reflections aim to foster discussion about the consequences of such changes in the emergence of the so-called “false cognates”. KEYWORDS: semantic changes, romance languages, language teaching, translation, false cognates. * Universidade Estadual Paulista (Unesp), São José do Rio Preto/SP. Assistente-Doutor Efetivo do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Email: amadeusm@ibilce.unesp.br. A TRAJETÓRIA DAS ALTERAÇÕES SEMÂNTICAS NAS LÍNGUAS E OS SEUS REFLEXOS NO CAMPO DO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA E DA TRADUÇÃO Introdução Quem inicia o estudo de uma ou mais línguas estrangeiras, principalmente das neolatinas, ou se propõe a realizar traduções de um desses idiomas, ine- vitavelmente se depara, já desde o princípio, com uma infinidade de uni- dades léxicas que, apesar de apresentarem visível semelhança formal com outras que já conhecemos, possuem sentidos surpreendentemente distin- tos umas das outras. Devido a uma série de fatores, com o passar dos anos as palavras1 mu- dam não só a sua forma, mas seus significados também vão se transforman- do. É interessante observar as diferenças de sentido que palavras da língua portuguesa vão assumindo através dos tempos. Contudo, mais curioso ain- da, é investigar os sentidos (e nuances de sentido) que palavras de outras línguas estrangeiras, provenientes do mesmo étimo que as de língua por- tuguesa e até certo ponto sinônimas entre si, vão adquirindo nos diferentes contextos de que participam. Esse complexo processo passa a ser compreendido, entretanto, quando se estabelece um percurso diacrônico das lexias de interesse, de modo a en- 1 Apesar das pertinentes discussões teóricas existentes a esse respeito, neste artigo, vocábulos, palavras, unidades léxicas (ou lexicais), lexias e itens lexicais serão utilizados como sinônimos. Marilei Amadeu Sabino194 contrar justificativas ou ocorrências prováveis para as causas que desenca- dearam as alterações semânticas observadas. Diversos teóricos já se propuseram a esclarecer alguns desses fenômenos que favorecem a evolução semântica do léxico no tempo, dentre os quais es- tão Meillet (1948), Ullmann (1977), Preti (1977) e Rohlfs (1979). Neste sentido, com base em algumas considerações feitas por Ullman (1977), Rohlfs (1979) e Garcia (2010), o objetivo deste estudo é refletir so- bre algumas lexias formalmente semelhantes, pertencentes a diferentes lín- guas estrangeiras que, embora tenham tido a mesma origem, apresentam, nos dias de hoje, sentidos que se desviaram consideravelmente dos seus sig- nificados originais. Estas reflexões pretendem fomentar discussões sobre os reflexos que tais alterações semânticas produzem no campo do Ensino de Línguas e da Tradução, principalmente no que diz respeito ao surgimento dos chamados “falsos cognatos”, os quais podem funcionar como verdadei- ras ciladas aos profissionais das áreas de línguas. 1. Causas ou circunstâncias que contribuem para a mudança de sentido e renovação no léxico das línguas As diferenças existentes no léxico das línguas românicas não estão condi- cionadas apenas a evoluções fonéticas que o afetaram, tendo em vista que são várias as hipóteses sobre as causas que levaram ao surgimento de diver- sos tipos léxicos, a partir de uma única língua-mãe: o latim. Ullmann (1977) destaca, entre outras, cinco ordens de circunstâncias que podem associar-se à mudança de significado: linguísticas, históricas, so- ciais, psicológicas e circunstâncias que determinam a necessidade de de- nominação (de criação de um novo termo). Rohlfs (1979), por sua vez, também destaca algumas forças impulsoras que acredita serem responsáveis pela renovação do léxico. São elas: 1. substituição de palavras desgastadas por expressões de maior força; 2. influência de um refinamento social; 3. novos motivos culturais; 4. tendência a uma maior clareza; 5. volume insuficiente da palavra; 6. fenômenos semânticos; 7. ação do substrato pré-romano; 8. empréstimo de outras línguas; A trajetória das alterações semânticas nas línguas e os seus reflexos no campo do ensino de língua estrangeira e da tradução 195 9. mudanças léxicas inter-românicas devido à superioridade cultural de uma língua; 10. convergência fonética; 11. tendências às formações afetivas; 12. influxo de ideias supersticiosas. Embora apresentadas de forma diferente e classificadas em quantidades divergentes, fica nítido que várias das circunstâncias ou forças propulsoras apresentadas por Ullmann se repetem em Rohlfs, enquanto outras ganham nova roupagem. Pode-se dizer que nem sempre é fácil identificar quais circunstâncias fo- ram determinantes para que houvesse alterações semânticas de determina- dos itens léxicos, assim como é possível imaginar, também, que pode haver outros fatores capazes de influenciar na mudança de significado das pala- vras, além dos que foram arrolados por esses dois autores. Por isso, o próprio Rohlfs (1979) conclui que cada palavra tem sua his- tória, visto que não há como estabelecer leis ou regras exatas para a histó- ria dos vocábulos, do mesmo modo que é possível descrever a evolução fo- nética dos mesmos. 2. As considerações de Garcia (2010) sobre Ullmann (1977) Garcia (2010), com base no suporte teórico oferecido por Ullmann (1977), realiza um estudo focado no léxico da língua portuguesa, exemplificando es- sas muitas causas de mudança semântica de uma palavra através dos tempos. Aos exemplos da língua portuguesa apontados por Garcia, faremos nos- sas considerações ora sobre a língua italiana, ora sobre a francesa, inglesa ou espanhola. Dentre as causas ou processos elencados por Ullmann e apontados por Garcia estão: a polissemia, a metáfora e a metonímia, as mudanças pejora- tivas, as mudanças ameliorativas, as mudanças devidas ao tabu, a especiali- zação do significado, a ampliação de significado, a restrição de significado, os equívocos de interpretação e as palavras que contam histórias – causas estas que explica e exemplifica, conforme se observa a seguir (cf. exemplos do português de A a N). 1. Polissemia: apontada como a causa principal da mudança semântica das palavras, ao longo do tempo, ela se explica quando uma palavra Marilei Amadeu Sabino196 ou expressão ganha um ou mais sentidos além de seu sentido origi- nal. Ex: a palavra gato, no português. a) GATO: o vocábulo gato deu origem aos seguintes sentidos: (1) gato, animal felino que anda de modo silencioso e sorrateiro, ad- quiriu o sentido de “ladrão” (por processo metonímico que associa o modo de andar dos dois); (2) também por associação metoními- ca entre a beleza do animal e de seus movimentos com a beleza de um jovem, assumiu o significado de “homem bonito”; (3) associado à ideia de que o animal “gosta de escalar postes e fios”, passou a signifi- car “instrumento para roubar luz dos fios ou postes”. Para ilustrar um pouco esse processo da polissemia nas línguas moder- nas, citamos o exemplo do vocábulo português estação. Enquanto um único vocábulo, na língua portuguesa, designa “lugar em que se processa embar- que e desembarque de passageiros e/ou de cargas” e também “época, período, temporada (estações do ano)”, nas línguas italiana, francesa e inglesa, pa- ralelamente às suas respectivas lexias, que também carregam este mesmo sentido de “lugar de embarque e desembarque de passageiros e/ou de cargas” – formalmente semelhantes à da língua portuguesa (stazione, em italiano; station e gare, em francês, e station, em inglês) –, surgiram outras unida- des léxicas nessas línguas que dessem conta de referirem-se a “estação” en- quanto “época, período, temporada” do ano (stagione, em italiano; saison, em francês e season, em inglês). b) FAZENDA: em relação à palavra fazenda, aconteceu o seguinte: O vocábulo fac(i)enda, originário do latim vulgar, significava “as coi- sas que devem ser feitas”, passando, mais tarde, a significar: (1) “as coisas já feitas por alguém ou em algum lugar”. A partir deste, desenvolveu os sentidos de: (2) “conjunto de bens ou haveres” [acepção que deu origem a]: (3) “recursos financeiros do poder público” e (4) “mercadorias ou pro- dutos de uma determinada pessoa, povo ou região” [acepção que deu origem a outras duas]: (5) “grande propriedade rural onde são gera- dos vários produtos agrícolas” e (6) “pano ou tecido”. A trajetória das alterações semânticas nas línguas e os seus reflexos no campo do ensino de língua estrangeira e da tradução 197 É interessante notar, entretanto, que, em italiano, o vocábulo faccenda/ faccende ainda conserva o sentido de “conjunto de trabalhos domésticos co- tidianos” (afazeres), além de ter adquirido os sentidos de “assunto”, “negó- cio”, “ocupação”. Contudo, não possui nenhum dos outros sentidos válidos para o português. c) ESTILO: proveniente do latim stilu(m), significava “pequena haste usada para escrever”, um tipo antigo de caneta. A partir desse sentido, desenvolveu outros: (1) “a maneira específica de escrever ou falar de uma pessoa ou de um grupo de pessoas” [acepção que deu origem a]: (2) “precisão ou perícia no escrever”; (3) “características específicas de um autor ou grupo de autores”; (4) “refinamento”, “bom gosto”. Além disso, o sentido origi- nal de “pequena haste” foi retomado no vocábulo ESTILETE. Já em francês, ao contrário, a unidade lexical semelhante e de mesmo étimo stylo, manteve o sentido original de “pequena haste usada para escre- ver” e mantém o sentido de caneta até hoje. Por outro lado, os sentidos de- senvolvidos no português em (2), (3) e (4) são supridos, em francês, pelo vocábulo style. Por estes exemplos fica nítido que, em alguns casos, os novos sentidos de um vocábulo passam a coexistir com o sentido original (o que seria exem- plo de variação semântica). Já em outras situações, o significado original do vocábulo desaparece (nesse caso, trata-se de mudança semântica). 2. Metáfora e metonímia: apontados como um dos processos mais co- muns de mudança de sentido, no primeiro (Metáfora) existe uma si- milaridade de significados, ao passo que, no segundo (Metonímia), existe uma contiguidade de significados. Este último é muito mais produtivo que o primeiro, em termos de processo modificador de sentido das palavras. Observe-se o exemplo do vocábulo português CANETA. d) CANETA: originariamente indicava “um pequeno tubo”, “uma pe- quena cana” à qual se ajustava uma ponta para escrever. Marilei Amadeu Sabino198 O termo italiano que designa o objeto caneta é PENNA até os dias de hoje. No português, PENA também já foi um vocábulo usual para designar caneta, mas hoje é de uso muito restrito. No italiano, por outro lado, não só o objeto que serve para escrever chama-se PENNA, como também o tipo de macarrão que tem a forma de pequenos tubos cortados em diagonal. 3. Ampliação de significado: é quando um vocábulo, ao ser colocado em um contexto diferente, adquire um novo sentido, diferente daquele que já possuía (especialização de significado). Exemplos em português são: e) FOCA: na origem, refere-se a um “mamífero aquático”. Contudo, hoje significa também “repórter inexperiente”, em contexto jornalís- tico (passagem de um significado original mais geral para um mais restrito). f) ARMÁRIO: na Idade Média significava “lugar específico para se guardar as armas”. Mais tarde passou a designar “qualquer móvel des- tinado a guardar coisas”, por um processo de ampliação de significado (passagem de um significado original mais restrito para um mais geral). 4. Restrição de significado: é quando vocábulos que apresentam senti- do geral passam a apresentar um sentido mais restrito. Como exemplo do português, Garcia (2010) cita o vocábulo ministério. g) MINISTÉRIO: originalmente significava “o ofício de alguém, aqui- lo que uma pessoa devia fazer”. Mais tarde e nos dias de hoje, por um processo de restrição de significado, ministério designa “o ofício de um sacerdote ou o lugar dos ministros”. Em português, o vocábulo “cachorro” originalmente significava “qual- quer tipo de filhote”. Mais tarde passa a significar apenas “o filhote de cão”, além do próprio cão. Em espanhol, contudo, CACHORRO” significa, ainda hoje, “qualquer tipo de filhote”, enquanto PERRO significa “cão”. O vocábulo CULTURA, no italiano, que inicialmente significava: (1) “conjunto de conhecimento, tradições, procedimentos técnicos etc.” e (2) “culti- A trajetória das alterações semânticas nas línguas e os seus reflexos no campo do ensino de língua estrangeira e da tradução 199 vo de um produto”, conserva, hoje em dia, o significado descrito em (1), mas transferiu o sentido arrolado em (2) ao vocábulo semelhante COLTURA. 5. Especialização do significado: refere-se a vocábulos que, quando em- pregados em um contexto diferente daquele em que normalmente é empregado, desenvolvem um novo sentido. h) COMPANHIA: este vocábulo significava apenas “o oposto de soli- dão”, mas, utilizado no âmbito comercial, adquire o sentido de “em- presa que tem vários proprietários”. i) AÇÃO: este vocábulo, cujo significado primeiro era de “um mo- vimento para realizar algo”, adquire outros novos sentidos quando empregado em diferentes contextos, tais como, no âmbito jurídico, indica “um tipo de processo”; no âmbito financeiro, refere-se a “um documento de uma operação de risco”. 6. Mudanças pejorativas: referem-se a vocábulos de sentido positivo ou neutro que acabam adquirindo um matiz pejorativo como em: j) VILÃO: que originariamente significava “habitante de uma vila” e que, pelo preconceito existente na época contra os pobres, passou a possuir o sentido de “grosseirão”, de “malvado”. k) CRIADO: que em princípio significava “uma pessoa, órfã ou fi- lha de pobres, que era criada como filho por uma família”, acaba por adquirir o significado de “serviçal doméstico” devido à crueldade da sociedade brasileira que passa a explorar frequentemente esse indiví- duo em trabalhos domésticos, sem remuneração. 7. Mudanças ameliorativas: são unidades léxicas geralmente grosseiras ou jocosas que, com o passar do tempo, deixam de carregar este sen- tido negativo (ou neutro) e passam a adquirir um significado positivo. l) MARECHAL: esse termo que inicialmente apenas indicava “o cria- do das cavalariças” ganhou importância e passou, mais tarde, a signi- ficar até “o posto máximo do exército”. Marilei Amadeu Sabino200 Lembramo-nos, ainda, de mais duas unidades léxicas da língua por- tuguesa que passaram por processo semelhante. São elas: BÁRBARO e FORMIDÁVEL. A primeira, que no princípio significava “selvagem, rude, inculto, cruel, desumano”, passa a designar algo que seja “bom, excelente, belo, simpático, elegante, luxuoso, inteligente, culto, legal e bacana”. O mes- mo acontece com a segunda, inicialmente significando algo “que tem aspec- to terrificante, que inspira grande temor, ou que é perigoso”, e que adquire, mais tarde, os valores semânticos de “muito bom, muito bonito, admirável, excelente, bacana”. 8. Mudanças devidas ao tabu: referem-se ao processo pelo qual, ao uti- lizar-se de um vocábulo, geralmente eufemístico, para evitar “aquele” que, por medo, decência ou delicadeza, não se quer pronunciar, acaba- -se proporcionando, a esse vocábulo, uma mudança de sentido ou de- senvolvimento de um novo significado. Como exemplos o autor cita: m) DIABO: originário do grego diabolon, significa “opositor” e, ao passar a ser utilizado para evitar que o nome do “ente diabólico” fosse pronunciado, acaba por adquirir, com o tempo, o sentido de “ente diabólico”. n) LEPRA: unidade léxica que, devido ao tabu existente em torno dessa doença, passa a ser substituída pelo termo “hanseníase”. 9. Equívocos de interpretação: esse processo ocorre devido a um equí- voco na interpretação dos termos. Um exemplo bastante interessante citado por Garcia (2010) é o vocábulo floresta, que significava “área do lado de fora da cidade” (e era escrito foresta). Como as áreas de fora da cidade eram, em geral, arborizadas, entendeu-se, erroneamente, que o vocábulo era derivado de flora e que significava mata. Daí a mudança inclusive de sua escrita (de foresta – para floresta). 10. Palavras que contam histórias: é quando o processo de denomina- ção de um vocábulo está intimamente ligado a um fato histórico, sen- do parte da própria história. O autor exemplifica com a palavra escra- vo, oriunda de sclavu(m), proveniente, por sua vez, de slavu(m), cujo significado era “eslavo”. Os eslavos eram um povo branco que vivia nas A trajetória das alterações semânticas nas línguas e os seus reflexos no campo do ensino de língua estrangeira e da tradução 201 fronteiras do Império Romano e eram com frequência capturados para servirem de escravos – uma prática muito comum na época. O termo, que no princípio não tinha nenhuma ligação com a escravidão de ne- gros, passou por uma evolução do seu significado o qual permanece vivo até hoje na comunidade de língua portuguesa. Embora acreditemos que as considerações feitas por Garcia (2010), com base em Ullmann (1977), acrescidas de nossos comentários tenham sido es- clarecedoras para se compreender quão diversificados e complexos são os processos de mudança de sentido do léxico das línguas, na seção seguinte faremos mais algumas considerações acerca dessas mudanças – visando, por fim, abordar um pouco das consequências que essas alterações semânticas podem trazer no que se refere ao ensino de línguas estrangeiras e à tradução. 3. Lexias cognatas de dois ou mais idiomas que originaram vocábulos com sentidos semelhantes (ou apenas parcialmente semelhantes) e outros com significados completamente diferentes entre si Apesar da importância de reconhecer os processos pelos quais os léxicos das línguas passam, os quais resultam em variações ou alterações semânticas, nesta seção não nos preocuparemos em identificar por quais processos de alteração de sentidos os vocábulos que abordaremos teriam passado. Isso se deve ao fato de entendermos que muito mais importante que nomear as ações que certas unidades léxicas sofreram é identificar quais lexias passa- ram por processos de variação ou de mudança de sentido. Assim sendo, na seção seguinte teceremos alguns comentários a cerca desses itens lexicais. Aprender línguas estrangeiras, ainda que tenham tido as mesmas ori- gens (as neolatinas, por exemplo), quase sempre representa grande desafio. Isso porque ao mesmo tempo em que se pode beneficiar das semelhanças existentes entre elas, é também impossível deixar de conviver com os pro- blemas de interferência que se apresentam, tanto por causa das semelhan- ças apresentadas quanto por conta das diferenças. Por isso, às vezes, as difi- culdades encontradas nessas semelhanças e diferenças podem ser maiores que os próprios benefícios causados pelas igualdades. Com o intuito de ilustrar essas afirmações, citamos apenas alguns exem- plos dentre uma infinidade de outros existentes, os quais deixam claro que cada língua tem suas especificidades inerentes. Marilei Amadeu Sabino202 • Os verbos arrivare, do italiano (it.), arriver, do francês (fr.), arrive, do inglês (ing.) são todos provenientes de um mesmo étimo e possuem, por- tanto, a mesma raiz. Contudo, nas línguas espanhola e portuguesa, esses mesmos verbos provêm de outro étimo: llegar, do espanhol (esp.), e che- gar, do português (port.). • Se acreditarmos que o verbo italiano fermare, bem como o francês fermer são sinônimos, por terem a mesma etimologia [lat. firmare], sere- mos induzidos a um grave erro, pois fermare (it.) significa “parar; fixar; prender; ficar, demorar” e fermer (fr.) quer dizer “fechar; encerrar; terminar, concluir; cicatrizar”. • Se partirmos do pressuposto que os verbos voler (fr.) e volare (it.) são sinônimos, por serem ambos originários do verbo latino [volare], estare- mos fazendo uma afirmação que é só parcialmente verdadeira, já que, en- quanto o verbo voler (fr.) significa voar e também roubar, furtar, o verbo volare (it.) significa apenas voar, mas não significa roubar, que seria rubare. • Se por um lado, o vocábulo latino pirum – pira (pl.) deu origem aos seguintes vocábulos nas outras línguas: pera (português), pera (espanhol), pera (italiano), poire (francês) e pear (inglês), por outro lado, os vocábulos que designam a fruta maçã são os seguintes: maçã (port.), manzana (esp.), mela (it.) e pomme (fr.), além de apple2 (ing.). Isso porque, para a ideia de “maçã”, existiam duas palavras em latim: melum e pomum. A palavra ma- lum < melum deu origem ao vocábulo italiano mela. Na Gália românia, em vez de melum, se impôs a forma pomum, que, em geral, era a designação mais usual da fruta. Este último motivou o aparecimento de pomme, em francês. Uma classe de maçãs especialmente apreciadas era as mala Mat- tiana, que deviam estar muito difundidas na Península Ibérica, visto que nesse nome se apoiam as denominações atuais do espanhol manzana e do português maçã. • O vocábulo latino persicu(m) (malum), “maçã da Pérsia”, deu ori- gem ao nome da fruta “pêssego” nessas cinco línguas: pêssego (português), pérsico/pérsigo (espanhol), pesca (italiano), pêche (francês) e peach (in- glês). No entanto, apesar dessa origem comum, evoluções fonéticas distin- 2 Em inglês, o vocábulo apple – do inglês antigo oeppel – originou-se do germânico. A trajetória das alterações semânticas nas línguas e os seus reflexos no campo do ensino de língua estrangeira e da tradução 203 tas entre as línguas geraram o fenômeno da homonímia, em italiano, já que deu origem a pesca1 (= pêssego) que coexiste com pesca2 (= ato de pes- car, pescaria), seu homógrafo/heterófono. Por conseguinte, esse fato gerou o fenômeno dos cognatos enganosos entre o português e o italiano, já que em português existe um único vocábulo pesca (= ato de pescar, pescaria). • O vocábulo da língua inglesa cucumber e o vocábulo italiano cocomero tiveram ambos a mesma origem [lat. cucumer, cucumeris; cucumere(m)]. No entanto, cucumber em inglês é um legume e significa “pepino”, enquan- to cocomero, em italiano, é uma fruta e quer dizer “melancia”. • A unidade lexical raisin (do francês) e raisin (do inglês) são ambas originárias da palavra latina [racemus]. Contudo, a lexia francesa significa “uva”, enquanto a inglesa quer dizer “uva-passa”, já que para designar a “uva” (enquanto fruta fresca) se usa o vocábulo grape. • Da lexia latina [recepta] surgiram os vocábulos receita, da língua por- tuguesa, ricetta, do italiano, e recette, da língua francesa. Todavia, o sentido de “receita” (= prescrição médica) apenas os vocábulos das línguas portugue- sa e italiana possuem. Em francês, usa-se o vocábulo ordonnance para tal. 4. Vocábulos “falsos cognatos” versus “cognatos enganosos” Exemplos como esses citados anteriormente são inúmeros, em quaisquer pares de línguas neolatinas e exemplificam o fenômeno da univocidade do léxico de um idioma por oposição a outra ou a outras línguas. Desse modo, é muito fácil listar vários vocábulos de duas ou mais lín- guas que, apesar de grande semelhança formal, apresentem sentidos bas- tante diferentes. Exemplos: calza (= “meia”, em italiano) X calça (em português) attendere (= “esperar”, em italiano) X atender (em português) esperto (= “perito”, em italiano) X esperto (em português) salire (= “subir”, em italiano) X sair (em português). Do mesmo modo, não é difícil construir grandes encadeamentos de palavras, de duas línguas distintas, como propuseram Xatara e Oliveira (1995) para o francês e o português, sob o nome de “redes de falsos cog- Marilei Amadeu Sabino204 natos”. Vejamos alguns exemplos desse fenômeno, nas línguas italiana e portuguesa: coppa (it) = taça (port.) tazza (it.) = xícara (port.) tassa (it.) = taxa (port.) copa (port.) = tinello/sala da pranzo (it.) copo (port.) = bicchiere (it.) coppo (it.) = telha de meia-cana (port.). Aos pares de vocábulos que, apesar de possuírem etimologia comum, não apresentam mais sentidos afins devido às diferentes evoluções semân- ticas sofridas por cada um deles, ao longo do tempo, atribuímos o nome de “cognatos enganosos”. Por outro lado, os vocábulos que, sendo provenientes de étimos diferen- tes, resultaram – em consequência das evoluções fonéticas que sofreram, ao longo do tempo – em vocábulos ortográfica e/ou fonologicamente idênticos ou semelhantes, apesar de possuírem valores semânticos bastante distintos, chamamos de “falsos cognatos” (SABINO, 2002). Neste sentido, Biderman (1998) salienta que, ao compararmos dois ou mais pares de línguas, podemos multiplicar ao infinito os exemplos ilustra- tivos do fenômeno da univocidade do vocabulário de uma língua por opo- sição a outro ou a outros idiomas. E, segundo ela, isso ocorre até mesmo entre línguas da mesma família linguística que têm grande semelhança es- trutural, como é o caso das línguas neolatinas. Para Biderman, “a não-equi- valência semântica entre os signos lingüísticos de duas ou mais línguas é o mais eloqüente exemplo de como cada língua recorta o universo cognoscível à sua maneira, na criação de seu repertório lexical” (1998, p. 98). Por isso, ao tratar da dimensão cognitiva da palavra, essa autora reconhece que “cada língua traduz o mundo e a realidade social segundo o seu próprio modelo, refletindo uma cosmovisão que lhe é própria, expressa nas suas categorias gramaticais e léxicas” (p. 93). Para nós, o surgimento seja de “falsos cognatos”, seja de “cognatos enga- nosos”, representa um empecilho aos usuários das línguas, visto que podem induzi-los a cometer sérios enganos tanto na compreensão quanto na pro- dução linguística nesses idiomas. A trajetória das alterações semânticas nas línguas e os seus reflexos no campo do ensino de língua estrangeira e da tradução 205 Considerações finais Em pesquisa realizada em 2002, selecionamos mais de 200 pares de vocá- bulos do português e do italiano que, apesar de apresentarem semelhan- ça formal, possuíam sentidos diferentes e constatamos que, dessa quantia, quase dois terços tinham étimo comum (eram cognatos). Apenas pouco mais de um terço eram palavras que, apesar da semelhança formal, pos- suíam etimologia diferente, isto é, eram falsos cognatos (SABINO, 2002). Isso nos fez comprovar que a grande maioria dos pares de palavras for- malmente semelhantes entre o italiano e o português são vocábulos que ti- veram origem comum, mas que, por terem sofrido evoluções semânticas di- ferentes, desenvolveram sentidos diferentes entre si. Essas especificidades ou nuances de sentido entre esses vocábulos repre- sentam grande desafio tanto no momento de decodificação quanto naquele de codificação de uma língua estrangeira cognata em relação à língua ma- terna do aprendiz, tradutor ou usuário qualquer da língua. Por isso, quaisquer que sejam as circunstâncias ou forças impulsoras que contribuem para promover mudanças no léxico de uma língua podem induzir o aprendiz de línguas, tradutor, professor ou outro profissional da área a cometer sérios erros de compreensão ou de tradução, em virtude dos vocábulos que intitulamos “cognatos enganosos”, os quais representam ver- dadeiras armadilhas aos profissionais que atuam no campo das línguas es- trangeiras. Referências Bibliográficas BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Dimensões da palavra. Filologia e Lin- güística Portuguesa, n. 2, p. 81-118, 1998. Disponível em: . GARCIA, A. da Silva. Semântica histórica. Disponível em: . MEILLET, Antoine. Comment les mots changent de sens. In: Linguis- tique historique et linguistique générale. Paris: Librairie Ancienne Honoré Champion, 1948. PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis de fala – um estudo sociolingüísti- co do diálogo literário. 3. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1977. Marilei Amadeu Sabino206 ROHLFS, Gerhard; ALVAR, Manuel. Estudios sobre el léxico románico. Ma- drid: Ed. Gredos, S. A., 1979. SABINO, Marilei Amadeu. Dicionário de Falsos Cognatos e Cognatos Enga- nosos Italiano – Português: subsídios teóricos e práticos. Tese (Doutorado) – FCL, Araraquara, 2002. ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Trad. J. A. Osório Mateus. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1977. XATARA, Claudia Maria; OLIVEIRA, Wanda A. Leonardo de. Dicionário de falsos cognatos francês-português e português-francês. São Paulo: Schimi- dt, 1995. Recebido em 25 de março de 2011 Aceito em 27 de maio de 2011