UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” – UNESP PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA LARISSA NARDO BAIO ROCHA A TEORIA DO DIREITO NATURAL EM ESPINOSA: O DESLOCAMENTO ONTOLÓGICO DO SER E A CAUSA EFICIENTE E IMANENTE DO ESTADO CIVIL MARÍLIA 2021 I LARISSA NARDO BAIO ROCHA A TEORIA DO DIREITO NATURAL EM ESPINOSA: O DESLOCAMENTO ONTOLÓGICO DO SER E A CAUSA EFICIENTE E IMANENTE DO ESTADO CIVIL Dissertação apresentada para o Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus Marília para obtenção do título de Mestra em Filosofia. Área de Concentração: Filosofia. Linha de Pesquisa: Conhecimento, Ética e Política. Orientador: Prof. Dr. Lúcio Lourenço Prado. MARÍLIA 2021 R672t Rocha, Larissa Nardo Baio A teoria do direito natural em Espinosa: o deslocamento ontológico do ser e a causa eficiente e imanente do Estado Civil / Larissa Nardo Baio Rocha. -- Marília, 2021 149 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Lúcio Lourenço Prado 1. Direito Filosofia. 2. Direito Natural. 3. Ética Política. 4. Livre arbítrio e determinismo. I. Título. III IV As minhas filhas, Lizzie e Priya Para que concebam a arte dos bons encontros, Sejam a positividade e a conciliação de diferentes naturezas, inspirem-se em traçar seus próprios caminhos sem jamais impor limites aos seus sonhos. V AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. À CAPES, que, com seu auxílio, essencial ao desenvolvimento deste trabalho, permitiu que esta estudante se dedicasse exclusivamente à pesquisa, promovendo a igualdade e fomentando o ingresso de mulheres, mães, na filosofia e, com isso, enriquecendo o debate e a reflexão acadêmica. À UNESP- Campus Marília e todos os seus profissionais, que, durante o período de pandemia experienciados nos anos de 2020 e 2021, reinventaram-se e trabalharam arduamente para que estivéssemos próximos, ainda que virtualmente. Ao meu Orientador, Lúcio Lourenço Prado, que acolheu uma estudante de direito, interessada em filosofia, em seu Grupo de Pesquisas sobre o Idealismo e, desde então, da elaboração do projeto de pesquisa para o Ingresso no Programa até a presente Defesa, cumpriu com muito mais do que sua obrigação de docente. Este, sempre preocupado em formar estudantes que valorizam o compartilhar do conhecimento, muitas vezes, abriu mão do seu tempo de descanso para revisar textos, responder mensagens, sanar dúvidas, dirigir grupos de estudos e promover seminários, ativamente complementando e enriquecido nossos estudos. Aos professores, Hélio Alexandre da Silva e Jean Rodrigues Siqueira, membros da Banca de Qualificação e Defesa, pelo olhar minucioso do texto, pela generosidade, humildade e disponibilidade, por todas as valiosas considerações, sugestões, críticas e comentários que colaboraram de forma decisiva para a conclusão do presente trabalho. VI Aos orientandos do Lúcio ou Espinóticos, como fomos apelidados, meus sinceros agradecimentos pela companhia nesta trajetória, por tantas horas de leitura e reflexão dos textos espinosanos, pelo comprometimento e esforço. Obrigada pelas dicas e comentários generosos. As minhas filhas, Lizzie e Priya, que me realizaram e me transformaram afetiva e profissionalmente, que me ensinaram que sempre podemos ir além dos limites que traçamos para nós mesmos, que me trouxeram a necessidade e a urgência de ser uma pessoa melhor e fazer do nosso mundo um lugar mais humano. Ao Fernando, meu marido e companheiro, por ser meu apoio e maior incentivador. Obrigada por nossa família, por ser um pai tão dedicado, por sonhar comigo, simplificando e tornando possível o que, tantas vezes, me pareceu inalcançável. Obrigada pelo seu: “vai em frente, tenta, depois a gente dá um jeito”. Obrigada por tanto e por tudo. Aos meus queridos pais, meus melhores amigos, Antônio e Elisabeth, pela dedicação que transborda, por serem o meu porto seguro, por serem o abraço dos dias difíceis e o sorriso dos dias felizes. Muito obrigada por tantas lições, especialmente, por me mostrarem como é ser verdadeiramente amada e qual a importância que isso deve ter em nossas vidas. Obrigada por tanto amor! Ao meu querido irmão, Fábio, que nos trouxe a Elen e nosso amado Eliel, por sua serenidade e tranquilidade, por nossos bate-papos, por tantos conselhos e momentos especiais, por ser sempre meu parceiro e maior defensor. VII A toda minha rede apoio, familiares e amigos, pelos momentos de aflição e felicidade divididos, especialmente, aos meus sogros, Rocha e Regina, sempre tão dedicados em nos proporcionar conforto e bem-estar, pela prontidão e disponibilidade, por cuidarem da gente com tanto amor, zelo e dedicação. Obrigada por essa linda jornada. VIII “Toma-se, com isso, evidente o quanto vale o sábio e o quanto ele é superior ao ignorante, que se deixa levar apenas pelo apetite lúbrico. Pois o ignorante, além de ser agitado, de muitas maneiras, pelas causas exteriores, e de nunca gozar da verdadeira satisfação do ânimo, vive, ainda, quase inconsciente de si mesmo, de Deus e das coisas, e tão logo deixa de padecer, deixa também de ser.” (EIV, prop. 42, escol.). IX RESUMO O presente trabalho foi desencadeado pela afirmação espinosana, na Carta 50, de que os direitos naturais devem estar bem resguardados no Estado Civil. Para averiguar o que representa a continuação do direito natural no âmbito civil para a filosofia de Espinosa, cotejaram-se suas principais obras: Ética, Tratado Teológico-Político e Tratado Político, com o intuito de acompanhar o desenvolvimento do pensamento crítico do autor, bem como o caráter subversivo de suas teorias, muitas vezes perdido pela obscuridade e alcance das palavras. Inaugurado pela ontologia espinosana, neste trabalho são trazidas algumas considerações acerca da substância e suas propriedades, dos atributos e dos modos, alcançando o homem enquanto parte da natureza que reflete apenas a generalidade de ser um modo da substância. A natureza humana, a perspectiva que os individualiza, desvenda-se pela via das noções comuns e desperta a conveniência como necessária à satisfação do conatus individual. O movimento é intrínseco e incessante, isto é, as potências singulares experienciam afetos de alegria, contrários e mais fortes do que aqueles vivenciados em um regime de extrema violência e barbárie, constante no estado de natureza. Aqueles afetos atualizam a potência, tornando-a mais intensa, possibilitando o ato, a positividade que é articular-se a outras potências, causando uma potência coletiva inédita: a multidão. Assim, será para desobstruir sua potência das amarras dos afetos tristes, do estado de intensa passividade, que os homens admitirão estar sob a jurisdição de outrem. O Estado Civil revela-se não por um acordo externo, onde a voluntariedade e a arbitrariedade é dado estabelecer a possibilidade de uma renúncia total de direitos, mas por um movimento interno, contínuo, necessário e determinado entre potências individuais que concebem a necessidade de uma vida propriamente humana. O homem é determinado pelo princípio da utilidade, pelo desejo de perseverar na existência e pela alegria do agir a conduzir-se pelo menor dos males ou maior dos bens. A racionalidade e os afetos, juntos, comunicam a humanidade como a condição que inspira o comum. Palavras-chaves: Direito Natural; Estado de Natureza; Estado Civil; Potência; Conatus; Causa Eficiente; Causa Imanente. X ABSTRACT The present work is triggered by Spinoza's affirmation, in Charter 50, that natural rights must be well protected in the Civil State. To find out what the continuation of natural law in the civil sphere in Spinoza's philosophy represents, his main works were compared: Ethica, Tractatus Theologico-Politicus and Tractatus Politicus; which was done in order to accompany the development of the author's critical thinking, as well as the revolutionary character of his theories, often lost by the obscurity and broadness of the words. Spinoza's ontology opens the first chapter. Some considerations are brought about the substance and its properties, attributes and modes. Men as part of nature reflect a generality that is individualized through relationships that are established by necessary affections, evidencing their intersubjectivity. Human nature arises from a shift of powers that begin to conceive common notions and convenience among men as necessary to satisfy the individual conatus. The intrinsic and incessant movement in which the singular powers are inserted, through the force of their conatus, makes them experience affections of joy, contrary and stronger to those experienced in a regime of extreme violence and barbarism. Such affections update their potency, making them more intense, enabling the act, the positivity that is articulating with other potencies causing an unprecedented collective potency: the crowd. Men are determined by the principle of utility to be led by the least of evils, or the greatest of goods. Therefore, it is because of the desire for perseverance in existence, for a properly human life by unblocking the shackles of the sad affections of the state of intense passivity that they assume to be under the jurisdiction of others. It is not by an external agreement in which voluntariness and arbitrariness are given to establish the possibility of a total renunciation of rights, but by an internal movement, necessary and determined between the individual powers that conceive life in common as a greater good. if without losing its humanity, a condition that inspires the common. Palavras-chaves: Natural Law; State of Nature; Civil State; power (potentia); conatus; efficient cause; immanent cause. XI SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................... 1 1 A TEORIA DOS MODOS FINITOS NA ONTOLOGIA ESPINOSANA ....... 8 1.1 RUPTURA ENTRE TEOLOGIA E POLÍTICA ................................................... ..14 1.1.1 Qualidades da substância extensa ...................................................................... 15 1.1.1.1 Da indivisibilidade ................................................................................................. 15 1.1.1.2 Da onipotência ....................................................................................................... 16 1.1.1.3 Da perfeição ........................................................................................................... 17 1.1.1.4 Do infinito e suas diferentes formas ...................................................................... 18 1.2 DOS MODOS INEXISTENTES ........................................................................... 20 1.3 DA CAUSALIDADE DOS MODOS EXISTENTES ........................................... 22 1.4 DA NATUREZA HUMANA E DA TEORIA DO PARALELISMO PSICOFÍSICO ....................................................................................................... 29 1.4.1 O que pode um corpo? ......................................................................................... 31 1.4.2 O que pode a alma? ............................................................................................. 33 1.5 DAS AFECÇÕES DA SUBSTÂNCIA E DOS MODOS ..................................... 36 1.5.1 Das afecções do modo e sua relação com a essência, o grau de potência e o poder de agir ........................................................................................................ 38 2 JUS SIVE POTENTIA: DA TEORIA DO DIREITO NATURAL E A POTÊNCIA DO INDIVÍDUO ENQUANTO PARTE DA NATUREZA ....... 43 2.1 ESPINOSA, UM FILÓSOFO POLÍTICO-JURÍDICO? ....................................... 43 2.2 DA CONCEPÇÃO FINALISTA: DO PRECONCEITO À SUPERSTIÇÃO ....... 45 2.3 DO CONCEITO DO DIREITO NATURAL E DAS FORMAS (ADEQUADA E INADEQUADA) DE EFETIVAÇÃO DO CONATUS ........................................ 49 2.3.1 Liberdade, potência e direito: quando o poder de agir é mais forte do que as afecções externas? ............................................................................................ 53 2.3.2 Das noções comuns da razão ............................................................................... 59 2.3.3 Da utilidade da vida em comum ......................................................................... 61 2.3.4 Das leis humanas .................................................................................................. 63 2.4 DA DISPENSA DO PACTO COMO CATEGORIA EXPLICATIVA DA GÊNESE DO CORPO POLÍTICO E DO CONATUS COLETIVO ..................... 68 2.4.1 Da transformação gradual do homem: da perspectiva puramente individual à XII coletiva ..................................................................................................................................... 71 2.4.2 Da instituição da pessoa política ......................................................................... 72 2.4.3 Da titularidade do poder soberano: diferença entre titularidade e exercício 75 3 A GÊNESE DO POLÍTICO-JURÍDICO .......................................................... 77 3.1 SER PARTE DA NATUREZA E A SINGULARIDADE DE CADA ESSÊNCIA HUMANA ............................................................................................................. 78 3.1.1 A condição humana da passividade ................................................................... 81 3.2 A CAUSA INTRÍNSECA DA VIRTUDE ............................................................ 83 3.2.1 Da intercorporiedade e intersubjetividade como condição humana ............... 86 3.2.2 O homem é tanto mais virtuoso, quanto mais potente: a instituição do comum como uma racionalidade operante na passividade ........................................... 87 3.3 A DEFINIÇÃO DO DIREITO NATURAL COMO DESEJO E POTÊNCIA ...... 89 3.3.1 A concepção de direito natural existente no juízo do bom e do mau .............. 94 3.4 A DEFINIÇÃO DE CONATUS COMO ESSÊNCIA ATUAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A EXPERIÊNCIA POLÍTICA ................................ 98 3.4.1 A subversão espinosana na fundamentação do Direito Natural .................... 102 3.4.2 O princípio da utilidade como lei natural ao qual está submetido o conatus. ..............................................................................................................................104 3.4.3 A articulação das potências individuais e o princípio da proporcionalidade ..............................................................................................................................105 3.5 ESPINOSA, O DIREITO NATURAL E O JUSNATURALISMO MODERNO ..............................................................................................................................112 3.5.1 A recusa a qualquer valor transcendente ........................................................ 113 3.5.2 A incompatibilidade do contrato com a potência coletiva e a necessidade da vida em comum .................................................................................................. 114 3.5.3 Os limites ao poder do Estado em um plano de imanência absoluta ............ 118 3.5.3.1 O estado não pode agir contra os ditames da razão ............................................. 120 3.5.3.2 A medida da exigência da cidade ........................................................................ 124 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 129 1 INTRODUÇÃO O refletir sobre o desenvolvimento de uma Teoria do Direito Natural em Espinosa envolve mais do que um estudo de suas principais obras sobre filosofia política-jurídica, isto é, exige mais do que a apreensão da definição de direito natural trazida pelo autor no Tratado Teológico-Político ou a forma apodítica como é abordada pelo Tratado Político. É preciso ingressar no seu sistema, conhecer os desdobramentos de seus pensamentos e o seu caráter revolucionário, sem os rótulos pejorativos desencadeados por interpretações fragmentadas (e) ou indiretas. Pensar com Espinosa é um ato de coragem, um desafio ao leitor que, enquanto adentra a sua filosofia, é convidado a ponderar sobre si, sobre os modos da vida, as formas de liberdade, inclusive, sobre a sua aparência na servidão, sobre a alegria como algo contido na transitoriedade do passar de uma perfeição menor a uma maior. Em uma época em que as divergências políticas são vividas tão intensamente, tamanha são as contrariedades, segregações e inimizades, o regime afetivo que se acentua é o da passividade, que aproxima os homens do estado de solidão. Neste contexto, a atualidade dos textos espinosanos, escritos no Século XVII, nos inspira a aceitar uma natureza humana que realmente existe, e é muito mais do que a simples racionalidade, opera pela via dos afetos e, mesmo em tempos de extrema barbárie e violência, concebe a conveniência humana como necessária à realização dos direitos individuais e coletivos. Assim, é preciso estar preparado para as reviravoltas que o autor proporcionará. Não é preciso concordar absolutamente com suas teorias para que se conceba o desprender das amarras das superstições e preconceitos como fundamentais para alcançar o conhecimento verdadeiro, esteja ele onde estiver, segundo qual método for. Da mesma maneira, não é preciso aceitar o plano de imanência como absoluto ou conceber o homem como uma parte da natureza para compreender a importância histórica da filosofia espinosana e aceitar o convite do autor a refletir sobre a emergência do viver uma vida propriamente humana, isto é, o assumir a própria natureza como uma potência singular, portanto, como uma positividade que é em ato diferente de todas as demais, inclusive, de si própria, quando sopesada com a forma como se apresentava no passado ou com a que se apresentará no futuro. Distanciando-se de uma visão antropocêntrica, o autor considera a virtude como algo intrínseco aos modos, estabelece que as coisas não devem servir à natureza humana, tampouco os homens devem servir uns aos outros. A cada um deve interessar apenas as necessidades de sua natureza, que concordarão à medida 2 que a extrema passividade, fomentada pela promessa de uma recompensa futura ou transcendente, deixar-se ocupar pela racionalidade do comum. Embora seja sistemático, é Espinosa que permite que suas obras e a afirmação trazida no Tratado Político sejam lidas individualmente. Contudo, as questões políticas e jurídicas fazem-se amplamente presentes, ainda que de forma secundária e indireta, em suas obras e correspondências. Assim, embora seja possível visitar sua política apenas pelo Tratado Político, tal conhecimento se daria de forma superficial, dificultando uma leitura crítica da literatura secundária (ou indireta) dos textos espinosanos, onde as aparentes discordâncias revelam uma problematização de fragmentos retirados de seu contexto e podem esconder uma finalidade específica do autor, que as comunica, em estabelecer uma comparação depreciativa ou em corroborar outras teorias. Neste cenário, é importante ressaltar que Espinosa utiliza a terminologia assente em sua área de atuação, atribuindo-lhe novo sentido. Assim, para que sua teoria não se perca em jogo de palavras e comparações, é preciso um esforço constante para que se possa conceber com clareza aquilo a que o autor pretende se referir. Tal esforço se dará, no presente trabalho, pelo cotejo da temática em suas obras principais que, antes de trazerem incompatibilidades, expressam palavras que não podem ser categorizadas sem a consideração do contexto, das definições e das demonstrações que lhe esclarecem o alcance e o sentido. Nesta conjuntura, o primeiro capítulo volta-se à teoria dos modos finitos e tem como fundamento teórico, essencialmente, os dois primeiros livros da Ética de Espinosa e os comentários extraídos da obra Espinosa e o problema de expressão de Gilles Deleuze. Trata-se de um encorajamento a uma leitura mais abrangente da filosofia espinosana, com o propósito de seguir a linha argumentativa do próprio autor, para esclarecer alguns pontos obscuros que uma leitura parcial de suas obras poderia proporcionar, revelando que existem questões que são sensíveis a campos aparentemente distintos, mas que devem ser confrontadas de modo a eliminar algumas das imprecisões interpretativas. Desta maneira, o movimento político-jurídico de Espinosa será desenvolvido como intrínseco a sua ontologia, à medida que o conceber da conveniência da natureza humana perpassa uma racionalidade operante que se desvenda ao homem nas propriedades ou noções comuns presentes, inclusive, nos regimes de intensa passividade, para, então, alcançar a potência coletiva em um deslocamento necessário das essências individuais que se atualizam por suas afecções. A necessidade de um estudo da ontologia espinosana apresenta-se, especialmente, pelo recorte traçado pela pesquisa que busca refletir acerca do direito natural e a sua equiparação à potência; os reflexos de uma natureza humana que existe e é guiada a maior 3 parte do tempo por paixões; a maneira como esta natureza se relaciona com o mundo e a sua capacidade de transformar-se nos limites de um poder agir que pode ser aumentado ou diminuído; o lugar da racionalidade; mais do que um capítulo sobre a teoria dos modos finitos, esta seção inaugural tem a importante e a difícil tarefa de apresentar algumas teorias que estão intrinsecamente relacionadas ao tema proposto como: a substância una e seus atributos, pensamento e extensão; a liberdade e a vontade necessária; o paralelismo psicofísico; a potência e o conatus; as afecções. O recorte feito no primeiro capítulo visa sublinhar a insurgência espinosana à tradição de sua época ao trazer a ruptura entre teologia e política, o que acarretará a negativa de toda forma de poder alicerçado em preconceitos, superstição, dogmas, isto é, na ignorância que, em seus termos, servem tanto aos políticos quanto aos religiosos como instrumento de dominação, fomentação e manutenção de seu domínio. Ao equiparar a substância a Deus, instaura, segundo Deleuze, um novo naturalismo, que extrai do Ser transcendente todo poder fundado na arbitrariedade e contingência, para então devolvê-lo à natureza como força produtiva, como uma potência que é absolutamente infinita, à medida que é necessariamente determinada. A vontade, nestes termos, enquanto associada à onipotência, fundamenta-se em um intelecto infinito e, ao ser equiparada ao entendimento, afasta-se do livre-arbítrio, tornando-se necessária e determinada. Ainda, cuidar-se-á da teoria da causalidade espinosana, argumentação importantíssima no tocante à separação entre estado e igreja, que acompanhará este trabalho até o seu termo. Em breves linhas, a substância (Deus) é causa de si e de todas as coisas que existem na natureza. Além do mais, é causa imanente, eficiente, primeira e não por acidente. A infinitude da substância propicia que ela seja percebida por infinitos atributos, dentre eles o pensamento e a extensão. A apresentação da extensão como um dos infinitos atributos da substância justifica- se para o autor como a potência pela qual os modos extensos são por ela concebidos. Quanto aos homens, modificações finitas que se manifestam e percebem apenas dois atributos, o pensamento e a extensão, Espinosa corrompe a ordem de investigação da relação que se estabelece entre o corpo e a alma examinando a natureza humana a partir da estrutura de seu corpo, para só posteriormente, pela teoria do paralelismo psicofísico, alcançar a maneira como a sua alma se relaciona com aquilo que ele denominará seu objeto atual. Antes de questionar, o que pode a alma? Pergunta, o pode um corpo? Com efeito, esta pesquisa seguirá a ordem de investigação do autor, por isso, apresentará no primeiro capítulo a complexidade da composição dos corpos e o regime de afecções, isto é, a capacidade que tem o homem de afetar e ser afetado simultaneamente de inúmeras maneiras, por inúmeros outros modos (EII), seguindo para a 4 teoria dos afetos (EIV) nos capítulos seguintes, especialmente, no terceiro e último, em função da sua imprescindibilidade para a adequada compreensão do deslocamento das essências individuais e da instituição de uma potência coletiva. O segundo capítulo, que tem como fundamento teórico, especialmente, o Tratado teológico-Político, o Tratado Político e as considerações de Antônio Negri em sua obra Anomalia Selvagem: Poder e Potência em Espinosa, introduz alguns aspectos da Teoria do Direito Natural, especialmente, a visão universal do direito equiparado à potência e algumas ponderações exordiais no tocante ao homem como Parte da Natureza. Os homens estão naturalmente inclinados à satisfação das necessidades de sua natureza, mas em que consiste a natureza humana? A questão principal começa a ser trabalhada neste capítulo, para ser retomada no capítulo subsequente, e revela a indispensabilidade de se conciliar a racionalidade à passividade para se pensar a política. Nestes termos, a pura razão não estará apta a definir a essência singular do homem no estado de natureza, tampouco, o seu deslocar até o articular-se em uma nova potência coletiva. Da mesma forma, como se verá no capítulo subsequente, embora a razão não possa ser contrariada, esta é considerada insuficiente para a manutenção das leis e regras da cidade. Os homens são animais sociais ou inimigos naturais? Para Espinosa, no estado de natureza, o homem percebe os outros modos existentes como meio para satisfação de suas necessidades ou como obstáculos às coisas que desejam. Neste aspecto, aqueles que entravam a sua potência são frequentemente reconhecidos como inimigos. Contudo, por serem intelectos finitos, não concebem adequadamente a própria natureza, tampouco a estrutura dos corpos exteriores, razão pela qual não confiam a satisfação de seus interesses aos outros modos. Neste cenário, a inadequação fomenta o conflito entre potências, que visam a satisfação de naturezas que são contrárias, à medida que desejam a posse exclusiva de bens exteriores1. Embora o Estado Natural não seja um estado de isolamento, dir-se-á tratar-se de um Estado de Solidão, uma vez que as relações que se estabelecem não têm o outro sob perspectiva, é dizer potências contrárias se relacionam por interesses privados estabelecendo vínculos que se esteiam na volatilidade da utilidade unilateral e que, sob os limites da potência individual, podem ser exercidos a todo o tempo, de pleno direito. É por um propósito privado, conservar-se em sua essência singular, que o homem concebe a utilidade de uma união de potência e a inauguração de potência coletiva inédita, que é admitida por Espinosa nos termos de seu conceito de indivíduo como aquele que possui uma 1 Nos termos apresentados por Marilena Chauí em seu artigo Espinosa: poder e liberdade (2006). 5 identidade de causa. Em outras palavras, é pelo desejo de tornar-se mais potente e, com isso, ter mais direitos do que aqueles que permanecerem sozinhos que o homem articula a sua potência a outras. Não é, portanto, por uma sociabilidade inata que se dará a conveniência entre as naturezas, mas pela necessidade da essência singular. Em regime afetivo de extrema passividade, as essências singulares deslocam-se para conceber ou imaginar a utilidade da vida em comum, determinando-se por ela. Tal percepção concilia os desejos deflagrados de suas paixões com uma racionalidade residual. É dizer, a essência do homem, ao atualizar-se, elabora a existência no estado de natureza como fundada, essencialmente, em paixões tristes que entravam a sua potência ao ponto de aniquilá-la. A liberdade de estar sob a jurisdição de si próprio, outrora festejada, passa a ser apreendida como algo apenas aparente, afastado da realidade, uma vez que é constantemente cerceada pela ignorância, pela insegurança, pelo temor de ser tolhido de seus bens ou de sua própria vida. Os afetos tristes que imperam neste regime apontam para a vida em comum, para o estar sob a jurisdição de outrem, como um mal menor (ou um bem maior) do que a vida em solidão. Desta feita, é por uma necessidade intrínseca de exercer seu poder, de agir em toda a sua potência, que os homens são determinados a submeter-se à jurisdição de outrem: o indivíduo coletivo. O terceiro capítulo, em tom conclusivo, retoma alguns dos pontos trabalhados nos capítulos anteriores, tem como fundamento teórico, além das mencionadas obras espinosanas, as argumentações trazidas por Marilena Chauí, especialmente em seu artigo Espinosa: poder e liberdade, Francisco de Guimaraens em Ética e política em Spinoza: uma cartografia da imanência e Ana Saramago em A imaginação no poder: obediência política e servidão em Espinosa. O primeiro ponto que se perseguirá é o vínculo estabelecido entre a atualidade da essência humana, a utilidade comum e a intrínseca articulação de potências singulares para a instituição do político. É importante ter em vista que a intensa passividade do regime a que os modos estão submetidos em um estado de extrema violência e barbárie pode bloquear a sua potência ao ponto de anulá-la completamente, entravando qualquer atividade, sobejando apenas uma negatividade que não está apta a qualquer transformação. Neste sentido, a articulação de potências, que culminará na instituição de uma potência coletiva, deve ser elaborada como um ato, portanto, como uma positividade que pressupõe o afastamento, por menor que seja, daquela máxima passividade, ou melhor, um deslocamento de essências individuais que se movem em direção a conceber a conveniência da natureza humana, atualizando-se. Tal passagem é 6 conciliável com a racionalidade operante2 existente nas noções comuns e com o regime de imitação dos afetos ou de compensação3 inerente a todos os homens, portanto, fundamental à apreensão da gênese e manutenção do estado civil. A questão é, por conseguinte, de intensidade. O homem que estará sempre submetido às paixões, necessariamente, padecerá. Em outras palavras, a maioria dos homens será dominado por seus afetos durante toda a sua vida, poucos serão aqueles que viverão conduzidos pela razão e, ainda estes, o farão por pouco tempo e não de forma absoluta. Assim, em que pese a gênese do político possa ser concebida racionalmente pelo caminho traçado no quarto livro da Ética, que corrobora as bases e consistência do plano da imanência que envolve a Natureza eterna, extrai-se da experiência que o seu deflagrar em um regime de passividade dar-se-á efetiva e necessariamente no plano dos afetos no qual se percebe uma racionalidade residual. Nada obstante, o homem possui um corpo (e paralelamente uma mente) complexo, composto por inúmeros outros corpos compostos, sendo capaz de afetar e ser afetado simultaneamente, de maneiras diferentes, por inúmeros outros corpos, e este é determinado a um regime de afecções. As relações que o homem estabelece são necessárias à sua conservação. Contudo, de acordo com Espinosa, somente as coisas que convêm com a natureza do modo, ainda que parcialmente, podem afetá-lo, positiva ou negativamente, lhe sendo todas as outras indiferentes. Nesta perspectiva, conduzidos pela razão, os homens percebem-se com a mesma natureza, concebem a utilidade do comum, desejam a virtude como bem (interior) supremo e fonte de sua felicidade. Ao almejarem um bem comum, afastam-se do ímpeto de buscar na exclusividade da posse das coisas externas a satisfação de suas necessidades. No traçar do plano da imanência absoluta, a gênese do campo político, ao espelhar um movimento intrínseco das potências singulares que se articulam para engendrar uma nova potência coletiva, se afasta de valores transcendentais, morais ou deontológicos, divinos ou legais, para alcançar como fundamento os direitos naturais. A razão operante no Estado de Natureza permite aos homens passionais que reconheçam uma maior utilidade na vida em comum, pela efetivação de seus Direitos Naturais, que se dará à medida que o medo de se subjugar a um poder comum constituído for menor do que o terror de ser constantemente oprimido por todos, isto é, do que a viver uma vida em solidão. Assim, o Direito Natural alça- se, consoante argumentado por Marilena Chauí, como causa eficiente e imanente do político- jurídico e, nesta perspectiva, à medida que se relaciona intrinsecamente com o Direito Civil, 2 Terminologia apresentada por Marilena Chauí 3 Terminologia apresentada por Francisco de Guimaraens 7 que nada mais do que sua continuidade ou efetivação, não pode ser suprimido por este, a menos que este suprima a si próprio. Com efeito, se Espinosa, no Livro quarto da Ética, afirma que os homens conduzidos pela razão são justos, confiáveis e honestos, porque no Tratado Político evidencia que o principiar e a manutenção do político e do direito civil se dá por homens dominados por seus afetos? Com este questionamento, o presente trabalho é tencionado a refletir sobre alguns aspectos, como: quais predicados poderiam ser atribuídos aos homens, que dominados por seus afetos, sob o império da natureza, respondem apenas aos seus direitos naturais, isto é, ao desejo que lhes confere o direito de se esforçar por aquilo que julgam ser útil à satisfação de suas necessidades individuais, sem ter em conta qualquer outra coisa que não eles mesmos? Que lança mão de todos os meios disponíveis, como os ardis, para alcançar o seu intento? Ainda, que são naturalmente vingativos, tomando por seu inimigo qualquer um que tente impedi-lo de alcançar o seu propósito? Posteriormente, qual o vínculo estabelecido entre potências que se articulam em meio a tanta passividade? Qual a forma para sua conservação? Existem limites aos quais a cidade por ela formada deva responder? Por fim, ressalta-se que o presente trabalho tem como pretensão a reflexão acerca da Teoria do Direito espinosana e a indispensabilidade de sua consideração na instituição e manutenção do Estado. O deslocamento ontológico, portanto, intrínseco, pelo qual passam as essências singulares em atenção aos desejos do seu conatus, culmina com o seu articular com outras potências humanas e desencadeia uma nova potência coletiva: a multidão. Ressalta-se que toda essa transformação é limitada à aptidão do homem, que não tem a sua natureza substituída por outra puramente racional. O direito natural, como causa eficiente e imanente do estado civil, não só responderá pelo deflagrar da cidade, permanecerá nela como fundamento (manutenção) e limite, devendo garantir a proporcionalidade de suas leis (ou regras) que devem afirmar a incomensurabilidade da potência do soberano sem desprezar que o seu conatus coletivo só se realiza plenamente com a satisfação dos direitos naturais daqueles que a instituíram. Desta maneira, entravá-los por um regime de extrema violência e barbárie, como na tirania, teria como efeito o retorno das essências singulares e da potência coletiva ao Estado de Solidão, com isso, a nulidade do ordenamento civil. 8 1 A TEORIA DOS MODOS FINITOS NA ONTOLOGIA ESPINOSANA De início, cumpre destacar o porquê se escolheu iniciar o presente trabalho pela teoria dos modos finitos, esclarecendo o que se pretende e qual sua correlação com o tema: a teoria do direito natural em Espinosa4, o deslocamento ontológico do Ser e as transformações que se impõem ao homem na passagem do estado natural para o estado civil5. Espinosa é um filósofo sistemático. Sua obra deve ser examinada em conjunto, a fim de minimizar os riscos de interpretações revestidas de uma parcialidade que o seu sistema não admite. O estudo dos elementos fundamentais de sua metafísica e física6, bem como sua contextualização ao período histórico em que foi escrito, são indispensáveis ao reconhecimento do desenvolvimento filosófico e político do autor e evita que suas teorias sejam mal compreendidas. Deleuze (2017) apresenta os riscos que insurgem quando se emprestam às teorias de Espinosa conceitos que são com elas harmonizáveis, aparentemente, mas escondem uma real incompatibilidade que só é desvelada a partir da compreensão do conjunto e de seu método, que se apresenta à maneira dos geômetras, com axiomas, definições e proposições. Espinosa, no Tratado Político (II, §1º)7, promete reforçar algumas das concepções desenvolvidas no Tratado Teológico-Político e na Ética, a fim de que o leitor não precise interromper o estudo daquele para recorrer ao conteúdo destes, “mas, para os que leem o presente tratado não tenham o trabalho de ir procurar noutros aquelas coisas que respeitam mormente a este, proponho-me a explica-las de novo aqui e demonstra-las apoliticamente (...)”. 4 Um dos alicerces da filosofia prática de Espinosa é a sua metafísica. Este é um grande ponto de recusa em considera-lo como um filósofo político e como um filósofo jurídico, nos termos apresentados por Fernando Dias Andrade (2001). 5 O estado de natureza não antecede o estado civil temporalmente, conforme será apontado em momento oportuno. Trata-se de uma percepção acerca do homem em sua individualidade e a sua transformação em relação ao outro. 6 Marilena Chauí (2003) chama de pequena física aquela tratada pelo Livro II da Ética e fundamenta uma importante subversão operada por Espinosa. É que para o autor, os filósofos esforçam-se por descobrir qual é a capacidade da mente, sem antes se perguntar o que pode um corpo. Neste sentido, afirma que deve haver uma subversão da ordem deste estudo, pois é o conhecimento das estruturas dos corpos que possibilitará que à mente conceba as ideias verdadeiras. 7 Cumpre esclarecer que as citações diretas e indiretas das obras espinosanas apresentar-se-ão em um padrão diferente para que aqueles que as tenham em mãos, independente da tradução, possam ter o exato acesso aos excertos mencionados. A proposta é específica para cada obra, considera as informações trazidas na maioria das traduções e forma com que comunidade de estudos espinosanos convencionou mencioná-las. Neste sentido, ao indicativo do Breve Tratado (BT), seguirá a Parte, assinalada apenas pelo algarismo romano, posteriormente, o Capítulo em algarismo arábico e a menção a Nota, quando houver (BT I, 2, Nota 59). Ao indicativo da Ética (E), seguirá o Livro, apontado somente pelo algarismo romano, posteriormente, as proposições (prop.), assinaladas e seguidas de uma numeração arábica e as definições (def.), axiomas (ax.), escólios (escol.), corolários (corol.), também seguidos das respectivas numerações, quando houverem (EI, prop. 32, escol.). A menção ao Tratado Político (TP) seguirá identificação do Capítulo pelo número romano e, posteriormente, o número do parágrafo (§) em algarismos arábicos (TP, I, §2). Por fim, o Tratado Teológico-Político (TTP) seguirá o Capítulo apenas em números romanos (TTP, XVI). 9 Nota-se que tal indicação não deve ser tomada como autorização para uma leitura do Tratado Político que desconsidere o complexo que suas obras exprimem, ou ainda, que seja incapaz de perquirir o desenvolvimento do seu pensamento. A reafirmação dos elementos, nos termos acima descritos, se presta a garantir a unidade e a fluidez do texto e, antes de trazer o consentimento para um estudo deslocado, revela a imprescindibilidade de uma compatibilização ao cenário político dos conceitos e argumentos outrora explorados. Isto posto, adentrando a temática propriamente dita, percebe-se que o poder absoluto, transcendente e arbitrário, cultivado por superstições, preconceitos e dogmas característicos das teorias do direito natural, especialmente das inseridas em um jusnaturalismo clássico em Espinosa, cede espaço para uma potência atual e imanente8 que está na natureza realizando-se constante e incessantemente. O homem, assim como o restante das coisas naturais, é uma modificação da substância que se exprime por um grau de potência responsável pelo início e pela conservação de sua existência. As modificações, embora possam ser pensadas na imaginação como coisas distintas, estão todas complicadas9 na substância una. Uma modificação é uma parte quantitativa da substância10. Quer dizer, não é capaz de representar o todo da natureza, mas constitui a força produtiva pela qual todos os modos se complicam à medida que, estando individualizada, apenas abstratamente compreende-se como uma parte intensiva da potência infinita. Segundo Deleuze (2017), Espinosa filia-se a um novo naturalismo, marcadamente anticartesiano, que retira o poder absoluto do Ser transcendente e o devolve como força produtiva à natureza. O Ser imanente passa a conceber em ato, constante e simultaneamente, infinitas coisas, de infinitas maneiras. Sua potência absolutamente infinita é atribuída qualitativamente à substância e aos seus atributos e quantitativamente aos modos, como graus de intensidade, expressa-se por uma livre necessidade e não pelo livre arbítrio. Longe do antropocentrismo, a existência das coisas se dá, não para a satisfação das vontades ou necessidades humanas, mas segundo uma ordem natural que se manifesta por uma racionalidade universal11. O finalismo aristotélico dá lugar ao causalismo imanente e o reflexo 8 A teoria da potência de Espinosa é fundada na postura crítica do autor que se opõe à substância transcendente que cria um mundo do qual ela, criadora, não faz parte. 9 O termo complicado é utilizado por Deleuze (2017) para designar aqueles modos que podem ser concebidos como inexistentes e que, portanto, revelam-se apenas como uma parte intensiva do atributo, ou melhor, como um grau de potência, ao passo que as modificações que podem ser explicadas pelo atributo podem ser deles diferenciados, assim como dos outros modos, porque são concebidas como existentes e, nestes termos, existem fora do atributo. 10 Deleuze (2017) traz as distinções entre qualitativo e quantitativo para referir-se a substância e os modos. 11 Para Espinosa, todas as coisas são determinadas a existir e agir segundo a necessidade da natureza da substância, por isso, a racionalidade universal espelha um intelecto infinito que compreende todas as coisas que existem. A 10 destas e de outras constatações do sistema espinosano12, embora não possuam um caráter propriamente prático, podem ser sentidos na constituição dos indivíduos, bem como na sua transformação no corpo político. É neste contexto que se traz a seguinte afirmação de Espinosa (EI, prop. 15, dem.): “tudo o que existe na natureza ou é substância (e os seus atributos) ou são suas modificações”. Deus é a substância. Todas as demais coisas que existem, qualquer que seja o grau de complexidade, são as modificações ou seus correlatos e criações. Assim, homens, multidões, comunidades, sociedade, estado, direito e todos os demais elementos de uma teoria política se embaraçam a uma teoria dos modos, das afecções e dos afetos. Com efeito, Espinosa considera os homens sob aspectos diferentes em sua Ética e política. Neste sentido, para a teoria dos modos, os homens exprimem-se como modificações das substâncias. Para o domínio prático, expressam-se como sujeitos de direitos e deveres, contudo, os dois domínios dialogam diretamente quanto à forma com que indivíduos altamente complexos se relacionam com as coisas que lhes são externas de acordo com a necessidade de sua natureza e em detrimento de uma vontade livre-arbitrária.13 Nas relações com o mundo exterior, e em sua relação para consigo mesmo (nexo que se dá entre suas partes internas), o modo está em constante transformação. Estas mudanças são admitidas sem que se considere qualquer ruptura, isto é, a relação inicial se mantém a mesma enquanto o esforço empenhado pelo modo para sua conservação for suficiente para preservá- la. Melhor dizendo, a forma do modo perdura enquanto suas partes extensivas não forem submetidas a uma nova relação, que por ser mais potente e contrária à anterior, a extingue. O esforço para conservar-se na existência, no homem, recebe o nome de conatus e espelha a sua potência atual. Tal teoria segue-se diretamente do fato de que para Espinosa todas as coisas existem e perseveram na existência pela mesmíssima potência de Deus. Desta maneira, nada que seja intrínseco ao modo pode acarretar a sua extinção. Pelo mesmo argumento, opõe-se ao modo inerte, aquele que se movimenta apenas por impulsos externos, pois o conatus faz com que os homens desejem e busquem, com tudo o que tem em si, aumentar racionalidade humana, por sua vez, refere-se à potência finita do modo, portanto, está limitada as coisas que são úteis ao homem, uma pequena parte da natureza. 12 Marilena Chauí (in DIAS, 2001) aponta para a utilização do termo espinosanos em detrimento de espinosistas, considerando que o último é recorrentemente utilizado para referências pejorativas ao autor. 13 Espinosa se opõe a existência de uma vontade livre, seja ela na substância ou em seus modos. Para o autor, a liberdade é necessária porque revela a satisfação da natureza da substância. Ainda que o homem considere determinadas coisas como contingentes ou possíveis, o certo é que todas elas estão compreendidas no intelecto infinito da substância de maneira que estão determinadas. Por serem conscientes de suas vontades, os homens acham-se livres, mas desconhecem a totalidade da causa que determinou a sua vontade. 11 a sua potência. Nada obstante, o conatus, segundo Deleuze (2017), revela-se por expressões que se equivalem: grau de potência, poder de agir e essência. Nesta medida, todas se encontram enraizadas à filosofia política de Espinosa, o que pode ser exposto pelo seguinte exemplo: o homem, no estado de natureza, tem os direitos equiparados à sua potência. Está sob sua jurisdição legislar, executar e julgar sobre quais coisas recairá o seu direito. Este direito se expressará na exata medida de sua força e revelará que no estado de natureza o homem só não tem direito sobre aquilo que não pode ou não consegue por seus próprios meios atingir. Todavia, segundo Espinosa (EIV, axioma), “não existe, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à qual não exista outra mais potente e mais forte. Dada uma coisa qualquer, existe uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída”. O homem, pela complexidade de seu corpo (e de sua mente, nos termos do paralelismo psicofísico14), é o mais potente de todos os modos existentes. Neste sentido, temerá (afeto do ânimo) mais ao próprio homem do que ao restante dos modos, pois somente aquilo que é mais potente e contrário à relação que se estabelece entre as suas partes extensivas é capaz de aniquilá-lo. Em razão disso, antes de considerar uma sociabilidade inata entre os homens, que os conduziria a um pacto social, Espinosa afirma que o homem é inimigo do próprio homem e que esta inimizade natural o conduz a conglobar sua potência, deflagrando um deslocamento ontológico transformador do seu Ser. No Estado de Natureza, as relações que se estabelecem entre os indivíduos não possuem qualquer estabilidade. A palavra dada a alguém pode ser retirada a qualquer momento, caso quem a tenha proferido entenda que não lhe é mais conveniente honrá-la, sem que por isso haja pecado contra aquele, uma vez que o seu compromisso é sempre consigo mesmo e não com o outro. Neste cenário, os afetos de ânimo, como o temor e a insegurança, são constantes. A prudência aponta ao homem que sempre surgirá alguém mais potente para tomar-lhe o que ele julga ser seu. Isto se dará por direito, pois aquele que empenhou seus esforços, mas não conseguiu, de fato, manter determinada coisa sobre o seu domínio, não tem qualquer direito sobre a coisa. Por isso, o direito natural, paradoxalmente, no estado de natureza, é nulo, efetivando-se no estado civil (TP, II, §15). 14 A teoria do Paralelismo psicofísico é um tema recorrente e fundante de toda a filosofia de Espinosa. Marca o seu caráter crítico e subversivo. Espinosa revela que o homem compreende todas as coisas pelas afecções do corpo e que quando o homem sente uma afecção, a mente, simultaneamente, percebe a ideia daquela afecção, tendo em vista que a ordem e concatenação das ideias é a mesma que a ordem e a concatenação do corpo. Nesta teoria, também se insere um corolário que será determinante para a formação do indivíduo político. É que para Espinosa, antes do homem distinguir-se dos outros modos por sua racionalidade, diferencia-se pela complexidade de seu corpo e de sua mente, complexidade esta que se define conforme o modo consiga perceber o maior número de coisas simultaneamente. 12 Note-se, é preciso que se conheça a teoria dos modos para que se compreenda como o homem, a fim de conservar-se na existência, busca preencher o seu poder de agir por afecções ativas, pois, aumentando a sua potência, também ampliará, reflexamente, o seu direito, que recairá sobre mais coisas e se manterá com mais facilidade. Quando Espinosa admite no Tratado Político que dois homens reúnam a sua potência, está pressupondo uma relação entre modos exteriores15 por meio de afecções16. O desdobramento revelado pelo aumento da potência segue-se, à vista disso, de uma afecção ativa que se exprime quando o modo é causa adequada (completa). Uma afecção ativa é explicada totalmente pela natureza do modo afetado e só pode originar-se de uma ideia adequada. Esta ideia que se diz adequada pretende-se uma verdade eterna, por ser da ordem do intelecto. Note- se, a indispensabilidade da exata compreensão da teoria dos modos, não só para a ética, mas também para o âmbito político, revela-se no sempre presente esforço do homem em conservar- se na existência. O conatus expressa-se pela busca incessante do modo de preencher seu poder de agir com afecções ativas. Nesta medida, ultrapassa o ímpeto do simples conservar-se na existência e alcança os meios para melhor satisfazê-lo. Quer dizer, o esforço que se exprime pela necessidade do aumento de sua potência é o que conduz o modo, na Ética, para a liberdade. No domínio prático, antes, o transporta do estado de natureza para o estado civil. Destarte, a soma das potências de inúmeros homens resulta no que Espinosa denomina potência da multidão (multitudo). Para Antônio Negri (2018), no âmbito prático, trata-se de um deslocamento ontológico do ser, que percorre a potência dos homens enquanto indivíduos e alcança a potência da multidão, complicada pelos mesmos indivíduos que se transformam, expandindo-se em sua unidade. A interpretação de Negri acerca do pensamento espinosano deve ser cuidadosamente trabalhada. Neste momento, é sugerida apenas com o fim de demonstrar como a teoria dos modos e afecções encontra-se intrincada nos conceitos de uma filosofia política e como um conhecimento adequado (completo) exige que se tomem ambas conjuntamente. Na proposta de Negri (2018), a transformação da natureza do indivíduo, na passagem do estado natural para o estado civil, pressupõe uma continuidade do direito natural. Percebe- 15 Tudo o que existe são as substâncias e seus atributos ou são suas modificações. Os modos são compostos intrinsecamente por outros modos e são considerados indivíduos à medida que possuem uma causa comum. Nestes termos, refere-se aos modos exteriores para designar aquelas que estão em relações distintas. 16 As afecções do corpo são o meio pelo qual os modos conhecem a estrutura de seus corpos e a natureza dos corpos que lhes são exteriores. Pela teoria do Paralelismo psicofísico, a ordem e a conexão das coisas é a mesma que a ordem e a conexão das ideias. Desta maneira, tudo o que a modificação sente no corpo, a alma percebe simultaneamente a ideia desta afecção, sem que uma seja causa da outra, pois, ambas possuem como causa a substância. 13 se, inicialmente, que o homem está submetido apenas às leis e a ordem da natureza. Está sob jurisdição de si próprio e estende o seu direito sobre as coisas naturais até onde for sua força para tomá-los e mantê-los. Em um segundo momento, torna-se sujeito de direitos e deveres, ora súdito, ora cidadão. Responde a um poder soberano ao qual é dado legislar, executar e julgar as leis. Neste cenário, o homem já não está mais sob jurisdição de si próprio, mas de outrem, o Estado. Para Espinosa, o Estado é interna e intensivamente constituído. Não se trata da instituição de uma pessoa artificial e, portanto, de natureza totalmente distinta da dos homens que a teriam criado. Trata-se, na verdade, da aplicação do conceito de indivíduo como unidade de causa. Conceito que se extrai da definição 7 do Livro I da Ética e ao qual se emprestam elementos de uma teoria dos modos, tornando-se possível conceber uma transformação da potência do indivíduo em potência da multidão, pela efetividade do direito natural, e pela utilidade do direito comum. Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas e que têm uma existência determinada. E se vários indivíduos contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de um único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular (EI, def.7). Os reflexos do que foi trabalhado nos parágrafos anteriores permanecem difundindo-se e os efeitos desta sugerida continuidade natural do Ser alcançam a constituição do Estado. Sua formação, por isso, não pode dar-se por meio de um contrato, no qual uma vontade livre e arbitrária é petrificada. O vínculo que o alicerça não refletirá uma sociabilidade inata do homem, tampouco a pura racionalidade, incompatível com a sua natureza, esta estará alicerçada nos afetos de medo (de um mal maior) ou de esperança (de um bem maior) e se manterá sensível, rompendo-se quando estes desaparecerem. Outros aspectos da teoria dos modos poderão ser considerados na filosofia prática de Espinosa. Aqui, buscou-se fazer apenas uma contextualização, a fim de justificar a opção metodológica. Salienta-se que houve a necessidade de antecipar alguns conceitos que se mostravam indispensáveis ao que se propunha apresentar, entretanto, ressalta-se que todos os argumentos trazidos serão cuidadosamente desenvolvidos nos três capítulos idealizados para o presente trabalho. Neste sentido, para que se possa compreender com clareza o critério utilizado para se chegar à problematização anunciada, a saber, o deslocamento ontológico do ser e a continuidade do direito natural no estado de natureza e os seus reflexos no domínio prático, é necessário estabelecer dois pontos principais: todas as coisas são determinadas pela necessidade da natureza da substância e agem pela necessidade sempre atual de perseverar a sua existência e, 14 o que é seu corolário, aumentar a sua potência; ao transformar-se em suas relações, o homem mantém a sua essência, a sua forma individual, e pela progressiva soma de sua potência com os demais homens chega ao político e pode ser visto, sob uma nova perspectiva, como um novo indivíduo, proporcionalmente mais potente: a multidão. 1.1 RUPTURA ENTRE TEOLOGIA E POLÍTICA O presente capítulo se propõe a expor a ontologia do ser, nos termos apresentados por Espinosa, almejando alcançar, nos capítulos que seguem, o indivíduo Político17e a sua relação com a Teoria do Direito Natural e da livre-necessidade. O caminho traçado nesta seção, em específico, alicerçar-se-á no Livro I da Ética que, muito mais do que trazer aos olhos do leitor a metafísica exibida e o método geométrico, portanto, definições, axiomas e proposições, atua como uma propedêutica. Quer dizer, em muitos momentos, o autor ocupa-se em estabelecer premissas, refutar críticas e apontar a direção pela qual trilhará seu sistema propriamente dito. Com efeito, nas argumentações preliminares ao seu sistema, Espinosa se dispõe a desestruturar os fundamentos de uma teologia assentada na superstição, nos preconceitos e dogmas como instrumentos de dominação de uma multidão que, por medo ou esperança, subjuga sua potência ao poder de um só ou de alguns. A teologia e a política se intricam à medida em que a ignorância dos homens se torna um mecanismo comum para a manutenção no poder. O rompimento entre os referidos domínios é proposto por Espinosa por teorias que, ao subverterem a tradição seiscentista, trazem clareza e autonomia ao político (CHAUÍ, 2003). Neste sentido, os argumentos responsáveis por esta ruptura revelam-se na maneira pela qual Espinosa (EI) apresenta as seguintes qualidades da substância infinita: (i) a indivisibilidade da substância extensa; (ii) a onipotência expressa pela imanência do intelecto infinito, cuja potência reflete a livre-necessidade da natureza divina; (iii) a perfeição como realidade. Nesta perspectiva, inicia-se o presente trabalho com o desenvolvimento do esforço de Espinosa em conciliar, em sua metafisica, os conceitos de infinito e realidade e, mais que isso, conciliar a infinitude da causa (substância) com a realidade determinada dos seus efeitos (modos finitos). Antes de adentrar a temática proposta, esta seção será dedicada à algumas considerações acerca da substância e seus atributos. 17 Os homens compreendem a utilidade do coletivo e são determinados a articular suas potências em razão de uma causa em comum: a satisfação de direitos, por exemplo, a liberdade e a segurança, praticamente nulos no estado de natureza. 15 Desta feita, Espinosa (EI, def. III) concebe a substância como “sendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa da qual deva ser formado”. Logo, a substância é única, perfeita (realidade), infinita (indivisível) e onipotente. Por outro lado, os atributos são “o que o intelecto percebe da substância como sendo sua essência” (EI, def. 4). De sorte, são únicos em sua natureza. Logo, infinitos no seu gênero. O que isso quer dizer? Segundo Espinosa, que as coisas que possuem algo em comum podem limitar-se umas às outras. Neste sentido, ao afirmar a inexistência de dois ou mais atributos com as mesmas propriedades, o autor retira a possibilidade de que estes restrinjam-se uns aos outros. Por outro lado, considere-se que a relação das modificações com os atributos apresenta- se sob duas perspectivas: intrínseca e extrínseca. Enquanto partes do atributo, os modos estão necessariamente nele complicados e, por isso, antes de limitá-lo, expandem sua potência. De outra sorte, as modificações que não estão compreendidas pelo atributo, pelo argumento da ausência de propriedades comuns, não podem limitá-lo (EI, prop. 8, dem.). Assim, a substância é infinita, uma vez que o seu intelecto compreende todos os infinitos atributos que existem. Os atributos, por sua vez, serão infinitos em seu gênero. Melhor dizendo, embora não possam ser limitados em sua natureza, não há qualquer impeditivo à existência externa de outro atributo, de natureza diversa. Com isso, considere-se que o pensamento e a extensão são, dos infinitos atributos da substância, os que podem ser percebidos pelo homem. Atente-se, isso não significa que a substância se revele somente por estes dois. Quer dizer, apenas que ao homem, modo finito, cabe percebê-la por estas duas vias e nada mais. 1.1.1 Qualidades da substância extensa A afirmação de que a extensão é um atributo da substância infinita insurge a tradição do Século XVII e refletirá em pontos fundamentais do que se entende pela essência do Ser Sumamente Perfeito. Espinosa (EI, prop. 15) se dedica a refutar algumas objeções à extensão da substância. Ao analisar os argumentos que lhe são contrapostos, aponta que seus opositores não entendem os próprios argumentos, por isso, enquanto miram a sua filosofia, acabam acertando os próprios pés. 1.1.1.1 Da indivisibilidade O primeiro argumento a ser refutado é o da indivisibilidade como negativa da extensibilidade da substância, construído nos seguintes termos: o Ser Sumamente Perfeito é 16 onipotente e, por isso, possui um poder de agir que não compreende nenhuma passividade. Em contraponto, aquilo que pode ser dividido, como a extensão (matéria), suporta a inatividade e, nestes termos, padece. Espinosa (EI, prop. 11, outra dem.) não contradiz a indivisibilidade como qualidade da substância, pelo contrário, a reafirma. No entanto, insurge-se a forma como, segundo ele, dela se extraem as mais absurdas conclusões, para além do que seria indiscutível. Ora, o inegável seria apenas que uma “(...) quantidade infinita não é mensurável e não pode ser dividida em partes finitas” e, nisto, todos parecem acordar. De outra sorte, para o autor, reconhecer a divisibilidade da substância acarretaria admitir que as partes resultantes da referida divisão seriam: (i) ou absolutamente infinitas e, portanto, conservariam a mesma natureza do todo; (ii) ou finitas e, portanto, diferentes de sua causa. Nas duas hipóteses, a infinitude da substância estaria negada. Observe-se: (i) se da divisão da coisa infinita se pudesse extrair uma parte de mesma natureza, concluir-se-ia que fora da substância infinita existe algo de mesma natureza que pode, portanto, limitá-la. Alternativamente, (ii) se a parte resultante desta divisão fosse de natureza distinta, seria forçoso concluir que a soma de partes finitas resultaria em algo infinito, ou ainda, que uma coisa infinita poder ser dividida em partes finitas, abrindo-se a possibilidade do aniquilamento da substância (EI, prop. 13). 1.1.1.2 Da onipotência A afirmação de que Deus é onipotente ecoa tradicionalmente no século XVII. A insurgência de Espinosa (EI, prop. 18 e 19, dem.) não está em negá-la, mas em iniciar sua argumentação equiparando Deus à substância e, mais, ao estabelecer uma relação de dependência entre potência infinita e livre-necessidade. Melhor dizendo, o autor apresenta a onipotência divina no âmbito de sua Teoria do necessário excluindo, com isso, qualquer resquício de uma vontade-livre ou de um livre-arbítrio. Estabelece que tudo o que existe, na ordem em que existe, o faz necessariamente e não poderia ser de outra forma. Neste cenário, o intelecto infinito da substância é imanente e realiza necessariamente tudo o que concebe por meio de uma potência que é atual, simultânea e incessante. Não há espaços para contingências, tudo é determinado. A absoluta liberdade da substância pauta-se em um determinismo que faz com que o existir e o agir de Deus sejam reflexos exclusivos da necessidade de sua natureza (EI, def. 7). Por outra sorte, considere-se os termos da onipotência divina para Descartes (2015) nas Meditações Metafísicas. Seu argumento se constrói da seguinte forma: o intelecto infinito transcendente, concebe infinitas coisas, das quais escolhe, por seu livre arbítrio, as que realizará 17 no mundo. O poder de escolha é o que expressa seu poder e sua liberdade infinita. Em outras palavras, a onipotência divina revela-se na ausência de qualquer obstáculo externo que possa atuar como limitador da vontade absoluta de Deus. De outra parte, Leibniz concebe a onipotência divina alicerçada no Princípio lógico da não contradição. Nestes termos, para o autor, o poder infinito de Deus se manifesta na livre escolha do seu intelecto transcendente, concebendo infinitas coisas, das quais escolhe, ao seu talante, as melhores, criando o melhor mundo possível, não lhe sendo admitido apenas criar coisas que sejam contrárias entre si. Percebe-se, embora menos arbitrária, que as características que Leibniz atribui à onipotência divina se encontram muito distantes daquelas definidas por Espinosa, em decorrência de um intelecto infinito imanente que não cria, mas produz as coisas em si mesmo, no mundo com o qual se identifica18. Apresentadas algumas diferenças entre as formas com que os autores apresentam a potência infinita, considere-se que, segundo próprio Espinosa, os opositores se insurgem a sua teoria argumentando que aquilo que ele definiu como onipotência, na verdade, revelar-se-ia em impotência. Consideram que, se à substância não é dado escolher, por uma livre vontade, dentre as coisas que concebe as que tornará em ato, seria forçoso concluir que uma vez concebidas as coisas, realizar-se-iam todas, isto é, o poder da substância esgotar-se-ia. Quer dizer, não haveria mais nada que por ela pudesse ser criado. Espinosa refuta tal discurso assegurando que o intelecto da substância deve ser visto como algo atual e incessante. As coisas não são por ele concebidas e produzidas de uma só vez. Pelo contrário, o que reflete a potência infinita da substância é o fato de seu intelecto estar em contínua atividade. Isto é, a forma imanente e simultânea com que ele realiza ininterrupta e sucessivamente as coisas que concebe. Para o autor, a impotência está em associar o poder infinito ao livre arbítrio. Em seus termos, o poder de escolha refletirá impotência à medida em que à substância é dado conceber infinitas coisas, das quais não pode realizar todas sob pena de exaurir-se em toda a sua potência. 1.1.1.3 Da perfeição 18 As breves menções às filosofias de Descartes e Leibniz, antes de minimizar o debate ao qual estão inseridas, afirmando categoricamente questões que requerem uma reflexão minuciosa, tem como finalidade específica contextualizar a filosofia espinosana, bem como o desenvolvimento do pensamento político do autor. A intenção de destacar elementos insertos em uma temática um pouco mais abrangente do que o tema proposto se deu pela importância dos autores para a história da filosofia e pela necessidade de reforçar o interesse por investigações acerca de temas correlatos. 18 Estabelecida a imprescindibilidade de ser a substância extensa indivisível, o autor deve agora conciliar a infinitude com a perfeição (realidade). Por certo, a tradição seiscentista não nega à substância divina a Suma Perfeição. Contudo, para Espinosa (E II, def. 4), a substância é sumamente perfeita porque possui infinitos atributos. Quer dizer, realidade e perfeição são a mesma coisa e expressam-se por uma relação diretamente proporcional da qual se extrai que quanto mais realidade possuir o Ser, mais perfeito ele será. Dessarte, para Espinosa, o Ser Sumamente Perfeito é aquele que possui realidade infinita. O que isso quer dizer? Primeiro, que o intelecto da substância é infinito e torna em ato tudo aquilo que concebe. Segundo, que a substância é extensa e infinita e que não há superioridade entre pensamento e extensão. A validade ontológica das coisas não deve ser buscada em um outro plano, transcendente ao material, como, por exemplo, no Mundo das ideias de Platão. Para Espinosa (EI, prop. 15 e 17), a substância é causa imanente de todas as coisas, à medida que “tudo o que existe, existe pela substância e na substância, e fora dela, nada existe”. Ao atribuir a extensão à substância, Espinosa teria a tornado finita? Em absoluto. Considere-se o argumento que se segue. Os atributos “são o que o intelecto percebe da substância como sendo a sua essência” (EI, def. 4). Portanto, refletem todas as características daquela. A substância é absolutamente infinita porque possui infinitos atributos. Estes, por sua vez, são infinitos em seu gênero. O homem é uma modificação da substância, um ser dotado de um intelecto finito que se exprime e conhece apenas dois de seus atributos: o pensamento e a extensão. O conhecimento limitado do homem acerca dos atributos da substância não exclui a possibilidade de existirem outros que lhes sejam incognoscíveis. Ressalta-se que a possibilidade mencionada neste parágrafo não denota qualquer contingência, o que seria incompatível com a integridade do sistema de Espinosa, mas reflete apenas os limites de um intelecto finito que é incapaz de conhecer as causas de todas as coisas da natureza. Desta feita, embora possam existir atributos na substância inacessíveis aos modos, estes estarão necessariamente compreendidos pelo intelecto da substância que é extensa e infinita. 1.1.1.4 Do infinito e suas diferentes formas A substância infinita é indivisível, onipotente e sumamente perfeita. As seções antecedentes dedicaram-se a expor a maneira como estas propriedades são acolhidas por Espinosa em seu sistema filosófico. Parte-se destas considerações para se indagar: como a 19 substância pode ser infinita se nela se complicam modificações extensas finitas? Para o autor, muitas confusões acerca do conceito de infinitude surgem porque o homem está tensionado a dividir as coisas na imaginação. Quer dizer, tendem a fragmentar abstratamente as coisas indivisíveis como meio de auxiliar seu intelecto finito a compreendê-las. É o que ocorre com a extensão e a sua aparente incompatibilidade com a infinitude da substância. Espinosa, em sua Carta à Meyer (Carta 12), revela dois argumentos que visam proporcionar maior clareza às críticas que segundo ele lhes seriam desferidas: (i) a substância é una e só aparentemente pode expressar-se por partes; (ii) as coisas infinitas o são de diferentes maneiras. Com isso, para Espinosa, o infinito pode ser considerado de forma diversa à medida em que se refira à substância ou aos modos. Neste sentido, (i) a substância e seus atributos serão infinitos por natureza ou infinitos, propriamente ditos. Esta infinitude é extraída diretamente de seu conceito, do fato de serem causa de si e causa de todas as coisas. De outra sorte, os modos serão considerados infinitos: (i) por sua causa ou (ii) por indefinição. Em tudo aquilo que precede, vê-se claramente que certas coisas são infinitas por sua natureza e que não podem ser concebidas, de nenhum modo, como finitas; e que certas coisas o são em virtude da causa de que dependem e que, todavia, quando a concebemos abstratamente, podem ser divididas em partes e vistas como finitas; que ainda outras, por fim, podem ser ditas infinitas, ou se preferirdes, indefinidas, porquanto não podem ser igualadas a um número, embora a pudéssemos conceber como maiores ou menores. Não é necessário, portanto, que coisas que não podemos igualar em número sejam iguais [...]” (Carta 12, Spinoza à Meyer). As diferentes formas de infinito, identificadas por Espinosa, são indispensáveis para que se compreenda a maneira com que a sua filosofia compatibiliza os conceitos de uma substância extensa indivisível com a definição de modificação como sendo um conjunto de inúmeras partes intensivas e extensivas que são produzidas e existem pela (na) própria substância. Desta feita, quanto a infinitude da substância, recorde-se o que foi dito anteriormente. Considere-se que esta decorre diretamente de sua essência. Quer dizer, do fato de ser causa de si e causa primeira de todas as coisas que existem pela necessidade de sua natureza. Sob outra perspectiva, a infinitude da substância se revela pela infinitude dos atributos que a compõe. Isto é, exprime-se pela extensão, pelo pensamento e por todos os infinitos atributos que estão compreendidos pelo seu intelecto. Acrescente-se que o infinito por natureza se revela pelas propriedades que usualmente se atribui ao infinito. Assim, Espinosa só corrompe aquele conceito ao inaugurar a figura do infinito dos modos em suas subdivisões: infinito pela causa e infinito por indefinição. 20 1.2 DOS MODOS INEXISTENTES Os modos, enquanto modificações da substância, não são causa de si, mas existem em outra coisa, pela qual também são concebidos. Dir-se-ão, coagidos em oposição ao ser livre, que existe por si e em si. Melhor dizendo, a causa da existência e da essência dos modos é sempre externa. E, por não poder ser concluída da sua natureza, tem-se que os modos podem ser concebidos como inexistentes (EI, prop. 24). Desta forma, considerando que a substância é a causa eficiente da existência e da essência de todas as coisas, tem-se que suas modificações podem revelar-se como existentes ou inexistentes. Quanto ao modo inexistente, perceba-se que só podem ser concebidos na medida em que sua essência, ainda não individualizada, existe no intelecto infinito da substância como parte intensiva ou grau da sua própria potência. Quer dizer, a essência do modo que não existe está complicada no atributo da substância e dele não se distingue enquanto o modo permanecer inexistente. Nesta primeira perspectiva, o modo não se encontraria individualizado enquanto uma causa extrínseca não lhe sobreviesse acrescendo-lhe a existência19. Por conseguinte, da mesma forma que o princípio de sua existência não pode ser consequência de sua essência, assim também a sua perseverança na existência não o pode ser. Porém, para continuarem a existir precisam da mesma potência de que precisam para começar a existir. De onde se segue que a potência pela qual as coisas naturais existem, e pela qual consequentemente operam, não pode ser nenhuma outra senão a própria potência de eterna de Deus. Com efeito, se fosse uma outra, criada, não poderia conservar-se a si própria, nem, por conseguinte conservar as coisas naturais, mas precisaria também ela, para perseverar na existência, da mesma potência de que precisaria para ser criada” (TTP, II, §2º). Deleuze (2017, p.209-220), em sua obra Espinosa e o problema de Expressão, enfatiza o paradoxo que seria admitir que em uma teoria imanentista a distinção entre a essência do modo não existente, o atributo ao qual ela está complicada e as outras essências do mesmo atributo se dessem tão somente de forma extrínseca. Isto é, a partir de uma causa externa que determinasse suas partes extensivas, a entrar em uma relação de movimento e de repouso, a qual corresponderia uma parte intensiva: a essência do modo existente. Entretanto, conforme revela o autor, esta parece ter sido a solução dada por Espinosa (EII, def. 7) quando definiu as coisas singulares como sendo aquelas que são finitas e que possuem uma existência determinada. 19 Trata-se das noções sobre a teoria dos modos apresentada por Deleuze (2017, p.209-220) em sua obra Espinosa e o problema de Expressão, a partir da consideração espinosana de que a substância infinita é causa imanente, eficiente e primeira de todas as coisas. 21 Daí se segue que, na medida em que as coisas singulares não existem, a não ser enquanto estão compreendidas nos atributos de Deus, o seu Ser objetivo, isto é, as suas ideias, também não existem, a não ser enquanto existem na ideia infinita de Deus; e, sempre que se diz que as coisas singulares existem, não somente enquanto compreendidas nos atributos de Deus, enquanto se diz que elas tem uma duração, as suas ideias envolverão também a existência, em virtude do qual se diz que elas tem duração” (EII, Prop. 8, corol.). Dessarte, é Deleuze (2017, p.209-220) quem esclarece que, enquanto complicadas no atributo, as essências dos modos inexistentes estão para as outras essências e para o atributo aos quais elas pertencem como a cor branca está para uma muralha branca. A analogia é de Duns Scotus (in Deleuze, 2017, p.209-220) e consiste em considerar que não é possível identificar os elementos que estão contidos em uma parede enquanto todos refletirem a mesma cor. Contudo, embora seja impossível destacar de uma parede branca algo que seja desta cor, ainda é admissível que se reconheçam intensidades. Quer dizer, é plausível que se constate que ali existem elementos que são mais brancos que outros. Assim, aplicando-se o que foi dito sobre os modos não existentes, tem-se a possibilidade de uma distinção intrínseca das essências por intensidade. Em outras palavras, os modos inexistentes poder-se-iam, assim, ser diferenciados intrínseca e intensivamente uns dos outros por um grau da própria potência do atributo. Deleuze (2017, p.209-220) afirma que embora Espinosa não o tenha feito explicitamente, teria, assim como Duns Scotus, considerado esta distinção intrínseca por intensidades ou graus. Neste sentido, considere-se que a substância e seus atributos, até mesmo a extensão, são indivisíveis. Portanto, não comportam uma divisão substancial ou qualitativa. Assim, quando se diz que os modos são uma parte dos atributos, tal afirmação exprime uma divisão de intensidade. Quer dizer, a qualidade é indivisível, podendo ser dividida apenas modal, intensiva e quantitativamente. Logo, a essência do modo não se afirma como parte qualitativa do todo, o atributo, mas como um grau que exprime quantitativamente a potência infinita. A essência dos modos é, em si mesma, uma realidade física, de maneira que não tendem a existência, como as essências em Leibniz (in DELEUZE, 2017, p.209-220). Nestes termos, as essências, compelidas pelo intelecto divino, são de uma ordem distinta da sua existência extensiva e, uma vez que esta não pode ser dela concluída, nada lhes acrescenta. Em outras palavras, a essência do modo é mesma antes e depois dele tornar-se existente e, ainda, permanecerá a mesma enquanto ele se mantém inexistente. Com efeito, a essência do modo prescinde existência, pois não lhe falta nada. Mas direis: não há nenhuma parte na extensão anterior a todos os modos? Em absoluto, respondo. Mas dizeis vós, se há movimento na matéria, deve estar em uma 22 parte dela, já que não pode estar no todo, porque é infinito: de fato, para onde seria movido? Fora dele não há nada; logo, deve então estar em uma parte. Resposta: não há somente movimento, mas sim movimento e repouso juntos; e este está e deve estar no todo, porque na extensão não há parte alguma. Se, não obstante, persistis, dizei-me então: se dividis a extensão total, então aquela parte que separais dela com vosso intelecto, podeis separá-la, conforme a natureza, de todas as partes? Se me concedeis isto, pergunto: Que há entre esta parte separada e o resto? Deveis dizer: ou o vazio ou outro corpo ou algo da própria extensão; quarta [alternativa] não há. Não será o primeiro, porque não existe um vazio que seja positivo e não seja corpo. Nem o segundo, porque então haveria um modo que não pode existir, visto que a extensão, enquanto extensão, existe sem os modos e é anterior a todos eles. Logo, o terceiro, e, portanto, não existe nenhuma parte, mas sim a extensão total (BT I, 2, nota 59). Desta feita, as essências são partes intensivas que possuem realidade física e se exprimem infinitas pela sua causa, isto é, pelo atributo no qual estão contidas. Não são partes reais de um todo qualitativo, revelam-se como partes modais que exprimem quantitativamente a potência que produz o todo. 1.3 DA CAUSALIDADE DOS MODOS EXISTENTES De acordo com a teoria da causalidade espinosana, as coisas existentes podem ser associadas em dois grupos distintos: (i) como causa de si, quando existirem e puderem ser concebidas por si próprias; (ii) como causadas por outra coisa, pela qual existem e também são concebidas. Este agrupamento das coisas existentes pelo critério da causa revela que todas as coisas existentes no mundo serão, respectivamente, a substância e os seus atributos ou suas modificações (EI, ax. 1 e 2, def. 5). Deste modo, a substância é causa imanente de todas as coisas. Quer dizer, tudo o que existe, na ordem em que existe, o faz exclusivamente pela necessidade de sua natureza (EI, prop. 18). Neste sentido, Espinosa apresenta a potência da substância como equivalente à sua própria essência. Retira a possibilidade de alicerçá-la na vontade-livre ou no livre-arbítrio, conferindo-lhe o fundamento da livre-necessidade de sua natureza. Seu intelecto infinito revela- se pelo poder (capacidade) de conceber infinitas coisas, de infinitas maneiras, pela capacidade de agir necessária, incessante e simultaneamente, tornando existente tudo aquilo que concebe. Destarte, a substância é causa imanente (e não transitiva) de todas as coisas porque a realidade lhe é inerente e se apresenta totalmente por sua natureza (EI, prop. 34 e 35). De outra sorte, a substância é causa eficiente de todas as coisas. O conceito de causa eficiente se opõe, em Espinosa, ao de causa remota na medida em que por aquela se entende a causa que permanece no efeito e, não necessariamente, a sua causa imediata, pois que da natureza, da substância (natureza naturante), só pode resultar diretamente um efeito com as 23 mesmas qualidades, isto é, eterno e infinito e, como se sabe, estas não são qualidades comuns a toda a natureza (EI, prop. 16, 21 e 28, dem.) Desta feita, ser causa eficiente dos modos existentes não significa dizer que a substância é a sua causa próxima, o que para Espinosa seria absurdo, pois que os modos existentes são finitos e determinados. Assim, embora a causa pela qual o modo foi determinado a existir e a operar seja a própria substância, não o é enquanto ela exprime-se eterna e infinita, nem mesmo enquanto ela está afetada por uma modificação que guardou essas qualidades de eternidade e infinitude. Neste sentido, a substância será causa das coisas singulares enquanto estiver afetada por modificação que se expressa pela finitude e pela existência determinada (natureza naturada). Com efeito, no excerto abaixo, Espinosa anuncia a cadeia causal dos modos existentes. Nenhuma coisa singular, ou seja, nenhuma coisa que é finita e tem uma existência determinada, pode existir nem ser determinada a operar, a não ser que seja determinada a existir e a operar por outra causa que também é finita e tem uma existência determinada, por sua vez, essa última causa tampouco pode existir nem ser determinada a operar a não ser por outra, a qual também é finita e tem uma existência determinada. e assim por diante, até o infinito (EI, prop. 28 e dem.). Com tais características, tem-se que as causas só se prestarão aos efeitos de mesma natureza. Desta maneira, aquilo que é finito e determinado só pode ter sido causado por uma modificação (pela substância enquanto afetada) com as mesmas qualidades. Logo, a essência dos modos, inexistentes enquanto não individualizada extensivamente, não são coisas singulares, diferenciando-se do próprio atributo e das demais essências deste, apenas por uma intensidade ou grau de potência. Neste sentido, enquanto complicadas no atributo, as essências o têm como causa e, por isso, se revelam infinitas e eternas. Da mesma forma, pela teoria do paralelismo psicofísico, as ideias do modo inexistente (seu ser objetivo) serão infinitas e expressar-se-ão somente enquanto compreendidas pelo intelecto infinito. As ideias das coisas singulares não existentes, ou seja, dos modos não existentes, devem estar compreendidas na ideia infinita de Deus, da mesma maneira que as essências formais das coisas singulares. ou seja, dos modos, estão contidas nos atributos de Deus. Corolário. Segue-se disso que, à medida que as coisas singulares não existem a não ser enquanto estão compreendidas nos atributos de Deus, o seu ser objetivo - ou seja, as suas ideias - não existe a não ser enquanto existe a ideia infinita de Deus; e, quando que se diz que as coisas singulares existem, não apenas enquanto estão compreendidas nos atributos de Deus, mas também enquanto se diz que duram, as suas ideias envolverão também a existência, razão pela qual se diz que elas duram (EII, prop.8). Por outro lado, os modos existentes, enquanto partes extensivas, já não guardam as qualidades de infinitude e indivisibilidade, são finitos e determinados em razão de uma causa 24 que compeliu suas inúmeras partes a entrarem em uma relação à qual corresponde uma essência irredutível que se expressa por um poder de afetar e ser afetado. Nestes termos, a essência dos modos existentes se comunica pela determinabilidade e pela duração indefinida. O que isso quer dizer? Que a força pela qual os modos existem e o apetite pelo qual nesta perseveram lhes são conferidos por uma causa externa e refletem um grau da potência divina. Em outros termos, embora seja o modo finito, sua duração será indeterminada, ou seja, não será concluída de sua essência, e dependerá sempre de uma causa externa mais potente que atue exaurindo a relação que nele se estabelecia. Em suas palavras: “(...) de onde se segue que, se considerarmos apenas a essência dos modos, e não a ordem de toda a natureza, não podemos concluir, pelo fato de existirem presencialmente, que existirão na sequência ou que não existirão, que tenham ou não existido anteriormente (...)” (EI, prop. 8, escol.). Todavia, dizer que o modo existe fora do atributo pode parecer paradoxal dentro do contexto de Espinosa, pois que nada pode existir e nem ser concebido fora da substância (e seus atributos). No entanto, não há qualquer contradição na afirmação. Assim, ao anunciar que algo tem existência fora do atributo, Espinosa refere-se à maneira pelo qual o intelecto finito os identifica na natureza como singularidades, diante de sua dificuldade em conceber que algo que tenha sido gerado por alguma coisa nela permaneça existindo como um todo uno. Contudo, sublinhe-se, tal distinção é apenas abstrata20. Logo, como modificações dos atributos, são partes modais e quantitativas e não reais e qualitativas. Ademais, o que foi criado não surgiu do nada, mas necessariamente deve ter sido criado por aquele que existe essencialmente. Mas nós não podemos compreender com nosso intelecto que algo tenha procedido de uma coisa e que, não obstante, esta continue tendo este algo depois de tê-lo produzido (BT I, 2, §9). De outra sorte, a substância possui um intelecto infinito capaz de conceber infinitas coisas, de infinitas maneiras, tornando tudo aquilo que concebe existente. Dessarte, quanto à expressão apropriada para referir-se à atividade da substância que torna as coisas existentes, indaga-se: seria correto afirmar que a substância cria os modos? Espinosa se dedica a esta distinção em um de seus textos do Breve tratado e, como aquela exposição se contextualiza a elementos de uma crítica à onipotência da substância como poder de livre-escolha, torna-se aconselhável, por estes dois aspectos, abrir este importante parêntese. 20 Sobre a abstração no sentido Espinosano, isto é, enquanto o efeito está separado de sua causa eficiente, conferir: Lívio Teixeira (2002) e Marilena Chauí (2006). 25 E aí reside a diferença entre criar e gerar. Criar é pôr uma coisa quo ad essentiam et existentiam simul [simultaneamente quanto à essência e quanto à existência]; mas gerar, em troca, é quando a coisa surge quo ad existentiam solum [somente quanto à existência]. Daí que agora não haja na Natureza criação alguma, mas somente geração. De sorte que, se Deus cria, Ele cria a natureza da coisa juntamente com a coisa. E por isso seria invejoso se, podendo e não querendo, houvera criado a coisa de tal forma que esta não concordasse in essentia et existentia com sua causa. Porém, o que nós chamamos aqui criar não se pode dizer, a rigor, que haja ocorrido alguma vez, e não o fazemos senão para indicar o que podemos dizer quando distinguimos entre criar e gerar. (BT I, 2, §5º, Nota 55). No excerto acima colacionado, Espinosa afirma que os modos existentes são criados “simultaneamente quanto à essência e quanto à existência” pela necessidade da natureza da substância, que é imanente. Neste sentido, utiliza o termo criação, em detrimento da expressão geração. Esta última, relacionar-se-ia a um poder invejoso, fundado na vontade-livre, na arbitrariedade de um intelecto infinito que por ser transcendente concebe infinitas coisas, das quais escolhe, ao seu juízo, as que tornará existentes. À vista disso, o termo geração não guarda total identidade com o que pretenderá o autor ao apresentar a substância sob as teorias do determinismo, da necessidade e da imanência21. Contudo, considerando os diversos usos do vocábulo criação, com intuito de evitar confusões ou ambiguidades acerca de suas críticas a arbitrariedade de um poder transcendente, Espinosa ajusta à sua teoria o termo produzido (produci) (EI, prop. 6). De outra parte, superado o parêntese acerca da utilização do termo produção para referir-se à atividade da substância, da qual deflagra a existência dos modos, Oldenburg, correspondente de Espinosa, ao considerar que os modos são tornados existentes por causas exteriores que compelem suas inúmeras partes extensivas a uma relação, que se submete às leis de movimento e repouso, e que corresponde a uma essência irredutível, um grau de potência que agora é determinado, finito e, portanto, da ordem da duração (BT I, 2, §9), questiona o autor: de que maneira estas inúmeras partes do modo se colocariam em concordância com sua essência? De que forma se daria a submissão dos modos existentes às leis mecânicas? E, ainda, de que jeito concordariam com a ordem de toda a natureza? Para Espinosa, seguindo a teoria da causalidade, as respostas às indagações feitas por seu correspondente não são possíveis de serem alcançadas, dado que só podem ser concebidas por um intelecto infinito, enquanto ele é causa adequada todas as coisas que existem. Em seus termos: “(...) no que concerne a eu saber absolutamente de que maneira as coisas se ligam umas às outras e se acordam com o seu todo, não tenho essa ciência; ela requereria o conhecimento da natureza inteira e de todas as suas partes (...)” (Carta 32, Spinoza a Oldenburg). 26 Neste sentido, ao considerar a incapacidade do intelecto finito de conhecer de forma clara e distinta todas as coisas das naturezas, Espinosa supera as causas e o movimento inaugural pelo qual as partes das modificações concordariam intrínseca e extrinsecamente com o todo. Seu esforço filosófico volta-se, agora, no compreender da natureza do modo que percebe o mundo de forma parcial e mutilada, coloca as coisas que nele lhes são apresentadas sob uma perspectiva singular, como é, por exemplo, a utilidade humana. Ao desconsiderar a ordem e a necessidade universal de todas as coisas, passa a julgar que determinadas coisas que existem, na forma com que existem, são inúteis, inescrupulosas, desordenadas e absurdas. (...) quando considero que os homens, como os outros seres, não são senão somente uma parte da natureza e quando ignoro como cada uma das partes se acorda com o todo, como ela se liga umas com as outras. E é só esse defeito de conhecimento que é a causa de que certas coisas – existentes na natureza e das quais eu tenho apenas uma percepção incompleta ou mutilada, porque elas concordam mal com os desejos de uma alma filosófica – me pareceram outrora vãs, desordenadas e absurdas. (Carta 30, Spinoza a Oldenburg, grifo nosso). Desta feita, considerando que os pontos fundamentais do diálogo das Cartas 30 e 32 esclarecem a maneira como Espinosa compreende o deflagrar da relação das partes do modo e sua concordância com o todo expresso pela substância uma, propõe-se, a partir deste momento, a acompanhar o desenvolvimento do argumento de Espinosa acerca da natureza do modo, especialmente, da natureza humana. Não obstante, os homens são modificações da substância que se expressam por dois atributos: pensamento e extensão. Pergunta-se: Como se dá a relação do corpo e da alma em uma teoria do paralelismo psicofísico? Qual a estrutura do corpo? Como ele se constitui? Enfim, o que pode o corpo? Para Espinosa, estas indagações devem preceder logicamente outra, marcadamente cartesiana, o que pode a alma? Esta subversão na ordem com que o autor se lança em busca do conhecimento e da relação que se estabelece entre o corpo e a alma humanos torna compreensível o porquê de sua teoria centrar-se na complexidade da composição dos corpos e, como reflexo, em sua capacidade de afetar e ser afetados de inúmeras maneiras por inúmeros outros modos. Desta feita, quanto à complexidade dos modos, ressalta-se que todo modo finito é um conjunto de inúmeras (infinito) partes correspondentes à uma essência determinada. Mais do que um jogo de palavras, é preciso compreender adequadamente como se atribui aos modos finitos uma infinidade de partes, uma vez que o que é da ordem do infinito deve ser também indivisível. 27 O uso do termo infinito compreende três acepções que podem ser associadas, segundo Deleuze (2017, p. 221-238), em dois grupos: (i) infinito da substância (positivo), que se diz daquele que é uma propriedade ou qualidade da substância e de seus atributos e, portanto, pertencente às coisas que por natureza são indivisíveis; (ii) infinito dos modos (modal ou abstrato), que subdivide-se em: (ii.i) infinito causal, que se diz das essências dos modos inexistentes, que enquanto partes intensivas compreendidas apenas no atributo guardam as características de infinitude e indivisibilidade daquele que lhe é causa; (2.2) infinito por indefinição, que se diz dos modos existentes, que enquanto partes extensivas, não existem apenas dentro dos atributos, mas também fora deles (abstratamente). Este infinito refere-se a uma multidão de partes que compõe os modos e que, embora seja determinada, não pode ser referenciada por um número, ainda que possa ser reconhecida como maior ou menor quando comparada a de outros modos. (...) vê-se claramente que certas coisas são infinitas por sua natureza e não podem ser concebidas, de nenhum modo, como finitas; que certas coisas o são em virtude da causa da qual dependem e que, todavia, quando a concebemos abstratamente, podem ser dividas em partes e vistas como finitas; que outras ainda, por fim, podem ser ditas infinitas ou se preferirdes, indefinidas, porquanto não podem ser igualadas a números, embora pudéssemos conceber como maiores ou menores. Não é necessário, portanto, que coisas que não podemos igualar em número sejam iguais (...). (Carta 12, Spinoza a Lodewijk Meyer). Sublinhe-se que o infinito indefinição não é o resultado da profusão da multidão de partes dos modos resultaria afirmar que da soma de partes finitas sucederia algo infinito, o que é absurdo. Neste sentido, a infinitude é colocada como equivalente ao termo indefinição, reflete a ausência da possibilidade de se compatibilizar às inúmeras partes do modo com qualquer auxiliar da razão que possa quantificá-los precisamente na imaginação. Nesta acepção, a ausência da capacidade humana em atribuir-lhes um número determinado os torna infinitos quanto ao número de partes. Nestes termos, admite-se que sejam concebidos infinitos maiores e infinitos menores. O que eu disse em minha carta sobre o infinito, a saber, que não se conclui da multidão de partes que haja uma infinidade, resulta manifestamente de que, a infinidade se concluísse da multidão de partes, nós não poderíamos conceber uma multidão maior, devendo sua multidão ser maior do que toda a multidão dada. Ora, isso é falso, pois no espaço total compreendido entre dois círculos tendo centros diferentes, nós concebemos uma multidão de partes duas vezes maior do que na metade desse espaço e, no entanto, o número de partes, tanto da metade, quanto do espaço total, é maior do que todo o número consignável (Carta 81, Spinoza a Tschirnhaus). Dessarte, as inúmeras partes extensivas do modo estarão sempre em uma relação. Unem- se, umas às outras, por leis de movimento e de repouso, movendo-se, ora mais rápido, 28 ora mais lentamente, ora para uma direção, ora para outra. Sua forma se conserva na medida em que se preserva a proporcionalidade com que suas partes se comunicam e se explicam por uma essência irredutível. Ademais, nos modos existentes, todo o conhecimento, adequado ou inadequado, se dá por meio de afecções. Quer dizer, por meio de relações que se estabelecem entre as partes extensivas, que lhes são próprias, e entre estas e outras que lhes são externas. As partes intensivas equivalem às essências irredutíveis dos modos que atuam como balizas que estabelecem os limites máximo e mínimo expressos na natureza do modo. A essência dos modos, portanto, admite que a relação entre as infinidades de partes extensivas, dada segundo as leis mecânicas e de composição e decomposição, diversifique-se, estabelecendo as margens que possibilitam que estas transformações ocorram, sem exaurir a relação originária pela qual exprime sua forma individual (DELEUZE, 2017, p.221-238). Por outro lado, Espinosa (EII, prop. 13, Lema 3, axioma 2) refere-se aos corpos simples, “aqueles que se distinguem entre si apenas pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão”. Tal afirmação parece esbarrar na seguinte digressão: se tudo o que existe na natureza é a substância e os seus atributos ou são modos, se a substância e seus atributos são infinitos e, se os modos existentes, por sua vez, se manifestam por uma complexidade, isto é, por um conjunto de inúmeras partes ao qual corresponde uma essência irredutível, como podem existir partes extensivas simples no sistema de Espinosa? A resposta dada por Deleuze (2017, p.221-238) sugere que os corpos simples existem no sistema de Espinosa, tanto que por ele foram citados, entretanto, não possuem uma existência e uma essência que lhes sejam próprias. Melhor dizendo, embora existam e componham a extensão, são incognoscíveis aos homens como unidade. Nesta perspectiva, a existê