unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ANA JULIETA PARENTE BALOG REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE SOBRE A VIOLÊNCIA SEXUAL ARARAQUARA – S.P. 2019 ANA JULIETA PARENTE BALOG REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE SOBRE A VIOLÊNCIA SEXUAL Dissertação de Mestrado apresentado ao Conselho, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos. Orientadora: Profa. Dra. Ana Lúcia de Castro Bolsa: CAPES-DS ARARAQUARA – S.P. 2019 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Balog, Ana Julieta Parente Representações e práticas dos profissionais da saúde sobre a violência sexual / Ana Julieta Parente Balog — 2019 195 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Ana Lúcia de Castro 1. violência sexual. 2. violência de gênero. 3. profissionais da saúde. 4. representações sociais. I. Título. ANA JULIETA PARENTE BALOG REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE SOBRE A VIOLÊNCIA SEXUAL Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos. Orientadora: Profa. Dra. Ana Lúcia de Castro Bolsa: CAPES-DS Data da defesa: 28/05/2019 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Ana Lúcia de Castro Universidade Estadual Paulista. Membro Titular: Profa. Dra. Renata Medeiros Paoliello Universidade Estadual Paulista. Membro Titular: Prof. Dr. Jorge Leite Jr. Universidade Federal de São Carlos. Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Ao meu filho, Antônio Bento. AGRADECIMENTOS À minha mãe, por tudo que é e representa em minha vida. À minha orientadora, Ana Lúcia, por aceitar o desafio da construção deste trabalho. Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP/FCLAr por terem tornado essa jornada mais leve e prazerosa. Em especial a Danusa e Elenir, por todas as conversas, caronas e momentos compartilhados. Aos profissionais da saúde da cidade de São Carlos-SP, por participarem desta pesquisa. À Maria, por ter ajudado, mesmo que indiretamente, na conclusão desta pesquisa. Aos meus amigos, por todos os momentos e risadas proporcionadas. Ao meu filho, Antônio Bento, por me fazer entender o real sentindo do tempo e dos pequenos momentos e prazeres da vida. Ao meu esposo e companheiro de vida, Lucas Balog, por todo o apoio, amor e incentivo. A vida é mais leve com você ao meu lado. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO Esta pesquisa visa contribuir para a compreensão das representações sociais sobre violência sexual elaboradas pelos profissionais da saúde. Para tanto, buscou-se construir o perfil das vítimas e do agravo, a partir de dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, para confrontar estas informações com as representações encontradas e entender se estas podem influenciar na prática de atendimento ou na naturalização da violência. Além disso, foram realizadas entrevistas em profundidade, com roteiro semiestruturado, com os profissionais que fazem o atendimento às vítimas em dois locais de referência no município de São Carlos. Estas informações foram submetidas à análise utilizando-se do software Atlas.ti e da técnica de análise de conteúdo. Foi possível observar, a partir dos dados colhidos, que a violência sexual atinge majoritariamente pessoas do sexo feminino, menores de 14 anos, vitimadas em local doméstico por pessoas do seu convívio social. Esta também é a compreensão dos profissionais sobre o perfil mais afetado pela violência, divergindo apenas quanto a faixa etária mais atingida, caracterizando estes indivíduos como jovens. Os profissionais representam a violência sexual como qualquer ato de cunho sexual praticado contra a vontade da vítima, com diferentes compreensões sobre suas causas, ao tempo que reconhecem as consequências como “um grande trauma” para a vítima. Boa parte dos profissionais dizem que não é possível prevenir o problema, outros apontam de forma genérica para uma “melhor orientação” como forma de preveni-lo, entre outras soluções. Foi possível concluir que as representações compartilhadas pelos profissionais da saúde da amostra não prejudicam na prática de atendimento, por conta, entre outras coisas, dos protocolos de atendimento, nem na naturalização da violência, de modo que as representações dos profissionais entrevistados nesta pesquisa não interferem significativamente no acolhimento às vítimas. Palavras – chave: Violência sexual, violência de gênero, profissionais da saúde, representações sociais. ABSTRACT This research aims to contribute to the understanding of social representations on sexual violence elaborated by health professionals. Therefore, we sought to construct the profile of the victims and the offense, based on data provided by the Public Security Secretariat of São Paulo, to compare this information with the representations found and to understand whether these may influence the practice of care or naturalization of violence. Beyond that, interviews were conducted in depth, with a semi-structured script, with the professionals who perform care for the victims in two reference sites in the city of São Carlos. This information was submitted to the analysis using Atlas.ti software and the content analysis technique. From the data collected, it was possible to observe that sexual violence affects the majority of female victims, under 14 years of age, victims of domestic violence. This is also the professionals' understanding of the profile most affected by violence, differing only in the age group most affected, characterizing these individuals as young people. Professionals portray sexual violence as any sexual act practiced against the will of the victim, with different understandings of its causes, while recognizing the consequences as a "major trauma" for the victim. Many professionals say that it is not possible to prevent the problem, others point generally to a "better orientation" as a way to prevent it, among other solutions. It was possible to conclude that the representations shared by the health professionals of the sample do not harm in the practice of care, due to, among other things, the protocols of care, nor in the naturalization of violence, so that the representations of the professionals interviewed in this research do not interfere victims. Keywords: Sexual violence, gender-based violence, health professional, social representation. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Gráfico 1. Brasil: distribuição percentual das vítimas de estupro, segundo faixa etária (2011 a 2016). Gráfico 2. Estupros consumados e tentados por 100 mil. Quadro 1. Brasil número de vítimas de estupro registradas no Sinan e número de crimes de estupro coligidos pelo FBSP (2016). Quadro 2. Características pessoais das vítimas de estupro (2011). Quadro 3. Brasil: vínculo/grau de parentesco do agressor com a vítima de estupro, segundo a faixa etária da vítima (2011). Quadro 4. Brasil: vínculo/grau de parentesco do agressor com a vítima de estupro, segundo a faixa etária da vítima (2016). Quadro 5. São Carlos: número de sujeitos vs. número de boletins. Quadro 6. São Carlos: caracterização das vítimas não vulneráveis. Quadro 7. São Carlos: caracterização das vítimas vulneráveis. Quadro 8. São Carlos: caracterização especifica do local público da ocorrência com vítimas vulneráveis. Quadro 9. São Carlos: caracterização do agressor. Quadro 10. Definição de violência sexual. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABSP Anuário Brasileiro da Segurança Pública BO Boletim de Ocorrência CEME Centro de Especialidades Médicas CEP Comitê de Ética em Pesquisa CP Código Penal CREAS Centro de Referência Especializado em Assistência Social CRM Centro de Referência da Mulher DST Doença Sexualmente Transmissível FBSP Fórum Brasileiro de Segurança Pública FCLAr Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LAI Lei de Acesso a Informação MS Ministério da Saúde SESA Serviço Especial de Saúde de Araraquara Sinan Sistema de Informação de Agravos de Notificação SSM Secretaria de Saúde do Município SSP-SP Secretaria de Segurança Pública de São Paulo SUS Sistema Único de Saúde TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UNESP Universidade Estadual Paulista UPA Unidade de Pronto Atendimento USP Universidade de São Paulo Viva Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 Breve revisão de literatura................................................................................................. 14 Estudos que mais se aproximam do objetivo proposto nesta pesquisa ...................... 15 Métodos dos estudos ....................................................................................................... 17 Locais e conclusões ......................................................................................................... 20 Objetivos e estrutura .......................................................................................................... 23 1. QUESTÕES METODOLÓGICAS ............................................................................... 24 1.1 Técnicas e procedimentos ........................................................................................ 25 1.2 A técnica de análise de conteúdo temática ............................................................. 30 1.3 A noção de representação social e o habitus .......................................................... 34 1.4 Percalços do trabalho de campo e primeiras sondagens ...................................... 40 2. OS DADOS DA VIOLÊNCIA SEXUAL ...................................................................... 44 2.1 Convergências e aproximações entre os dados nacionais, estaduais e municipais ....................................................................................................................................50 2.2 A cidade de São Carlos: políticas de atendimento às vítimas de violência sexual ....................................................................................................................................55 3. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM TORNO DA VIOLÊNCIA SEXUAL ............ 59 3.1 Causas e consequências ........................................................................................... 64 3.2 Atendimento a vítima de violência sexual .................................................................. 73 3.3 Principais dificuldades no atendimento ...................................................................... 75 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 81 ANEXO 1: CARTA DE ANUÊNCIA DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE SÃO CARLOS ................................................................................................................................. 90 ANEXO 2: PROTOCOLO DE ATENDIMENTO DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE SÃO CARLOS A VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL ....................... 91 ANEXO 3: PROPOSIÇÃO DE FICHA DE REGISTRO DE ATENDIMENTO DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARA OS SERVIÇOS DE SAÚDE .............. 97 ANEXO 4: CARTA DE AUTORIZAÇÃO DA SECRETARIA DE SAÚDE DE SÃO CARLOS ................................................................................................................................. 99 APÊNDICE 1: ROTEIRO DE ENTREVISTA ................................................................. 100 APÊNDICE 2: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............ 101 APÊNDICE 3: ENTREVISTAS COM OS PROFISSIONAIS ........................................ 103 10 INTRODUÇÃO Segundo o Ministério da Saúde, violência sexual é toda ação “na qual uma pessoa em relação de poder e por meio de força física, coerção ou intimidação psicológica, obriga uma outra ao ato sexual contra a sua vontade, ou que a exponha em interações sexuais que propiciem sua vitimização, da qual o agressor tenta obter gratificação” (BRASIL, 2001, p. 17). Ela atinge majoritariamente pessoas em situação de vulnerabilidade – como todas as formas de violência –, seja pelo seu caráter de dominação e poder, por construções desiguais de gênero, junto a condições de existência degradantes que coloquem os indivíduos em situação de fragilidade perante outrem. Nesse sentido, a violência sexual é uma forma de violência que também ocasiona a sobreposição de fatores que tornam determinados indivíduos mais propensos a serem vitimados que outros, como no caso de crianças – de ambos os sexos – vítimas de abuso sexual. Enquanto demonstração de poder, ela tem entre suas principais vítimas pessoas do sexo feminino – de todas as faixas etárias –, além de crianças, adolescentes e idosos. Ela é, assim, na maioria das vezes, perpetrada pelo homem sobre a mulher (BOURDIEU, 2015) – seja qual for a sua idade –, mas não apenas. Reconhece-se que, apesar de, na sociedade capitalista, o principal fator de desigualdade e violência ser a classe social, isto não desautoriza estudos que façam o recorte de gênero ou racial, visto que estes fatores em conjunto aumentam as chances de sofrer alguma violência ao longo da vida, vide mulher negra e pobre. Assim, para além do seu caráter de dominação, a violência sexual também envolve outros fatores sociais que, de maneiras diferentes, poderiam contribuir para a diminuição da sua ocorrência. Por exemplo: uma socialização não desigual entre os sexos; condições de existência não degradantes (SOUZA, 2016); ruas bem iluminadas; moradias adequadas; venda mais regulada de álcool; crescimento da economia; uma socialização menos precária que refletiria em interações também menos precarizadas; não normalização de comportamentos violentos e machistas por parte da mídia (SILVA, 2016) etc. Os dados em torno da violência sexual dão conta de aproximadamente 61 mil estupros consumados e quase 6 mil tentativas registrados pela polícia no ano de 2017, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (ABSP) de 2018. No entanto, Cerqueira e Coelho (2014) apontam que esse número representa cerca de 10% do total de casos que ocorrem anualmente. 11 Um estudo feito pelo Ipea em 20141, estima que ocorrem anualmente no país cerca de 527 mil tentativas ou estupros consumados (CERQUEIRA; COELHO, 2014). As razões da não denúncia são diversas, seja por vergonha, por sentir-se culpada ou ainda por sofrer a violência dentro de uma relação afetiva e não reconhecê-la enquanto um estupro. Isto acaba por causar subnotificação neste tipo de violência, gerando dados que possivelmente não dão conta da realidade do problema. Mesmo quando denunciados à polícia, muitos desses casos não chegam ao sistema de saúde, trazendo à tona duas questões centrais: a) os profissionais não estão sabendo identificar vítimas dessas violências, logo não há notificação da sua existência; ou b) as vítimas, efetivamente, não procuram os serviços se saúde após a violência (BARROS, 2014). Pesquisas também indicam para diferentes fluxos de continuação da denúncia pós- violência (VARGAS, 2008), o uso inadequado ou incompleto do protocolo de atendimento do Ministério da Saúde para casos de violência sexual (ANDALAFT NETO et al., 2012), bem como a falta de articulação entre os sistemas de segurança e saúde (COSTA, 2015), ou dentro do próprio sistema – no caso, saúde – para a continuação do tratamento (BARROS et al., 2015). Para além das questões sociais e psicológicas envolvidas, reconhecendo-se o estado de fragilidade da vítima, problemas como não uso de protocolos adequados e falta de articulação entre sistemas ou dentro do próprio sistema de apoio podem dificultar o tratamento ou, ainda, afastar este indivíduo, levando-o a não mais procurar os serviços. Nesse sentido, estas informações nos levam a questionar o que ocorre para a não adesão das vítimas aos processos de tratamento do agravo, no que se refere ao atendimento prestado pelos profissionais da saúde. Haveria algo nesse atendimento que afastaria a vítima, provocando a sua não adesão no tratamento? O papel dos profissionais de saúde que realizam o primeiro atendimento é importante na medida em que as impressões da vítima – muitas vezes já fragilizada pela violência – sobre o atendimento recebido vão influenciar na sua adesão, ou não, ao tratamento, seja ele profilático ou psicológico, que são importantes na medida em que previnem de possíveis Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), uma gravidez indesejada etc., e auxiliam no processo de ressocialização deste indivíduo após o episódio de violência. Do ponto de vista psicológico, traumas não tratados podem não ser evidentes num primeiro momento, mas virem à tona anos depois ou causarem problemas relacionados, e.g., as 1 CERQUEIRA, D.; COELHO, D. Estupro no Brasil: Uma radiografia segundo os dados da saúde. 2014. 12 síndromes do pânico. Este tipo de problema causa um processo de adoecimento no próprio indivíduo e na sua família, além de atrapalhar na sua inserção social e econômica na sociedade. Mas elas voltam para a sociedade, voltam para suas escolas, muitas se casam, tem um relacionamento. Mas, muitas delas apresentam crise de depressão e pânico que perduram muitas vezes por muito tempo, elas melhoram e depois deflagram com uma idade mais adulta. O caso de uma paciente que eu recebi há uma semana, 53 anos, foi abusa pelo irmão aos 9, estupro. Ele até veio a falecer. Depois, pelo tio. E aos 53 anos: crise de depressão e pânico, deflagrou. Só agora ela pôde falar para os filhos. (Médica 1) De modo que os profissionais que, de alguma forma, não realizam um bom acolhimento, de maneira mais humanizada – percebendo o indivíduo enquanto sujeito e não só como um corpo que necessita de tratamento –, podem afastar essas vítimas ou, ainda, revitimizá-las. Isto posto, o questionamento em torno do atendimento prestado à vítima, e, principalmente, sobre como os profissionais da saúde representavam a violência e a vítima, surgiu a partir da aproximação ao tema da violência contra a mulher e leituras posteriores sobre a violência sexual, dando conta de que mesmo em locais de referência para o atendimento, muitos profissionais deixam suas preconcepções sobre o agravo se fazerem presentes no momento do atendimento (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; LIMA, 2013; BARROS, 2014; ARAÚJO; CRUZ, 2014; BARROS et al., 2015; COSTA, 2015). A questão se torna mais significativa por não haver muitos estudos que envolvam a temática da violência sexual, juntamente ao atendimento na saúde e à forma como os profissionais a representam. A maioria das pesquisas já realizadas diz respeito ao acolhimento da vítima no sistema de saúde, na segurança, a perfis sociodemográficos sobre quem sofre mais com este tipo de agravo – de acordo com notificações na saúde ou segurança (OLIVEIRA et al., 2005; MATTAR et al., 2007; SOUZA, 2012; FACURI et al., 2013; BARROS, 2014; LIMA, 2014; DELZIOVO et al., 2017; NUNES; LIMA; MORAIS, 2017). No entanto, poucas foram as pesquisas encontradas quando o questionamento principal girava em torno de “como os profissionais de saúde representavam a violência sexual”. Nesse sentido, optou-se por estudar o município de São Carlos, localizado do interior do estado de São Paulo. Essa escolha foi feita pela possibilidade de realização da pesquisa, seja pela sua proximidade do município ao local onde é realizada a Pós-Graduação, pela facilidade 13 de locomoção da autora no local, seja pela ausência de pesquisas sobre o tema que toma essa cidade como universo empírico2. O município de São Carlos é um importante centro regional industrial, além de pólo acadêmico – com duas grandes universidades públicas, além de institutos de formação técnica e faculdades particulares. Conta com uma população de 242 mil habitantes (IBGE, 2010) e com uma rede de saúde que possui dois hospitais públicos, cinco UPAs, bem como uma rede de UBSs. No município há um protocolo de atendimento a vítimas de violência sexual que é seguido pelos profissionais da saúde, além de um local específico para o atendimento destes indivíduos pós-atendimento emergencial. Com relação ao agravo, a partir de dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), no ano de 2018 foram registrados 26 estupros consumados, em 2017, 27 e, em 2016, 31. Analisando os dados dos últimos cinco anos, cerca de 80% dos casos são de mulheres/meninas. Também em 80% dos casos, o crime ocorreu em residências. Quase 70%, são de vulneráveis3. Deste modo, optou-se por realizar uma pesquisa de abordagem mista (CRESWELL, 2007), utilizando-se tanto de dados estatísticos como de entrevistas. Tem-se como objetivo geral compreender como os profissionais de saúde representam a violência sexual, e objetivos específicos: a) entender como se estrutura o atendimento prestado as vítimas de violência sexual; b) conhecer as representações sociais dos profissionais da saúde, que atendem essas vítimas, sobre o crime; c) construir o perfil das vítimas e dos crimes; d) confrontar o perfil das vítimas e dos crimes com as representações identificadas; e) analisar de que formas as representações podem influenciar na prática do atendimento prestado às vítimas; e f) compreender se essas representações podem contribuir para a naturalização da violência. A escolha dos profissionais de saúde como participantes da pesquisa deve-se à importância destes profissionais no primeiro atendimento prestado às vítimas de estupro – sendo eles os principais responsáveis por orientar a vítima na realização da profilaxia das infecções sexualmente transmissíveis, tais como HIV, a contracepção de emergência e realização de exames, além de um acolhimento psicológico – bem como pela promoção de meios para a sua prevenção. De modo que se deu prioridade a profissionais como técnicos de 2 A partir da realização de revisão de literatura, nenhum estudo já publicado sobre a temática foi encontrado em São Carlos. 3 Lei nº 12.015, 7 de agosto de 2009. Artigo 217 do Código Penal (CP). Pessoas menores de 14 anos de idade são consideradas indivíduos vulneráveis. 14 enfermagem, enfermeiros, médicos, psicólogos e quaisquer outros profissionais que participassem desse primeiro atendimento. Este estudo se justifica pela necessidade de um melhor entendimento sobre como os profissionais que atendem as vítimas de violência sexual representam o agravo e como isso reverbera no atendimento prestado, visto que a forma como eles prestam o atendimento diz muito sobre como representam a violência. Afinal, tais práticas podem não só revitimizar o indivíduo que está em busca de assistência, como agravar os traumas e consequências da violência caso o atendimento não seja feito de forma adequada. Parte-se da hipótese de que os profissionais têm representações que vão ao encontro do senso comum, mesmo com toda a capacitação que recebem. A partir do resultado de pesquisas anteriores (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; LIMA, 2013; BARROS, 2014; ARAÚJO; CRUZ, 2014; BARROS et al., 2015; COSTA, 2015), supõe-se que, apesar de suas formações, as representações socialmente aprendidas e reforçadas são mais fortes, acabando por repercutir de forma implícita no atendimento com as vítimas e na naturalização da violência. A próxima seção traz uma revisão de literatura. Breve revisão de literatura A partir da realização de uma revisão dos estudos sobre o tema no Brasil, pode-se constatar que, apesar de existirem estudos com objetivo parcialmente em comum, nem todos fazem uso de abordagem metodológica semelhante à proposta nesta pesquisa, parte disto por serem estudos de pesquisadores da saúde ou áreas afins. Estes estudos utilizam, por exemplo, grupo focal ou discurso do sujeito coletivo. Existem outros meios e métodos de análise para estudar o mesmo fenômeno. Todavia, a maioria utiliza método similar ao presente trabalho– entrevistas individuais semiestruturadas e uso da técnica de análise de conteúdo para fazer inferências. Foram utilizadas, ao todo, quatro bases de dados, a saber: o banco de periódicos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), o SciELO (Scientific Eletronic Library Online), o banco de teses da CAPES e a BDBTD (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações). Quanto aos descritores utilizados, foram: “violência sexual” + “representação social” + “saúde”; “violência sexual” + “representação social”; “violência” + “representação” + “saúde”; “violência sexual” + “representação” + “saúde”; “saúde” + “representação”. 15 Foram encontradas, ao todo, 51 produções que, após leitura na íntegra de seus respectivos conteúdos, resultaram em 30 pesquisas selecionadas para compor esta revisão de literatura. Desse modo, esta revisão foi organizada da seguinte forma: a) estudos que mais se aproximavam do objetivo proposto nesta pesquisa; b) método utilizado nos estudos encontrados; e c) locais e conclusões. Assim, busca-se explicitar a relevância do tema e os motivos da escolha do método. Estudos que mais se aproximam do objetivo proposto nesta pesquisa Nas quatro bases foram encontrados estudos com objetivos parecidos ao desta pesquisa. No entanto, por mais similares que alguns fossem, nem todos abordavam diretamente a questão da violência sexual, sendo possível notar uma relativa escassez de estudos envolvendo os buscadores “violência sexual”, “representação social” e “saúde”. Dos estudos encontrados, 15 tinham um objetivo que de alguma forma era similar ao proposto nesta pesquisa. Seja no que diz respeito às representações dos profissionais (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; BARBOSA; BOBATO; MARIUTTI, 2012; MORTARI; MARTINI; VARGAS, 2012; CALVINHO, 2013; TRAVASSOS, 2013; ARAÚJO; CRUZ, 2014; COSTA, 2015; SILVA et al., 2015), à construção de um perfil socioeconômico da vítima e do agravo (SOUZA, 2012; FACURI et al., 2013; LIMA, 2014) ou ao atendimento prestado as vítimas (LIMA, 2013; BARROS, 2014; BARROS et al., 2015; SILVA, 2017). A maior parte das pesquisas encontradas versava sobre como os profissionais de saúde representavam determinado fenômeno (CAVALCANTI, 2004; BARBOSA; BOBATO; MARIUTTI, 2012; MORTARI; MARTINI; VARGAS, 2012; CALVINHO, 2013; TRAVASSOS, 2013; ARAÚJO; CRUZ, 2014; LIMA, 2014; CAVALCANTI, 2015; CALVACANTI et al., 2015; COSTA, 2015; SILVA et al., 2015). Mas nem todas eram sobre a violência sexual. Dois destes estudos buscavam compreender como os profissionais representavam o aborto, como é o caso de Barbosa, Bobato e Mariutti (2012) e Mortari, Martini e Vargas (2012). Ambos os estudos procuravam compreender como se dava o acolhimento e as formas de cuidado a mulheres em situação de abortamento e entender as representações dos profissionais sobre estas práticas. Os participantes e os campos eram diferentes nos dois estudos: Barbosa, Bobato e Mariutti (2012) estudaram os profissionais de saúde de uma UBS e uma Maternidade 16 de referência no interior do estado de São Paulo; enquanto Mortari, Martini e Vargas (2012) se detiveram a enfermeiras que realizavam o atendimento apenas em Unidades de Atenção Básica na cidade de Chapecó-SC. Apesar do mesmo objetivo– compreender como os profissionais de saúde representam o aborto, legal ou não –, os dois estudos apresentam diferenças no método. Um utilizou uma abordagem qualitativa: entrevistas semiestruturadas e análise de conteúdo para inferir os resultados (BARBOSA; BOBATO; MARIUTTI, 2012); outro optou pelo grupo focal e pela técnica de “discurso do sujeito coletivo” para realizar a sua análise (MORTARI; MARTINI; VARGAS, 2012). Outro tema recorrente nos trabalhos encontrados foi a violência contra a mulher de maneira ampla, não só a sexual (CALVINHO, 2013; COSTA, 2015; SILVA et al., 2015). Nestes casos, foi possível notar que estes estudos procuravam compreender as representações em diferentes campos, não apenas a saúde. Calvinho (2013) e Silva et alii (2015) focalizaram representações de profissionais de saúde que atendiam as mulheres em situação de violência, técnicos de enfermagem e agentes comunitários (SILVA et al., 2015). Costa (2015), por sua vez, abordou a questão a partir do campo da segurança. Buscou não só compreender as representações dos agentes de segurança que atendiam as mulheres em situação de violência, mas descrever como se dava a prática de atendimento (COSTA, 2015). Quanto à metodologia, todos estes utilizaram uma abordagem qualitativa, entrevistas para coleta dos dados e análise de conteúdo para inferência destes dados. Calvinho (2013) também fez uso do método de estudo de caso e da Técnica de Associação Livre de Palavras (TALP), enquanto Silva et alii (2015) trabalham também com a técnica de evocação de palavras e o uso do software Evoc para posterior análise. Um segundo estudo sobre as representações de agentes de segurança sobre determinado fenômeno foi encontrado. Neste outro, porém, o fenômeno que se buscava compreender era a violência sexual (SILVA, 2017). Nele, Silva (2017) também utilizou a técnica de entrevista semiestruturada, porém a análise foi realizada a partir do método de análise do discurso. Outros estudos, mesmo que não objetivassem diretamente entender as representações de quem estava prestando um atendimento, buscaram realizar a pesquisa sob a ótica de como se dava o atendimento, o acolhimento ou o cuidado prestado (LIMA, 2013; BARROS, 2014; BARROS et al., 2015; SILVA, 2017). O que fez com que eles fossem considerados contendo objetivos similares ao desta pesquisa. 17 Como a maioria dos estudos que buscava compreender as representações sociais, eles utilizaram uma abordagem qualitativa com uso da técnica de entrevista semiestruturada. Apenas Silva (2017) utilizou a análise do discurso para tratar seus dados, enquanto o restante (LIMA, 2013; BARROS, 2014; BARROS et al., 2015) utilizou da técnica de análise de conteúdo. Aqueles que não objetivavam estudar a representação ou como se dava o acolhimento, foram os que buscavam identificar o perfil socioeconômico de quem procurava o atendimento, na maioria dos casos, no sistema de saúde (SOUZA, 2012; FACURI et al., 2013; LIMA, 2014). Estes, quando não faziam uso de dados obtidos pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), colhiam estas informações junto às respectivas Secretarias de Segurança Pública (SSP) dos locais estudados. No tocante às pesquisas que tanto estudavam as representações sociais do profissional da saúde quanto o fenômeno da violência sexual, foram encontradas quatro (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; TRAVASSOS, 2013; ARAÚJO; CRUZ, 2014). No entanto, ainda aqui houve uma variação sobre o profissional de saúde estudado, pois enquanto um focava a análise em profissionais que atendiam no CREAS – centros que atendem crianças e adolescentes vítimas de violência sexual – (TRAVASSOS, 2013), outra buscava compreender a representação de peritos do IML (ARAÚJO; CRUZ, 2014) sobre o fenômeno, e os dois últimos (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006) analisaram as representações de profissionais da saúde que lidavam diretamente com mulheres vítimas de violência sexual. São justamente esses dois que mais se aproximam da presente pesquisa. Estes estudos (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI et al., 2006), como proposto neste trabalho, faziam uso da abordagem qualitativa, utilizaram-se da técnica de entrevista semiestruturada e realizaram a inferência dos seus dados a partir da análise de conteúdo. Apesar de todas estas pequenas diferenças, todos os estudos supracitados podem ser considerados similares ao que é proposto nesta pesquisa, principalmente pelo objetivo de compreender não só as representações de profissionais que prestam atendimento a pessoas em situação de violência, mas como se dá este atendimento. Métodos dos estudos Foi possível encontrar diversos casos em que a técnica utilizada era a entrevista semiestruturada (CAVALCANTI, 2004; OLIVEIRA et al., 2005; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; OLIVEIRA; CHAMON; MAURICIO, 2010; BARBOSA; BOBATO; 18 MARIUTTI, 2012; CALVINHO, 2013; LIMA, 2013; TRAVASSOS, 2013; ARAÚJO; CRUZ, 2014; BARROS, 2014; MARTINS et al., 2014; PROCÓPIO et al., 2014; BARROS et al., 2015; CAVALCANTI, 2015; COSTA, 2015; SILVA et al., 2015; PINTO et al., 2017; SILVA, 2017; TERRA, 2017). A técnica da entrevista semiestruturada para coleta de dados permite a utilização de um questionário com perguntas amplas sobre o fenômeno pesquisado, assim não se perde a possibilidade de o entrevistado ir além do que lhe foi questionado, porém mantendo um roteiro pré-determinado. Segundo Gil (2008), essa técnica também possibilita a análise do não dito, do comportamento não verbal do entrevistado, de onde podem ser retiradas deduções para além do que está sendo dito (GIL, 2008). Na presente pesquisa foi possível observar certo nervosismo de alguns profissionais quando entrevistados, enquanto outros pareciam receosos, preocupados ou descontraídos no momento da entrevista. Os silêncios e os pedidos de confirmação das suas respostas pedindo a minha opinião, a tentativa de dar uma resposta “certa” às perguntas ao tempo que o discurso de alguns profissionais era contraditório. São esses momentos que Gil (2008) afirma serem preciosos para uma boa análise do dito, pois ela é realizada em conjunto com o não dito. Algumas pesquisas optaram por utilizar técnicas diferentes para a coleta de dados, como grupos focais (CAVINI, 2012; MORTARI; MARTINI; VARGAS, 2012), análise documental (MATTAR et al., 2007; SOUZA, 2012; FACURI et al., 2013; LIMA, 2014; DELZIOVO et al., 2017; NUNES; LIMA; MORAIS, 2017; PINTO et al., 2017; PASSOS; GOMES; GONÇALVES, 2018), evocação de palavras (SILVA et al., 2015), estudo de caso (CALVINHO, 2013; ARAÚJO; CRUZ, 2014;) e TALP (CALVINHO, 2013) ou Discurso do Sujeito Coletivo (MORTARI; MARTINI; VARGAS, 2012; CAVALCANTI, 2015). Apesar dessas pesquisas terem sido encontradas num menor número, elas permitem a reflexão sobre as várias técnicas possíveis de utilizar para produzir determinada informação, coletar dados específicos. No caso do grupo focal, o seu é uso é tão eficaz quanto a entrevista semiestruturada para a investigação de fenômenos a partir de atitudes, crenças e percepções (CAVINI, 2012). Contudo, pelo fato de, no grupo focal, os entrevistados poderem interagir entre si, a possibilidade de ir além do que é especificamente questionado aumenta. No presente trabalho, a sua utilização foi excluída pela possível inviabilidade de realizá-los, entre outros motivos, porque os sujeitos desta pesquisa trabalham em sua maioria em turnos e não estão todos presentes no mesmo horário nas instituições pesquisadas. 19 Boa parte destes estudos fez uso da análise de conteúdo para realizar a análise dos dados coletados (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; OLIVEIRA; CHAMON; MAURICIO, 2010; BARBOSA; BOBATO; MARIUTTI, 2012; LIMA, 2013; BARROS, 2014; BARROS et al. 2015; COSTA, 2015; SILVA et al., 2015), assim como realizado no presente estudo. Esta técnica de análise procura lidar com a “compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais” (SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009). É utilizada nos mais diversos tipos de estudos que lidam com questões abertas, falas de sujeitos ou textos em documentos. Além disto, algumas pesquisas fizeram uso de softwares como o ALCESTE (OLIVEIRA; CHAMON; MAURICIO, 2010; TRAVASSOS, 2013), EVOC (TRAVASSOS, 2013; SILVA et al., 2015;) ou Ep Info (SOUSA, 2012; LIMA, 2014) como ferramenta auxiliar no momento da análise. O uso de softwares tem se tornado cada vez mais frequente como ferramenta auxiliar na organização da análise, sejam estes dados qualitativos ou quantitativos. No entanto, é preciso frisar que eles auxiliam, organizam “teias” de ideias, deixam os dados mais fáceis de visualizar, mas não fazem a análise pelo próprio pesquisador. A análise é feita a partir da base teórica do pesquisador. E, em geral, esses softwares são utilizados quando a quantidade de dados é grande. Nas pesquisas que utilizaram dessa ferramenta (OLIVEIRA; CHAMON; MAURICIO, 2010; SOUSA, 2012; TRAVASSOS, 2013; LIMA, 2014; SILVA et al., 2015), além deles, os pesquisadores fizeram uso de outras técnicas de análise para inferir seus resultados, a saber: análise do discurso e a técnica do discurso do sujeito coletivo. Na presente pesquisa o software Atlas.ti foi utilizado para organizar a análise das entrevistas realizadas com os profissionais da saúde. Com relação às pesquisas que utilizaram a abordagem quantitativa (SOUZA, 2012; FACURI et al., 2013; LIMA, 2014; DELZIOVO et al., 2017; NUNES; LIMA; MORAIS, 2017; PASSOS; GOMES; GONÇALVES, 2018), estas buscaram dados nos mais diversos locais. Desde a aplicação de questionários à utilização de dados de prontuários (FACURI et al., 2013; NUNES; LIMA; MORAIS, 2017; PASSOS; GOMES; GONÇALVES, 2018), além de utilização de microdados do SINAN (SOUZA, 2012; DELZIOVO et al., 2017) e coleta de informações em Boletins de Ocorrência (BOs) junto às Secretarias de Segurança Pública (SSP) (LIMA, 2014). Ainda, nestes estudos quantitativos, foram utilizados softwares estatísticos como Stata (SOUZA, 2012; DELZIOVO et al., 2017), SPSS (FACURI et al., 2013; LIMA, 2014; NUNES; 20 LIMA; MORAIS, 2017) e Excel (SOUSA, 2012; PASSOS; GOMES; GONÇALVES, 2018). Estes softwares estatísticos são eficientes em sua tarefa de organizar os dados, facilitando o processo de análise dos mesmos. No presente trabalho, também foi utilizado o Excel, por exemplo, para construção de perfil socioeconômico a partir dos dados da SSP-SP. É preciso esclarecer, ainda, que apesar de algumas pesquisas terem sido encontradas utilizando as palavras chave “violência sexual” + “representação” + “saúde”, estes estudos não possuíam objetivos comuns, ou métodos similares, à presente pesquisa. Todavia, possuem complementariedade temática com esta (OLIVEIRA et al., 2005; OLIVEIRA; CHAMON; MAURICIO, 2010; CAVINI, 2012; MARTINS et al., 2014; PROCÓPIO et al., 2014; CAVALCANTI et al., 2015; CAVALCANTI, 2015; PINTO et al., 2017; TERRA, 2017). São pesquisas que buscam entender a grande área do atendimento a vítimas de violência sexual ou como profissionais representam outros fenômenos que não necessariamente violências, por meio de estudos descritivos ou análise de políticas públicas, que auxiliam na compreensão do campo de saúde e de como os procedimentos propostos por normas técnicas do Ministério da Saúde (MS) são, ou não, realizados. Em quatro destes estudos, o objetivo era apreender a percepção dos usuários sobre o atendimento recebido (OLIVEIRA et al., 2005; CAVINI, 2012; PROCÓPIO et al., 2014; CAVALCANTI, 2015). Em Oliveira et al. (2005) e Procópio et al. (2014) os usuários eram vítimas de violência sexual. Já em Cavini (2012) e Cavalcanti (2015) eram usuários de outros serviços que não o de atenção a vítimas de violência sexual. Cavalcanti et al. (2015) e Pinto et al. (2017), por sua vez, procuraram investigar a efetividade do funcionamento das políticas de atenção a vítimas de violência sexual, utilizando a técnica de entrevistas com gestores e análise documental. Em outros quatro estudos, além de Cavalcanti et al. (2015) e Pinto et al. (2017), também foi realizada análise documental (FACURI et al., 2013; DELZIOVO et al., 2017; NUNES; LIMA; MORAIS, 2017; PASSOS; GOMES; GONÇALVES, 2018), em que após reunião de todos os documentos, realizaram leituras para extração das informações destes, seja para análise de políticas públicas, seja de perfis da população atendida em determinado sistema de saúde. Locais e conclusões 21 Quanto ao local das pesquisas, doze foram realizadas na região Sudeste; nove, na Nordeste; quatro, na Sul; uma, na Centro-oeste; e nenhuma na Norte. Foi encontrado um estudo no âmbito nacional e outros dois em Portugal. Ainda, um dos estudos foi realizado em duas cidades, de modo comparativo, a saber: Rio de Janeiro-RJ e Fortaleza-CE. Quanto ao ano de realização destas pesquisas, 25 delas foram realizadas nos últimos seis anos. No entanto, outras cinco referiam-se a períodos que vão desde o ano de 2010 até uma pesquisa muito similar a esta que proponho, realizada no ano de 2004. Não é possível notar nenhum aumento ou decréscimo no interesse por estudos na temática, visto que a pesquisadora priorizou pesquisas que tivessem sido realizadas nos últimos seis anos e, só após ter feito as buscas neste registro, realizou outra pesquisa sem nenhum limite de data, em que foi possível encontrar os estudos realizados antes de 2012. No que se refere às principais conclusões, os trabalhos foram agrupados por proximidade nos seus objetivos e métodos. Como foi visto, nem todas as pesquisas buscavam compreender o mesmo fenômeno ou utilizavam o mesmo método, o que acarretou diferentes conclusões a depender do objetivo e método utilizado por cada uma. Naquelas que buscavam compreender as representações de profissionais, da saúde ou da segurança, sobre determinado fenômeno (aborto, violência contra a mulher, conjugal, sexual etc.), concluiu-se que estes profissionais carregam representações sobre o fenômeno que vão ao encontro do senso comum, ou seja, eles entendem que a situação de violência é algo degradante, mas ainda naturalizam crenças, como o comportamento “pervertido” ou agressivo masculino ser natural, tendendo a reproduzir estereótipos e desigualdades de gênero durante o atendimento (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; COSTA, 2015; SILVA, 2017; TERRA, 2017). Ou há o reconhecimento dos profissionais quanto à dificuldade de lidar com determinados fenômeno, principalmente quanto à violência sexual e o aborto (BARBOSA; BOBATO; MARIUTTI, 2012; MORTARI; MARTINI; VARGAS, 2012; CALVINHO, 2013; LIMA, 2013; TRAVASSOS, 2013; ARAÚJO; CRUZ, 2014; COSTA, 2015), demonstrando de forma implícita a necessidade de formações continuadas para que lidem melhor com as questões com as quais trabalham, como também para melhorar a forma como prestam o atendimento aos usuários de determinado serviço. Nos estudos que não buscavam entender as representações de quem prestava o atendimento, mas como efetivamente funcionava esse atendimento, seja por meio da análise das formas de cuidado ou acolhimento (OLIVEIRA et al., 2005; LIMA, 2013; BARROS, 2014; PROCÓPIO et al., 2014; BARROS et al., 2015; SILVA, 2017), foi possível notar a mesma 22 dificuldade em lidar com determinados fenômenos, demandando um maior apoio institucional para exercer o atendimento. Nas pesquisas que se detiveram na construção de um perfil socioeconômico da vítima e do agravo, observou-se predominância de jovens, em sua maioria menores de 18 anos (SOUZA, 2012; FACURI et al., 2013; LIMA, 2014), vitimadas por conhecidos/familiares (SOUZA, 2012; FACURI et al., 2013) em local doméstico (SOUZA, 2012; LIMA, 2014). No estudo de Facuri et alii (2013), deve-se levar em consideração a especificidade da amostra utilizada, em que se trabalhou com prontuários de apenas um hospital de referência na cidade de Campinas-SP, o que faz com que determinadas informações – como, por exemplo, o fato de a maioria dos agressores ser desconhecido – divirjam de outras pesquisas, pelo seu caráter local e específico do atendimento procurado na instituição. Na presente pesquisa, a amostra será colhida em um amplo banco de dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), como Lima (2014) fez, buscando a SSP do Rio Grande do Sul, ou Souza (2012), utilizando-se de dados do SINAN, que abrangiam todo o município de Ribeirão Preto-SP, não uma instituição específica. Outras pesquisas, como as que buscaram analisar a efetividade das políticas públicas de atendimento a vítimas de violência sexual (CAVALCANTI et al., 2015; PINTO et al., 2017), chegaram a conclusões divergentes. Cavalcanti et alii (2015) investigaram documentos sobre ações municipais de enfrentamento à violência sexual contra a mulher tanto em Fortaleza-CE, como no Rio de Janeiro-RJ. Além disto, entrevistaram gestores de hospitais municipais de referência na atenção às mulheres em situação de violência sexual. Os autores observaram que existem fragilidades na implementação de ações nesse âmbito, o que exige certo esforço de articulação política e técnica para a estruturação e manutenção destes serviços (CAVALCANTI et al., 2015). Pinto et alii (2017), que realizaram outro recorte, avaliaram a legislação de proteção à mulher e os atendimentos de saúde às vítimas de violência sexual a partir de entrevistas com profissionais do Serviço de Atendimento à Mulher Vítima de Violência de Teresina-PI, bem como coleta de dados em prontuários. A partir disto, concluíram que a legislação vigente e as diretrizes e procedimentos preconizados pelas políticas públicas de proteção à mulher são eficazes nos serviço de referência analisado (PINTO et al., 2017). Observa-se que a efetividade destas políticas varia de acordo com a instituição, não sendo as mesmas em todos os locais – seja referência ou não – no âmbito nacional. 23 Objetivos e estrutura Nesse sentindo, a partir do exposto, pode-se afirmar que a presente pesquisa buscou compreender o que alguns autores de pesquisas anteriores procuraram responder em seus respectivos estudos: Como os profissionais da saúde representam a violência sexual? O objetivo geral, portanto, é compreender como os profissionais da saúde representam a violência sexual. Os objetivos específicos são: a) entender como se estrutura o atendimento prestado as vítimas de violência sexual; b) conhecer as representações sociais dos profissionais da saúde, que atendem essas vítimas, sobre o crime; c) construir o perfil das vítimas e dos crimes; d) confrontar o perfil das vítimas e dos crimes com as representações identificadas; e) analisar de que formas as representações podem influenciar na prática do atendimento prestado às vítimas; e f) Entender se essas representações podem contribuir para a naturalização da violência. Esta dissertação estrutura-se em três capítulos, além desta introdução e das considerações finais. O primeiro capítulo discute as questões metodológicas do trabalho, as técnicas e procedimentos utilizados, além do arcabouço teórico o qual esta pesquisa se baseia. No segundo capítulo apresento os dados em torno da violência sexual, desde nacionais até a situação específica da cidade de São Carlos. No terceiro capítulo, são apresentadas as representações dos profissionais sobre a violência sexual. 24 1. QUESTÕES METODOLÓGICAS A escolha do tema de pesquisa é algo muito pessoal do pesquisador, onde a sua subjetividade se faz presente. Segundo Goldenberg (1999), essa subjetividade pode influenciar não só na escolha do tema, mas na construção do roteiro de entrevistas, a bibliografia consultada etc. (GOLDENBERG, 1999). Isto não quer dizer, no entanto, que seja uma pesquisa menos científica. Na verdade, trata-se apenas da constatação de que, em qualquer pesquisa, a subjetividade do pesquisador se fará presente em determinadas escolhas, restando a ele ter o cuidado de que essa subjetividade não interfira para além da escolha do tema, da bibliografia e dos métodos. Ou seja, tentar não deixar que a subjetividade interfira na análise dos resultados. É o que Bourdieu (1989) chama de objetivação, o esforço de conter a sua própria subjetividade durante a pesquisa. “A influência das noções comuns é tão forte que todas as técnicas de objetivação devem ser utilizadas para realizar efetivamente uma ruptura que, na maior parte das vezes, é mais professada do que concretizada” (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 1999, p. 24) Nesse sentido, é preciso deixar claro que a escolha do tema desta pesquisa foi influenciada pela minha subjetividade, levando em conta não só minhas próprias questões, mas a minha trajetória (extra)acadêmica que propiciou o surgimento de determinados questionamentos, a partir da participação de grupos de estudos sobre dados assuntos, e não outros. Isso foi devido ao trabalho realizado, durante toda a graduação em ciências sociais, junto ao Núcleo de Apoio à Pessoa em Situação de Violência (NAVI), ligado à Universidade Estadual do Ceará (UECE), onde integrei um grupo de psicoeducação para homens perpetradores de violência doméstica e familiar contra a mulher, além do grupo de estudos sobre a violência doméstica e familiar. Junto a isto, a realizei um estágio no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Fortaleza. Isto também fez com que o fenômeno da violência doméstica e familiar fosse visualizado de vários ângulos, compreendendo que para além de uma questão de gênero, existem também outros fatores que – junto às questões de gênero envolvidas – contribuem para esta violência (SILVA, 2016). Os relatos das mulheres que chegavam ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Fortaleza sobre o atendimento recebido nas delegacias, as inúmeras reclamações e dores no que se refere aos questionamentos feitos sobre a veracidade da denúncia, a desqualificação da fala da mulher, atendimentos mal realizados etc., eram 25 recorrentes, não só na fala das mulheres, mas entre os grupos e coletivos feministas aos quais tive acesso, e que levaram a um questionamento: como esses profissionais que prestam atendimento a pessoas em situação de violência as compreendem? Para além disto, já havia uma curiosidade sobre como funcionava o atendimento no sistema de saúde – uma vez que parte da realidade do sistema de justiça já era conhecida a partir do trabalho empreendido durante a graduação no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Fortaleza. Nesse sentido, a decisão de pesquisar como os profissionais da saúde representam a violência sexual foi tomada no decorrer da feitura do projeto de pesquisa submetido ao processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP/FCLAr. O relato da escolha do tema busca, assim, seguir o que cientistas sociais como Max Weber, Pierre Bourdieu e Howard Becker acreditavam ser fundamental para evitar o “bias” do pesquisador, que é explicitar todos os passos da pesquisa. Estes autores “recusam a suposta neutralidade do pesquisador e propõem que o mesmo tenha consciência da interferência de seus valores na seleção e no encaminhamento do problema estudado” (GOLDENBERG, 1999, p. 45). Assim, visto que “o que determina o método é o problema que se quer trabalhar: só se escolhe o caminho quando se sabe aonde se quer chegar (GOLDENBERG, 1999, p. 13)”. Outras decisões, quanto a como seria realizada a pesquisa, por exemplo, precisaram ser tomadas. 1.1 Técnicas e procedimentos Isto posto, esta pesquisa parte do pressuposto de que os profissionais de saúde são as figuras de maior importância no processo de tratamento do agravo – seja ele físico ou psicológico –, sendo um fator que pode afastar a pessoa em situação de violência, a depender do atendimento prestado4, esta pesquisa, como dito anteriormente, se propõe a entender como os profissionais de saúde representam a violência sexual. Nesse sentido, como objetivos específicos foram determinados seis pontos centrais a partir dos quais busca-se realizar um panorama do atendimento, dos casos denunciados, como os profissionais representam a violência e, a partir do conjunto destes dados, tentar responder o objetivo geral. 4 Aceita-se, portanto, que as representações sociais podem ultrapassar a esfera do tratamento profissional, visto que estes profissionais estão inseridos na sociedade, logo sujeitos a reproduzir senso comum apesar sua formação. 26 Cada um dos objetivos específicos se torna importante para compreender as representações, partindo da premissa que elas são resultado de vários fatores, não só da formação voltada para o cuidado e o uso de protocolos de atendimento. Para tanto, os métodos utilizados para obter as informações desejadas foram escolhidos a partir do conhecimento do que cada um poderia oferecer, levando em consideração as limitações da pesquisa – seja tempo ou recursos – e da pesquisadora. Optou-se por realizar uma pesquisa de caráter exploratório e descritivo (GIL, 2008) com abordagem mista, ou seja, utilizando-se tanto dos métodos qualitativos quanto dos quantitativos, quando estes melhor se aplicarem ao longo da pesquisa (CRESWELL, 2007). Quanto ao instrumento de coleta de dados, foi feita a utilização da entrevista semiestruturada. Segundo Minayo (2010) a entrevista fornece tanto dados primários como secundários; a partir dela é possível conseguir informações que poderiam ser obtidas por outras fontes que não o interlocutor, tais como estatísticas, registro civis, censos etc. Além disso, é possível também obter informações que dizem respeito diretamente ao interlocutor. Informações subjetivas que de outra forma seriam de mais difícil acesso. Entrevista é acima de tudo uma conversa a dois, ou entre vários interlocutores, realizada por iniciativa do entrevistador, destinada a construir informações pertinentes para o objeto de pesquisa, e abordagem pelo entrevistador, de temas igualmente pertinentes tendo em vista este objetivo (MINAYO, 2010, p. 261). A modalidade de entrevista escolhida, a semiestruturada, foi feita levando em consideração que ela permite “fazer emergir informações de forma mais livre e as respostas não estão condicionadas a uma padronização de alternativas” (MANZINI, 2004 p. 146). Ela “difere apenas em grau da não estruturada, porque na verdade nenhuma interação, para finalidade de pesquisa, se coloca de forma totalmente aberta ou totalmente fechada” (MINAYO, 2010, p. 267). Nela é possível utilizar-se de um roteiro pré-estabelecido de questões, o que facilita não só o momento de interação entre pesquisador e interlocutor, mas estabelece uma série de questões, pensadas antes da entrada no campo, que se mostra necessário serem questionadas. É preciso, no entanto, neste tipo de pesquisa, levar em consideração que o contexto de produção da fala interfere no que é dito, sendo a entrevista apenas uma aproximação daquela realidade, pois “[...] todo conhecimento é um conhecimento aproximado [...], situado no tempo, dentro da especificidade histórica e da especificidade das relações sociais que o permeiam e o condicionam: é o conhecimento possível” (MINAYO, 2010, p. 219). Pois, 27 [...] Em qualquer situação de trabalho de campo existirá sempre um jogo de cena entre o pesquisador que entra em contato a fala e os comportamentos de seus interlocutores. [...] Por isso, é importante que todo investigador social saiba que nenhum grupo [ou pessoa] falará totalmente a verdade sobre sua realidade social (MINAYO, 2010, p. 214). As outras formas de entrevistas foram descartadas pois, enquanto que a entrevista com um questionário ou roteiro fechado poderia limitar a repostas dos participantes, a utilização de grupo focal mostrou-se inviável devido o fluxo de funcionamento de um hospital, bem como dos diversos setores em que os profissionais atuam, impedindo e dificultando a “junção” destes num mesmo ambiente. O instrumento de coleta de dados escolhido mostrou-se frutífero, oportunizando vinte entrevistas com durações que variam entre 15 e 50 minutos. A pesquisadora também realizou observação de campo nas duas instituições5 pesquisadas. No entanto, não foi possível acompanhar nenhum caso de tratamento deste agravo. Sendo assim, o trabalho e a observação de campo auxiliaram na percepção da dinâmica dos locais, no funcionamento e nas formas de atendimento, bem como na prática de alguns profissionais durante o período em campo. O áudio das entrevistas foi gravado, mediante consentimento dos entrevistados a partir da aceitação do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), os participantes foram informados sobre os procedimentos da pesquisa, a proteção das suas respectivas identidades, bem como seu direito de deixar a pesquisa a qualquer momento. Ainda, dos possíveis entrevistados, foram escolhidos aqueles dentro das unidades que tinham uma maior probabilidade de atender estas vítimas de violência sexual, aqueles que trabalham diretamente com esse público, sejam técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, psicólogos etc. A escolha destes profissionais justificou-se pela importância dos profissionais da saúde no primeiro atendimento prestado as vítimas de violência sexual, bem como na promoção de meios para a sua prevenção. Outro fator importante para a construção do universo pesquisado foi a aceitação ou não de participação na pesquisa por parte destes profissionais. O contato na unidade de saúde foi realizado mediante aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP/FCLAr), pelo CEP das instituições pesquisadas, por meio de 5 O nome das instituições não será relevado afim de não identificar os participantes da pesquisa. 28 pedido junto a Secretaria de Saúde do município de realização da pesquisa, bem como o aceite dos profissionais da unidade de participarem da mesma. Na escolha dos locais de pesquisa, levou-se em consideração o caráter de atendimento de emergência, com funcionamento 24h por dia de uma das instituições, além dela ser uma das principais portas de entrada no primeiro atendimento a pessoas em situação de violência sexual, pelo seu caráter de atendimento emergencial. A segunda instituição foi selecionada para esta pesquisa por ser um dos locais que presta o atendimento de longo prazo as pessoas em situação de violência sexual, onde é realizado não só o acompanhamento médico, mas o psicológico etc. Aqui as instituições serão identificadas como primeira e segunda instituição, onde a primeira instituição no atendimento continuado e a segunda se refere ao local de atendimento emergencial. Antes da entrada em campo, foi realizada não só uma revisão bibliográfica sobre o tema em questão, mas uma coleta de dados referentes às vítimas e como se deu o agravo, junto à Secretária de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP). Nesse sentido, foram solicitadas à SSP-SP informações sobre o agravo que constassem nos boletins de ocorrência (BOs) dos casos de violência sexual denunciados nos últimos cinco anos (2011-2016) na cidade de São Carlos. Este período histórico justifica-se pela pressuposta consolidação dos meios de notificação compulsória de violência, bem como ao aumento de delegacias da mulher. A coleta de dados junto à SSP-SP visou a construção de um perfil sociodemográfico das vítimas e da violência sofrida. Para tanto, buscou-se determinar dados da vítima tais como idade, cor de pele, sexo, estado civil, escolaridade, situação de emprego etc., bem como dados relacionados ao agravo, como horário, local, tipo de agressão, utilização ou não de algum tipo de intimidação etc. Ainda, tentou-se localizar alguns dados quanto ao agressor, mas, de modo geral, não foi possível encontrar muitas informações, seja pelo desconhecimento de quem era ele, pelo mesmo não fornecer informações no momento do boletim de ocorrência ou, ainda, por um possível erro de quem fez o boletim de ocorrência, deixando de colher informações pertinentes do agressor. A SSP-SP solicitou alguns documentos para disponibilizar os dados, mas os mesmos foram rapidamente entregues após o cumprimento da burocracia necessária. A obtenção destes dados foi facilitada também pela Lei nº 12.527/2011, conhecida como Lei de Acesso a Informação (LAI), que regulamenta o direito constitucional de acesso às informações públicas. 29 A partir destas informações, foi possível chegar aos profissionais com dados sobre a quantidade de crimes denunciados, o local de ocorrência do agravo, a idade dos envolvidos etc., e confrontar possíveis dados fornecidos por eles que não fossem ao encontro dos informados pela SSP-SP. Estas informações facilitaram também o momento da entrevista, pois tornaram mais fluído devido o meu conhecimento sobre determinadas informações, na medida em que já havia uma familiaridade com parte da realidade em questão. Além disto, conhecer esses dados possibilitou uma formulação melhor de algumas questões do roteiro de entrevista, o que fez com que o momento de contato com o interlocutor fosse mais proveitoso, gerando outros questionamentos espontâneos, durante as entrevistas, como “se nos dados da SSP-SP consta que mais vítimas vulneráveis denunciam, isto reflete o número de atendimentos realizados aqui?” ou “a quantidade de casos que chegam na unidade refletem a quantidade de denúncias realizadas?”, dentre outras. Os dados obtidos, sejam eles quantitativos ou qualitativos, foram submetidos a posterior análise. As informações obtidas junto à SSP-SP foram alocadas num banco de dados utilizando-se do programa Microsoft Office Excel. Quanto às entrevistas, elas foram transcritas utilizando-se do programa de áudio Express Scribe Transcription Software Pro e foram submetidas a análise qualitativa, a partir do software Atlas.ti6. Foram criados códigos (ou categorias) para classificar parte das falas dos interlocutores. A partir das perguntas feitas durante as entrevistas, foram criados 98 códigos. Nesse sentido, a categorização se organizou a partir dos questionamentos realizados durante a entrevista, sendo considerado um “grupo de códigos”, por exemplo, a pergunta sobre as consequências da violência, onde, dentro dele, foram agrupados códigos a partir das respostas dadas. Por exemplo, em um desses grupos de códigos foram agregadas as seguintes categorias: “adoecimento mental/isolamento”, “confusão de sentimentos”, “medo”, “traumas físicos/doenças” e “traumas psicológicos”. A análise qualitativa destas categorias foi realizada utilizando-se a técnica de análise de conteúdo temática (BARDIN, 2016). Justifica-se este tipo de análise pela sua preocupação “com aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais” (SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009). Ela trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, correspondendo a um espaço mais profundo nas relações, nos processos e nos fenômenos que 6 O software Atlas.ti é um programa de computador utilizado majoritariamente, mas não somente, para realizar análise qualitativa. Ele permite a criação de códigos para identificar e organizar passagens de textos, assim auxiliando no agrupamento de falas que possuem sentido similar, dentre outras coisas. 30 não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO apud SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009). Sabendo que tais representações têm desdobramentos que podem acabar por naturalizar a violência sexual e contribuir para sua continuidade, faz-se necessária uma discussão sobre que representações os profissionais da saúde constroem acerca da violência sexual e como tais representações podem interferir no atendimento dado às vítimas. A contribuição desse trabalho deve-se também à possibilidade de que, a partir dos resultados obtidos, políticas que visem uma melhor formação destes profissionais possam ser pensadas para melhorar o atendimento prestado às vítimas de violência sexual e facilitar a promoção de estratégias de prevenção desses agravos. O subtópico seguinte versa sobre a análise de conteúdo, método escolhido para auxiliar no processo de análise qualitativa. 1.2 A técnica de análise de conteúdo temática A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações, sendo considerada de forma macro um método, visto que dentro dela existe mais de uma técnica. Ela permite “tornar replicáveis e válidas inferências sobre dados de um determinado contexto, por meio de procedimento especializados e científicos” (MINAYO, 2010, p. 303), dentre eles o processo de inferência. Trata-se de Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens (BARDIN, 2016, p. 48). Ela pode tanto ser uma análise dos “significados” como dos “significantes”. O que vai definir isto é a modalidade de análise de conteúdo escolhida pelo pesquisador. Estas modalidades de análise podem ser: lexical, de expressão, temática, de relação e de enunciação. A modalidade escolhida nesta pesquisa foi a análise de conteúdo temática, visto que a pesquisa buscou organizar as falas em categorias (ou temas) e, a partir disto, observar não só a frequência que as explicações se utilizando daquela categoria estavam presentes, mas, também, o conteúdo contido nas falas ligadas a cada categoria. A lógica por trás desta técnica busca ultrapassar o senso comum e alcançar um olhar crítico e científico sobre os dados, documentos, entrevistas etc. Busca-se, assim, 31 [...] dizer não “à ilusão da transparência” dos fatos sociais, recusando ou tentando afastar os perigos da compreensão espontânea. É igualmente “tornar- se desconfiado” relativamente aos pressupostos, lutar contra a evidência do saber subjetivo, destruir a intuição em proveito do “construído”, rejeitar a tentação da sociologia ingênua, que acredita poder apreender intuitivamente as significações dos protagonistas sociais, mas que somente atinge a projeção da sua própria subjetividade (BARDIN, 2016, p. 34). Neste sentido, é preciso pensar relacionalmente. Questionar-se durante o processo de análise de onde aqueles conhecimentos são emitidos, que relações estão implícitas, quem fala e de onde fala. Tudo isso sem se deixar iludir pela magia dos instrumentos metodológicos, pois eles auxiliam no processo, mas não o fazem sozinho. Nesse sentido, a constante vigilância do pesquisador sobre si mesmo é necessária para que a análise seja a mais científica possível. É preciso realizar uma objetivação, o esforço de conter a subjetividade, visto a impossibilidade de objetividade absoluta na pesquisa, procurando sempre se certificar que todo o conhecimento produzido a partir da pesquisa está perpassado por relações de poder, além de certificar-se que o pesquisador realizou o esforço de se objetivar, evitar que suas pré-noções invadissem o campo, sendo assim possível realizar uma análise a mais objetiva possível (BOURDIEU, 1989). A análise de conteúdo [...] é um método muito empírico, depende do tipo de “fala” a que se dedica e do tipo de interpretação que se pretende como objetivo. Não existe coisa pronta em análise de conteúdo, mas somente algumas regras de base, por vezes dificilmente transponíveis (BARDIN, 2016, p. 36). Pode-se afirmar que ela busca, de maneira geral, dois objetivos: a) a superação da incerteza; e b) o enriquecimento da leitura. Ou seja, a análise de conteúdo procura desvendar se determinada interpretação sobre dadas “palavras” é a mesma para os outros, se a leitura feita pelo pesquisador é válida e passível de generalização, ao tempo que defende o mergulho do pesquisador nos conteúdos em análise, realizando não só uma, mas diversas leituras para que o processo de análise seja mais fecundo e outras estruturas possam vir à tona, o que seria mais difícil de ocorrer numa leitura superficial. Ela deve ser dividida em três momentos (BARDIN, 2016) que se dão cronologicamente: 1) Pré-análise; 2) Exploração do material; e 3) Tratamento dos resultados a partir de inferência e interpretação. Essas fases dão-se da seguinte maneira: Na pré-análise devem ser realizadas três operações: a) Escolha dos documentos que serão analisados; b) Formulação de hipóteses sobre o material; e c) Elaboração de possíveis 32 explicações para a interpretação final (BARDIN, 2016). Estas três operações não precisam, necessariamente, seguir uma ordem. É na fase da pré-análise que se busca operacionalizar e sistematizar as ideias para as fases seguintes. Nesse sentido, segundo Bardin (2016), anterior ao momento da escolha dos documentos que serão analisados é preciso “estabelecer contato com os documentos a analisar [...], conhecer o texto deixando-se invadir por impressões e orientações” (BARDIN, 2016, p. 126). É o que a autora denomina de “leitura flutuante”, momento no qual deve-se ter acesso a todo o material coletado e realizar, pouco a pouco, uma aproximação do mesmo, de modo que a cada leitura certas especificidades fiquem mais claras. A escolha dos documentos que serão submetidos à análise pode ser feita antes da coleta. Isto dependerá do tipo de pesquisa e material escolhido para realizar a análise. Sendo assim, levando-se em conta que o objetivo desta pesquisa é buscar compreender as representações, o uso de entrevistas semiestruturadas como documentos já foi pré-estabelecido a partir da decisão do método utilizado. Procede-se à construção de corpus dos documentos que serão submetidos a análise, ou seja, são determinadas algumas regras para garantir que documentos necessários para a análise não sejam deixados de fora. São elas: • Regra da exaustividade: O material da análise é reunido e submetido a uma exaustiva leitura para que nenhum daqueles que se encaixam nas “regras de documentos da pesquisa” seja deixado de fora. Por exemplo, nesta pesquisa todas as entrevistas colhidas devem fazer parte da análise pois elas são discursos dos sujeitos que se pretende compreender; • Regra da representatividade: Na escolha dos documentos a serem analisados, deve-se preconizar pela representatividade daqueles documentos diante do universo pesquisado. No caso da presente pesquisa, optou-se pelos profissionais que atendem em locais onde há uma maior chance de ocorrer um atendimento a pessoas em situação de violência sexual; • Regra da homogeneidade: O material submetido a análise deve ser o mais homogêneo possível, isto é, no caso de entrevistas, deve seguir o mesmo roteiro, se possível ser realizado pela mesma pessoa e buscar entrevistar sujeitos que lidam com a mesma problemática; • Regra da pertinência: Parece óbvio, mas o material analisado deve dizer respeito ao objetivo da pesquisa, de modo que uma pesquisa que busca 33 compreender as representações dos profissionais de saúde sobre a violência sexual deve utilizar outras fontes que não são os próprios profissionais de saúde. Ainda na fase da pré-análise deve-se realizar a “Formulação das hipóteses e dos objetivos”. Nesse momento da pré-análise utilizam de objetivos propostos para formular hipóteses, a partir da leitura flutuante previamente realizada no material; estas hipóteses serão testadas no decorrer da análise quanto a sua veracidade. Algumas análises, no entanto, são realizadas “às cegas”. O pesquisador faz a escolha de não formular nenhuma hipótese e utilizar-se apenas do material, mesmo que saibamos que dessa maneira podem existir hipóteses implícitas. É nesta fase, ainda, em que se busca formular indicadores que guiem a pesquisa, categorizar o material a ser submetido à análise, para tornar mais operacionalizável as próximas fases. “Desde a Pré-análise devem ser determinadas operações de recorte do texto em unidades comparáveis de categorização para análise temática e de modalidade de codificação para o registro de dados” (BARDIN, 2016, p. 130). Tudo isto faz parte da organização do material de análise, que deve ser realizada de forma precisa para que as próximas fases sejam realizadas sem maiores dificuldades. A fase seguinte diz respeito à “exploração do material” que não deve ser difícil se a fase anterior, a pré-análise, tiver sido bem executada. Ela será, nesse sentido, apenas a execução do que foi pré-estabelecido, seja do material a ser submetido a análise, seja das categorias aplicadas etc. Nesta fase se dá a codificação ou categorização dos documentos, transformando os dados brutos do texto em material de análise, permitindo também uma descrição mais exata das características pertinentes do conteúdo. É realizado um “[...] recorte, agregação e enumeração [que] permite atingir uma representação do conteúdo ou da sua expressão” (BARDIN, 2016, p. 133). Com isso, busca-se descobrir os “núcleos de sentido” presentes nos documentos, no caso desta pesquisa, nas falas dos sujeitos. Pode-se organizar essa codificação do material em três partes: a) o recorte ou escolha das unidades; b) a enumeração, que diz respeito a escolha das regras de contagem; e c) a classificação e agregação das categorias. No caso de uma análise temática que será qualitativa, não é necessário realizar a enumeração e quantificação dessas categorias. Apenas utilizá-las como forma de organizar o texto em determinados “núcleos de sentido” e, com isso, facilitar o momento da inferência. 34 Classificar elementos em categorias impõe a investigação do que cada um deles tem em comum com outros. O que vai permitir o seu agrupamento é a parte comum existente entre eles. É possível, contudo, que outros critérios insistam em outros aspectos de analogia, talvez modificando consideravelmente a repartição anterior (BARDIN, 2016, p. 148). Nesse sentido, buscou-se uma representação simplificada dos dados brutos, que após um processo de categorização e subcategorização, poderá ser novamente reagrupado em grandes categorias. Trata-se, pois, de um processo de esmiuçamento do material para a análise e posterior reagrupamento, de modo que o pesquisador tenha a oportunidade de analisar o maior número possível de nuances do material. Feito isto, na terceira fase da análise, chamada de “tratamento dos resultados obtidos e interpretação”, é finalmente realizado o tratamento dos dados e a inferência sob este material, agora organizado e tratado. No caso das categorias, elas são analisadas a partir da organização feita previamente, levando-se em consideração suas condições de produção e o interlocutor. Busca-se, assim, inferir significados presentes na fala destes interlocutores e, com isto, realizar a interpretação dos dados. A análise de conteúdo não se trata, contudo, de ler o material e tirar conclusões dele, mas sim de estar em constante contato com os documentos para, a partir da aplicação de determinadas regras, chegar à interpretação das falas dos sujeitos, utilizando-se de meios que garantam a confiabilidade desta análise. 1.3 A noção de representação social e o habitus O conceito de representação social, que tem origem na sociologia de Durkheim, pode ser definido como sistemas de interpretação que regem a relação dos sujeitos com o mundo e com os outros, podendo ser produtos tanto de ideias socialmente reproduzidas quanto de modificações ocorridas por intervenções históricas e sociais (CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006). O seu uso pode ser divido em dois grandes momentos: a sua origem e seu ressurgimento. Apesar de também ter sido utilizado por outros estudiosos, tais como Simmel e Weber, foi apenas na sociologia durkheimiana que ganhou status de conceito capaz de explicar fenômenos da sociedade e contornos bem estabelecidos de definição, sob o nome de “representações coletivas”. 35 Durkheim, que cunhou o termo a partir da elaboração da sua teoria da religião, chamava de representações coletivas tudo aquilo que era exterior ao indivíduo, que levavam as pessoas a se comportarem e explicarem o mundo de determinada maneira. O autor busca com isto não só clarificar esse poder coercitivo que os indivíduos sofrem, mas, também, que existe uma distinção entre o que é coletivo e o que é individual. Pode-se assim definir, a partir do pensamento de Durkheim, que as representações coletivas são dotadas de lógica e refletem o real; são parte constitutiva da sociedade à qual pertencem, e adquirem certa autonomia, sofrendo modificações ao longo do tempo. No entanto, não são tão voláteis como as transformações às quais as representações individuais estão sujeitas. Este conceito voltou a ser explorado como outrora, alguns anos após sua origem, por Serge Moscovici. Dessa vez, porém, sob o nome de “representações sociais” e sem a dualidade hierárquica entre indivíduo e sociedade, apresentada por Durkheim. Moscovici (2015) propôs uma união e reformulação das representações individuais e coletivas no que ele passou a chamar de representações sociais. O autor propunha que “o próprio conceito de representação possui um sentido mais dinâmico, referindo-se tanto ao processo pelo qual as representações são elaboradas, como às estruturas de conhecimento que são estabelecidas” (DUVEEN, 2015, p. 20). Assim, as representações possuem duas funções: 1) dá forma e localiza uma determinada categoria perante um grupo; e 2) se impõe sobre os indivíduos, de modo que é assimilada e reproduzida por eles. Elas não são, no entanto, tão estáticas como na teoria proposta por Durkheim, em que as representações só se modificavam a partir de revoluções sociais. O conceito proposto por Moscovici compreende que as representações estão em constante movimento, mas, para modificá-las, é necessário um certo esforço do indivíduo. [...] cada experiência é somada a uma realidade predeterminada por convenções, que claramente define suas fronteiras, distingue mensagens significantes e que liga cada parte a um todo e coloca cada pessoa em uma categoria distinta. [...] Nós vemos apenas o que as convenções subjacentes nos permitem ver e nós permanecemos inconscientes dessas convenções (MOSCOVICI, 2015, p. 35). O esforço necessário para percebê-las e modificá-las pode nos levar a não reproduzir certas convenções, mas não todas (MOSCOVICI, 2015). Seria como o esforço de não 36 reproduzir atitudes machistas, mas, às vezes, involuntariamente, fazer algo que não escapa a isso, por simples repetição do que foi apreendido ao longo de sua socialização. Alguns profissionais, por exemplo, demonstraram possuírem representações que fazem parte do que o senso comum compreende como causa da violência, ao tempo que afirmavam que nada justificava a violência sexual (ver páginas 63 e 64). Nesse sentido, as representações são impostas sobre nós, transmitidas e são produto de uma sequência de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo e são o resultado de sucessivas gerações. [...] Implicam um elo de prévios sistemas e imagens, uma estratificação na memória coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento anterior e que quebra as amarras da informação presente. (MOSCOVICI, 2015, p. 37) Elas não são criadas por um indivíduo isoladamente, mas a partir de um conjunto de ideias presentes na sociedade, e, uma vez criadas, adquirem vida própria e são capazes de gerar novas representações a partir de sua circulação e apropriação no meio social. As representações constituem uma realidade sui generis, pois “quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna” (MOSCOVICI, 2015, p. 41). Elas são resultado da interação dos indivíduos, tornando-se o que são a partir de processos específicos de influência social entre os indivíduos e grupos. São um sistema de valores, ideias e práticas, com uma dupla função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará às pessoas orientar-se em seus mundos material e social e controla-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunicação seja possível entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes um código para nomear e classificar, sem ambiguidade, os vários aspectos de seu mundo e da sua história individual e social (MOSCOVICI, 1976 apud DUVEEN, 2015, p. 21). Uma das principais percursoras das análises sobre representações sociais, Denise Jodelet, buscou, a partir das suas obras e estudos, desenvolver e divulgar o pensamento de Moscovici, além de refinar o conceito proposto por ele. Nesse sentido, segundo a autora, as representações sociais podem ser apreendidas como um sistema de saberes e crenças que se constroem e agem socialmente. Elas “intervêm na ação no mundo social, na medida em que essa ação fundamenta-se no conhecimento que os atores sociais têm desse mundo e de sua própria posição” (JODELET, 2016, p. 1267). Elas nos guiam na maneira de nomear e definir em conjunto os diferentes aspectos de nossa realidade cotidiana, na maneira de interpretá-los, estatuí-los e, se for o caso, de tomar uma posição a respeito. [...] Estas se instalam sobre valores variáveis segundo os grupos sociais dos quais retiram suas 37 significações, bem como sobre os saberes anteriores reativos por uma situação social particular. [...] São ligadas a sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos e culturais, a um estado dos conhecimentos científicos, bem como à condição social e a esfera da experiência privada e afetiva do indivíduo (JODELET, 2001, pp. 17-21). São elaboradas por sujeitos a fim de dar sentido e compreender o mundo ao seu redor, são fenômenos polimorfos pelos quais é possível encontrar expressões e crenças elaboradas a partir do local social que o indivíduo ocupa (JODELET, 2016). Essa concepção de representação social apresentada por Jodelet aponta para a ideia de que as representações não são apenas fruto do meio social, mas se transformam, reafirmam e mantém por meio dos indivíduos que com ela operam e a ressignificam. As representações significariam por meio das práticas uma identidade social qualificada por um estatuto, uma posição e uma maneira própria de ser no mundo; enfim, sob formas institucionalizadas, elas exprimem e mantém a existência de grupos, comunidades ou classes. Desse modo, a identidade é definida como o resultado de uma relação de força entre as representações impostas por aqueles que tem o poder de classificar e nomear e aquelas pelas quais os outros grupos pretendem ter reconhecida a sua identidade (JODELET, 2016, p. 1258). É possível sugerirmos uma relação entre a noção de representação social apresentada por Moscovici (2015) e Jodelet (2001) e o conceito de habitus formulado por Bourdieu (1989), uma vez que este autor também procurava realizar uma mediação entre as dimensões subjetiva e objetiva, ou, entre o agente e as estruturas sociais (ORTIZ, 1983). Trata-se da busca da superação da dicotomia entre indivíduo e sociedade, na qual Bourdieu procurou colocar as bases para a compreensão da realidade utilizando-se da circularidade do habitus como promotora da mediação entre o individual e o social, se comportando como uma “estrutura estruturada estruturante”, ou seja, predisposta a gerar práticas e representações (PETERS, 2013). Assim, compreendendo o habitus pela interiorização dos determinismos da estrutura social que, com base na prática, se estrutura em disposições gerais, compreende-se que agentes, vivenciando as mesmas condições de vida, tendem a incorporar disposições para perceber e agir numa mesma direção, proposição que serve de base para a noção de estilo de vida, por exemplo. Nesse contexto o conceito de representação social pode ser pensado como a elaboração subjetiva mental que os agentes fazem de suas condições materiais de vida (ANTUNIASSI, 2006, p. 69). 38 Visto seu caráter interiorizador, o habitus é composto por esquemas que foram incorporados pelos indivíduos ao longo da sua socialização, tal qual as representações, de forma mais ou menos inconsciente, com características próprias do momento socio-histórico no qual ele é produzido (JOURDAIN; NAULIN, 2017). O habitus é um sistema de disposições duráveis e transponíveis, uma estrutura estruturada e estruturante que, ao tempo que molda o indivíduo a partir da socialização, tal qual uma representação social no sentido de Jodelet (2001), ele também é simultaneamente moldado pelos indivíduos que fazem parte do grupo, classe etc., que pertence, sendo transformado e ressignificado por eles. O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas.[...] Os habitus são diferenciados; mas são também diferenciadores. Distintos, distinguidos, eles são também operadores de distinções [...]. (BOURDIEU, 1996, pp. 21-22) O habitus tende, portanto, a conformar e a orientar a ação, mas na medida em que é produto das relações sociais, ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendram. [...] A interiorização, pelos atores, dos valores, normas e princípios sociais assegura, dessa forma, a adequação entre as ações do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo (ORTIZ, 1983, p. 15). As representações sociais são habitus, pois estas não só moldam as estruturas de pensamento do indivíduo, mas acabam sendo modificadas ao longo do tempo por estes mesmos indivíduos, que ressignificam as representações que possuem a partir do contato com outras que existem simultaneamente e são reproduzidas por diferentes grupos. Essas representações formam um sistema e dão lugar a “teorias” espontâneas, versões da realidade que encarnam ou condensam as palavras, ambas carregadas de significações. [...] Através dessas diversas significações, as representações exprimem aqueles (indivíduos e grupos) que os forjam e dão uma definição específica ao objeto por elas representado. Essas definições partilhadas pelos membros de um mesmo grupo constroem, para esse grupo, uma visão consensual da realidade. Esta visão, que pode entrar em conflito com a de outros grupos, é um guia para ações e trocas cotidianas – e veremos que se trata das funções e da dinâmica social das representações (JODELET, 2001, p. 21). A coação sofrida pelo indivíduo, apesar de forte, não pode nem deve ser considerada a única força que produz e impõe representações, uma vez que o indivíduo também pode modificá-la e ressignificá-la (MOSCOVICI, 2001). O conceito de habitus, por sua vez, corrobora a compreensão das representações, uma vez que 39 as condutas levadas a cabo pelos atores tendem a se adaptar estrategicamente às condições objetivas de suas ações, não sendo essas, no entanto, fruto de um cálculo racional e deliberado (as condições para o cálculo quase nunca seriam dadas na prática), da obediência consciente a regras explicitamente definidas ou de uma determinação mecânica e automática por causas coletivas inconscientes, mas sim de um processo em que os atores atualizam continuamente as intuições tácitas de um sentido prático adquirido a partir de sua experiência societária, ou, mais precisamente, da exposição continuada e recorrente a condições semelhantes de ação (PETERS, 2013, p. 53). As representações são, também, abrangentes e não necessariamente conscientes, visto seu caráter de naturalização sobre o meio social. Tal qual como ocorre com o habitus, cada grupo social faz uso e possui uma visão diferente – diferentes representações – sobre dados assuntos. As representações envolvem, pois, “a pertença social dos indivíduos com as implicações afetivas e normativas, com as interiorizações de experiências, práticas, modelos de conduta e pensamento, socialmente inculcados ou transmitidos pela comunicação social que a ela estão ligadas” (JODELET, 2001, p. 22). As representações variam a partir das condições de existência e trajetória social de cada pessoa (BOURDIEU, 2007), de modo que indivíduos que compartilham de condições de existência comuns, tendem a possuir representações similares sobre dados assuntos, uma vez que “o habitus comporta também uma dimensão individual que faz com que cada habitus particular seja encarado como uma variante de um habitus coletivo” (JOURDAIN; NAULIN, 2017 p. 50). Assim, um profissional da saúde que foi socializado dentro de um determinado grupo e adquiriu, com isto, uma representação sobre dados assuntos, pode modificá-la de modo que não necessariamente vá ao encontro das representações que já possuía. Sendo assim, as representações são um tipo de conhecimento que faz parte da vida cotidiana das pessoas, através do senso comum, que é elaborado socialmente e que funciona no sentido de interpretar, pensar e agir sobre a realidade. É um conhecimento prático que se opõe ao pensamento científico, porém se parece com ele, assim como os mitos, no que diz respeito à elaboração destes conhecimentos a partir de um conteúdo simbólico e prático (ALEXANDRE, 2004, p. 6). São esquemas de percepção, apreciação e ação que os indivíduos incorporaram no decorrer de sua socialização, tendendo a orientar a ação e assegurar a reprodução das mesmas relações objetivas que a engendram (JOURDAIN; NAULIN, 2017). Elas não só se aplicam a “interiorização das normas e dos valores, mas inclui os sistemas de classificações que preexistem às representações sociais. O habitus [representação] pressupõe um conjunto de 40 esquemas generativos que presidem a escolha; eles se reportam a um sistema de classificação que é, logicamente, anterior a ação” (ORTIZ, 1983, p. 16) Manifestam-se em palavras, sentimentos e condutas e se institucionalizam, portanto, podem e devem ser analisadas a partir da compreensão das estruturas e dos comportamentos sociais. Sua mediação privilegiada [...] é a linguagem, tomada como forma de conhecimento e de interação social. Mesmo sabendo que ela produz um pensamento fragmentário e se limita a certos aspectos da experiência existencial, [...] possui graus diversos de claridade e de nitidez em relação à realidade (MINAYO, 2002, p. 108). Não são obrigatoriamente conscientes, podendo até ser elaboradas em determinado período histórico, mas perpassam o conjunto da sociedade, como algo anterior e habitual. Ademais, “podem ser consideradas matéria-prima para a análise do social e também para a ação pedagógico-política de transformação, pois retratam e refratam a realidade segundo determinado segmento da sociedade” (MINAYO, 2002, p. 110). Elas são uma expressão filosófica que significa a reprodução de uma percepção anterior da realidade ou do conteúdo do pensamento. [...] categorias de pensamento, de ação e de sentimento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a e questionando-a. (MINAYO, 2010, p. 2019). Sua análise deve ser realizada levando em conta as disposições, sejam elas afetivas, perceptivas, mentais e sociais, envolvidas, as relações sociais, a realidade social e material que as produz e afeta, utilizando-se de questionamentos sobre sua formação e disseminação que auxiliem no processo de análise (JODELET, 2001). Neste trabalho, representações sociais e habitus são entendidos como conceitos que conversam entre si, capazes de explicar a realidade de forma similar. Assim, ambos foram utilizados nesta tentativa de compreensão da realidade estudada. 1.4 Percalços do trabalho de campo e primeiras sondagens De acordo com Bourdieu (1989), “o homo academicus gosta do acabado. Como os pintores acadêmicos, ele faz desaparecer dos seus trabalhos os vestígios da pincelada, os toques e os retoques [...]” (BOURDIEU, 1989, p. 19). Neste trabalho, no entanto, busca-se seguir o sentido oposto ao do homo academicus, detalhando o caminho transcorrido para a realização da pesquisa. A entrada no campo foi perpassada por adversidades que foram sendo superadas. No entanto, não foi possível lograr êxito em todas as dificuldades que se colocaram ao decorrer da 41 pesquisa, em parte por que algumas decisões não cabiam apenas à pesquisadora, mas, na grande maioria das vezes, a terceiros. Pode-se dizer que o início do trabalho de campo deu-se logo após a aprovação da pesquisa pelo Conselho de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (CEP/UNESP/FCLAr). Esta aprovação ocorreu em meados de fevereiro do ano de 2018, após quase cinco meses tramitando na Plataforma Brasil. Só após esta autorização, foi iniciada a aproximação com os locais de pesquisa, na cidade São Carlos-SP, escolhidos para participarem do estudo. Nesse processo, a pesquisadora se deparou com várias questões a serem resolvidas, muitas delas com necessidade de tempo para se desenrolarem. Após procurar pelos dois locais escolhidos para a realização da pesquisa, obteve-se a informação que era preciso, antes de tudo, de uma autorização do Secretário de Saúde do Município (SSM) para a realização da pesquisa, o que foi prontamente buscado. As primeiras tentativas de entrega do projeto junto ao restante da documentação necessária foram infrutíferas, pois no momento em que foi realizado o contato com a secretaria de saúde, a mesma se encontrava mudando de espaço operacional. Assim, o prédio antigo onde ficava a pessoa responsável por receber os projetos estava constantemente fechado, segundo informações por medida de segurança já que só havia uma pessoa trabalhando no local. De modo que foi necessário conseguir o telefone da responsável pelo setor no local onde a secretaria estava funcionando provisoriamente e após marcar por telefone, finalmente, entregar o projeto. Todo esse processo, até o momento de aprovação da pesquisa pela Secretaria de Saúde do Município de São Carlos, demorou pouco mais de um mês, visto que o projeto foi analisado primeiramente pelo setor responsável dentro da própria secretaria e só então a aprovação do Secretário de Saúde foi solicitada. Com isto, a pesquisadora tinha mais um “ok” para iniciar a pesquisar no município de São Carlos. A orientação recebida após a aprovação pela Secretaria de Saúde do Município (SSM) foi a de buscar os locais de pesquisa preferidos e entregar esta autorização junto ao projeto e demais documentos que fossem solicitados, o que foi feito em ambas as instituições. Nesse processo, de entrega das duas autorizações (CEP e Aprovação da SSM) junto ao projeto e demais documentos nas unidades escolhidas para a pesquisa em São Carlos, muitas foram as informações desencontradas, além da falta de resposta e perda de documentos por parte de quem os recebia nas instituições. 42 Em tempo, a pesquisadora também cometeu o erro de equivocadamente não pedir que o recebedor assinasse um documento confirmando que os mesmos haviam sido entregues, o que poderia ter feito com que se tivesse um maior cuidado com os documentos. Finalmente, no final do mês de abril de 2018, foi conseguida a autorização para iniciar a pesquisa num dos locais escolhidos, no entanto, é preciso explicitar que isto, talvez, não teria sido possível caso eu não conhecesse uma pessoa que fez o intermédio do contato – conversando diretamente e passando o meu telefone pessoal – com as pessoas responsáveis por autorizar a pesquisa neste primeiro local. Possuir este contato foi de extrema importância para a entrada na primeira instituição, que acabou facilitando, por conseguinte, a entrada na segunda instituição. A autorização para iniciar a pesquisa na primeira instituição foi conseguida no final de abril e, logo em seguida, no início de junho de 2018 a pesquisa foi autorizada também junto ao CEP da segunda instituição, processo este que levou aproximadamente um mês. Após as devidas autorizações, a pesquisa foi iniciada na primeira instituição escolhida em maio de 2018 e, dois meses depois, na segunda instituição. Na primeira instituição, foram entrevistados quatro profissionais que trabalham no atendimento pós violência e na segunda foram entrevistados dezesseis profissionais que atendiam no setor de urgência e emergência, local por onde as pessoas em situação de violência sexual dão entrada ao serviço de saúde. Na primeira instituição as entrevistas foram previamente marcadas, mas todas realizadas no local de trabalho dos sujeitos. Nesse ínterim não presenciei nenhum atendimento a pessoas em situação de violência sexual, pude observar apenas o fluxo de atendimento do lo