UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS ÁTILA DE ANDRADE PADUA O RECURSO E O RAZOÁVEL FRANCA 2016 ÁTILA DE ANDRADE PADUA O RECURSO E O RAZOÁVEL Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas normativos e Fundamentos da Cidadania. Orientador: Prof. Dr. Nelson Nery Junior FRANCA 2016 Padua, Átila de Andrade. O recurso e o razoável / Átila de Andrade Padua. – Franca : [s.n.], 2015. 126 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Nelson Nery Junior 1. Processo civil. 2. Recursos (Direito). 3. Princípio da razoável duração do processo. I. Título. CDD – 340.41 ÁTILA DE ANDRADE PADUA O RECURSO E O RAZOÁVEL Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas normativos e Fundamentos da Cidadania. BANCA EXAMINADORA Presidente: _________________________________________________________________ Prof. Dr. Nelson Nery Junior 1o Examinador: _____________________________________________________________ 2o Examinador: _____________________________________________________________ Franca, _____ de _______________ de 2016. AGRADECIMENTOS São muitos aqueles que direta ou indiretamente possibilitaram que a presente dissertação fosse realizada. Mas assumindo o risco de cometer falta grave com importantes colaboradores, identifico aqueles sem os quais ela seria impossível. Inicialmente, agradeço ao professor Nelson Nery Junior, insigne jurista brasileiro a quem tenho a honra de chamar de orientador. Com sua autorização e estímulo fomentou desenvolver, em nível de mestrado, uma dissertação adstrita à Teoria Geral dos Recursos. Em seguida, agradeço ao professor Georges Abboud, mestre hermeneuta e amigo que sempre se prontificou a indicar leituras, esclarecer dúvidas e orientar publicações, nunca desperdiçando os valiosos encontros acadêmicos. Ainda em solo unespiano, merecem louros os professores Carlos Eduardo de Abreu Boucault, Murilo Gaspardo, Soraya Regina Gasparetto Lunardi, José Duarte Neto, Yvete Flávio da Costa, responsáveis por indicar leituras que forneceram substrato e exortaram à plástica do trabalho. Igualmente, aos dedicados companheiros da Revista de Estudos Jurídicos Unesp, coordenada pelo professor Paulo César Corrêa Borges, agradeço a oportunidade de maior aprendizado e aproveitamento acadêmico. Instigando contrapontos e fornecendo leitura vanguardista, agradeço aos professores Cândido Rangel Dinamarco, José dos Santos Bedaque, Bruno Lopes e Fernando Cais, que me acolheram para intercâmbio acadêmico no Largo São Francisco. Aos amigos de investida na pesquisa jurídica, devo compartilhamento de bibliografia, diálogos, inspiração, momentos inesquecíveis e várias alegrias. Ana Gomes, Ana Caroline, Antônio Júnior, Beatriz Petrechen, Daniel Colnago, Daniel Zveibil, Eduardo Salomão, Felipe Assis, Felipe Rodrigues, Fernando Couto, Henrique Camacho, João Lavrador, Marina Pedigoni, Matheus Grisolia, Maurício Queiroz, Moisés Castro e Patrícia Pellini: sou extremamente grato a todos vocês. Também aos diletos amigos que me acolheram em virtude dos compromissos acadêmicos, Arthur Cantarella, Marcos Dunder, Paula Artoni, meus tios Jane e Renato, minha prima Gabriela e principalmente minha querida irmã Ísis: agradeço muito a mão e a casa amigas. Igualmente agradeço aos olhos rasantes de águia da editora Laura Jardim, sem os quais o presente trabalho nunca seria publicado. Pela pavimentação do caminho da perseverança, agradeço ao meu padrinho, Fernando. Pelo apoio e carinho diários, agradeço à minha namorada, Vanessa. Pela razoabilidade que não mede recursos, agradeço aos meus pais, Renato e Jacqueline. Ao meu avô José, de Caculé, que entendia de confiança, justiça, e temperança. Von einem gewissen Punkt gibt es keine Rückker mehr. Dieser Punkt ist zu erreichen.* Franz Kafka *Tradução livre: De certo ponto não há mais retorno. Esse ponto está por se alcançar. PADUA, Átila de Andrade. O recurso e o razoável. 2016. 126 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. RESUMO Mormente sob o influxo do princípio da “duração razoável do processo” – anexo ao compromisso em assegurar “meios que garantam a celeridade de sua tramitação” –, foi proposta a renovação do processo civil brasileiro via código, consagrando a postura contemporânea dos tribunais. Refutada a crítica abstrata ao sistema recursal brasileiro, o trabalho busca analisar as reformulações deste segmento da sistemática processual, seu propósito e condições de possibilidade da jurisdição estatal. Norteado pela teoria geral dos recursos e pela preocupação no alcance de uma metodologia pós-positivista, o trabalho adentra a discussão política e constitucional da dogmática jurídica, indagando pelo preço democrático das supressões recursais. Nesse percurso, compreendida a relevância dos institutos do sistema recursal, são colocadas em xeque propostas como a adoção de filtros, o incidente de resolução de demandas repetitivas e um modelo de precedentes à brasileira. Portanto, como pano de fundo, o trabalho pretende desnudar os limites do redimensionamento sistemático dos recursos. Palavras-chave: processo civil. recurso. razoabilidade. PADUA, Átila de Andrade. O recurso e o razoável. 2016. 126 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016. ABSTRACT Especially by the influx of the "reasonable length of the proceeding" principle – attached to the commitment to ensure "means to guarantee the speed of its proceedings" – has been proposed a renewal of the Brazilian civil procedure by a code, consecrating the contemporary posture of the courts. Once the abstract criticism of the Brazilian appeal system was refused, this dissertation analyzes the reformulations of this segment of procedural systematic, its purpose and conditions of possibility of state jurisdiction. Guided by the general theory of recourses and the concern in reaching a post-positivist methodology, the work enters the political and constitutional discussion of legal doctrine, questioning the democratic price of the procedure remedies deletions. In the middle of the rummage, understood the significance of the appeal system institutes, put into question proposals as the adoption of filters, repetitive demands resolution and a Brazilian model of precedents. Therefore, as a backdrop, the study intends to expose the limits of systematic downsizing of recourses. Keywords: civil procedure. appeal. reasonably. LISTA DE SIGLAS CDC Código de Defesa do Consumidor CF Constituição Federal CNJ Conselho Nacional de Justiça CPC 1939 Código de Processo Civil de 1939 CPC 1973 Código de Processo Civil de 1973 CPC 2015 Código de Processo Civil de 2015 ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EI Estatuto do Idoso KapMuG Kapitalanleger-Musterverfahrensgesetz – Lei Alemã do “Procedimento- Modelo” para as demandas do Mercado de Capitais IRDR Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas LACP Lei da Ação Civil Pública LAP Lei da Ação Popular LIA Lei de Improbidade Administrativa LMS Lei do Mandado de Segurança LR Lei dos Recursos PEC Proposta de Emenda Constitucional PL Projeto de Lei (da Câmara dos Deputados) PLS Projeto de Lei do Senado Federal RITJSP Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TRF Tribunal Regional Federal TRT Tribunal Regional do Trabalho SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11 Apresentação e justificativa .......................................................................................... 11 Metodologia ................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 A RAZOABILIDADE DO SISTEMA RECURSAL BRASILEIRO .... 14 1.1 Considerações prévias sobre análise estatística e a razoável duração dos processos ........................................................................................................... 15 1.2 O código e a “constitucionalização” do processo civil brasileiro........................... 18 1.3 O código e a racionalização (ou razoabilização) do sistema recursal .................... 23 1.4 A natureza dos recursos e a proposta de dotar o sistema recursal de razoabilidade .......................................................................................................... 27 1.5 O conceito de “razoável” no direito e a “razoável duração do processo” ............. 30 1.6 O devido processo legal como direito fundamental: embate de predileção entre princípios constitucionais ....................................................................................... 32 1.7 Considerações sobre a eficácia da decisão judicial ................................................ 34 CAPÍTULO 2 O RECURSO E A RAZOÁVEL PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ... 37 2.1 Dialeticidade do processo por meio dos recursos ................................................... 37 2.2 Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional .............................................. 40 2.3 Engessamento da atividade judicante e da potencialidade hermenêutica ............. 42 2.4 O Estado juiz, o Estado parte e o tratamento (anti)isonômico .............................. 47 2.5 O compromisso constitucional com a formação da coisa julgada e sua relativização ............................................................................................................ 50 2.6 Responsabilidade civil do Estado pelo erro das decisões judiciais ........................ 54 2.7 Implicações da supressão de recursos .................................................................... 56 CAPÍTULO 3 OS MEIOS GARANTIDORES DA CELERIDADE DE TRAMITAÇÃO DOS PROCESSOS E A RAZOÁVEL ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS ................................................................................. 61 3.1 Tratamento da gestão processual com pretensões democráticas ........................... 62 3.2 Os tribunais e sua potestatividade à luz do CPC 2015 ........................................... 65 3.3 A cultura jurisprudencial brasileira e a atuação manietada da jurisdição .......... 70 3.4 Um sistema sui generis de precedentes ................................................................... 73 3.5 A adoção de filtros recursais ................................................................................... 78 3.6 Técnicas de uniformização do entendimento jurisprudencial ............................... 82 3.7 O incidente de resolução de demandas repetitivas e o objetivo de celeridade ...... 86 CAPÍTULO 4 OS LIMITES DO REDIMENSIONAMENTO SISTEMÁTICO DOS RECURSOS........................................................................................... 94 4.1 A gradativa supressão de recursos no processo civil brasileiro............................. 96 4.2 Incompreensão e desmantelamento da tutela coletiva ........................................ 102 4.3 O paradoxo da hipertrofia das cortes no Brasil e a eficácia do sistema recursal 105 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 110 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 113 11 INTRODUÇÃO Apresentação do tema e justificativa A relação entre “o recurso e o razoável” é polêmica. Para muitos, uma relação antitética e/ou antiética, sendo extremamente complexo definir o que seja o “razoável”, termo deveras abstrato e subjetivo, mas bem fácil identificar na morosidade da Justiça (instituição) a sua ausência. Frequentemente, ao repensar o acesso à Justiça, os estudiosos do direito processual civil se arvoram em soluções legislativas para amenizar o tempo do processo, bastando notar que a preocupação com a morosidade foi alçada ao status de justificativa do novo código de processo civil brasileiro – documento legislativo mais utilizado (ainda que subsidiariamente) para a consecução do devido processo legal. Aliás, no mesmo plano da previsão constitucional de que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, foi inserido um novo princípio. O princípio da razoável duração do processo (e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação). O principal vilão, tido como responsável pela morosidade e porosidade da Justiça é precisamente o recurso. É por intermédio desse prolongamento recursal que se arrastam as controvérsias submetidas ao crivo do Poder Judiciário e se promovem decisões por diversas vezes divergentes. Mesmo ao cabo do processo cognitivo empreendido pelo Estado-juiz, é possível – e bem provável – que o jurisdicionado vencedor deva aguardar a confirmação da vitória por um Tribunal, bem como é possível – e bem provável – que seja surpreendido com decisões divergentes em qualquer instância jurisdicional. Talvez por esse motivo, o sistema recursal, enquanto parte de um sistema processual, seja visto como pródigo em suas modalidades. De fato, o sistema processual é pródigo em hipóteses recursais? Parece que a resposta a essa pergunta leva a outros questionamentos, desde logo superando os jargões deterministas de uma “cultura sentencista” ou de uma “cultura litigante” brasileira. Reconhecidas as ineficiências e deficiências administrativas, bem como a rotina de juízes e servidores, é possível sustentar a reformulação do sistema recursal? Ainda que se desconsiderassem tais fatores – tomando como normal o corrente desempenho das instituições, especialmente o Poder Judiciário brasileiro – seria necessário reduzir a atividade das partes ou aumentar a atividade judicante? 12 Não, somente, insta indagar: é necessário um novo código para atender o atual momento constitucional? O sistema recursal (o que vigeu e o que há de viger) é compatível com a razoável duração do processo? Aliás, o sistema recursal é compatível ao devido processo legal? Sem prejuízo das respostas, caberia outra gama de questionamentos: existe um preço democrático razoável pela supressão de recursos? Se existente, qual é este preço? Afinal, a quê e a quem serve o prolongamento do processo? Existem “mecanismos razoáveis” para evitá-lo? Tais perguntas envolvem, ao mesmo tempo, alçadas principiológicas e detalhamentos técnicos, escorados na dogmática (tanto na superada, como na proposta) e na doutrina (tanto na pretérita, quanto na atual) e exatamente por isso merecem uma análise mais apurada. Entretanto, seria impossível ignorar o pano de fundo político que envolve o Código de Processo Civil (CPC) 2015. Este documento legislativo é uma realidade e sua promulgação não esgota – muito pelo contrário, promove – questionamentos quanto à idoneidade do sistema recursal frente ao paradigma pós-positivista, ao qual os processualistas brasileiros dizem perfilhar. Já se afirmou no passado, não sem motivo, que para fazer leis excelentes, era necessário primeiro, uma sociedade melhor1 e talvez isso sirva de consolo às imperfeições do novo código de processo civil brasileiro. Mas, exatamente por reconhecer que não vivemos em uma sociedade melhor, é preciso compreender as leis que são feitas e laçarem as críticas que possam estimular a construção de um melhor direito. Metodologia Embora o trabalho tenha adotado o panorama dogmático e doutrinário brasileiro como objeto de estudo, observaram-se as discussões legislativas do CPC 2015, especialmente em suas reiteradas remissões a experiências estrangeiras que, parcialmente importadas, levaram à construção de novas figuras processuais. Partindo de uma crítica mínima para o paradigma proposto – a de que qualquer produção pretensamente pós-positivista deve superar discricionariedades positivistas2 –, o presente trabalho verificará a qualidade e viabilidade do CPC 2015 frente à Teoria Geral dos 1 CRUET, Jean. A vida do direito e a inutilidade das leis. Salvador: Progresso, 1956. p. 19. 2 O trabalho parte da premissa de ser impossível o alcance do paradigma pós-positivista sem uma teoria estruturante do direito. Cf. MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Tradução de Peter Neumann e Eurice Avance de Souza. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2011. 13 Recursos3. O presente estudo é, portanto, contribuição à análise genética dos recursos no âmbito de sua teoria geral, identificando alterações concretas no plano legal e implicações instrumentais. Não se pretendeu o estudo pormenorizado de cada instituto, mas a sua relação com uma proposta de “constitucionalização” ou “razoabilização” do processo. Tratando-se de estudo teórico, pode-se dizer que houve utilização do método dedutivo, ressaltando-se o caráter documental, na medida em que conduzido pela leitura de material bibliográfico. Todavia, também é possível dizer que a pesquisa se arriscou ao abordar em plano hipotético-indutivo as discussões legislativas do CPC 2015. Optou-se por discorrer de forma mais ensaística, contudo, primou-se pelo compromisso com as balizas estabelecidas pela hipótese de trabalho, relacionando a realidade dogmática e o plano político em que ela está inserida. 3 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2014. 14 CAPÍTULO 1 A RAZOABILIDADE DO SISTEMA RECURSAL BRASILEIRO Pensar em processo é pensar em caminhos. E pelo simples motivo de que recurso significa tomar um caminho aparentemente já percorrido, necessariamente alongando a jornada outrora planejada, sua experiência não é agravável. Mas é inevitável caminhar por sendas já trilhadas para se corrigir o curso quando for errada a direção adotada no meio do trajeto. Um antigo e caricato adágio foi cunhado, inclusive, para servir de conformação àqueles caminhantes que, na maioria das vezes despidos da consciência de tê-lo feito, tomaram o trajeto mais longo. À conformação dos anciãos da civilização ocidental, o importante não era saber qual o caminho certo para Roma; bastaria minimamente alcançar a capital do Império Romano por quaisquer das vias que fatalmente a ela levariam. O “excesso” de vias era, então, uma solução. Parece, entretanto, que não se possa transpor a comparação ao direito, ou particularmente ao direito processual civil. O importante, aqui, é um caminho, se possível o único e o mais direto, que leve mais rápido até Roma. Tanto ao senso comum popular, como ao entendimento corriqueiro dos estudiosos contemporâneos do processo civil, nota-se uma aversão ao sistema recursal brasileiro. Fala-se, genericamente, em “prodigalidade recursal”4. O sistema recursal – evidentemente pensado para além das hipóteses recursais – é responsável, em sua existência, pela dilação do tempo cronológico utilizado na formação da coisa julgada. Mesmo as inovações legislativas promovidas no código de 19735 foram insuficientes para responder ao ímpeto reformista processual que parece ter se instalado com a inserção de um novo princípio no rol dos direitos e garantias fundamentais da Constituição6: a razoável duração do processo (artigo 5.º, inciso LXXVIII). Foi exatamente sob a perspectiva de uma duração razoável do processo – e de fornecimento dos meios que garantissem a celeridade de sua tramitação – que se encomendou um novo Código de Processo Civil7, fomentando esperança em dotar o processo de maior 4 Com essas palavras, FUX, Luiz. O novo processo civil. In: ______. (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 11. 5 BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 17 jan. 1973. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2015. 6 Id. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2015. 7 BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2015. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 15 razoabilidade. Para tanto, buscou-se a reformulação da prática dos tribunais e limitação dos recursos cabíveis8. As regras sobre os processos nos tribunais e os meios de impugnação das decisões judiciais foram deslocadas das tratativas do processo de conhecimento para um livro específico, constituindo o Livro III do CPC 2015. Mas alterar topograficamente os institutos e buscar sua restrição não desobriga – pelo contrário, instiga – um olhar afeto à teoria geral dos recursos9, tendo-se em conta não serem inovadoras as ideias do que é considerado novo (novas disposições legais), bem como a consciência de que onde houve a mudança muito ainda se pode mudar10. 1.1 Considerações prévias sobre análise estatística e a razoável duração dos processos A composição dos elementos estatísticos para a síntese de um novo processo civil é, de fato, um caminho louvável, ainda mais por assumir a revisão constante (artigo 1.069 do CPC 2015) em termos de mensuração de eficiência11. Entretanto, mensurar a eficiência efetivamente compreende certa complexidade ínsita à realização da “ciência social aplicada” do direito, ainda mais no tocante ao aspecto qualitativo (geralmente não auscultado), não bastando a mera transposição de elementos algébricos. Muito embora reconheça seu valor e se possa fazer alusão a números, o presente trabalho não se dedicou à análise estatística. A sua abordagem mínima é realizada antes de adentrar em análise da sistemática recursal, pois considera importante noticiar que tanto a inserção do princípio da razoável duração do processo no rol das garantias constitucionais, como qualquer alteração de disposições processuais dele pretensamente decorrentes, também 8 É certo que o anteprojeto de código apresentado ao Senado Federal sofreu diversas alterações já nesta própria casa (PL 166/2010), bem como seu trâmite junto à Câmara dos Deputados (PL 8.046/2010) possibilitou maior oxigenação e tempo para debate ao longo de quatro anos. Todavia, ainda com nova redação ao ser promulgado (Lei 13.105/2015), a concepção e gestação legislativa não esgotaram – e nem poderiam assim pretender – as críticas da doutrina. Buscou-se um consenso que não elide eventuais inconstitucionalidades congênitas e necessárias interpretações conforme a norma constitucional que serão suscitadas em sua vigência. 9 Como referencial teórico do presente trabalho, ver NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2014. 10 MIRANDA, Francisco Pontes de. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 1999. v.1. p. 20: “Ainda onde o Direito mudou muito, muito de há-de inquirir do que não mudou. O direito muda muito onde em muito deixou de ser o que era.” 11 Cf. BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 702. 16 buscam se justificar em termos estatísticos – principalmente aliando aspectos quantitativos ao fator tempo como imperativos do inevitável modelo capitalista de sociedade12. Não por outro motivo, há preocupação acadêmica com a evolução histórica do princípio da razoável duração do processo e a correspondente preocupação com a política judiciária brasileira – relação que vem sendo tratada como standard de superação de uma “crise” vivenciada pela Justiça (instituição). Atingiu-se um nível cíclico de questionamento sobre o que é a causa e o que é o efeito, discussão estéril e incapaz de responder se o Judiciário é moroso porque está em crise ou está em crise por ser naturalmente moroso13. A “crise” deve ser observada, não como anomalia, mas como o que realmente é: “contradição e conflito”14. Pode ser sugerido até mesmo que contradição e conflito a qualificarem determinado quadro como crítico (de qualquer segmento do direito e de sua efetivação pelo Estado), relacioná-lo-ia à crise do próprio Estado contemporâneo15. Todavia, para além das discussões mais abrangentes, que decorrem das angústias mais inquietantes da pós-modernidade, e eventuais correlações que se façam à economia de mercado, ao trabalho importa apenas ressaltar que a análise quantitativa e eficientista grassou relevância em sede de política legislativa – não sendo, contudo, exclusividade do contexto político-processual brasileiro16. Ainda que refutada a justificativa política legislativa, o estudo do quadro estatístico em que se encontra o Poder Judiciário tem o mérito de observar a questão avante às certezas anedóticas. E, de fato, o volume de demandas por magistrado pode influenciar na qualidade e eficácia dos provimentos jurisdicionais, sendo aconselhável mensurar a realidade dos 12 “Já no aspecto econômico, quanto mais lento o processo, maiores as incertezas. E quanto maiores as dúvidas, menores os investimentos no país. Sabido que organismos internacionais (Banco Mundicial, BID) mensalmente divulgam índices de risco dos mais diversos países do mundo, principalmente os da América Latina. No cálculo desses índices, primordial é o ‘fator Judiciário’, analisado tanto sob o prisma da coerência das decisões, quanto sob o da tempestividade da tutela.” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Os reflexos do tempo no direito processual civil. Revista da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, ano 4, v. 1, p. 63, jan./jun. 2003). 13 Cf. FONSECA, Juliana Pondé. Problemas estruturais do Judiciário brasileiro: por um processo civil factível. 2013. 184 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013. 14 PRADO, Rebeca Makowski de Oliveira. Política judiciária e razoável duração do processo: democratização institucional e balizas judiciárias. 2013. 203 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2013. p. 27: “Não fora essa acepção de crise do Judiciário, pareceria injustificado perquirir por ampliação de acesso ao direito e à justiça, desde uma compreensão do direito como mediação de conflituosidades, a suscitar demanda por democratização institucional e pleito por maior comprometimento do Poder Judiciário com a efetivação de direitos humanos – cuja inefetividade e baixa executividade apresentaram-se como fonte de crise, verdadeiros contra-exemplos.” 15 Especificamente sobre a crise do estado pós-moderno, ver CHEVALIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Traduzido por Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009. 16 Sobre o mesmo fenômeno na Itália, ver MONTELEONE, Girolamo. Il processo civile in mano al governo dei tecnici. Judicium, Palermo, p. 1-3, 16 lug., 2012. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2014. 17 escaninhos nos Tribunais. Mas o problema ocorre quando a prestação jurisdicional passa a ser vista meramente por um enfoque de consumo e o Estado confunde seu dever de prestação jurisdicional com a prestação de um serviço jurisdicional. Fala-se em performance de rendimento do Poder Judiciário e aval do princípio informativo da economia processual, precipuamente no plano dos recursos, conduzindo a Justiça na realização célere de sua atividade jurisdicional. Identificar com precisão na razão abstrata da lei o que se entende por “rendimento” é tarefa árdua, ainda que se almeje simplificá-la17. A partir dos dados coletados, os Tribunais brasileiros passaram a estabelecer programas de metas, tal como realizado pela iniciativa privada na produção industrial. E, de fato, a implicação desses programas demonstra o saldo quantitativamente positivo de alternativas organizacionais e administrativas. Há inclusive aferição específica da produtividade de cada magistrado18. Mas a dúvida permanece quanto à qualidade da prestação jurisdicional e, talvez, mesmo uma leitura quantitativa tendenciosa não poderia conceder maior relevância a alguns dados coletados. Analisem-se, por exemplo, os números da Justiça Federal no primeiro ano de gestação do novo CPC na Câmara dos Deputados (2011)19: a distribuição aritmética pátria era de 1 magistrado por 100.000 habitantes, sendo que o TRF da 1ª Região contabilizava 529 cargos de magistrados (27 no segundo grau), enquanto o TRF da 3ª Região dispunha de 477 cargos de magistrados (40 no segundo grau). A observar dados da Justiça Estadual naquele mesmo período20, considere-se, também, o índice de reforma das decisões: nos juizados especiais foi apontada a média de 34% no contexto nacional, oscilando de 81,3%, no Estado do Espírito Santo, e 55,2%, em Santa Catarina, à média carioca de 33,2% e mineira de 19,6%. Pari passu, o índice nacional de reforma das decisões de 1º grau no contencioso ordinário foi de 32,8%, alcançando 76,5% em Goiás e 33,3% em São Paulo. 17 WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. O CPC projetado, os recursos e o maior rendimento do processo. In: OLIVEIRA, Bruno Silveira de et al. (Coord.). Recursos e a duração razoável do processo. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013. p. 477: “Quando menciono – e tenho mencionado com frequência – a necessidade de que o processo renda, quero referir-me a que ele deve ser efetivo, de preferência não muito longo, e resolver de vez a controvérsia subjacente aos autos.” 18 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Gestão Estratégica: metas: metas 2009: meta 2. Brasília, DF, 2009. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2013. 19 Id. Justiça em números 2012: Justiça Federal 2012: ano-base 2011. Brasília, DF, 2012. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2013. Id. Justiça em números 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2013. 20 Id. Justiça em números 2012: Justiça Federal 2012: ano-base 2011. Brasília, DF, 2012. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2013. 18 Ora, se não há magistrado suficiente para julgar as demandas, é evidente que um processo demore em primeira e segunda instância. Ademais, se existe considerável índice de reforma das decisões em aproximadamente um terço do total, tem-se um dado incompatível com a simplória proposta de redução das hipóteses recursais. Como suscitado preliminarmente, a estagnação do Judiciário é fenômeno complexo e a tradução estatística uma leitura delicada – muitas das vezes desvinculada das reais motivações às alterações legislativas, várias delas já cogitadas ou implementadas, mas posteriormente descartadas. O mero corte de um nó górdio é conduta do vencedor que ignora as honestas tentativas anteriores de desatar o desafio proposto. Portanto, uma alteração na legislação processual que se pretenda democrática, ao tomar por base as observações estatísticas deve também considerar honestamente a complexidade e o volume das demandas para além de um utilitarismo raso. A ponderação numérica não deve entregar, à lógica utilitarista, a solução dos problemas de volume e mora da atividade jurisdicional, opção que assumiria o risco de desconsiderar o objetivo estatal em proporcionar um devido processo legal. 1.2 O código e a “constitucionalização” do processo civil brasileiro Questionada a “justificativa eficientista”, o trabalho também não poderia deixar de questionar a “justificativa constitucional” de um novo código. A moderna codificação do direito brasileiro pode ser considerada influência do exegetismo e do pandectismo alemão, com vistas à racionalização do direito21. A própria conceituação de código elogia a lógica e relativa “definitividade” da regulamentação jurídica e, assim, reafirma a ideia de estabilidade do Direito produzido pelo Estado (ideal constante dos códigos de processo civil de 1939 e de 1973). A promulgação de um código (âmbito do dever ser) persegue certa previsibilidade da manifestação normativa diante da realidade (âmbito do ser), assim como pretende a durabilidade da regulamentação jurídica22. Discutir a viabilidade de um novo código é discutir 21 STRENGER, Irineu. Da dogmática jurídica: contribuição do conselheiro Ribas à dogmática do Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Ed. USP, 1964. p. 101: “A tendência codificadora exprime, pois, um preocupação muito a o gosto do século XIX, época em que a idéia de código se coordenou históricamente com o individualismo econômico, que, nesse mesmo século, celebrou o seu triunfo e teve como postulado e como efeito, a procura de um bem-estar material cada vez maior através de um mais completo domínio técnico das fôrças da natureza.” 22 Fazendo uma pequena alusão a parâmetro de durabilidade, podemos mencionar a vigência da ZPO alemã, vigente desde 1879, reformada excepcional e pontualmente desde então. 19 a sua qualidade institutiva, sua perspectiva de longevidade23. Ultrapassado o movimento codificador em mais de um século, posteriormente aos períodos de guerras e ditatoriais, observou-se outro movimento, fomentador de novos textos constitucionais. Dos países europeus ibéricos, a tendência então intitulada neoconstitucionalista foi exportada para países de modernidade tardia como os sul-americanos. Essa tendência neoconstitucionalista não se resumiu à elaboração de novos textos constitucionais, mas suscitou alteração na postura legislativa em nível infraconstitucional, assim como no posicionamento doutrinário e jurisprudencial24. E sob o signo de neoconstitucionalista, a adoção de novas posturas jurisdicionais também mereceu críticas25. Assim, ao fenômeno da constitucionalização tardia, independentemente do título que lhe seja atribuído, deve-se reconhecer a maior preocupação com o alcance de um Estado Democrático de Direito (ou sua intenção), bem como a força normativa da Constituição de cariz compromissório. Ao mesmo tempo, a intitulação da atual quadra da ciência jurídica parece visar ao alcance de um novo paradigma – da mesma forma em que buscada a novel designação para a influência das constituições inovadoras, também é sugerida a superação do positivismo. Todo esse parêntesis contextualizador é necessário, posto que o mais novo CPC pretende, 23 STRENGER, Irineu. Da dogmática jurídica: contribuição do conselheiro Ribas à dogmática do Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Ed. USP, 1964. p. 104: “Em 1899, porém, Inglês de Souza, fundado e inspirado na polêmica travada por Savigny, que em objeção à Thibaut, sustentava que nem todas as épocas são próprias para a codificação, defendia a tese segundo a qual a nação brasileira não estaria preparada para receber um código civil, porque deveria ele refletir o Direito nacional no seu estado permanente e estático, visto que um código é feito para durar, enquadrando a civilização de um povo sem lhe tolher o progresso resultante da evolução das suas tendências especiais. E afirmava aquêle notável jurisconsulto: ‘Um tal organismo jurídico pressupõe, portanto, uma constituição definitiva e assente, sancionada por largo período de experiência, de calma, de florescência, de paz interna e externa em que a jurisprudência possa livremente fazer colheita, exame e aproveitamento dos elementos espontâneos que se hão de ir incorporando ao Direito’.” 24 STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 60: “Em síntese, o fenômeno do (neo)constitucionalismo proporciona o surgimento de ordenamentos jurídicos constitucionalizados a partir de uma característica especial: a existência de uma Constituição ‘extremamente embebedora’ (pervasiva), invasora, capaz de condicionar tanto a legislação como a jurisprudência e o estilo doutrinário à ação dos agentes públicos e ainda influenciar diretamente relações sociais.” 25 “[...] passadas duas décadas da Constituição de 1988, e levando em conta as especificidades do direito brasileiro, é necessário reconhecer que as características desse ‘neoconstitucionalismo’ acabaram por provocar contradições patológicas que, em nosso contexto atual, acabaram para contribuir com a corrupção do próprio texto da Constituição. Ora, sob a bandeira do ‘neoconstitucionalista’ defendem-se ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, como neoprocessualismo e neopositivismo. Tudo porque, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdição responsável pela incorporação dos ‘verdadeiros valores’ que definem o direito justo (vide, nesse sentido, as posturas decorrentes do instrumentalismo processual).” Ibid., p. 36. 20 igualmente, filiar-se ao pós-positivismo26 e “constitucionalizar”27 o direito processual brasileiro. Ao presente trabalho, tem-se que o pós-positivismo consiste na distinção entre texto e norma, na compreensão das particularidades do caso concreto conjuntamente à compreensão da norma, superando o paradigma silogístico das sentenças judiciais28. No pós-positivismo, há o reconhecimento da criatividade jurisdicional na compreensão da norma, mas não a substituição de uma razão abstrata da lei pela simples vontade do intérprete29. É a superação, mas não a negação do positivismo30. Portanto, tem-se que quaisquer pretensas filiações sérias a um neoconstitucionalismo ou a um pós-positivismo fixam, ao menos, o compromisso com a superação do positivismo clássico31. O direito realizado à luz do pós-positivismo valoriza a realidade do caso 26 FUX, Luiz. O novo processo civil. In: ______. (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 13: “O estágio atual da Ciência Jurídica Brasileira insere-se na era do pós-positivismo antecedida do jusnaturalismo que pregava um direito natural e imutável e do positivismo, cuja ótica enxergava o justo na própria lei. O exsurgimento dos princípios maiores, inseridos na Carta Federal de 1988 introduziu o sistema jurídico brasileiro no positivismo moderno que não mais se reduz a regras legais, senão, e, principalmente, compõe-se de princípios maiores que representam o centro de gravidade de todo o sistema jurídico”. 27 TUPINAMBÁ, Carolina. Novas tendências de participação processual – o amicus Curiae no anteprojeto do novo CPC. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 109. “Assim, a constitucionalização do Direito Processual tem desafogado a angústia de um limitado entendimento jurídico que se mostra atolado e inútil para relações alargadas que se espraiam em diferentes tipos de possibilidades e cenários, autorizando novas perspectivas de participação no processo.” 28 Cf. ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2011. p. 68. 29 “[...] se o modelo de direito sustentado por regras está superado, o discurso exegético-positivista, ainda dominante no plano da dogmática jurídica praticada cotidianamente, representa um retrocesso, porque, de um lado, continua a sustentar discursos objetivistas, identificando texto e sentido do texto (norma); e, de outro, assenta-se nas (diversas), teorias subjetivistas, a partir de uma axiologia que submete o texto à subjetividade assujeitadora do intérprete, transformando o processo interpretativo em uma função dualística do fato à norma, como se fato e direito fossem coisas cindíveis e os textos (jurídicos) fossem meros enunciados linguísticos. Esse sincretismo é inaceitável.” (STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 66). 30 “O afastamento dos métodos do positivismo, compreendidos como absolutos, não precisa levar ao seu banimento da ciência jurídica; é mais recomendável reconhecê-los na sua legitimidade relativa e utilizá-los, no âmbito dessa relativização, na aplicação do direito com intenção racionalizadora.” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Tradução de Peter Neumann e Eurice Avance de Souza. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2011. p. 77). 31 “Portanto, pós-positivismo deve ser entendido com o sentido de superação e não (mera) continuidade ou complementaridade. Pós-positivismo será compreendido, nesse contexto, no interior do paradigma do Estado Democrático de Direito instituído pelo constitucionalismo compromissório e transformador social surgido no segundo pós-guerra, que é aquilo que denomino de Constitucionalismo Contemporâneo.” (STRECK, 2011, op. cit., p. 64). 21 concreto32, posto que a manifestação de um ordenamento constitucionalizado se dá na concretização normativa ciente dos ditames constitucionais. Cobra-se a coerência da reforma legislativa e da atividade interpretativa. Aliás, frise-se que a maior preocupação do pós- positivismo é para com o acesso hermenêutico do Direito33. Agora, cogitar a “constitucionalização do processo civil” meramente por força de um novo código pode se apresentar pretensioso demais. Inicialmente, porque o CPC 1973 (alcunhado como código Buzaid), independentemente da posição política pessoal de seu elaborador e da época de promulgação (ditadura militar), foi recepcionado pela ordem jurídica constitucional. E mesmo com sucessivas reformas balizou o sistema processual brasileiro até o início de 2016. Ora, os anseios democráticos compactuados em 1988 induziram a questionamentos e revalidação dos regramentos infraconstitucionais e edição de novas leis àquela época, bem como a posturas administrativas e jurisdicionais coerentes que nem por isso tingiram o CPC 1973 como inconstitucional. É certo, ainda, que a validade constitucional das normas vigentes foi questionada por premissa-discurso34 legitimadora das reformas legais introduzidas no ordenamento pós-constituinte, baseando-se na principiologia consagrada no texto magno. Mesmo perante tal questionamento, não há como desconsiderar que o código sobreviveu e, durante todo esse tempo, foi considerado constitucional. Em segundo lugar, considerando o direito processual civil em sua integralidade (leia- 32 “[...] o novo paradigma de direito instituído pelo Estado Democrático de Direito proporciona a superação do direito-enquanto-sistema-de-regras, fenômeno que (somente) se torna possível a partir das regras (preceitos) e princípios – produzidos democraticamente – introduzidos no discurso constitucional e que representam a efetiva possibilidade de resgate do mundo prático (faticidade) até então negado pelo positivismo (veja-se, nesse sentido, por todos, o sistema defendido por jusfilósofos como Kelsen e Hart). Assim, é possível dizer que esse mundo prático – sequestrado metafisicamente pelas diversas posturas epistemo-metodológicas – está centrado no ‘teatro do sujeito autocentrado e desdobrado sobre palavras possíveis, coerentes, sensivelmente concebíveis’, proporcionando um ‘grande exorcismo da realidade’, mantendo-a distanciada, ‘nada querendo saber dela’.” (STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 62. (grifo do autor)). 33 “O acesso hermenêutico ao direito permite a superação de uma visão obsoleta do positivismo legalista para a qual o law in the books já seria a norma, prontamente disponível a ser aplicada na solução de um caso jurídico mediante silogismo. A lei (texto normativo) em si não contém as normas jurídicas, que são frutos de um complexo processo de concretização. Os textos normativos possuem apenas virtualmente o direito, ou seja, textos de normas enquanto pontos de partida do trabalho jurídico prático.” (ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2011. p. 62). 34 Por premissa-discurso, mesclando aspecto filosófico e cunho político da Constituição, compreende-se o texto constitucional como instrumento legitimador das propostas reformas infraconstitucionais. Nesse aspecto, a legislação até então produzida deve ser revista para se descartar ou substituir aquilo que não lhe for compatível, bem como harmonizar ao teor constitucional. Sobre o processo de recepção da legislação infraconstitucional ao texto de 1998 já se afirmou que a “[...] este processo é essencial que o aplicador do direito faça uso de uma hermenêutica essencialmente constitucional, extraindo dos dispositivos e dos sistemas legais a melhor forma de aplicação, que é aquela que corresponde aos paradigmas traçados pelo texto Magno.” (MAZZEI, Rodrigo. Os embargos de declaração e o ‘princípio da duração razoável do processo. In: OLIVEIRA, Bruno Silveira de et al. (Coord.). Recursos e a duração razoável do processo. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013. p. 469). 22 se: para além do código), alterações significativas vêm sendo realizadas reiteradamente no intuito de harmonizá-lo ao escopo de acesso à justiça, não se esgotando em reformas codicistas. Ao fito de ilustrar, seriam elencadas diversas produções legislativas, tais como o estatuto consumerista35, a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais36, o Código Civil de 200237 e a expressiva “Reforma do Judiciário”38 – essa última responsável pela inserção do princípio da razoável duração dos processos no rol de garantias e direitos fundamentais da Constituição, o que conduziu a um “ímpeto constitucionalizador”. Esse ímpeto considerado constitucionalizador pode ser bem visualizado nos Pactos Republicanos, documentos de nítido jaez ideológico39, cuja consequência foi a encomenda do novo CPC40. As propostas apresentadas no PLS 166/201041 foram amadurecidas no PL 35 BRASIL. Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013. 36 Id. Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 set. 1995. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013. 37 Id. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2002. p. 1. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013. 38 Id. Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 31 dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013. 39 Roberto Lyra Filho, em seu ensaio filosófico sobre compreensão do direito, define ideologia à sua maneira: “A ideologia, portanto, é uma crença falsa, uma ‘evidência’ não refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade. Não vemos os subterrâneos de irreflexão em que a fomos buscar e, ao contrário, ela nos trás a ilusão de uma certeza tal, que nem achamos necessário demonstrá-la. Raciocinamos a partir dela, mas não sobre ela, de vez que considerá-la como objeto de reflexão e fazer incidir sobre aquilo o senso crítico já seria o primeiro passo da desideologização. Por isso mesmo, aceitamos, de bom grado, a troca de ideias, mas suportamos com dificuldade um desafio às crenças. Quem remexe nelas arrisca-se a receber um xingamento ou um coice”. Mais adiante, adverte que “[...] Apesar de tudo, as ideologias jurídicas encerram aspectos particularmente interessantes, além de traduzirem conquanto deformados, elementos de realidade. Porque distorção é precisamente isso: a imagem alterada, não inventada. O direito, alongado ou achatado, como reflexo numa superfície côncava ou convexa ainda apresenta certas características reconhecíveis. Resta desentortar o espelho, torná-lo, tanto quanto possível, plano e abrangedor, dentro das condições atuais de reexame global.” (LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 19-26). 40 O primeiro Pacto Republicano data de 2004 e o segundo de 2008. Dentre as propostas desse último, encontram- se o “acesso universal à Justiça, especialmente dos mais necessitados” e o “aprimoramento da prestação jurisdicional, mormente pela efetividade do princípio constitucional da razoável duração do processo e pela prevenção de conflitos”. Afora tais propostas genéricas, restou também assegurada, em seu tópico 2.6, a revisão de normas processuais, visando a agilizar e a simplificar o processamento e julgamento das ações, coibir os atos protelatórios, restringir as hipóteses de reexame necessário e reduzir recursos. Cf. BRASIL. II Pacto Republicano de Estado por um sistema de justiça mais acessível. Brasília, DF, 13 abr. 2009. Disponível em: . Acesso em: 4 out. 2012. 41 SENADO FEDERAL. Quadro comparativo entre a redação original do Projeto de Lei do Senado n. 166, de 2010, o Código de Processo Civil em vigor e as alterações apresentadas no substitutivo do Senador Valter Pereira. Brasília, DF, 2010. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc45.htm http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/PactoRepublicano.pdf 23 8.046/201042 e receberam redação final com a Lei 13.105/2015. Entretanto, ao presente trabalho – pelo seu recorte temático – não convém adentrar no mérito da delegação do poder conferida ao legislador ordinário, nem constatações de ordem cratológica43 quanto ao processo legislativo e ao Poder Constituinte Derivado. É pertinente, aqui, observar a validade constitucional de qualquer norma infraconstitucional vigente44, bem como a sua viabilidade em termos empíricos. Afinal, as alterações legais projetadas e introduzidas nas normas processuais civis comportam um reestudo e repercutem em efervescente debate da comunidade jurídica em prol dos jurisdicionados. E não somente, porque também incumbe ao processualista conhecer as intenções atribuídas ao princípio da razoável duração dos processos – este responsável por induzir a elucubrações e a discussões polêmicas para alteração na sistemática processual, sobreviventes ao processo legislativo do CPC 2015 e ao texto promulgado45. 1.3 O código e a racionalização (ou razoabilização) do sistema recursal A ideia por detrás de um código é o alcance de racionalidade na concepção e na concretização do direito. A proposta de um novo código, portanto, visa à racionalização, como 42 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão especial destinada a proferir parecer ao projeto de lei nº 6.025, de 2005, ao projeto de lei n. 8.046, de 2010, ambos do Senado Federal, e outros, que tratam do “Código de Processo Civil” (revogam a lei n. 5.979, de 1973). Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013. 43 Em sua doutrina constitucional, o jurista Karl Loewenstein chama atenção para a complexa assimilação do fenômeno do poder como ciência e, ainda, sobre utilização da “cratologia” – ciência do poder – como ferramenta de trabalho: Cf. LOEWENSTEIN, Karl. Verfassungslehre. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1959. p. 5. 44 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002. 45 A proposta de dilatação da vacatio legis ilustra com nitidez o não esgotamento das inovações polêmicas. Esta sugestão compartilhada pelos órgãos de cúpula brasileiros concebe a vacatio legis como tempo para reforma da legislação recentemente aprovada. Curiosamente, buscam disposições melhores (aos órgãos de Cúpula) na seara recursal. Cf. AZEVEDO, Reinaldo. Por que adiar a vigência do novo Código de Processo Civil. Ou: Logo STF e STJ viram tribunais de pequenas causas. Disponível em:. Acesso em: 8 jul. 2015. 24 se o ordenamento existente (leis vigentes), não fosse racional o suficiente46. Em que pese a sistemática processual ser única, especificamente quanto à regulamentação dos meios de impugnação das decisões judiciais, é comum a referência a um sistema recursal. A alegada falta de racionalidade desse (sub)sistema já tem seu lugar na Exposição de Motivos do CPC 1973, quando o então Ministro Alfredo Buzaid, encarregado da elaboração do anteprojeto, acreditou ter-lhe conferido maior simplificação47. Todavia, ao que parece, tal como se manteve até 2015, o sistema recursal favoreceria a morosidade e também não estaria compatível com o processo civil contemporâneo48. Contudo, consoante sugerido anteriormente, o presente trabalho acredita que um ataque genérico ao sistema recursal carece de maior detalhamento e não consegue, por isso, solucionar o problema da morosidade – como de resto também não conseguirá a nova redação carreada pelo CPC 2015. Logo de início, observa-se que pensar em racionalização de um sistema pode até ser considerada uma contradição em termos. Isso porque uma sistematização, especialmente por seu aspecto ordenador, visa ao alcance da racionalidade (fundada na realidade). Assim, a proposta de um novo código convive com o fato de que um esforço pretérito de ordenação já foi realizado. Mas o sintoma de obsolescência de um novo sistema pode advir também quanto à falência de outra característica: a unidade. Existem plúrimas singularidades de um sistema 46 Aqui vale lembrar a advertência e dúvida inicial do genuíno pensamento cartesiano, comumente considerado referencial da codificação oitocentista francesa: “Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam.” (DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de Mariana Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 5). 47 BUZAID, Alfredo. Exposição de Motivos. Disponível em: . Acesso em:28 jul. 2015. 48 Dentre as razões da morosidade judicial, aponta-se a “[...] prodigalidade do sistema recursal brasileiro, como consectário da adoção do modelo francês, de reapuração da juridicidade da decisão através de inúmeros recursos, o que segundo razões jusfilosóficas e históricas, tranquiliza a opinião pública, posto falíveis os magistrados nas suas apreciações judiciais. Sob enfoque dinâmico, os dados estatísticos comprovam o número excessivo de recursos utilizados, forjando-se um quadro inaceitável à luz dos sistemas comparados. A Corte Suprema Americana, além do poder de eleição das impugnações que vai julgar, ocupa-se ‘anualmente de menos de uma centena (100) recursos, ao passo que os Tribunais Superiores do Brasil têm no seu acervo 250.000 (duzentos e cinquenta mil) recursos para julgamento.” (FUX, Luiz. O novo processo civil. In: ______. (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 11). 25 (que não poderão ser consideradas desconexas) a reclamarem princípios fundamentais ao entorno dos quais devam gravitar49. Exatamente sobre a ênfase em um princípio fundamental, recentemente alçado ao status constitucional (artigo 5.º, inciso LXXVIII da CF), é que se constrói a proposta de uma nova codificação. Nela, a funcionalidade dos recursos e sua vinculação ao princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (entendido como “acesso à justiça”) é questionada, em nível constitucional, pelo princípio da razoável duração dos processos (entendido como “celeridade”). Talvez se possa intuir que o “razoável”, agora, é o novo “racional”... Os olhos dos processualistas brasileiros se voltam atropicamente às alterações da sistemática processual centro-europeia, facilmente se identificando, por exemplo, com a realidade de preocupação italiana tributada ao alto volume de recursos interpostos às suas Cortes50. Ao fim e ao cabo, talvez sejam encontradas as mesmas justificativas – as quais não passarão ilesas às críticas aqui compartilhadas. Ademais, a crença na salvação mediante importação de soluções estrangeiras também tem o prejuízo de desconsiderar a cultura processual nacional. Sem apego a chauvinismo ou ufanismo, há que se reconhecer a identidade processual brasileira e suas próprias intenções e desilusões passadas, sob pena de repetir erros. O processo civil brasileiro, que ganhou maiores contornos com o Regulamento 737 de 1850 (lei própria de organização judiciária e processo civil), assistiu à estadualização dos códigos processuais com o fim do regime monárquico (1891), no prelúdio do sistema republicano que se estenderia até o Estado Novo51. Na Era Vargas, em contexto ditatorial (1939), houve a federalização do regramento processual, assim como se deu o 49 “Há duas características que emergiram em todas as definições [de sistema]: a da ordenação e a da unidade; elas estão, uma para com a outra, na mais estreita relação de intercâmbio, mas são, no fundo, de separar. No que respeita, em primeiro lugar, à ordenação, pretende-se, com ela – quando se recorra a uma formulação muito geral, pra evitar qualquer restrição precipitada – exprimir um estado de coisas intrínseco racionalmente apreensível, isto é, fundado na realidade. No que toca à unidade, verifica-se que este factor modifica o que resulta já da ordenação, por não permitir uma dispersão numa multitude de singularidades desconexas, antes devendo deixá-las reconduzir-se a uns quantos princípios fundamentais.” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. p. 12-13). 50 Essa constatação será melhor elucidada em capítulo específico, especialmente quanto aos filtros cogitados para o sistema recursal. 51 Após o período da República Velha, para além de superar a alternação do poder entre os estados de São Paulo e Minas Gerais (república café-com-leite),o governo Vargas introduziu mudanças paradigmáticas constitucionais, concentrando o poder da União, evidentemente um reflexo do regime ditatorial. 26 rejuvenescimento nos “anos de chumbo” (1973)52. A seu turno, o CPC 1973 assistiu à promulgação da CF 1988, cujo texto preservou a competência federal para elaboração das normas processuais (artigo 22, inciso I da CF). Desde a década de 90, sofreu pontuais alterações, as quais nitidamente desfiguraram-lhe estética e procedimentos originais. Aqui, o principal ponto de críticas ao código é o estado de sua coesão, como se essa coubesse urgentemente ao legislador, em detrimento da tarefa hermenêutica de integrar e, nesse ato, interpretar e concretizar a norma. Conforme observado, o propósito da comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto de NCPC ao Senado Federal no ano 2010 teve o fito de cumprir “promessa constitucional da razoável duração dos processos”53, como se norma programática fosse54 ou como se o processo civil constitucionalizasse. Com frequentes remissões ao aforismo cunhado por Rui Barbosa em sua oração aos moços – para a qual, uma Justiça atrasada é, verdadeiramente, injustiça qualificada e manifesta55 –, a ideologia processual dominante visou declaradamente criar mecanismos de redução do número de demandas e recursos que tramitam no Judiciário56. A ideia é a de que o sistema processual inefetivo causa a falência de todo o ordenamento. Assim, o CPC 2015 reformulou sensivelmente o sistema processual civil no que se entende por processo de conhecimento, de execução e cautelar, bem como a sua relação. Esse dado precede e repercute no recorte metodológico aqui desenvolvido e será observado na medida em que analisado o sistema recursal vigente e por viger. 52 O CPC 1973 foi promulgado à época do regime de exceção, autoproclamado como “revolucionário” e justificado na Constituição Federal outorgada em 1967 (sensivelmente emendada em 1969). 53 “A Comissão, composta pelos professores Luiz Fux (presidente), Tereza Arruda Alvim Wambier (Relatora) Adroaldo Furtado Fabrício, Humberto Teodoro Júnior, Paulo César Pinheiro Carneiro, José Roberto dos Santos Bedaque, José Miguel Garcia de Medina, Bruno Dantas, Jansen Fialho de Almeida, Benedito Cerezzo Pereira Filho, Marcus Vinícius Furtado Coelho e Elpídio Donizetti Nunes, teve como ideologia norteadora dos trabalhos a de conferir maior celeridade à prestação da justiça, no afã de cumprir a promessa constitucional da ‘duração razoável dos processos’.” (FUX, Luiz. O novo processo civil. In: ______. (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011.p.1). 54 “[...] podemos conceber como programáticas aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte, e vez de regular, direta e indiretamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.” (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p.138). 55 BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. p. 40. 56 “A Comissão [responsável pela elaboração do anteprojeto do novo CPC] atenta à sólida lição da doutrina de que sempre há bons materiais a serem aproveitados da legislação anterior, bem como firme na crença de que a tarefa não se realizaria através do mimetismo que se compraz em apenas repetir os erros de outrora, empenhou- se na criação de um ‘novo código’ erigindo instrumentos capazes de reduzir o número de demandas e recursos que tramitam pelo Poder Judiciário”. FUX, 2011, op. cit., p. 3. 27 No intuito de melhor compreender o sistema processual e as pretensões de otimizá-lo – leia-se: dotá-lo de razoabilidade –, seria ainda necessário explicitar a natureza dos recursos e o próprio conceito de razoável duração dos processos – premissas inevitáveis a qualquer investigação sobre a razoabilidade acerca do sistema recursal brasileiro. 1.4 A natureza dos recursos e a proposta de dotar o sistema recursal de razoabilidade Existem muitas conceituações de recurso e diversas teses sobre a sua natureza, em doutrina estrangeira e pátria. A intenção do trabalho não é expor cada uma delas, mas analisar o reflexo das visões mais comuns perante a proposta em dotar o sistema recursal brasileiro de razoabilidade. Basicamente, o recurso visa ao impedimento da formação de coisa julgada formal57. Por esse motivo, via de regra, a doutrina reconhece nos recursos a natureza de prolongamento da ação originária, ainda que se lhe identifiquem pretensão autônoma58. É que discussão sobre a natureza do recurso tinha o objetivo de identificá-lo como parte integrante do processo que lhe deu causa ou se constituía ação autônoma. Ao trabalho, entretanto, interessa compreender de que maneira a classificação do recurso como “prolongamento do processo” vem sendo observada e valorada. Essa visão é pouco atraente à perspectiva da razoável duração dos processos porque o prolongamento cronológico é seu maior alvo de combate. Se a demora (um dano marginal59) é o que torna a decisão do órgão ad quem mais interessante à parte, ela deve ser combatida. Mas essa visão encabrestada impede inferir outra perspectiva acerca da natureza do recurso: a de ônus imposto ao jurisdicionado. Se a parte deseja decisão mais favorável, ela 57 “Tecnicamente, o recurso apenas retira o passar em julgado, formalmente, a resolução judicial, enquanto não se procede a novo exame do negócio ou do seu tratamento: a prestação jurisdicional, de que o juiz fez oblação (não entregou), admite nova comunicação de vontade da parte ou do interessado, pelo fundamento de que não satisfez e sob a alegação de ser injusta ou infratora de regras de direito processual” A partir desse excerto da obra de Pontes de Miranda, pode-se dizer que ‘injusta’ será, precipuamente, a prestação jurisdicional desconforme ao direito material.”( MIRANDA, Francisco Pontes de. Comentários ao código de processo civil: arts. 496 a 538. Rio de Janeiro: Forense, 1999. t. 7. p. 2). 58 Cf. ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: RT, 2007. p. 35-48. 59 A expressão cunhada pela doutrina italiana é também utilizada pelos processualistas brasileiros. Sobre o tema, ver GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Os reflexos do tempo no direito processual civil (anotações sobre a qualidade temporal do processo civil brasileiro e europeu). Revista de Processo, São Paulo, n. 153, p. 99-117, nov. 2007. 28 deverá recorrer60. Talvez ainda essa natureza do recurso seja insuficiente à perspectiva contemporânea, valendo indagar: é razoável o direito do jurisdicionado em obter uma decisão mais favorável? Apenas uma terceira característica do recurso, não excludente das duas iniciais consideradas como naturezas, pode responder à pergunta por razoabilidade: o recurso é um reconhecimento da falibilidade humana pelo Estado Democrático de Direito. Se o erro da decisão do juízo a quo é o que torna a decisão do órgão ad quem mais interessante à parte, o que deve ser combatido é exatamente ele – o erro – e pela via adequada – o recurso. Mesmo aqueles irresignados com o argumento da falibilidade humana a justificar a existência dos recursos não negam a falibilidade humana em si, mas a crença de que nem sempre um duplo juízo possa alcançar a decisão correta61 (bene latas sententias in pejus reformet62). Ao perfilhar essa visão em seu extremo, há que se indagar: os recursos são, de fato, úteis? Ou melhor: os Tribunais são, de fato, úteis? Não seria melhor deixar as decisões apenas a um único individuo “altamente capacitado” para a função de julgar63? O raciocínio leva a um retrocesso histórico na ciência processual, transformando o indivíduo investido da função jurisdicional em detentor de poder inquestionável64, pois a partir do momento em que um ser humano desempenha qualquer atividade, seja ela jurisdicional ou não, essa estará suscetível ao erro. Sobretudo quando se objetiva fazê-la de maneira cada vez mais rápida. Ocorre que a atividade jurisdicional constitui manifestação do 60 “O dever é a imposição destinada à satisfação de um interesse alheio. O ônus, ao revés, destina-se à satisfação de um interesse próprio, nisso diferindo de um dever. O descumprimento de um dever acarreta sanção, ao passo que, se não se realizar algo que se tinha o ônus de fazer, a consequência será a perda de possível vantagem.” (NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2014. p. 224). 61 “A Justiça é tão falível que ela própria se encarrega de reformar suas sentenças, nem sempre para melhor.” ANDRADE, Carlos Drummond. O avesso das coisas. Rio de Janeiro: Record, 1990. 62 Dito atribuído a Ulpiano, consistente na possibilidade de que o juízo de revisor nem sempre reforme para melhor a sentença. Cf. CRUZ, João Claudino de Oliveira e. Dos recursos no código de processo civil: lei, doutrina, jurisprudência. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 10. 63 Em outra ocasião, essas indagações levaram ao questionamento se o que se propõe com a ênfase do princípio da razoável duração dos processos no âmbito dos recursos é a transformação destes meios de impugnações em meras lamúrias, réquiens compostos para confortar o jurisdicionado vencido e enterrar o caso julgado. Cf. PADUA, Átila de Andrade. Réquiem para a recorribilidade. Revista de Processo, São Paulo, ano 39, v. 238, p. 127-144, dez. 2014. 64 “Enquanto a justiça era diretamente administrada pelo povo, ou pelo rei, a regra era a instância única. Nos primórdios, desconhecia-se a pluralidade das instâncias. Mas, depois, quando se tirou do povo, ou do rei, a função judiciária, introduziu-se a tendência a submeter-se a reexame, devido à possibilidade de erro ou de má- fé, a sentença judicial. [...] A aparição da pluralidade de instâncias foi seguida por lenta e pertinaz investigação da melhor técnica para a composição dos tribunais e, consequência, da administração dos recursos e do processo dos recursos.” (MIRANDA, Francisco Pontes de. Comentários ao código de processo civil: arts. 496 a 538. Rio de Janeiro: Forense, 1999. t. 7. p. 13). 29 Estado – outra invenção humana – e este não pode se desinteressar pela realização do direito que ele próprio cria. A pretensão do CPC 2015, inclusive como observado no próprio emprego vocabular da expressão “dos meios de impugnação” no Livro III de sua Parte Especial é exatamente a de abranger in totum as hipóteses de impugnação (para que assim possa limitá-las). Mas essa intitulação apenas favorece a confusão de recursos como ações autônomas de impugnação. Recurso é apenas um dos possíveis meios de impugnação das decisões judiciais facultados pela legislação ao jurisdicionado vencido65. Além de conforto psicológico ao jurisdicionado vencido pela decisão de um único julgador – o que pode ser feito em ação autônoma na carência de via recursal –, o recurso promove verdadeira oxigenação do ato interpretativo e conduz ao fechamento da controvérsia. Isso porque a interpretação/aplicação de uma norma perante o fenômeno ocorrido que se deu no ato de julgamento possivelmente não haja compreendido a realidade normativa manifestada com caso concreto. Ao perfilhamos o entendimento de que a realização do direito se dá de maneira unitária66 (de que o ato decisório engloba conhecimento, interpretação e aplicação ao mesmo tempo), também consideramos que a cisão entre fatos e direito pelo intérprete é questionável67. Quando existente o erro, será decorrente de falha integral na realização do direito como ato único. Por isso não nos escapa a crítica ao pensamento de que os recursos ordinários (aqueles não excepcionais) devam ser restritos às discussões meramente de direito, ou que tenham 65 Para Barbosa Moreira, os meios de impugnação são divididos em duas grandes classes. A saber, os recursos (exercitáveis dentro do processo em que surgiu a decisão impugnada) e as ações impugnativas autônomas. Cf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 13. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 139. Também para Pontes de Miranda é de suma importância diferenciar recurso de meios de impugnação, pois existem “[...] mais meios de impugnação do que recursos, posto que todo recurso seja meio de impugnação.” (MIRANDA, Francisco Pontes de. Comentários ao código de processo civil: arts. 496 a 538. Rio de Janeiro: Forense, 1999. t. 7. p. 4). 66 “A realização do direito é unitária: apenas em análise abstracta é possível decompô-la em várias fases que funcionam, tão só, em inseparável confronto. Particularmente focada é a unidade entre interpretação e aplicação. Mas há que ir mais longe: tudo está implicado, desde a localização da fonte à delimitação dos factores relevantes; o caso é parte de um todo vivo, sendo certo que interpretar é conhecer e decidir [...].” (CORDEIRO, Antônio Menezes. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. p. civ-cv). 67 “Pode falar-se, também aqui, num círculo ou espiral de realização do direito: há que passar da interpretação à aplicação e, destas às fontes e aos factos, tantas vezes quantas as necessárias para obter uma síntese que supere todas essas fases, na decisão constituinte final.” Ibid. p. cv. 30 requisito de admissibilidade extra como a repercussão geral68. Sem adiantar o que será desenvolvido nos próximos capítulos, esse raciocínio serve para ilustrar como a natureza do recurso enquanto prolongamento do processo é (mal)compreendida como perniciosa em detrimento de outros aspectos. A natureza de ônus processual não é menos importante e talvez deva ser ela o objeto de análise em uma proposta de dotar o processo de razoabilidade cronológica. Quando o recurso deixa de ser um ônus e passa a ser uma vantagem ao vencido, tanto legislador, como intérprete, podem se questionar quanto à má-fé do recorrente. Ao primeiro, incumbe a fixação de hipótese. Ao segundo, aferir se ela se manifesta na realidade normativa manifestada com o caso concreto. 1.5 O conceito de “razoável” no direito e a “razoável duração do processo” “Razoável” é um termo trivialmente empregado como contraponto ao “racional”, às tentativas de utilização da lógica formal no direito. Quanto a essa perspectiva, é expressiva a referência a uma lógica do “razoável”, sendo indiscutível o sucesso que o termo logrou com os estudos do mexicano Luis Recaséns Siches69. A teoria raciovitalista de Récasens Siches, com leituras desde textos aristotélicos, ao pregar a utilização da lógica do “razoável”, opõe-se ao emprego da lógica formal no Direito – tendência racional-matemática, típica do codicismo e do exegetismo oitocentista70. Não há como negar que o trabalho do professor mexicano exigiu fôlego, foi coerente à época em que 68“[...] parece plenamente aceitável que determinadas controvérsias fáticas sejam limitadas a um único exame, realizado pelo juiz que efetivamente teve contato com as partes, mantendo-se apenas a possibilidade da parte controlar a regularidade com que foi exercido o poder jurisdicional em primeiro grau. O duplo grau para questões fáticas deveria ficar restrito a casos em que a questão tivesse alguma relevância social ou econômica, do mesmo modo que é aplicado para o cabimento do recurso extraordinário.” (CAIS, Fernando Fontoura Silva. Reflexões sobre a limitação do direito de recorrer no sistema recursal brasileiro. In: OLIVEIRA, Bruno Silveira de et al. (Coord.). Recursos e a duração razoável do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013.p. 130). 69 “Debo hacer hincapié en que mi insistencia en mostrar que la lógica tradicional de tipo matemático, la lógica deductiva, la lógica de la inferencia, no es la propia de los contenidos jurídicos – como no lo es en general de los asuntos humanos – no implica una fuga de la lógica. Porque esa lógica que hemos de expulsar Del tratamiento de los problemas humanos prácticos y, por tanto, muy decisivamente de las cuestiones jurídicas, és solo una parte muy especial en la totalidad del logos, la cual es mucho más extensa y contiene otros sectores muy diferentes de la lógica de lo racional matemático, de la lógica formal del silogismo.” (SICHES, Luis Recaséns. Experiência jurídica, naturaleza de la cosa y lógica “razonable”. Cidade do México: Ed. UNAM, 1971. p. 522). 70“Os preceitos da Escola da Exegese eram consentâneos com o entusiasmo que a Codificação tinha provocado num ambiente carregado de racionalismo”. (PRADO, Lidia Reis de Almeida. A lógica do razoável na teoria da interpretação do direito. 1980. 107 f. Dissertação [Mestrado em Direito] – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980. p. 20). 31 escrito e bem elucidativo das críticas até então existentes sobre a inadequação da lógica matemática ao direito. Todavia, ao criticar o dominante apego legalista para com o enunciado normativo, parece-nos que esta teoria se expressa mal. Aceita, passivamente, que uma posição subjetiva do intérprete julgador (voluntarismo) transborde aos poderes jurisdicionais. Dá-se a entender que o ato de sentenciar, como vontade do Estado, possa ser também a vontade do julgador71, sem se preocupar com uma efetiva concretização normativa72 – em que pese a consciência de serem incindíveis “fatos” e “Direito”73. Para além da aludida má impressão, pode-se dizer que o termo “razoável”, tal como proposto por Siches, grassou ampla aceitação na comunidade jurídica ao pregar a inadequação da lógica das ciências exatas ao direito. Pareceu, inclusive, um termo apropriado à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – o Pacto de San José da Costa Rica – quando em seu item 8.º, sobre as Garantias Judiciais, determinou que “1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável”. Sobre o tema, é importante ressaltar que a disposição do Pacto é sensivelmente diferente do último inciso acrescentado ao artigo 5.º da CF. Além da razoável duração dos processos, o Estado se comprometeu com a disponibilização de meios que garantam a “celeridade de sua tramitação”. Em outras palavras, favoreceu a confusão conceitual entre razoável duração do processo e celeridade. Porém, se o conceito de razoável é aberto, o de celeridade é mais enfático quanto à ideia de imediatidade. Ocorre que a ideia de celeridade não é suficiente para a compreensão do princípio da razoável duração dos processos, nem se dá conta da inviabilidade de fixação de um prazo 71 “Valendo-se de uma confissão feita por Hutcheson sobre o modo efetivo como elabora a sentença e comentando Jerome Frank, Récasens Siches assinala o papel importante da intuição do juiz, na produção da decisão, papel esse observável até pelo estudo etimológico da palavra sentença (de ‘sentire’, isto é, experimentar uma emoção, uma ‘intuição emocional’).” (PRADO, Lidia Reis de Almeida. A lógica do razoável na teoria da interpretação do direito. 1980. 107 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980. p. 33). 72 “A rejeição justificada de um sistema coerente reificado ao modo das ciências naturais e da ideia da norma jurídica como uma ordem pronta para ser usada ou como juízo hipotético logificado ainda não justifica um procedimento, que passa, em caso de dúvida, no interesse de uma solução do problema que faça sentido, por cima da norma, que aparece apenas como um topos entre outros topoi e que é medida na sua referência ao problema, em vez da relevância dos pontos de vista do problema ser obrigada a legitimar-se diante da margem normativa de ação da prescrição concretizanda.” (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Tradução de Peter Neumann e Eurice Avance de Souza. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2011. p. 71). 73 “A citação de Hutcheson, foi extraída por Siches do The Judgement Intuitive: The Function of the Hunch in the Judicial Decision, en Cornell Law Quantely, XIV, 1929. A opinião de Jerome Frank encontra-se em Law and the Modern Mind, 6. ed., N.Y., 1949, pág. 56-66. Faz notar Jerome Frank que o juiz para chegar à intuição sobre a justiça do caso concreto, não separa sua opinião sobre os fatos das dimensões jurídicas desses fatos: sua intuição é um complexo integral e unitário que abarca os dois aspectos: ‘fatos’ e ‘Direito’.” (PRADO, 1980, op. cit., p. 33). 32 exato para a duração de cada processo. Isso porque a identificação da “falta de razoabilidade” é possível in concreto e não in abstracto74. E o busílis vai adiante à confusão entre os conceitos de razoável duração e de celeridade, bem como à substituição do termo “racional” por “razoável” como paradigma codicista. Uma vez alocado dentre as garantias e direitos fundamentais, o “admirável princípio novo” deve conviver com as demais garantias e direitos fundamentais. 1.6 O devido processo legal como direito fundamental: embate de predileção entre princípios constitucionais Conforme salientado anteriormente, a inserção do standard de razoável duração dos processos no texto constitucional e a sua consideração como princípio pretende fundamentar o CPC 2015 da mesma forma como outra disposição constitucional foi considerada o princípio norteador do CPC 1973. Trata-se da inafastabilidade do Poder Judiciário (artigo 5.º, XXXV da CF), princípio altamente valorizado pelos processualistas contemporâneos à promulgação do CPC 197375. E não era pra menos, haja vista as preocupações com aceso à justiça, em um movimento celebremente classificado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth como ondulatório76. As “ondas de acesso à justiça”, de fato, promoveram (e vem promovendo) quebra de paradigmas quanto ao propósito da instituição Justiça ao identificar os motivos de sua vedação. As três ondas visualizadas por Cappelletti são decorrentes de três problemas 74 “O conceito de ‘razoável duração’ é aberto e vago, sendo necessário analisar cada caso concreto para se desvendar, à luz de critérios objetivos – como complexidade da causa, comportamento das partes e advogados e comportamento do julgador – se houve ou não excesso de duração.” (GALDIANO, José Eduardo Berto. Princípio da razoável duração do processo: mais que celeridade, uma questão de qualidade e eficiência. In: OLIVEIRA, Bruno Silveira de et al. (Coord.). Recursos e a duração razoável do processo. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013. p. 303-305). 75 Sobre a compatibilização do CPC 1973 com a ordem constitucional vigente à data de sua promulgação, privilegiava-se o princípio da inafastabilidade do controle judiciário. “Parece defluir, portanto, do texto constitucional [referência à Constituição de 1967, já com o texto emendado de 1969], uma tutela jurídica menos genérica e abstrata do que a mera obrigação de resposta do Estado, perante o pedido do autor: o texto também deve garantir a tutela dos direitos afirmados, mediante a possibilidade de ambas as partes sustentarem suas razões, apresentarem suas provas, influírem sobre a formação do convencimento do juiz, através do contraditório. O princípio da proteção judiciária, assim entendido, substitui, no processo civil, as garantias constitucionais de ampla defesa e do contraditório, explicitadas somente para o processo penal.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o código de processo civil. São Paulo: Bushatsky, 1975. p.18- 19). Ainda sobre a conceituação do princípio da inafastabilidade do judiciário: “Desde que se alegue lesão a direito individual, o Estado não pode furtar-se de exercer sua atividade jurisdicional, quando invocada; mas isto êle só o pode fazer, através de um órgão específico que é o Judiciário.” (MARQUES, José Frederico. O artigo 141, § 4.º, da Constituição Federal. Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, ano 1, v. 2, p. 17, jul./dez., 1960). 76 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988. 33 elencados como principais pontos de estrangulamento do acesso à Justiça a serem repensados (o econômico, o organizador e o processual77). Talvez fosse o caso se cogitar se as “ondas” não teriam promovido uma “ressaca” com as oscilações abruptas do movimento ondulatório do acesso à Justiça, mas este não é o propósito desse projeto e nem sequer é comportado pela sua estatura. E a metáfora diz pouco em termos jurídicos. Cabe, no entanto, enfatizar a existência de um embate de predileção entre a inafastabilidade do Poder(dever) Judiciário e a duração razoável do processo na consecução dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Não somente, há expresso compromisso constitucional com o “contraditório”, a “ampla defesa” – com os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5.º, inciso LV da CF) –, o “juiz natural”, dentre outros diversos princípios – especialmente aquele do qual consideramos serem todos os demais irradiados e interligados, o princípio fundamental do processo civil78, que é o “devido processo legal” (artigo 5.º, inciso LIV da CF): todos cidadãos possuem o direito a um processo adequado para serem eventualmente privados de sua liberdade ou de seus bens. Mas ainda há que se delimitar o influxo deste embate de predileção quanto ao (sub)sistema recursal. O pensamento predominante de que o prolongamento processual (promovido pelos recursos) é incompatível com a expectativa contemporânea do processo de duração razoável pode encontrar autorização legislativa na ausência de disposição constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição. De fato, este não consta do rol das garantias e deveres constitucionais e, portanto, o legislador ordinário poderia limitar hipóteses recursais, exceto para os recursos excepcionais (recurso extraordinário e recurso especial) previstos constitucionalmente79. Ora, deixar o jurisdicionado carente de recursos ordinários, não lhe tolhe o direito de manejar um recurso excepcional constitucionalmente previsto. Agora, também é certo não 77 “Venho finalmente ao obstáculo processual, o qual consiste no fato de que a solução processual – o processo ordinário contencioso – mesmo quando são superados os problemas de patrocínio e de organização dos interesses, pode não ser a solução mais eficaz, nem no plano do interesse das partes, nem naquele dos interesses mais gerais da sociedade. A sociedade ocidental tem exaltado a ‘Luta pelo Direito’, o ‘Kampf ums Recht’, mas nós devemos ter a humildade de nos convencer de que temos ainda muito a aprender de outras civilizações, nas quais o contencioso judiciário é visto como uma última instância, apesar de serem valorizadas, às vezes, soluções alternativas, conciliatórias, ‘coexistenciais’.” (CAPPELLETTI, Mauro. O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época. Revista de Processo, São Paulo, ano 16, n. 61, p.152, jan./mar. 1991). 78 Cf. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 10. ed. rev., atual. e ampl. com as novas súmulas do STF (simples e vinculantes) e com análise sobre a relativização da coisa julgada. São Paulo: RT, 2010. p. 79. 79 Ibid. p. 285. 34 parecer tão conveniente a ideia de criar um canal direito entre magistrado de primeiro grau e cortes superiores... De qualquer forma, as tentativas de valorizar o sistema recursal permanecem como absurdas80. Ora, é necessário assumir que, se a apologia à recorribilidade ilimitada é incompatível com o esperado de um sistema recursal, cogitado para reparação de erros81, igualmente deverá ser considerado o processo que os admita. Um sistema recursal supostamente adequado que assumisse erros como inofensíveis estaria bem distante o due process assegurado constitucionalmente82. Por embate de predileção entre princípios constitucionais na realização do processo civil não se refere a qualquer necessidade de prevalência de um em detrimento de outros, ou a necessidade de uma técnica para sopesamento de princípios à Alexy83. Muito pelo contrário, constata-se a necessária e inevitável convivência de normas constitucionais que devem ser respeitadas pelo legislador ordinário e pelo intérprete. 1.7 Considerações sobre a eficácia da decisão judicial Enquanto o legislador ordinário tem a autorização constitucional para limitar os 80 “Hoje, dizer que a justiça tem que ser melhor, que os atos devem ser praticados com mais cuidado pelo julgador, que os recursos são necessários para impedir a perpetuação de nulidades ou injustiças, etc. soa absurdo nos meios forense e até acadêmico. Preocupa-se muito pouco com a qualidade e todas as pesquisas e esforços são direcionados para a mera celeridade da jurisdição, por meio da eliminação, simplificação e aceleração a qualquer custo dos atos ou fases processuais. As próprias metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça são quase que exclusivamente estruturadas na relação quantidade por tempo, pouco se preocupando com a qualidade e a eficiência da jurisdição.” (GALDIANO, José Eduardo Berto. Princípio da razoável duração do processo: mais que celeridade, uma questão de qualidade e eficiência. In: OLIVEIRA, Bruno Silveira de et al. (Coord.). Recursos e a duração razoável do processo. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013. p. 310). 81 “Só existe o princípio da recorribilidade de todas as resoluções que constituam entrega definitiva da prestação jurisdicional, terminando, regularmente, a relação jurídica processual, ou desfazimento da relação jurídica processual sem a entrega da prestação jurisdicional, ou que levem a conseqüências irremovíveis quanto ao conteúdo daquela prestação ou a esse desfazimento. É o princípio da recorribilidade das resoluções judiciais relevantes. O problema de técnica legislativa é, então, o de se discriminar o que é relevante e o que é irrelevante.” (MIRANDA, Francisco Pontes de. Comentários ao código de processo civil: arts. 496 a 538. Rio de Janeiro: Forense, 1999. t. 7. p. 2). 82 “Não seria legítimo, por contrariar a cláusula do due process of law e assim abrir portas ao arbítrio, acelerar desarrazoadamente a eficácia de uma sentença judicial sujeita a recurso, a dano da segurança das partes e do próprio acesso à justiça. Nem seria legítimo a um Estado que proclama a garantia a um processo realizado em tempo razoável (Const., art. 5.º, inc. LXXVIII), sem aparelhar adequadamente seu Poder Judiciário para poder ser célere, queixar-se da morosidade judiciária para com isso acelerar a busca de seus objetivos.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. t. 2. p. 1027). 83 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. 35 recursos disponíveis aos jurisdicionados sem ferir as garantias fundamentais, o magistrado é incumbido da tarefa de condução do processo e decisão fazendo valer as mesmas. Uma vez objeto de impugnação, a decisão judicial merece algumas considerações prévias para situar qualquer investigação sobre a razoabilidade do sistema recursal. Por mais que considerável segmento da magistratura se irresigne com o dever de fundamentação, tal como expresso no CPC 201584, não há como negar que o legislador ordinário confiou aos magistrados importante instrumento de eficácia dos provimentos jurisdicionais, consistente na tutela de evidência85. Embora a tratativa do efeito suspensivo da apelação como exceção (concessão ope legis) não tenha resistido ao processo legislativo, a tutela de evidência se revela inquestionável dispositivo castrador do efeito suspensivo. Não somente, a mudança no regime de preclusão das decisões interlocutórias e das hipóteses específicas de cabimento do recurso de agravo possibilita que os juízes possam conduzir seu trabalho “lógico-individual” sem maiores interrupções, em que pese haver norma expressa no sentido de impedir decisão a vedar manifestação das partes (art. 10 do CPC 2015). Parece possível afirmar ainda que, caso o verdadeiro problema do excesso de recursos fosse a “prodigalidade” do sistema recursal, não faltariam instrumentos aos magistrados de todas as instâncias para coibir as práticas atentatórias à dignidade de justiça, nelas inseridas os recursos manifestamente protelatórios e quaisquer outros meios de dilação perniciosa, ou litigância de má-fé86. Aliás, o CPC 2015 traz a previsão expressa de coibição dos recursos com intuito manifestamente protelatório (artigo 80, inciso VII). 84 Artigo 489 do CPC. Sobre a divergência de entendimentos corriqueiros sobre o tema, ver SOUZA, Giselle. Advogado critica fundamentação no novo CPC e magistrado a defende. Consultor Jurídico, São Paulo, 12 mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2015. 85 “Entendeu a comissão [de juristas encarregados da elaboração do anteprojeto do CPC 2015] que nessas hipóteses em que uma parte ostenta direito evidente, não se revelaria justo, ao ângulo do princípio da isonomia, postergar a satisfação daquele que se apresenta no processo com o melhor direito, calcado em prova inequívoca, favorecendo a parte que, ao menos prima facie, não tem razão. A tutela da evidência não é senão a tutela antecipada que dispensa o risco de dano para ser deferida, na medida em que se funda no direito irretorquível da parte que inicia a demanda.” (FUX, Luiz. O novo processo civil. In: ______. (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 11). 86 “Eis a questão. De duas uma: ou a interposição de recursos, mesmo repetidamente, é necessária, caso contrário os tribunais imporiam a sanção, ou os tribunais omitem-se de aplicá-la, seja qual for o motivo, e não podem queixar-se (nem ninguém tomar-lhes as dores) do número de recursos a apreciar. [...]. Ao analisarmos a questão, desde logo estranhamos uma particularidade: apesar de a lei processual punir a litigância de má-fé, os juízes aplicam parcamente a