SEMÍRAMIS CORSI SILVA RELAÇÕES DE PODER EM UM PROCESSO DE MAGIA NO SÉCULO II D.C. UMA ANÁLISE DO DISCURSO APOLOGIA DE APULEIO Franca 2006 2 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA RELAÇÕES DE PODER EM UM PROCESSO DE MAGIA NO SÉCULO II D.C. UMA ANÁLISE DO DISCURSO APOLOGIA DE APULEIO SEMÍRAMIS CORSI SILVA Dissertação apresentada ao curso de pós- graduação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social - UNESP/Franca como requisito à obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho Franca 2006 3 SILVA, Semíramis C. Relações de poder em um processo de magia no século II d.C. Uma análise do discurso Apologia de Apuleio. Dissertação de Mestrado. Franca: UNESP, Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 2006. Comissão Examinadora: ___________________________ Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho (Orientadora) ____________________________ Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva (UFES) ____________________________ Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha (UNESP/Assis) 4 AGRADECIMENTOS Ao longo dos anos que transcorreram o Mestrado, muitas foram as sugestões, idéias e diversos tipos de auxílios para que esse trabalho pudesse se realizar. Cabe agradecer primeiramente ao apoio financeiro da CAPES, entidade que me concedeu recursos para aquisição de material e realização desta Dissertação. Agradeço a imprescindível orientação da Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho. Desde a discussão da temática a ser trabalhada até as considerações finais da pesquisa, a orientação desta professora esteve presente, mostrando-me os interessantes caminhos da “Escrita da História”. Sou especialmente grata à solicitude do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva (UFES), que aceitou participar da banca de defesa e enviou-me materiais bibliográficos e informações para a pesquisa. A este professor devo ainda o despertar da paixão pelo estudo da magia na Antiguidade Romana por ocasião de um mini-curso por ele ministrado no XX Encontro Nacional dos Estudantes de História - ENEH, ocorrido do ano de 2000 na Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Ao Prof. Dr. Glaydson José da Silva (UNICAMP) e ao Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha (UNESP/Assis) agradeço a participação na banca de qualificação. A leitura atenta feita por estes professores foi fundamental para minha pesquisa, suas críticas e sugestões procurei incorporar ao texto final na medida de minhas possibilidades. Ao Prof. Ivan sou grata também pela disposição em participar na defesa da presente Dissertação. A Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves (UFG) agradeço pelas reflexões fornecidas sobre alguns conceitos por nós empregados. Ao Prof. Dr. Thomas Winter 5 (University of Nebraska-Lincoln) agradeço pela disposição rápida de sua Tese de Doutoramento, de enorme valia para alguns questionamentos pertinentes à discussão de nossa fonte documental. As colegas que compartilham comigo da paixão pela História de Roma e que se tornaram grandes amigas nos anos do meu Mestrado, Beatris Gratti, Helena Papa e Vanessa Fantacussi, agradeço pelas experiências compartilhadas, trocas de materiais pertinentes e pelas hospedagens em suas casas nas ocasiões de orientações, pesquisas e eventos científicos. Agradeço aos amigos que contribuíram diretamente e indiretamente com a Dissertação que se apresenta, lendo manuscritos, trocando idéias, dando dicas, auxiliando na formatação do trabalho final, me fornecendo hospedagens durante meus dias de pesquisa e concursos, comemorando cada vitória e, acima de tudo, dando o apoio emocional necessário nas horas mais difíceis da conclusão do Mestrado. Não me furtarei a dizer o nome de todos eles: Mateus Marcelino, Danilo Marcelino, Renan Carmo, Érica Winand, Thiago Reis, Reginaldo Guiraldelli, Leonardo Borges, Caio Tuzzolo, Fernanda Corsi, Alexandre Bonafim, Bruno Pessoni e Douglas Sampaio. Finalmente, agradeço minha família pelo incentivo constante. Agradeço de forma especial minha mãe e minha tia Regina Corsi, pelo carinho, paciência e compreensão que sempre acompanham cada um de meus projetos e realizações. 6 “O passado é interessante não somente pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem constituía o presente, mas igualmente como passado, por seu valor histórico”. Charles Baudelaire 7 RESUMO Por volta do ano de 159 d.C., o filósofo médio-platônico Apuleio foi acusado de praticar magia para conquistar e se casar com uma rica viúva da cidade de Oea na África romana. Os acusadores faziam parte da família da viúva e de seu falecido marido, sendo que todos envolvidos na ação contra Apuleio eram homens da elite da cidade em questão. Apuleio defendeu-se em causa própria e, anos mais tarde, transcreveu o discurso de defesa intitulado Apologia. Os estudos historiográficos que versam sobre as razões do processo fundamentam-se em mostrar possíveis confusões dos acusadores em relação às práticas místicas de Apuleio, típicas da filosofia médio-platônica, com a magia e razões de interesse de Apuleio e dos acusadores na riqueza da viúva como causa do processo. A presente Dissertação objetiva apresentar uma proposta de leitura das motivações da acusação infligida contra Apuleio no âmbito das relações de poder em torno de algumas características que envolviam o acusado e que estão, conforme nossa análise, presentes na acusação, tais como: a representação do filósofo como homem público capaz de desenvolver atividades relacionadas à política, as relações da magia com o poder e os casamentos da elite romana como formas de alianças entre famílias. Palavras-chaves: Roma, Apuleio, Apologia, Magia, Médio-Platonismo, Casamento Romano. 8 ABSTRACT In the region of year 159 a.D. the philosopher medium-platonic Apuleius was accused to practice magic to conquer and to marry to a rich widow of the city of Oea in the Africa Roman. The plain tiffs were part of the family of the widow and of her deceased husband, being that all involved ones in the action against Apuleius were elite’s men of the city in question. Apuleio defended in proper cause and years later he transcribed the defense speech, entitled Apology. The historiography’s studies that turn on the reasons of process, are based on showing possible confusions of the plaintiffs in relation them practice mystics of Apuleius, typical of the medium-platonic philosophy with the magic and reasons of interest of Apuleius and of the plaintiffs in the wealth of widow as cause of the process. The present Dissertation consists to present a propose of reading of the motivations of the accusation inflicted against Apuleius in the scope of the relations of being able around some characteristics that involved the defendant and that they are, in agreement our analysis present in the accusation, such as: the representation of the philosopher as public personality capable to develop activities related to the politics in this context, the relations of the magic with the power and the marriages of the elite roman as forms of alliances between families. Keywords: Rome, Apuleius, Apology, Magic, Medium-Platonic Philosophy, Roman Marriage. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................11 1. EM TORNO DE APULEIO.....................................................................................23 1.1 Vida e obra de Apuleio: a trajetória de um homem público.............................23 1.2 O contexto geográfico-cultural de Apuleio......................................................42 1.3 A opulência das personagens da Apologia.......................................................51 2. O DISCURSO APOLOGIA E A HISTORIOGRAFIA..........................................62 2.1 Alguns aspectos do discurso Apologia............................................................62 2.2 Discussão historiográfica acerca do processo de magia..................................70 3. MAGIA, FILOSOFIA, CASAMENTO E PODER NO PRINCIPADO ROMANO......................................................................................................................96 3.1 As práticas mágicas de Apuleio e as relações entre magia e poder.................96 3.2 Apontamentos sobre a filosofia de Apuleio e o papel do filósofo no século II d.C.....................................................................................................................112 3.3 Considerações acerca do casamento romano e a situação jurídica de Pudentila...............................................................................................................122 4. ACUSAÇÃO E DEFESA NA APOLOGIA............................................................131 4.1 Envolvidos no processo..................................................................................131 4.2 Difamações contra Apuleio............................................................................133 4.3 Interpretação dos pontos de acusação e apresentação da defesa de Apuleio.136 4.3.1 Pontos relacionados à imagem de Apuleio como filósofo, orador e homem público................................................................................................134 10 4.3.2 Pontos relacionados à magia e suas relações com a filosofia de que Apuleio era seguidor......................................................................................145 4.3.3 Pontos relacionados ao casamento de Apuleio com Pudentila e a possível aliança estabelecida com o mesmo...................................................157 4.4 Estrutura e análise da defesa..........................................................................166 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................177 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................182 ANEXOS......................................................................................................................197 Anexo 1- Mapa das províncias da África do Norte no final do século II d.C.....197 Anexo 2 - Árvore genealógica dos principais envolvidos na acusação contra Apuleio................................................................................................................198 11 INTRODUÇÃO O presente trabalho representa, de certa forma, um desdobramento de uma pesquisa desenvolvida na graduação em História que teve como tema as representações de feiticeiras romanas na obra do poeta Horácio.1 Nesta pesquisa, constatamos que as fontes literárias do Principado Romano representavam a mulher como a principal praticante da magia. Autores como Horácio (65-8 a.C.), Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.), Lucano (39-65 d.C.), Petrônio (m. 65 d.C.), Apuleio (ap. 125-170 d.C.), entre outros, ao tratarem da magia em suas obras literárias, em geral, se referiam aos praticantes dessa arte com personagens femininas. Ainda durante a graduação tivemos contato com o texto Apologia, transcrição da autodefesa do filósofo Apuleio perante uma acusação de magia no século II d.C.2 A leitura do discurso Apologia nos atraiu, pois o referido processo trata-se de uma acusação a um homem público, ocupante de cargos políticos, iniciado nas religiões de mistérios da época, filósofo, orador e sacerdote. Por meio da leitura bibliográfica percebemos que os homens são especialmente mencionados nos processos judiciários relativos ao crime de práticas mágicas. Ainda pudemos conferir que os homens também foram os maiores praticantes da magia em si, o que é atestado pelas fontes arqueológicas, enquanto que no campo literário as mulheres são, em geral, mais citadas. Acreditamos que este fato esteja relacionado às próprias relações de 1 Tal pesquisa resultou na Monografia intitulada: “Práticas de magia e universo feminino: feiticeiras romanas na obra do poeta Horácio (65-8 a.C.)”, apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP/Franca, no ano de 2003 sob orientação da Profa. Maria Celeste Fachin. 2 Conferimos também que esta obra constitui um importante documento sobre a vida cotidiana na região da Tripolitania (região que abarcava as cidades romano-africanas de Oea, Sabrata e Leptis Magna) durante o século II d.C. e para o estudo da magia e da eloqüência judiciária nesse contexto. 12 influência no mundo antigo que estavam limitadas à participação feminina. Assim, constatamos que se processavam mais homens no Principado Romano porque havia uma preocupação maior com as possíveis ligações destes com a magia.3 Já as mulheres eram representadas como praticantes de magia na literatura porque os escritores deste período consideravam estas práticas desviantes e temidas, devendo ser ridicularizadas e jamais podendo ser algo masculino, principalmente para a elite detentora do poder político da qual faziam parte os poetas. Nesse sentido, ao representarem a magia como algo essencialmente feminino, os poetas moldavam um diálogo com os homens romanos, estabelecendo o que lhes era proibido, digno apenas de mulheres e que ainda assim deveria ser punido. Verificamos, igualmente, que grande parte das acusações de magia em Roma estão diretamente ligadas ao poder, tanto que ao analisarmos o marco legal sobre o crime de magia, podemos perceber que nem sempre era a prática em si que estava em questão, mas também o poder, a hierarquia social e as posses.4 Destacamos que o direito romano se caracterizou como uma estratégia refinada de resolução de problemas sociais, sendo comum que disputas relacionadas a questões de 3 Conforme Flitz Graf (1994: 211), os documentos arqueológicos encontrados em solo romano dizem respeito a práticas mágicas relacionadas a disputas entorno de poder. Assim, segundo este historiador, é comum termos imprecações mágicas que envolvem disputas (jurídicas, comerciais, esportivas) e práticas de magia amorosa. No primeiro caso fica visível que tais disputas eram realmente mais comum aos homens, pois eram eles que, em geral, tramitavam no âmbito jurídico, comercial e esportivo da sociedade romana. No segundo tipo de prática, a magia amorosa, o caso mais comum são de homens que ensaiam para possuir um casamento com uma mulher. Sobre a prática de magia amorosa, Graf (1994: 212) nos sugere que analisemos a superioridade masculina também no âmbito das relações de poder, já que os casamentos eram uma forma apenas do homem adquirir bens e status social, os bens femininos não estavam nas mãos das mulheres. 4 Em relação às leis que puniram o crime de magia em Roma, sabemos que o uso da magia foi punido em toda tradição jurídica romana. No período em que Apuleio foi acusado, se incriminava o praticante da magia por meio da Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis, que foi instituída por Sila em 81 a.C. e se encontra atualmente como parte das compilações do Digesto do Imperador Justiniano. Esta lei, assim como a Lei das Doze Tábuas - que incriminava aquele que “jogou mal olhado” sobre a colheita de outrem - punindo, dessa maneira, uma espécie de roubo - não condena a magia enquanto tal, mas os crimes a mão armada contra a vida de uma pessoa, emparelhando a magia ao envenenamento. O problema se deu devido ao fato do termo veneficium, que deriva do grego, significar não somente a fabricação de drogas e venenos, mas também encantamentos de todas as espécies (GRAF, 1996: 57-58). A Lex Cornelia de Sicarii et Veneficis era um ponto da Lei Cornélia que castigava delitos contra a vida humana, assim, punia também assassinatos com outros tipos de armas e roubos (MUNGUÍA, 1980: 24). 13 poder e posses fossem resolvidas perante um juiz durante o Principado Romano (VEYNE, 1989: 167). Dessa maneira, nessa nova pesquisa, nos propusemos compreender as possíveis motivações que levaram o filósofo Apuleio a comparecer frente a um tribunal na cidade de Sabrata, no norte da África Romana, acusado de praticar magia no século II d.C. Partimos do pressuposto de que tal acusação dissimula uma ameaça de Apuleio às estruturas de poder da cidade onde é acusado. O que nos remeteu a tal situação foi o fato do acusado ser orador e filósofo e ter, neste sentido, recebido uma educação para exercer cargos públicos. Conseqüentemente, acreditamos que Apuleio tinha uma formação político- cultural que ameaçava seus acusadores, membros da elite local de Oea.5 Além disso, Apuleio era iniciado em diversos cultos mistéricos e seguidor da filosofia médio-platônica que aceitava especulações mágicas em seus estudos. Tais práticas foram tidas como ameaçadoras para uma elite que temia magos, adivinhos e qualquer tipo de praticante que pudesse representar poderes alternativos e paralelos ao poder oficial. Destacamos ainda que Apuleio se casa com uma rica viúva da cidade, contraindo uma aliança política entre ele e a família de sua esposa e que seus principais acusadores eram pessoas da família do primeiro marido de sua esposa, sendo que ela, antes de ser casar com Apuleio, contraiu esponsais6 com o irmão do marido falecido. Portanto, podemos perceber que uma possível aliança entre a família dela e de seu marido foi rompida e uma nova, entre sua família e Apuleio, 5 Para a aristocracia romana a educação era o meio de formar os jovens para administrarem o Império, favorecendo o desenvolvimento e a formação de profissionais liberais (GAGÉ, 1971: 221). O que distinguia um homem erudito entre os antigos gregos e romanos era sua cultura filosófica e oratória e o prestígio artístico conferido ao orador lhe valia, indiretamente, certo prestígio político. A retórica em Roma sempre se mostrou como a formadora dos dirigentes e futuros detentores de alguma forma de poder (MARROU, 1971: 305, 307, 390). É nesse sentido que usamos o termo formação político-cultural, já que no Império Romano os jovens das camadas superiores recebiam uma educação e uma formação cultural própria para a vida pública e política. 6 Referente a uma espécie de noivado moderno, as esponsais eram um compromisso de futuras núpcias, um contrato verbal entre a família do noivo e da noiva. A palavra esponsais, em latim sponsalia, deriva do verbo latino spondére que significa prometer, assim os esponsais seriam uma promessa mútua de casamento (CARROZZO, 1991: 70). 14 foi contraída, já que tais acordos matrimoniais eram comuns no contexto estudado e tinham relações com práticas políticas e alianças de poder entre famílias. Como fonte documental principal para nossa pesquisa utilizamos o próprio discurso de defesa de Apuleio, a obra Apologia.7 Este documento consiste na transcrição da autodefesa do filósofo, elaborada anos mais tarde do desenrolar do processo. Além disso, fazemos algumas referências e nos apoiamos na interpretação de informações remetidas por outras obras de Apuleio, tais como O Deus de Sócrates, Metamorfoses e Flórida. Adotarmos o conceito de discurso para referirmos a fonte por nós trabalhada é importante para definir a própria maneira como a tratamos. Sobre este conceito, adotamos a acepção elaborada por Helena Nagamine Brandão (1995: 12), que se refere aos discursos como operadores de ligações entre o nível lingüístico e o extralingüístico. Ou seja, para a autora, o texto: [...] é resultado do percurso que o indivíduo faz da elaboração mental do conteúdo a ser expresso à objetivação externa - a enunciação - desse conteúdo, é orientado socialmente, buscando adaptar-se ao conteúdo imediato do ato da fala, e, sobretudo, a interlocutores concretos (BRANDÃO, 1995:10). Dessa maneira, deixa claro que em uma análise de documento que adote esta perspectiva, apenas o estudo lingüístico interno não dá conta do objeto, é necessário fazer uma articulação do processo lingüístico com o social. De acordo com Eni Pulcinelli Orlandi (1987: 233), o conceito de discurso é um conceito teórico-metodológico usado para definir a maneira de se analisar um texto, a unidade de análise. Ambos, texto e discurso se definem mutuamente e o papel do 7 Utilizamos na presente Dissertação das traduções da Apologia de Santiago Segura Munguía, da Editora Gredos (1980) e de Paul Valette, da Editora Les Belles Lettres (1960). A primeira tradução é da língua latina para o espanhol e a segunda do latim para o francês, sendo essa edição bilíngüe. Também fazemos neste trabalho algumas referências ao texto original em latim, para tal, utilizamos o texto bilíngüe da Editora Les Belles Lettres. 15 pesquisador é encontrar no texto sua qualidade discursiva. Para isso é necessário levar em conta as condições de produção do texto analisado, interpretando as características discursivas que situam o texto em sua formação discursiva. Portando, a autora citada mostra que a análise do texto não pode prescindir jamais da análise do contexto sócio- histórico, pois os dados retirados do material não têm sentido próprio se não forem referidos a seu tempo, espaço e lugar de onde fala o autor. Assim, propomos considerar nosso discurso dentro das condições concretas que foi produzido, desmontando-o e desvelando-o através de uma crítica interna, dentro de sua intencionalidade inconsciente, vinculada a uma crítica externa. Segundo nos aponta Jaques Le Goff (1996: 547), o documento é monumento no sentido de que foi feito para durar, não sendo algo que fica por conta do passado, mas um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. A função do historiador, segundo Le Goff (1996: 545) é estabelecer a crítica ao documento/monumento. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, ao pleno conhecimento da causa. Nesse trabalho buscamos compreender a exterioridade do que é enunciado através de uma análise das questões colocadas implicitamente por Apuleio como razões da acusação, verificando o valor das mesmas no contexto em que nossa fonte foi elaborada. Para isso, analisamos a maneira como Apuleio se defende, ou seja, a maneira como concebe sua acusação e a significação das acusações mencionadas contra ele na sociedade do século II d.C. O discurso ainda é analisado como um local ideal para a manifestação de uma ideologia (SILVA, Glaydson J. 2001: 26). Compreendemos ideologia como um sistema de significação da realidade, sendo o posicionamento de um sujeito e/ou um grupo diante do 16 mundo que vive. Sobre linguagem, entendemos como signo que representa a realidade (BRANDÃO, H., 1995: 10). A linguagem, nessa perspectiva, pode até camuflar a realidade, ou seja, a leitura do que poderia ser explícito, daquilo que foi escolhido pelo autor para ser dito e até o que se omitiu, levam-nos a identificar os elementos necessários para nossa interpretação. Percebemos a obra Apologia como um discurso que não está isento de ideologias. Por isso, não devemos deixar de decodificar a linguagem contida nesta obra como uma forma de interação social, repleta de significados. Logo, a Apologia foi tida não como um testemunho irrefutável, mas como uma representação do real pela ótica de seu autor. Devemos considerar que a fonte histórica por nós estudada refere-se à transcrição de um processo e sua defesa pelo próprio acusado, sendo um instrumento de mediação e testemunho de uma realidade. O discurso contém uma visão do autor a respeito dos pontos de acusação que pode não ser a mesma apresentada pelos acusadores, mostrando-nos a apreensão do real de acordo com seu escritor/réu. Acreditamos que a acusação colocada a partir do ponto de vista do acusado revela-nos a maneira como o mesmo viu as motivações que o levaram ante o tribunal, como ele representa sua imagem perante seus acusadores e como percebe-se inserido em seu contexto sócio-histórico. Assim, faz-se útil o instrumental teórico-metodológico fornecido pela História Cultural que nos fornece subsídios para identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é constituída, pensada e dada a ler (CHARTIER, 1988: 17). O método que utiliza a análise das representações sociais tem se constituído nos últimos anos como uma das principais formas de investigação histórica. 17 Portanto, com o intuito de compreender a maneira como nosso autor se defendeu, como percebeu o processo, apropriando-se da linguagem representativa, e também como seus acusadores o expuseram a fim de conter uma possível ameaça do acusado, acreditamos ser necessário recorrer à noção atual do conceito de representações. Para isso, nos reportamos à obra de Roger Chartier, um dos pilares fundamentais da moderna História Cultural, e sua definição para este outro conceito. Consideramos que o homem por meio da manipulação das representações pode esconder o real, representando seus anseios, suas revoltas e suas vitórias da maneira que deseja, construindo representações como se fossem verdades. Cabe ao historiador desconstruir o discurso do protagonista por meio da análise de sua maneira de compreensão do mundo. O conceito de representações foi por nós utilizado em dois aspectos: ao analisar a representação que Apuleio faz de sua imagem e de sua acusação e a representação que os acusadores demonstram fazer dele. Buscamos analisar as acusações apontadas contra nosso autor como construções que representam o mundo social. Compreendemos que os adversários de Apuleio fazem parte de um grupo social com determinados interesses próprios e ao verem seus interesses em perigo, representam as práticas de Apuleio como maléficas, chegando a ponto de acusá- lo como um praticante da magia, algo proibido por lei no mundo romano. Conforme Chartier (1988: 17), os grupos sociais criam suas representações do mundo social, de maneira a impor seus limites e valores. As apreensões de mundo particulares nos fornecem informações sobre os grupos sociais, pois visando estabelecer uma comunicação social, os indivíduos classificam, ordenam e hierarquizam a sociedade a 18 sua volta. Dessa maneira, os grupos criam os mecanismos necessários para impor ou tentar impor a sua concepção de mundo e seus valores. O autor mencionado supõe as representações sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. Observa que existe uma luta de representações, “onde o que está em jogo é a ordenação, logo a hierarquização da própria estrutura social” (CHARTIER: 17). Portanto, entendemos que os acusadores de Apuleio se apropriam de determinados aspectos e forjam representações da realidade conforme seus interesses de grupo. Devemos salientar que não consideramos estas representações como simples abstrações, mas como uma forma de ação política, um artifício usado pelos inimigos de Apuleio para eliminarem alguém que poderia representar perigo às estruturas de poder da cidade onde viviam e onde representavam a elite. Também consideramos que Apuleio, ao montar seu discurso, o apresenta a partir de seu ponto de vista, de suas representações. É nesse sentido que em nosso trabalho foi fundamental a reconstituição das posições sociais de nosso autor e de seus acusadores, na medida que nossa documentação permitiu que isso fosse feito, e exteriorizar as referidas acusações contra Apuleio, analisando suas significações no contexto estudado. Ao trabalharmos estas representações relacionadas ao poder, ou seja, analisando as referidas acusações contra Apuleio como formas de prestígio social e político no século II d.C. também é preciso conceituar o que interpretamos como poder em nossa pesquisa. Conforme a definição de Mario Stoppino (1909: 933-936), poder significa, em linhas gerais, a ação ou a capacidade de agir de um homem sobre outro homem. Portanto, é a capacidade de uma pessoa produzir os efeitos desejados por ela, determinando o comportamento de outrem. 19 Podemos considerar que há dois tipos de poder. O primeiro tipo seria o poder atual que é o ato efetivamente exercido (ato concreto) evidenciado pelo exercício de domínio e influência. O segundo tipo de poder é o potencial (possibilidade de agir), representação que uma pessoa ou um grupo de pessoas projetam em alguém devido a aptidões que esta possua. Ainda de acordo com Stoppino (1909: 939), um modo de medir o poder é “determinando as diversas dimensões que tem o comportamento em causa. Em tal sentido, uma primeira dimensão do poder é dada pela probabilidade que o comportamento desejado se verifique”. Em nossa pesquisa, utilizamos a expressão poder para definir a capacidade de Apuleio em converter os recursos à sua disposição em formas de ação política. Dessa forma, analisamos a capacidade dos acusadores em representarem Apuleio como alguém que teria potencial por ter entorno de si recursos ligados ao poder de modificar o curso natural dos eventos (o poder advindo da magia) e à política em Roma: ser um orador e filósofo, ter relações com a magia e a religião e casar-se com uma mulher da elite de Oea.8 Sendo que aceitamos em nossa pesquisa a ligação do papel do orador e filósofo, da magia e do casamento com a política neste contexto. Os aspectos citados, filosofia, magia e casamento e suas ligações com o poder e conseqüentemente com a política no século II d.C. podem ser considerados as preocupações gerais da Dissertação que se apresenta. Em torno destes aspectos, analisados como centrais na acusação contra Apuleio, montamos a estrutura de análise de nossa fonte. 8 O conceito de poder está diretamente relacionado ao conceito de política, pois ao analisar estruturas de poder em uma sociedade necessariamente está se analisando as formas dos homens se relacionarem e se organizarem, ou seja, como agem politicamente a fim de ordenarem a vida social. 20 Quanto à estrutura da Dissertação, nosso texto é apresentado em quatro capítulos. Optamos por fazer no primeiro capítulo uma exposição dos aspectos biográficos de Apuleio. Ressaltamos a camada social que nosso autor fazia parte, fator que consideramos determinante para a posição do sujeito na sociedade romana e característica ímpar para sua formação político-cutural. Especial atenção foi dada para a trajetória de nosso autor como homem público e sua formação em relação ao território onde nasceu e foi acusado: a África Romana. Ainda analisamos no primeiro capítulo a opulência das personagens que figuram na acusação contra o filósofo.9 Dado esse passo, procuramos identificar no segundo capítulo alguns aspectos do discurso Apologia, tais como: possível datação da escrita da fonte, modificações do discurso pronunciado para o discurso escrito, razões da elaboração da obra, incertezas sobre a autoria da transcrição do discurso10, público para o qual se direcionava o texto e denominação do discurso. Também nesse capítulo foi feita uma discussão historiográfica com autores que apenas opinam e outros que elaboram análises sobre os motivos da acusação contra Apuleio. O terceiro capítulo consiste na análise dos elementos que acreditamos dar subsídios para o estudo de nosso objeto de pesquisa: a magia, a filosofia e o casamento no século II d.C. e as vinculações destes com o poder em Roma. Assim, buscamos conceitualizar o que compreendemos como magia, analisamos as práticas de Apuleio dessa natureza e fizemos um estudo sobre as relações da magia com o poder em Roma. Vale ressaltar que consideramos as ligações do poder com a magia neste momento histórico não 9 O termo opulência não foi escolhido por acaso em nossa análise, pois como verificamos, todos os envolvidos na acusação, inclusive o próprio acusado, eram pessoas abastadas financeiramente. 10 Há possibilidades do discurso escrito ter sido obra de copiadores especializados em transcrever discursos jurídicos e não de Apuleio. Esse tema foi tratado por nós no Capítulo 2. 21 apenas como as representações de saber e, conseqüentemente, poder de modificar os eventos naturais em torno do praticante de magia, mas também as relações entre magia e poder político no Principado Romano. Também procuramos neste capítulo nos posicionar em relação a afirmação de Apuleio ser um filosofo médio-platônico. Ainda, mostramos, através de uma sólida bibliografia, o papel desempenhado pelo filósofo na sociedade do século II d.C. Na terceira parte do capítulo fizemos uma definição do casamento romano, citando autores que mostram esta instituição como forma das famílias aristocráticas de Roma contraírem alianças políticas. Por fim, analisamos a possível situação jurídica de Pudentila, a viúva com quem Apuleio se casa. O objetivo do quarto capítulo é a análise da fonte propriamente. Primeiramente, citamos todos os envolvidos na acusação. Feito isso, identificamos os pontos de acusação e os agrupamos dentro de categorias que acreditamos estarem relacionadas aos motivos da mesma: a questão da magia, da filosofia e do casamento de Apuleio. Interpretamos cada acusação dentro das categorias analíticas que sugerimos - acusações relacionadas à magia, ao papel de Apuleio como filósofo e orador e acusações relacionadas ao casamento de nosso autor com a rica viúva. Finalmente, analisamos a estrutura da defesa de Apuleio e como ele próprio nos fornece indícios de que foi acusado por ser um homem ligado a práticas mágicas, próprias de sua filosofia, por ser um filósofo e por ter casado com uma aristocrata contraindo uma aliança política e desmanchando outra. Nesta última parte do quarto capítulo fizemos algumas referências à estruturação de discursos judiciários proposta por Quintiliano, retórico do século I d.C. em seu manual de retórica Instituições Oratórias, que possivelmente foi lido e estudado por Apuleio a fim de melhor montar sua defesa. Nossa preocupação em buscar subsídios de compreensão do discurso na obra de Quintiliano está 22 ligada a uma tentativa de analisarmos como Apuleio sentiu sua acusação e como destaca os pontos principais da mesma, nos dando pistas das motivações de ter comparecido frente ao tribunal, objeto de nossa pesquisa. Por fim, nas considerações finais, resumimos os resultados obtidos, estabelecendo os pontos de contato entre a análise documental e a bibliografia trabalhada. 23 1. EM TORNO DE APULEIO 1.1 Vida e obra de Apuleio: a trajetória de um homem público Há controvérsias sobre os dados biográficos a respeito de Apuleio, bem como sobre a maioria dos autores da Antigüidade Clássica. Desta forma, o que consideramos como biografia do autor é uma montagem de dados tirados de minuciosos exames dos documentos, com indícios que se alteram a partir de informações novas, variando da suposição a traços evidentes, sendo que o próprio Apuleio entrelaça muitos elementos autobiográficos em suas obras.11 Apuleio (geralmente atribui-se a Apuleio o prenome Lúcio12, mas não sabemos ao certo se esse foi seu nome ou se foi associado a ele devido ao personagem Lucius de sua novela Metamorfoses) é considerado um expoente da literatura, da retórica e da filosofia platônica do século II d.C. Nasceu por volta de 114 e 125 d.C. na África sob dominação de Roma e viveu entre os governos dos Imperadores Adriano (117-138 d.C.) e Marco Aurélio (161-180 d.C.). A cidade natal de Apuleio parece ser Madaura, colônia agrária romana na África (atual Mdaurush, na Argélia). Ao referir-se a sua pátria, ele se declara seminumida e semigetulo, denominação proveniente de Numídia e Getúlia, regiões que entremeavam a cidade de Madaura. Quanto à minha pátria, já foi dito, embasados em meus próprios escritos, que está situada na fronteira da Numídia e da Getúlia. Assim, eu mesmo 11 Além de informações remetidas pelas próprias obras de Apuleio, utilizaremos indicações de estudiosos e tradutores de suas obras, entre eles: Paul Valette (1960), Jean Beaujeu (1973), Santiago Segura Munguía (1981), Pierre Grimal (1994), María José Hidalgo de la Vega (1977, 1986, 1995 e 1999), entre outros. 12 L. Lucius Apuleius. 24 declarei, em uma conferência pública que pronunciei na presença do ilustre Loliano Avito, que eu era seminumida e semigetulo. (APULEIO, Apologia, XXIV, 1, 2). A afirmação de ser Madaura a pátria do filósofo é corroborada por manuscritos da época que acrescentam ao seu nome o epíteto “madaurense”. Segundo Philip Ward (1969: 5), uma estranha lenda coloca as origens de Apuleio não na região da Numidia, mas na Tripolitania - região formada pelas cidades de Leptis Magna, Sabrata e Oea.13 Para nós, tal fato pode ter ocorrido por ele ter vivido nesta região durante algum tempo e também por citá-la em suas obras. No ano de 1918, descobriu-se uma estátua com um fragmento de dedicatória dos cidadãos de Madaura a um filósofo platônico que constituía honra à cidade. Tudo indica que esta era uma homenagem para Apuleio14 (GARCÍA, 1988: 20). Porém, para Pierre Grimal (1994: 487), é difícil reconhecer essa estátua como dedicada a Apuleio, argumento que refutamos devido às próprias inscrições da estátua fazerem alusão ao filósofo como seguidor da filosofia platônica e por não haver nenhuma informação sobre outro filósofo desta região que recebeu destaque e foi seguidor desta filosofia. A família de Apuleio ocupou cargos importantes na administração de uma cidade do norte da África, que tudo indica ser Madaura, um importante centro de influência romana (BOISSIER, 1909: 237).15 Seu pai, vindo da Península Itálica, segundo indicações 13 Estas três cidades foram fundadas pela colonização fenícia (LEVEL, 1992: 1099). Sobre esta região e as respectivas cidades ver mapa em anexo. 14 A inscrição em latim: Philosopho platonico madaurense ciues ornamento suo dedicauerunt pecunia publica, significava: os cidadãos de Madaura dedicaram a expensas públicas esta estátua ao filósofo platônico que constitui para eles honra. Acredita-se que mais duas estátuas tenham sido erguidas em homenagem a Apuleio porque em uma passagem da obra Flórida (XVI), ele agradece a um cidadão de Cartago chamado Emiliano Estrabão por render-lhe homenagem em forma de uma estátua e ao senado desta mesma cidade por uma outra que aguardava ser erguida. 15 A família romana correspondia a um grupo de pessoas de mesma descendência e seus agregados, considerando o corpo de escravos como seus membros, quando os romanos queriam demonstrar a família no sentido de conexão de descendentes, eles expressavam as pessoas de mesmo sobrenome, herdado de um 25 do próprio Apuleio (Apologia, XXIV, 9), foi para o norte da África formar a elite dirigente local, ocupando cargos municipais, chegando a tornar-se diunviro, a mais alta magistratura municipal. Como a ordem social era hereditária (ALFÖLDY, 1989: 126), Apuleio fez parte da ordem dos decuriões (ordo decorionum – uma ordem senatorial em nível local) e, como ele nos informa, ocupou também o cargo do pai no Senado de sua cidade natal. Nesta colônia meu pai ocupou o cargo de diunviro, depois de ter desempenhado todos os demais postos honoríficos. E eu ocupo seu mesmo posto nesta querida cidade desde que comecei a participar de sua cúria, mantendo-me à altura de tal cargo, defendendo-a com considerável estima (APULEIO, Apologia, XXIV, 9). Segundo inscrições encontradas na antiga cidade africana de Leptis Magna, o nome16 de um nobre cidadão chamado Cassius Langinus, diunviro designado e membro da cúria de Leptis, é mencionado na inscrição17 como parente de um cidadão chamado Apuleio. Se tal cidadão realmente for parente do filósofo Apuleio, temos mais uma demonstração da influência política da família do autor na região da África. Contudo, o Apuleio da inscrição também pode ser um homônimo do filósofo. Como todo jovem das ordens da elite romana, durante sua formação, dedicou-se aos estudos, falando fluentemente as duas línguas principais do Império: grego e latim. Ainda em sua cidade natal, estudou as matérias do ensino elementar dos jovens romanos: aritmética, leitura e escrita. Reportando-se para Cartago, dedicou-se aos estudos de descendente comum (CROOK, 1967: 88). Assim, usaremos o termo família em diversas passagens deste trabalho no sentido de conexão entre pessoas de parentesco consangüíneo e mesmo sobrenome. 16 Localizado por Julien Guey (1954: 116). 17 Entendemos o parentesco como um vínculo estabelecido por descendência entre pessoas que possuem um ancestral comum ou por relações de afinidade (parentesco que um cônjuge contrai com a família do outro cônjuge) e adoção. 26 gramática e retórica (APULEIO, Flórida, XVIII, 15), elementos fundamentais para seu futuro como homem público. Na Grécia, mais especificamente em Atenas, Apuleio estudou a filosofia de Aristóteles e, principalmente, de Platão (MUNGUÍA, 1981: 10), complementando sua formação político-cultural. Há indicações de ter sido discípulo de Gaio.18 Como nos indica Paratore (1983: 810) sobre sua formação: Ele próprio, depois de ter concluído os estudos de gramática e de retórica em Cartago, principal centro da sua região, passou a formar-se em Atenas, onde se embebedou de todas as correntes retóricas, místicas e pseudo-filosóficas, de que a pátria de Platão se voltará a tornar o centro, graças à nostálgica revivescência dos estudos, que ali se afirmava no tempo de Adriano. Conforme indicações de Apuleio, ele foi filósofo, orador, romancista, advogado, pesquisador e dedicou-se a diversos gêneros artísticos. Ependócles, em efeito, compôs poemas; Platão, diálogos; Sócrates, hinos; Epicarmo, mimos; Xenofonte, histórias; Crates, sátiras. Eu, Apuleio, cultivo com igual arte todos os gêneros e as nove musas (APULEIO, Flórida, XX, 5). Muitos estudiosos acreditam que ele foi também professor de retórica em Roma e por não ter obtido grande sucesso na capital do Império, retornou à África.19 Santiago Segura Munguía (1980: 13) não compartilha desta opinião. Para esse autor, Apuleio 18 Jurista e professor de Direito da época de Antonino Pio – Viveu de 110 a 180 d.C. (ap.) (HARVEY, 1998: 243). Apuleio não deixou nenhum relato escrito sobre a possibilidade de Gaio ter sido seu professor, a hipótese foi elaborada por Th. Sinko em 1905 e é corroborada por Jean Beajeu na sua Introdução aos Opúsculos Filosóficos de Apuleio. Ambos autores afirmam que Apuleio foi discípulo de Gaio através de análises comparativas entre suas obras e as obras do também filósofo, e discípulo de Gaio, Albino. Para estes autores, as características de escrita e da reflexão dos contemporâneos Apuleio e Albino, levam-nos a acreditar que eles tinham um mesmo mestre (PLACES, 1974: 351). 19 Alguns estudiosos da obra de Apuleio defendem que a obra Metamorfoses tenha um cunho autobiográfico metafórico por alguns fatos do desenrolar da narrativa terem ligação com assuntos e acontecimentos da vida de Apuleio expostos por ele em outras obras. Esta tese é corroborada por nós e, nesta perspectiva, acreditamos que Apuleio faz certa alusão a sua estadia em Roma nas palavras de Lúcio que reclama não ter tido muita sorte na capital por seu custo de vida ser muito mais caro do que nas províncias (APULEIO, Metamorfoses, XI, XXVIII). 27 alcançou certa reputação em Roma como orador e homem de letras, relacionando-se com altos personagens públicos que lhe seriam úteis no futuro, não dando, porém, nenhuma explicação sobre o porquê do retorno de Apuleio à África. Apuleio também demonstra seu prestígio como médico e seus conhecimentos sobre certos distúrbios físicos em uma passagem da Apologia (XLII). Nesse trecho da obra, o filósofo se defende da acusação de ter feito um de seus escravos cair ao chão por meio de suas artes mágicas. Para Apuleio, a queda do jovem escravo não foi ocasionada por nenhum ritual mágico e sim pela doença, que o tradutor Munguía (1980: 127, 131) acredita ser epilepsia, doença conhecida pelos antigos romanos como morbus comitialis. No texto que se segue, Apuleio indica que o médico da cidade de Oea lhe pediu que examinasse uma paciente, que de acordo com Munguía (1980: 138) e Paul Valette (1960: 58) era também epiléptica. No caso que nos ocupa, demonstrarei que a mulher em questão não fôra encantada e nem derrubada ao chão por meio dos meus encantamentos e eu não nego que havia a examinado, mas a pedido do médico, vou lhe dizer Máximo, por que a examinei e lhe fiz perguntas a respeito do zumbido no ouvido (APULEIO, Apologia, XLVIII, 11-12). A polivalência era uma virtude fundamental na vida de um homem público (HUSKINSON, 2000: 103). E como mostrado, Apuleio exaltou esta sua característica em seus textos. Segundo Apuleio (Apologia, XXIII, 2), ávido por saberes diversos, ele empreendeu várias viagens de estudos, passeios e configurou-se como um sofista, uma 28 espécie de filósofo e orador que não tinha moradia fixa e viajava pelas cidades do Império pronunciando conferências.20 No Oriente, iniciou-se em vários cultos mistéricos, próprios da nova forma que a filosofia platônica se configurava. Fiz parte, na Grécia, das iniciações mistéricas da maior parte dos cultos mistéricos. Conservei, ainda, com grande carinho, certos símbolos e recordações de tais cultos, que me foram entregues por seus sacerdotes. (APULEIO, Apologia, LV, 8) No caminho de uma de suas viagens para Alexandria, Apuleio passa pela cidade de Oea (atual Trípoli, na Líbia) para pronunciar suas habituais conferências, porém adoece nesta cidade e estabelece pouso na casa de amigos. Nesta cidade, reencontra Ponciano, um antigo amigo dos tempos em que estudou em Atenas. Ponciano apresenta Apuleio a sua mãe, a viúva Emilia Pudentila, com quem o filósofo se casa pouco tempo depois com o consentimento do próprio amigo. Há tempos a viúva negava-se a contrair novo matrimônio, já tendo, inclusive, estabelecido um contrato de futuro casamento com o irmão de seu falecido marido Sicinio Amico, portanto seu cunhado, Sicinio Claro.21 Mas, segundo as indicações de Apuleio, esta promessa foi rompida antes mesmo de ele chegar em Oea (APULEIO, Apologia, LXVIII, 5; LXIX). Neste ponto, retornamos a um ponto anterior, sobre o motivo do retorno e permanência de Apuleio na África. 20 Os preços de uma viagem da África Romana para as demais partes do Império são muito difíceis de serem contabilizados. O preço de uma viagem para Roma, por exemplo, valia em média duzentos sestércios e apenas homens da elite empreendiam tais deslocamentos com certa freqüência, o que era, inclusive, bastante comum (BOUGAREL-MUSSO, 1934: 374-375). 21 Destacamos que casos de promessa de casamento entre o irmão de um homem e sua viúva não eram excepcionais na antiga Roma. Bradley (1991: 93) expõe o caso, citado por Plutarco, de dois irmãos da aristocrática família Crassi, que por volta de 70 d.C., após o falecimento de um dos irmãos, o outro se casa com sua viúva e tem filhos com ela. 29 Sabemos que Apuleio era um sofista e estava na África empreendendo suas habituais viagens como conferencista. Sua intenção talvez não fosse permanecer ali, ele não tinha neste momento uma moradia fixa, porém acabou se estabelecendo na África, inclusive fora de sua pátria, em uma outra região, por contrair o matrimônio. Apuleio nos informa que por um tempo pensou se contraía ou não matrimônio em função de suas viagens, mas cedeu aos pedidos de seu amigo Ponciano, que desejava muito que sua mãe se casasse com seu amigo filósofo. Eu havia recusado durante algum tempo tal matrimônio, não porque não tinha tido ocasião de conhecer ao fundo, durante um ano inteiro, seus dotes morais, mas sim porque, como eu era um apaixonado por viagens, considerava semelhante união como um impedimento para realizá-las. (APULEIO, Apologia, LXXIII, 7) Era muito comum que os sofistas, homens de grande reconhecimento dentro do Império, fossem convidados pelos cidadãos e até pelo próprio Imperador para assumirem cargos nas cidades por onde passavam, mas muitos tendiam a fugir destas obrigações, não aceitando tais cargos (GAGÉ, 1971: 235). Esse não foi o caso de Apuleio, que aceitou permanecer na cidade de Oea após ser convidado pelos cidadãos do local e se casar com Pudentila, o que nos leva a inferir que o matrimônio foi algo de extrema importância para que o fizesse mudar a forma como exercia sua profissão de filósofo e orador sofista. A chegada de um orador renomado nas cidades do Império, sobretudo estrangeiro, era muito esperada pelos cidadãos do local e esses homens recebiam honras, doações e títulos de cidadania por onde passavam. O dia e hora fixados para seus discursos eram grandes eventos (GAGÉ, 1971: 240-241). 30 Na acusação de magia, Apuleio, para sua defesa, exalta como foi bem recebido em Oea: [...] a pedido de meus amigos, dou uma conferência pública, todos os presentes, que com grande concorrência lotam a basílica onde tinha lugar as audiências, entre outras numerosas demonstrações de aplausos, gritaram unanimemente ‘bravo’, pedindo-me que passasse a viver ali e que me fizessem cidadão de Oea (APULEIO, Apologia, LXXIII, 2). O filósofo refere-se a um convite para receber a cidadania de Oea. Sabemos que além de obter a cidadania romana, as pessoas recebiam a cidadania do local em que nasciam. Na realidade, no caso citado por Apuleio, não se trata de adquirir uma nova cidadania, mas de receber um título oficial, outorgado pela cidade como uma espécie de pagamento por seus serviços honrosos, assim também eram erguidas estátuas, realizados banquetes, etc. (MUNGUÍA, 1980: 176). Apesar de Apuleio ter sido muito bem recebido em Oea, pouco tempo depois de seu casamento com Pudentila, a família de seu marido falecido, formada por membros da elite local desta cidade (GUEY, 1954), acusa Apuleio de ter praticado magia amorosa para casar-se com a rica viúva.22 Quem moveu a ação contra Apuleio (Apologia, I, II, LXXVIII) foi Emiliano, irmão do marido falecido de Pudentila. Porém a acusação é feita em nome do filho mais novo da viúva, Pudente, que não tinha ainda maioridade jurídica e foi assessorado pelo tio.23 22 Segundo as indicações de Apuleio (Apologia, LXXIII, 8), ele casou-se com Pudentila depois de permanecer um ano em Oea. A acusação aconteceu depois de dois anos do casamento ter-se realizado (APULEIO, Apologia, LV, 10), ou seja, depois de três anos que ele vivia na cidade. 23 Ver a árvore genealógica dos acusadores de Apuleio em anexo. A maioridade jurídica dos romanos ocorria por volta dos vinte e cinco anos e Pudente tinha cerca de dezoito anos na ocasião do processo (WINTER, 1968: 24). 31 Devemos destacar que Pudentila esteve prometida em casamento a seu cunhado Sicinio Claro (irmão de seu falecido marido e de Emiliano). Esse fato confere à acusação um aspecto passional, mas é, sobretudo, nesse ponto que reside uma das argumentações da hipótese que iremos desenvolver. Segundo Guey (1954), três das trinta e uma inscrições epigráficas atualmente encontradas pela arqueologia na antiga cidade de Oea, realmente, concernem a membros da família dos pais de Pudentila, os Aemilius, que pertenciam à alta nobreza da cidade da qual recrutavam os membros da nobreza do Império. Um importante membro dos Aemilius foi, segundo Guey (1954: 118), Lucius Aemilius, senador, cônsul e procônsul da Ásia. Esse personagem era um parente de Pudentila nascido um pouco mais tarde da época em que viveu Apuleio. Ele foi localizado por Guey (1954: 118) através de inscrições em um templo elevado pelo mesmo em honra ao Imperador Cômodo (180-192 d.C.). Também a família Sicinii - família do marido falecido de Pudentila e acusadores de Apuleio - foi localizada nessas inscrições. Segundo tais inscrições, esta produziu de seu meio um senador - Sicinius Clarus Pontianus - mais tarde, em 202 d.C. pretor de Roma.24 Por meio das citações da Apologia (LXVIII, 2), percebemos que o nome deste senador e pretor, Sicinio Claro, é o mesmo nome do irmão do falecido marido de Pudentila, ao qual ela esteve prometida em novo casamento. Portanto, as pessoas envolvidas na acusação contra Apuleio eram, realmente, membros das ordens superiores desta cidade e 24 O estudioso destas inscrições, Jean Guey, não nos fornece se Sicinio Claro era um senador de Roma ou da própria cúria de Oea. Segundo Jean Gagé (1971: 170), esses decuriões locais podiam ser recrutados para o senado de Roma, sendo possível, portanto, que Sicinio Claro fosse um senador a nível imperial. 32 Sicinio Claro chegou a ocupar o cargo mais importante de toda província da África Proconsular, o de pretor.25 Conforme a onomástica romana, primeiramente vinha o nome individual da pessoa (prenome), depois o nome gentílico (nome da gens) e por fim o nome particular (da família). As mulheres, porém, não recebiam nome individual, apenas o nome da gens e da família que pertenciam (ADRADOS, 1986, p. 206-207). Assim, Aemilia Pudentila, ou Emilia Pudentila, faz primeiramente uma referência ao nome da gens Emilia e depois à família Pudente, sendo Tannonio Pudente, o advogado de acusação, da mesma família da esposa de Apuleio.26 Em sua defesa Apuleio admite que Tannonio Pudente também levantava julgamentos contrários a ele.27 Percebemos com essa informação que não é apenas a família do esposo falecido de Pudentila que está envolvida no processo, mas outros membros da elite local e o mais interessante: é um membro da família de Pudentila que se coloca contrário ao casamento dela com Apuleio, denotando que o motivo pode ser porque tal membro dessa família tivesse interesse que ela continuasse casada com um membro da importante família Sicinii, não desfazendo, com isso, uma possível aliança entre os Aemilius e os Siciniis. Ouvi, em efeito, há alguns instantes, no princípio da acusação, que se dizia o seguinte: ‘Acusamos você como um filósofo aposto e – oh, crime 25 Em Roma, o título de pretor era usado para designar magistrados incumbidos de administrarem a justiça entre os cidadãos romanos (praetor urbanus) e estrangeiros (praetor peregrinus). Mais tarde foram nomeados também pretores para a administração das províncias, também chamados de procônsules. Eram estas autoridades que estavam incumbidas de presidir os tribunais de justiça. A datação do proconsulado de Sicinio Claro em 202 d.C. torna-se um pouco confusa, já que Apuleio o chama de velho durante seu pronunciamento (APULEIO, Apologia, LXX, 3), que tudo indica ter ocorrido por volta de 157/158 d.C. Porém, não temos mais informações para contrapor tais datas. O Sicinio Claro mencionado na inscrição pode ser outro, possivelmente filho do cunhado de Pudentila, mas isso não modificaria muito nossa idéia sobre a riqueza e ocupação de cargos públicos importantes da família dos Sicinii. 26 Talvez Pudente seja até mesmo irmão de Pudentila. Para nós, Apuleio omite o grau de parentesco entre Pudentila e Tannonio Pudente de seu discurso para não denotar a idéia de uma disputa de alianças políticas. 27 Apuleio faz algumas referências a este personagem em: Apologia IV, 2; XLVI, 1. 33 abominável! – muito eloqüente tanto em língua grega como latina.’ Com estas mesmas palavras, se não me engano, iniciou a acusação contra mim Tannonio Pudente, homem já célebre e não precisamente como bom orador (APULEIO, Apologia, IV, 2). O assessor do acusador de Apuleio, irmão do falecido marido da viúva, chama-se Emiliano, o que nos sugere que estas famílias faziam parte da mesma gen (Emiliano Sicinio e Emilia Pudentila). Isto é uma hipótese bem provável ao se tratar de uma cidade pequena como Oea. Mas Apuleio e as epigrafias estudadas por Guey não nos trazem nenhuma informação a esse respeito. Apuleio advoga em defesa própria. O tribunal se estabelece em Sabrata, cidade perto de Oea e como ele nos indica, parece ter sido assistido por muitas pessoas (Apologia, XVIII, 3). De acordo com Apuleio (Apologia, I, 1), a audiência ocorreu diante de Cláudio Máximo, sendo várias as referências que o autor faz a esse procônsul no texto. Cláudio Máximo foi procônsul da África entre 157/158 d.C. no período de governo do Imperador Antonino Pio (148 a 161 d.C.) (VALETTE, 1960, p. XXIII). Há ainda uma referência de Apuleio (Apologia, LXXXV, 2) sobre estar ante as estátuas do Imperador Antonino proclamando sua defesa. É nesse sentido que estudiosos têm tentado datar a defesa de Apuleio. Guey (1951: 308) sugere a datação de 158/159 ou entre 151/160 d.C. para o proconsulado de Cláudio Máximo, considerando o inverno de 159 d.C. como o período mais provável para o desenvolvimento do processo. 34 Devido às indicações sobre viver em Cartago28, que o próprio Apuleio faz na obra Flórida (XVIII, XX), acreditamos que por ocasião do final do processo de magia ele partiu com sua esposa para essa cidade, desenvolvendo atividades como a de médico, conferencista e advogado.29 Em Cartago, Apuleio certamente foi sacerdote. Na passagem da obra Flórida, abaixo citada, ele agradece Emiliano Estrabão, um cônsul, homem da aristocracia da cidade que Apuleio serviu de alguma forma. Emiliano ergue uma estátua em homenagem a ele, que explica as razões do erguimento da mesma, vangloriando seus feitos, sua própria erudição e o fato de ocupar o cargo de sacerdote na cidade, onde tal discurso foi pronunciado. O que posso acrescentar a tamanho elogio, tributado publicamente por um varão consular. E ainda mais: aludindo que eu assumi um cargo sacerdotal, demonstrou que eu ostentava a mais alta dignidade de Cartago [...]. E, para tanto, prometeu-me que disporia e ergueria a suas expensas uma estátua em Cartago (APULEIO, Flórida, XVI, 38-39). Tudo indica que Apuleio foi sacerdote do deus Esculápio (L. Aesculapius, G. Asklépios).30 Ele mesmo nos fornece esta informação em uma homenagem a Cartago: Por ele, neste momento, ao dirigir-me a vocês, começarei com felicíssimos auspícios, invocando o Deus Esculápio, que protege benévolo com seu poder indiscutível, a cidade de nossa querida Cartago. Cantar-lhes-ei também um hino que compus, em honra deste deus, em versos gregos e latinos e que já lhe dediquei. Não sou, entretanto, nem o menos conhecido de seus adoradores, nem o menos antigo de seus fiéis, nem o menos favorecido de seus sacerdotes e já manifestei a veneração que por ele sinto, tanto em prosa como em verso, de tão sorte que 28 Cartago era uma das principais cidades africanas da época, capital da África Proconsular, principal província da África Romana. 29 Alguns autores sugerem que Apuleio ainda permaneceria por mais três anos em Oea após o processo ter acabado (SILVA, M.R.S. 2001: 23). 30 Segundo Munguía (1980: 150), o deus Esculápio é uma das grandes divindades africanas e foi incorporado pelo panteão greco-romano como deus da medicina, recebendo culto em Roma desde os princípios do século III a.C. Mais informações sobre este deus ver em: HARVEY, P. Dicionário Oxford de Literatura Clássica. Grega e Latina. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 62, 209. 35 também agora cantarei seu hino em ambas as línguas (APULEIO, Flórida, XVIII, 37). Também na obra Apologia, Apuleio alude ao deus Esculápio, informando-nos que pronunciou um discurso sobre essa divindade quando chegou em Oea. [...] faz uns três anos, poucos dias depois de eu ter chegado em Oea, ao pronunciar uma conferência acerca da majestade de Esculápio, fiz publicamente estas mesmas declarações e enumerei todos os cultos mistéricos nos quais eu havia me iniciado. Este discurso meu é bastante conhecido, as pessoas o lêem, anda por aí em todas as mãos, encontrou uma boa acolhida entre os piedosos cidadãos de Oea, não tanto pela minha eloqüência, mas porque nele falo de Esculápio (APULEIO, Apologia, LV, 10). Segundo John Scheid (1992: 52), o sacerdote era aquele que realizava atos cultuais, diferenciando-se dos magistrados por ser o depositário do direito sagrado e exercer uma autoridade divina. É interessante notar que: [...] em Roma não se tornava sacerdote quem o desejasse: o sacerdócio não era uma questão de vocação (pelo menos, não nos cultos tradicionais), mas de estatuto social. Como os atos religiosos eram celebrados em nome de uma comunidade, e não em nome de indivíduos, só aqueles que estavam destinados, pelo seu nascimento ou pelo seu estatuto, a representá-la, exerciam as funções sacerdotais (SCHEID, 1992: 53). [...] na vida comunitária do povo romano, o que determinava essa distribuição eram as regras tradicionais da vida pública. Portanto, as funções sacerdotais eram confiadas a todos aqueles que eram, ou tinham sido, regularmente eleitos como magistrados ou sacerdotes do povo (SCHEID, 1992: 54). Em nenhuma passagem de suas obras, Apuleio cita ter sido magistrado, apenas, como já colocamos, faz alusões a ter sido membro da cúria de sua cidade natal e sacerdote de Cartago. Conforme Scheid (1992: 62, 63, 66), as funções de um sacerdote eram de celebração dos ritos, sacrifícios ao deus, fixação das datas e modalidades da liturgia e 36 pronunciamentos de palavras em honra ao deus. É nesse sentido que Apuleio explana sobre os discursos que pronunciou em Oea e Cartago. Os sacerdotes romanos, sobretudo os pontífices, eram homens de direito e ‘homens de letras’. Os seus textos não constituíam revelações metafísicas, mas o registro de factos que pudessem interessar aos actos públicos dos homens e dos deuses, e a compilação de todos os decretos e respostas dadas pelos sacerdotes: em suma, toda jurisprudência sagrada (SCHEID, 1992: 67). Através da análise biográfica de Apuleio, notamos que ele era envolto em um misticismo próprio das iniciações mágico-filosóficas que fizera, além disso, era um “homem de letras”, termo usado por Scheid, era um escritor, um retórico e um advogado, tendo ainda como atributo para exercer a função de sacerdote de Cartago o fato de ser um decurião. Os sacerdócios oficiais dos romanos reduziam-se aos homens beneméritos e letrados (CARCOPINO, 1990: 152). Também na região da África Romana, o título de sacerdote era dado aos homens mais nobres naquele momento. O grande sacerdote da província é escolhido anualmente em Cartago, entre os cidadãos mais nobres, sendo que esse deve ser um personagem político influente e forte, que represente a população no Império (CHARLES-PICARD, 1954: 168). Apuleio não nos indica se foi o “grande sacerdote da província”, mas de qualquer forma, apenas por ter recebido o título de sacerdote na principal cidade da África Proconsular, percebemos a importância que desempenhou nesta região. Apuleio morre por volta de 170-180 d.C., durante o governo de Marco Aurélio, havendo controvérsias também sobre a data de sua morte. 37 Apresentar a produção escrita de nosso autor torna-se necessário para que o leitor compreenda os temas que interessaram ao autor e sua Paidéia31, que está, para nós, diretamente ligada à motivação do processo. Acreditamos que o texto é uma espécie de porta-voz de seu autor e representa o mundo a partir do ponto de vista de quem o escreve. Compreende-se por meio da produção escrita de um autor também seu contexto histórico e a relação entre ambos. As obras de Apuleio configuram-se como filosóficas, poéticas, uma novela, hinos, panegíricos e discursos, sendo também tradutor de obras de Platão do grego para o latim. Há, ainda, algumas obras apócrifas. Várias categorias são dadas à produção de Apuleio. Groningen (1987: 398) destaca que não devemos excluir a categoria de tradutor, que certamente aparece em seus escritos filosóficos, e a categoria retórica que aparece em obras como a Apologia, Flórida e O Deus de Sócrates. Para uma melhor compreensão do leitor, dividiremos a apresentação das obras segundo critérios estilísticos. 1) Obras oratórias: Faltam testemunhos sobre as performances de Apuleio em seus pronunciamentos, todas as informações que temos são do próprio autor. 1.1) Apologia (L. Pro se de magia liber) 31 De acordo com Margarida Maria de Carvalho (2002: 20-21), entende-se Paidéia como a educação pedagógica, política, filosófica e religiosa, recebida pelos cidadãos da elite romana. 38 Como já mencionado, este discurso trata-se da autodefesa de Apuleio perante a acusação de magia, elaborado na forma escrita alguns anos depois do processo.32 1.2) Flórida (L. Florida) Compilação feita não se sabe quando e nem por quem, possui vinte e três fragmentos de discursos pronunciados por Apuleio em Cartago. 2) Novela 2.1) O asno de ouro ou Metamorfoses (L. Methamorphoseon)33 O enredo desta novela é a história de Lúcio, um curioso viajante que estabelece pouso na casa de um rico homem da Tessália34, região da antiga Grécia. Na Tessália, Lúcio se envolve em uma experiência de magia que, por dar errado, acaba transformando-o em asno. Ignoramos em qual momento de sua vida Apuleio escreveu esta obra. Grimal (1994: 489) acredita que ela possa ter sido um dos motivos que levou Apuleio ao processo de magia, porém, acreditamos que essa obra tenha sido escrita como uma espécie de resposta ao processo, visto que a transformação e redenção de Lúcio se caracterizam como uma espécie de alegoria à defesa do processo. Para Nicole Fick (1985: 133-134), a obra foi 32 De acordo com Neil Bernstein (1997), a autodefesa é algo que aproxima Apuleio dos moldes gregos de se defenderem. Segundo Yann Le Bohec (2003), mesmo sendo reconhecida a profissão de advogado em Roma, na época da acusação contra Apuleio era preferível defender-se sozinho frente a um tribunal, isto era um indício de que não se temia nada. 33 Apesar das versões desta obra a nomearem como O asno de ouro, utilizamos o título Metamorfoses para referirmo-nos à obra porque, conforme Philip Ward (1969: 3), foi a maneira com que Apuleio a intitulou. Alguns tradutores lhe nomeiam como O asno de ouro. Segundo Ruth Guimarães (s.d., p. 7) o termo “de ouro” se refere a uma história extraordinária, fantástica. 34 A Tessália foi conhecida em toda literatura greco-romana como a pátria das feiticeiras. Nos textos de Apuleio podemos notar referencias a esta região como ligada à magia em Metamorfoses, II, 1; 21 e Apologia, XXXI, 2; XC, 6. 39 escrita antes de 197 d.C., bem depois do processo de magia que sofre Apuleio e é uma resposta ao mesmo. Para Hidalgo de la Vega (1986: 19) e Philip Ward (1969: 4), as obras de Apuleio têm uma grande conexão e quando analisadas dão uma plena intencionalidade à escrita da obra Metamorfoses. Desta forma, Apuleio demonstra que, ao usar da magia maléfica, Lúcio torna-se um asno e apenas ao se iniciar nos cultos mistéricos de Ísis, ele encontra a redenção, tal como havia se defendido no processo por nós estudado: ele não era um mago, apenas um adepto de religiões mistéricas próprias da filosofia que seguia, na qual a magia em si é uma prática ilícita, mas a filosofia mística e especulativa é uma forma de redenção. Enquanto homem público, Apuleio escreveu Metamorfoses para obter maior notoriedade, já que possuía reconhecimento como filósofo e orador, sendo a linguagem de uma novela a maneira de ser reconhecido por pessoas que não se interessavam somente por filosofia e discussões sobre moral, misticismo e política, temas gerais de suas demais obras e pronunciamentos. 3) Obras filosóficas As obras filosóficas de Apuleio apresentam grande importância enquanto transmissão e divulgação da filosofia médio-platônica, fornecendo meios para conhecermos a nova forma do platonismo em Roma, já que os primeiros escritos sobre tal corrente de pensamento não passam de traduções de textos de Platão do grego para o latim. No século XIV tais obras foram compiladas com o título de Opúsculos filosóficos de Apuleio por apresentarem um mesmo código (BEAUJEU, 1973, p. VII). 40 Segundo Munguía (1980: 19), as três obras a seguir projetam uma espécie de trilogia apuleiana, tomando como base a filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, respectivamente. 3.1) O Deus de Sócrates (L. De Deo Socratis) O Deus de Sócrates se constitui como uma exposição aprofundada sobre demonologia e um dos estudos mais importantes do Médio-Platonismo, equiparando as especulações de Apuleio à filosofia de Máximo de Tiro e Celso (ZABALA, 1989: 267). A obra recebe esta denominação porque, segundo Apuleio (O Deus de Sócrates, XVII), o sábio filósofo grego Sócrates honrava um deus particular, o seu demônio pessoal. Esse demônio pessoal afastava Sócrates do errado e o conduzia ao caminho correto e sábio. Sócrates ainda o usava para obter presságios. Não devemos deixar de mencionar que esses referidos demônios não possuem a conotação negativa do demônio cristão para os romanos da época de Apuleio. Rosângela Maria de Souza Silva (2001: 27) mostra-nos que nosso autor definiu esses seres como habitantes das sublimes regiões aéreas que tinham como função facilitar a comunicação entre os homens e os deuses, portanto, eram seres especiais. Os demônios, daimones como eram conhecidos entre os gregos, também receberam a denominação de gênios entre os romanos.35 De acordo com Jesús de Miguel Zabala (1989: 266), a experiência do homem com o mundo demoníaco é uma das características que mais chamam a atenção dos estudiosos do século II d.C. 35 Nesta Dissertação, utilizaremos a denominação daimones para nos referirmos a estes seres, a fim de evitar confusões do leitor com a concepção cristã sobre demônio. 41 3.2) Platão e sua doutrina (L. De Platone et eius dogmate) A obra contém os ensinamentos de Platão, provavelmente é um resumo dos estudos de Apuleio sobre esse filósofo com uma breve biografia do mesmo. A obra está dividida em dois livros. 3.3) O mundo (L. De Mundo) Obra que apresenta traços para a compreensão das teorias platônicas no contexto do século II d.C. 4) Obras perdidas de possível autoria apuleiana Muitas são as citações de outras obras suas que Apuleio faz em passagens de seus textos, como por exemplo, o poema que teria escrito aos filhos de um amigo (Apologia, IX). Porém estas referências são desconhecidas, tendo provavelmente se perdido. Entre estas, estariam obras em verso, uma novela, uma possível obra histórica, vários discursos e obras científicas. Os conhecimentos que Apuleio faz em citações de suas obras demonstram que ele provavelmente escreveu tratados de zoologia, botânica, medicina e astrologia, porém, tais obras não foram encontradas. 5) Obras apócrifas 42 Devido à fama de mago e filósofo naturalista36, Apuleio recebeu alguns tratados sobre a divindade de Hermes Trimegisto37 e Esculápio38 e tratados naturais sobre plantas medicinais encontrados são colocados como de possível autoria de Apuleio. 1.2 O contexto geográfico-cultural de Apuleio A fim de compreendermos melhor algumas referências de Apuleio no discurso Apologia, faz-se necessário uma análise da região da África Romana, especialmente da Tripolitania (Sabrata, Oea e Leptis Magna), região onde Apuleio foi incriminado e onde se estabeleceu o tribunal de acusação, e a inserção deste personagem no quadro cultural local à época de seu pronunciamento. A partir do final do século I d.C., a África conheceu uma prosperidade excepcional que se prolongará durante o Principado. A organização política destas cidades proporcionava meios para a aristocracia se enriquecer e condições de refinamento e acesso às manifestações culturais. As cidades se multiplicaram e ornaram-se de grandes monumentos. O desenvolvimento foi propiciado pela ordem dos decuriões, sobretudo de africanos descendentes de colonos estabelecidos nesta região no início de nossa era. 36 Entendemos filósofos naturalistas como aqueles homens do Principado Romano que se dedicavam ao estudo e conhecimento de física, biologia, medicina e demais tipos de estudos relacionados às ciências naturais. De acordo com Bréhier (1948: 404), além de questionamentos sobre o conhecimento sensível, era comum que os filósofos deste período se preocupassem com estudos matemáticos, físicos e médicos, por exemplo. 37 A figura de Hermes Trimegisto ainda hoje apresenta controvérsias. Como nos indica Harvey (1998: 269), o nome Hermes Trimegisto - três vezes grande - foi dado por místicos e neoplatônicos ao deus egípcio Toth, considerado similar ao deus grego Hermes. A partir do século III d.C. esta denominação também passou a ser aplicada a um autor neoplatônico de origem incerta. 38 Sobre este tratado, Apuleio cita na Apologia (LV, 10-11) ter transcrito uma conferência que pronunciou em Oea e que muitas pessoas da cidade leram. 43 Charles-Picard (1954: 165) denomina os decuriões de “aristocracia romanizada” porque eles buscavam adaptar-se a referências culturais romanas. O polêmico conceito de romanização deve ser compreendido, como nos sugere Norma Musco Mendes (2001: 26-27), “como a própria cultura do Imperialismo, cujos mecanismos divulgam o projeto de identidade romana num contexto de mundialização do mundo antigo”. Ou seja, como a dinâmica relacional entre as identidades culturais provinciais e a cultura romana. Contudo, a autora alerta-nos para não homogeneizar o que era “romano” e o que era “nativo”. A cultura greco-romana prevaleceu durante o Império Romano também nas províncias, porém, havia grandes diferenças entre as regiões do Oriente e do Ocidente ou até mesmo dentro das próprias comunidades. A dinâmica da sociedade imperial redundou em uma mistura de aspectos gregos, romanos e autóctones que podem ou não ter preservado suas tradições (HUSKINSON, 2000: 107). Consideramos que houve a criação de uma identidade entre a aristocracia Imperial e a aristocracia das províncias romanas. Segundo Janeth Huskinson (2000: 107-111), desde o início do Principado, as elites locais auxiliavam a própria política imperial através da difusão de elementos da cultura romana - tais como exército, instituições civis, edifícios, cerimônias, estátuas, sistema econômico, planejamento urbano, arquitetura, etc. (MENDES, 2001: 27). Diferentes regiões tinham suas próprias trajetórias culturais, mas a elite das províncias buscava se aproximar da simbologia e dos costumes da elite imperial. Nessa perspectiva, as cidades africanas, governadas pela aristocracia, tendiam a se assemelhar cada vez mais às italianas, havendo assembléias populares, um senado municipal e magistrados nomeados por um ano e sujeitos a um colegiado: duoviri, quattuoiviri, aediles, quaestores (MOKTAR, 1983: 487). 44 [...] Nada é mais falso do que a perspectiva que mostra uma elite africana totalmente desleal ao Império e a seus ideais, não se pensava na época em separar-se de Roma. Os romanos aceitaram perfeitamente o sistema de dupla cidadania. Todas as províncias enviavam soldados, funcionários e até senadores para Roma [...]. A África parece ter sido a província mais romanizada de todas. Havia dois estatutos para estas cidades: as que tinham instituições próprias e as que se submetiam ao direito romano público, as de assimilação maior eram elevadas ao grau de colônias, copiando exatamente a constituição de Roma (CHARLES- PICARD, 1954: 167-168). Segundo Carlos Norena (1997), durantes os dois primeiros séculos d.C., as cidades da região de Tripolitania incorporaram-se, de forma cada vez maior, ao sistema romano de governo provincial. Em Leptis Magna foi concedido o estatuto de município romano (colônia) durante o período da dinastia flaviana (69-96 d.C.). Oea e Sabrata transformaram-se em município durante o governo de Antonino Pio (138-161 d.C.), passando a usar totalmente do direito latino - ius latii - o que permitia aos cidadãos locais de participarem de contratos válidos com cidadãos romanos e contraírem uniões legais com romanos. No final do século II d.C. a região da Tripolitania emitia um número considerável de senadores para Roma, esse processo teve seu auge no governo do Imperador Septímio Severo (193-211 d.C.), nascido em Leptis Magna.39 Nicole Fick (1987: 286) ressalta que Madaura, Oea e Cartago, as três cidades africanas onde Apuleio viveu, se situam em regiões muito afastadas umas das outras para que a paisagem intelectual seja identificada, não havendo elementos para apreciar a originalidade e as relações entre as mesmas. 39 O texto de Carlos Norena, assim como outros que utilizamos nesta Dissertação, é uma conferência apresentada em um Seminário sobre o discurso Apologia de Apuleio que aconteceu em 1996 na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Tais conferências estão disponíveis on-line desde 1997 em um banco de dados dos Estados Unidos. 45 As cidades da Tripolitania tinham uma economia baseada, principalmente, no comércio marítimo.40 Apuleio pronunciou sua defesa em uma época de prosperidade econômica local, sendo que a presença de uma corte de justiça e do procônsul, pela ocasião da acusação, contribuiu para propiciar uma atmosfera ainda mais romana à região (NORENA, 1997). Mas a região da Tripolitania não é Roma e nem a Grécia. Assim, percebemos que havia uma cultura púnica sobrevivente nesta região.41 A própria Apologia nos fornece indicações desta cultura quando Apuleio cita que seu enteado Pudente se expressava somente em língua púnica. (APULEIO, Apologia, XCVIII, 9). Os elementos romanos que se constituíam na região – código de direito, arquitetura, língua, práticas culturais, títulos oficiais - representavam um revestimento dos elementos locais. Há certamente uma multiplicidade de elementos e as referências culturais do discurso de Apuleio se inserem também nesse aspecto. Segundo Charles-Picard (1954: 165-167), a camada dirigente, formada em maior parte por colonos itálicos e autóctones romanizados, estava habituada aos costumes helenísticos, possuindo uma Paidéia helenística acomodada à latina. Por meio da análise da formação de Apuleio, percebemos que ele representava a ordem social a que se refere Charles-Picard, constituindo a base de sua formação como filósofo na mais importante cidade grega do momento, Atenas, onde, segundo Huskinson (2000: 99), grande parte dos jovens da aristocracia imperial buscava aprimorar seus 40 Tudo indica que o amigo e enteado de Apuleio, Ponciano, era envolvido com o comércio marítimo. Apuleio menciona que ele morreu em uma viagem para Cartago (Apologia, XCVI), tal viagem pode ter sido comercial e marítima, devido à tradição destas cidades nesta área. 41 Referente a cultura cartaginesa. Como sabemos, a cidade de Cartago dominou toda esta região durante o período de 600 a 200 a.C. (NORENA, 1997). “Após a destruição de Cartago em 146 a.C. e a redução de seu território à condição de província romana, o destino da África do Norte ficou nas mãos de Roma” (MOKTAR, 1983: 473). 46 conhecimentos. Apuleio também cita suas viagens pelo Oriente e sua atração por ritos variados.42 Consoante Boissier (1909: 272) muitos homens de formação filosófica, pertencentes à aristocracia africana, não permaneciam restritos às cidades africanas. Alguns deles viajavam por todo Império e foram considerados importantes personagens em Roma. Destes homens, podemos citar o Imperador Septímio Severo (193-211 d.C). Apuleio comenta que tinha habilidade nas duas línguas mais importantes do Império: latim e grego (Apologia, XXXVI, 5; Flórida, IX, 29).43 Segundo Hiljmans (1987: 399), esta habilidade era comumente compartilhada pelos contemporâneos eruditos de Apuleio e os aristocratas romanos de todo o Império no século II eram adoradores da língua grega (CARCOPINO, 1990: 137). O púnico foi a língua conhecida durante todo Império Romano na África Proconsular, sendo o grego e o latim línguas conhecidas de algumas pessoas da aristocracia local (MUNGUÍA, 1980: 216). Percebemos que Apuleio usa a língua como forma de se defender contra seus oponentes, criticando o idioma local através do acento de seu acusador, o jovem Pudente, que somente se pronuncia na língua cartaginesa (APULEIO, Apologia, XCVIII, 8) e da incapacidade do advogado de acusação, Tannonio, em escrever bem em grego. Apuleio trata de durus44 e rusticus45 o acento de Tannonio, chamado de língua materna (Apologia, IX). 42 Como mostrado, antes de estudar em Atenas, Apuleio estudou em Cartago. Atenas era a cidade para onde os estudantes afluíam, dado que abarcava escolas tradicionais. Todavia, no século II d.C. já havia outras cidades significativas como Alexandria e Cartago, freqüentadas por muitos estudantes (HUSKISON, 2000: 116). 43 O texto da Apologia é escrito em latim, mas as citações de Apuleio de trechos de obras de escritores gregos são feitos na língua grega. Como a citação de um verso da Ilíada de Homero (Apologia, IV, 4). 44 Durus, a, um - adjetivo que significa tosco, áspero, insensível (FARIA, 1956: 316). 45 Rusticus, a, um - adjetivo que significava rústico, grosseiro, inculto, desajeito e simples (FARIA, 1956: 851). 47 Desta maneira, a educação e os costumes de Apuleio poderiam se diferenciar, em certa medida, dos de seus acusadores. Tannonio queria dar a entender que tais nomes eram os das genitais de um e outro sexo, mas nosso reluzente advogado, por pobreza de léxico, não pode expressar-se com propriedade e, trás sérios e prolongados engasgos, designou, por fim, ao peixe cujo nome corresponde ao órgão viril por meio de não sei como perífrase desmedida e grosseira (APULEIO, Apologia, XXXIII, 6). No entanto, eu podia censurá-lo com a maior justiça, porque fez pública profissão de advogado empregando uma linguagem grosseira para nomear o que pode se designar com palavras honestas e porque muitas vezes, ao se tratar de coisas que não oferecem dificuldade nenhuma de serem expressas, se expressou com torpeza ou caiu em absoluto mutismo (APULEIO, Apologia, XXXIV, 2). Observemos, porém, que Tannonio era um advogado e membro da família de Pudentila, recebendo, ao que tudo indica, uma educação aristocrática. Mesmo assim Apuleio ironiza a rusticidade africana de Tannonio frente a sua formação nos moldes greco- romanos. O filósofo cita que o acusador Emiliano não possuía cuidados higiênicos (Apologia, VIII, 1, 2), alude a grosseria do adversário, comparando-o a um bárbaro (Apologia, X, 6), coloca que ele não conhece ao menos um livro, dedicando-se sempre à vida no campo (Apologia, XVI, 7), e que sempre se preocupou com a vida alheia em detrimento de sua própria formação educacional (Apologia, XVI, 11), não sabendo como encarar um filósofo (Apologia, XVII, 6). Por fim, Apuleio compara Emiliano à uma árvore (Apologia, XXIII, 5).46 Outro trecho que mostra a ignorância de Emiliano é quando esse o acusa de possuir um espelho. Para Apuleio, o espelho é um objeto para sua vaidade, útil para refletir 46 A pátria de Emiliano pode ter sido Zarath, pequena população de moradores de costumes diferentes dos romanos e considerados ignorantes (MUNGUÍA, 1980: 97). Apuleio não deixa de fazer esta observação, aludindo a pátria do adversário (Apologia, XXIV, 10). 48 sua imagem enquanto se arruma (Apologia, XIV). Nessa parte do discurso Apuleio demonstra e vangloria seus conhecimentos de Matemática e Física e cita que se Emiliano tivesse estudado estas matérias, saberia sobre as propriedades naturais e não mágicas de um espelho. Apuleio ainda trata Sicinio Claro, o irmão de Emiliano com quem Pudentila deveria se casar, de campesino grosseiro e velho decrépito (APULEIO, Apologia, LXX, 3). A intenção de Apuleio era contrapor-se a seus acusadores como um homem que estudou e viajou muito, enquanto eles permaneciam no interior do Império. Porém, segundo inscrições parietais da região de Tripolitania, Sicinio Claro era um senador e pretor, um homem que deve ter recebido uma educação especial para ocupar tal cargo importante, mas, ainda assim, Apuleio ressalta a grosseria deste adversário, expressando sua rusticidade. Se Apuleio nasceu em uma colônia africana, como retratado nas fontes utilizadas, sua educação como aristocrata é romana e ele se utiliza disso. Entretanto, devemos atentar para o fato de que, mesmo como um cidadão romano com educação tipicamente aos moldes romanos, na frente de uma corte de lei com um procônsul romano, Apuleio não se identifica sempre como tal. Segundo as informações de Apuleio, sua pátria, possivelmente a cidade de Madaura, estava entre a Getúlia, região formada por tribos consideradas bárbaras pelos romanos (Apologia, XXIV). Assim, Apuleio se interroga por qual motivo seus acusadores não criticam que ele seja simultaneamente de nascimento bárbaro e eloqüente como um 49 grego, se justificando, logo em seguida, que o local de origem não serve como marca verdadeira de seu valor moral, estando esse na educação de um homem.47 Não vejo porque razão devo avergonhar-me mais disso que Ciro, o antigo, por ter nascido de raça mestiça, semimedo e semipersa, pois, não se deve ter em consideração onde nasceu uma pessoa, e sim que formação moral ela tem (APULEIO, Apologia, XXIV, 2-3). Apuleio intenta opor-se a seus acusadores no que se refere à sua educação, mas compreende, talvez para uma melhor aceitação do público, que não é interessante desqualificar seu local de origem, que também é o de seus acusadores e dos ouvintes e leitores do discurso Apologia, esclarecendo que nasceu entre eles, em território africano. Nosso autor compara-se com o sábio Anacarsis (Apologia, XXIV, 6), que, como ele, tem nascimento e formação considerados como culturalmente muito diferentes e após inúmeras viagens é acusado e morto pelos reis citas por ter introduzido um culto estrangeiro na cidade de Cítia no século IV a.C. (HARVEY, 1980: 35). Assim, Apuleio não nega que nasceu em um lugar que pareça bárbaro, porém exalta sua formação aos moldes da Paidéia greco-romana. Acreditamos que referências à sua formação sejam uma estratégia retórica, constituindo como uma forma de obter a animosidade do pretor Cláudio Máximo. Também observamos que Apuleio se mostra como um romano nas diversas alusões à erudição do pretor. Apuleio busca equiparar-se ao pretor em uma possível formação platônica de ambos. Diferenciando-os de seus acusadores e tornando-os, ele e o pretor, como iguais. Vás acusar em mim, algo que Cláudio Máximo e eu admiramos em Aristóteles (APULEIO, Apologia, XLI, 4). 47 De acordo com Munguía (1980: 95), o emprego do orgulho moral, mais do que do racial, é tomado da tradição estóica, que dá menor importância ao local de nascimento do que ao caráter de um homem. 50 Tu admites, Máximo, esta teoria científica de Platão que eu expus com a maior clareza possível, dada a urgência do momento (APULEIO, Apologia, LI, 1). Não é preferível, Cláudio Máximo, que, confiando em sua ciência e erudição, desdenhe contestar a estas acusações formuladas por homens tolos e incultos? (APULEIO, Apologia, XCI, 3). Uma parte importante de sua identificação como romano pode ser observada no apelo que faz à justiça romana por meio da exaltação à presença da estátua do Imperador Antonino Pio. Apuleio indigna-se de como o próprio filho de Pudentila ousa expor a carta pessoal de amor de sua mãe frente à estátua de Antonino, já que fazer algo escuso na frente de uma estátua imperial significava fazer frente ao próprio imperador (NORENA, 1997), sendo considerado um enorme desrespeito.48 Desta maneira Apuleio procurou fortalecer seus vínculos com a justiça romana. Mas para que deplorar o passado, quando não é menos amargo que presente? Este pobre menino foi pervertido por vocês até o ponto que é capaz de ler em voz alta a carta, que é considerada de amor, de sua própria mãe, ante o tribunal do procônsul, ante um homem honrado como Cláudio Máximo, ante estas estátuas do Imperador Pio. (APULEIO, Apologia, LXXXV, 1-2). Já na obra Flórida, Apuleio exalta-se como um legítimo africano. Devemos destacar que ambas as obras, Flórida e Apologia, foram discursos orais transcritos. Portanto Apuleio lisonjeava sua educação e eloqüência aos moldes do centro do Império (Grécia e Roma), mas não desqualificava o local de seu nascimento. Minha pátria, portanto, forma parte da assembléia provincial da África, ou seja, da vossa; minha infância transcorreu entre vós; vós mesmos formais meus mestres, minha doutrina filosófica, ainda que amadurecida em Atenas, na Ática, nasceu, no entanto, aqui, minha voz, em ambas as 48 Carlos Norena (1997) ainda nos indica um efeito retórico forte nesta passagem: sabe-se que o Imperador Antonino Pio persuadiu o Senado Romano a consagrá-lo como filho adotivo do Imperador Adriano. Assim, Apuleio estabelece um contraste entre Antonino (que deseja muito ser filho de um pai honroso) e Pudente (que despreza as honras de seu padrasto). Certamente este efeito retórico foi apreciado pelo pretor. 51 línguas, converteu em algo muito familiar para vossos ouvidos nos últimos seis anos. (APULEIO, Flórida, XVIII, 15) Norena (1997) afirma que em relação à região africana, as referências à formação romana não tinham grande valor. Mas lembremos que a maioria de homens aristocratas da África, que possivelmente seriam os ouvintes e leitores de Apuleio, também receberam uma educação romana, segundo a tradição das altas ordens do Império. Nesse sentido, Apuleio faz questão de se igualar à educação e ao nascimento de seu público. Destarte, Apuleio é um africano, filho de pais romanos. Como membro de uma elite africana que possuía elementos culturais aos moldes gregos e romanos, logo, sua formação seguiu modelos romanos. 1.3 A opulência das personagens da Apologia A classificação das camadas sociais no Império Romano tinha como base a propriedade e o princípio da hereditariedade, que eram aplicados para determinar a qual camada pertencia uma pessoa. Assim, a não ser em casos em que o Imperador Romano conferia o grau de senador ou cavaleiro como favor especial, o título era adquirido unicamente como direito hereditário (MOKTAR, 1983: 500). Desta maneira, como já ressaltado, assim como seu pai Apuleio pertencia à camada dos decuriões. Os decuriões tinham a função de controlar as finanças da cidade, decidiam sobre as novas despesas e administravam a propriedade municipal. Todos deveriam ter uma 52 fortuna superior a uma espécie de censo, que era modesto nas pequenas cidades e alto nas grandes, principalmente em Cartago49 (MOKTAR, 1983: 487-488). O exercício de cargos públicos supunha a posse de amplos recursos e tempo disponível: os magistrados não recebiam salários e, ao assumir uma função administrativa deviam pagar ao tesouro municipal uma quantia variável conforme o cargo desempenhado. Além disso, era bastante comum que os decuriões financiassem a construção de templos públicos, doassem víveres e dinheiro para os pobres e para os espetáculos como jogos e banquetes.50 Isso significava que apenas homens ricos podiam desempenhar algum papel na cidade onde os magistrados presidiam a assembléia do povo e o senado, despachavam as questões rotineiras, mantinham relações com as autoridades provinciais e exerciam o poder judiciário limitado a pequenos delitos de pouca importância (MOKTAR, 1983: 487). Apuleio mostra-se muito bem relacionado na obra Apologia, até mesmo porque colocar as pessoas importantes na administração da província com as quais ele se relacionava é uma forma de conquistar os ânimos do juiz. Em uma passagem do discurso ele cita a amizade com Loliano Avito, procônsul da África Proconsular antes de Cláudio Máximo, que preside o tribunal em Sabrata.51 Logo me suplicou que o congraçasse de novo com o ilustríssimo Loliano Avito, a quem eu o havia recomendado recentemente, nos começos de sua carreira de orador. Havia-se comunicado, pelo visto, de que poucos dias antes eu ter-lhe escrito, informando-lhe detalhadamente de todo o que ocorreu e de como havia sucedido. Também conseguiu isto de mim, se dirigiu para Cartago, onde já finalizando seu proconsulado, Loliano Avito aguardava sua chegada, Máximo. Quando leu minha carta, 49 Em Cartago, o mínimo exigido de fortuna dos decuriões era de cerca de cem mil sestércios (ALFÖLDY, 1989: 143). 50 Os dados sobre as fortunas públicas e privadas na região da África do Norte sob dominação romana são pouco precisos atualmente. As inscrições trazem escassas informações, sendo o discurso Apologia, o material que melhor fornece dados a esse respeito (BOURGAREL-MUSSO, 1934: 354). 51 Como podemos perceber, é o próprio Apuleio que indica que Loliano Avito era o proconsul um pouco antes da acusação. Também em um estudo sobre datação e nome dos procônsules africanos, Ronald Syme (1959: 318) confirma o nome de Loliano Avito e estabelece a data de seu proconsulado para 157/8 d.C. 53 Loliano, fazendo gala de sua maior afabilidade, aconselhou Ponciano a reparar seu erro e me enviou, por meio do mesmo Ponciano, sua resposta52 (APULEIO, Apologia, XCIV, 3, 4, 5, 6). Após tais palavras, Apuleio pediu para que o pretor Cláudio Máximo permitisse que ele lesse uma carta que Loliano Avito lhe enviou felicitando-se com a reconciliação entre ele e Ponciano (APULEIO, Apologia, XCIV, 8). Nesse trecho, podemos observar o prestígio e influência de Apuleio nesta região, por mais que ele tenha usado esta carta a seu favor, acreditamos que ele jamais falsificaria um testemunho com tais características. Sobre a riqueza de Apuleio, sabemos que com a morte do pai, ele e o irmão receberam uma herança de dois milhões de sestércios. Apuleio gastou sua parte com viagens, estudos e causas que considerava essenciais a um bom cidadão. Tais causas públicas que os cidadãos romanos considerados bons se dedicavam se chamavam liberalidades. [...] declaro que meu pai deixou, a mim e a meu irmão, uma herança de dois milhões de sestércios, pouco mais ou menos. Claro que esse patrimônio foi diminuído por mim devido minhas viagens prolongadas, meus estudos e as freqüentes liberalidades. Porque eu gratifiquei muitos de meus mestres e ajudei muitos de meus amigos, alguns dos quais proporcionei os dotes de suas filhas. (APULEIO, Apologia, XXIII, 1-4) Em passagens da Apologia, Apuleio mostra os gastos com as liberalidades que a elite urbana tinha que ter para se manter enquanto tal. Assim, ele justifica o motivo de ter se casado no campo com Pudentila para que eles não tivessem que gastar com mais um grande 52 Nesta passagem, Apuleio coloca que recomendou que seu amigo e enteado Ponciano se dirigisse até o proconsul para alguma ajuda da qual ele não menciona. Antes de Ponciano se encontrar com Loliano Avito, Apuleio conta ao proconsul dos desentendimentos que teve com Ponciano por intrigas entre o sogro deste, Rufino. Assim, como vemos na passagem, o procônsul aconselha Ponciano que se entenda novamente com Apuleio. Esta passagem é de extrema importância na defesa de Apuleio, pois Apuleio busca citar suas amizades com importantes personagens políticas como apoio em sua defesa, em uma tentativa de mostrar que até o proconsul anterior ao que presidia o tribunal era favorável a ele. 54 banquete, já que há pouco tempo atrás tinham gastado com as festas do casamento de Ponciano, filho de Pudentila. [...] a única razão pela qual o contrato matrimonial entre Pudentila e eu não foi realizado na cidade, e sim em uma fazenda: assim fizemos para não ter que desenrolar de novo outros cinco mil sestércios [...] (APULEIO, Apologia, LXXXVIII, 1)53 Como membro da cúria de sua cidade natal e sacerdote de Cartago, Apuleio também tinha tais gastos onerosos. Segundo Gagé (1971: 165): O novo decurião, de praxe, ao entrar na cúria, tem de fazer uma certa doação de muitos milhões de sestércios. A nomeação para sacerdote comprometia o título a um donativo análogo. Apuleio não sugere em nenhum momento de seus textos de onde provinha a renda de seu sustento, indica apenas que herdou um milhão de sestércios, já que o outro um milhão indicado era a parte da herança de seu irmão. Conforme Andrée Bougarel-Musso (1934: 374), as heranças de africanos geralmente eram terras para o cultivo. Se a herança de Apuleio constituiu-se em forma de terras, mesmo que não tenha cultivado pessoalmente suas terras, pode ter mantido sua fortuna de rendas provindas da terra durante os anos que ele passou fora da África, estudando. Também de acordo com Moktar (1983: 501), as rendas dos decuriões provinham, em geral, de suas propriedades rurais e eles viviam na cidade com as rendas de suas terras. Jean Gagé (1971: 165) também nos traz esta informação: A camada de decuriões do alto Império, mesmo na Itália, realizou-se antes ligada a uma estrutura fundiária, mesmo que nós encontrássemos esses notáveis morando em casas na cidade, eles tinham rendimentos que 53 Tais liberalidades eram meios de conquistar o prestígio e angariar votos nas próximas eleições para os cargos públicos, não sendo sempre espontâneas, mas impostas pelo uso, o costume e a vontade popular. (BOURGAREL-MUSSO, 1934: 409). 55 vinham de suas propriedades. Mesmo quando eles eram grandes latifundiários guardavam o gosto pelas coisas da terra e era visível que a vida de um burguês era também a vida de um agricultor. Os ricos africanos que aparecem na obra Apolo