PAULO VICTOR BEZERRA AVESSOS DO EXCESSO: a assexualidade ASSIS 2015 PAULO VICTOR BEZERRA AVESSOS DO EXCESSO: a assexualidade Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Doutor em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Prof. Dr. José Sterza Justo ASSIS 2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Bezerra, Paulo Victor B574a Avessos do excesso: a assexualidade / Paulo Victor Bezerra. - Assis, 2015 143 fls. Tese de Doutorado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. José Sterza Justo 1. Assexualidade. 2. Subjetividade. 3. Identidade se- xual. 4. Ambientes virtuais compartilhados. 5. Identidade (Psicologia). I. Título. CDD 150.3 154.22 A meu GrandPai, Manoel Bezerra. A meu grande amor, Maytê. AGRADEÇO À Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UNESP, por ter podido usufruir da bolsa, fundamental para que, neste último ano, eu pudesse me dedicar integralmente ao Doutorado e à redação final desta tese. Imensamente ao Professor Justo, pelos direcionamentos, orientações e por todo o acompanhamento que tem feito, durante esta minha jornada na UNESP, sempre inigualavelmente paciente, apoiador e parceiro. A todos os funcionários da Pós-Graduação, à Sueli, à Lucilene, ao Marcos, ao Ricardo e, mais tardiamente ao João Paulo. Agradeço também aos funcionários da Biblioteca Acácio José Santa Rosa, um verdadeiro patrimônio da UNESP, sempre prestativos e disponíveis. Nesse quesito, obviamente não poderia deixar de prestar minhas homenagens à memória viva do Campus de Assis, o inestimável Auro. A todos os colegas e amigos da UNICENTRO e de Irati – PR, pelas conversas e perguntas que me fizeram compreender melhor as nuances deste tema de pesquisa. Um brinde especial ao Mestre Cervejeiro Gabriel Batista Krüger, cujas receitas alquímicas tantas conversas embalaram e cujas conversas tantas receitas ainda hão de produzir. Aos amigos, companheiros e colegas de nossa turma de doutorado, às bordoadas e às dúvidas que dividimos, às risadas e incognoscências que produzimos e a tudo mais que não tem remédio nem nunca terá. Ao Mateus, amigo e companheiro de tão longa data. Especialmente a minha esposa, mulher, amiga e companheira, Maytê, de todo o coração. Livre da relação, a representação pode se dar como pura apresentação. Michel Foucault BEZERRA, Paulo Victor. Avessos do excesso: a assexualidade. 2015. 143 fls. Tese (Doutorado em Psicologia). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015. RESUMO Os assexuais se definem como pessoas que não sentem atração sexual. A ideia de um sujeito assexual traz à tona discussões acerca dos usos políticos do sexo, coloca em exame as epistemologias da sexualidade e suscita debates a propósito dos modos de subjetivação contemporâneos. Nesta tese, procura-se apresentar o percurso científico da assexualidade e traçar uma compreensão sobre esse fenômeno. No primeiro capítulo, faz-se uma narrativa minuciosa de toda a produção bibliográfica sobre o tema, contemplando todos os artigos e livros publicados até o presente, bem como aquelas fontes mais antigas que se relacionavam diretamente com a assexualidade. Compilou-se essas leituras de modo a reconstruir, identificar e contextualizar as primeiras menções ao termo e os desdobramentos do surgimento das comunidades virtuais de assexuais, fato que impulsionou e justifica a atual produção acadêmica a esse respeito. Aponta-se que a produção científica sobre a assexualidade reflete em muito o campo de produção acadêmica em sexualidade, contendo os principais elementos deste último: uma preponderância das tarefas de legitimar, universalizar e naturalizar, geralmente amparadas por uma visão biologista, mas, também contém uma porção de produções críticas e engajadas com a visão das políticas de identidade e de uso do sexo. No segundo capítulo, toma-se como objeto de estudo a assexualidade, e não os assexuais. A partir de alguns artigos, da navegação por seus loci virtuais de encontro e de autores contemporâneos, apresenta-se uma possibilidade de entendimento acerca desse grupo, identificando-o como uma tribo virtual. Ademais, articulam-se as concepções de sociedade do simulacro, do espetáculo, do sujeito da aparência e da subjetividade forjada pelo trabalho imaterial, entre outras, a fim de compreender a emergência da assexualidade e a posição que ela toma nesse cenário, colocando-a tanto como uma forma de subjetivação contemporâneo quanto como uma resistência à cultura hegemônica. No terceiro capítulo, busca-se posicionar a assexualidade dentro da possibilidade de leitura transmitida pela História da Sexualidade. Toma-se o conceito de dispositivo de sexualidade para verificar se a assexualidade pode ser incluída na gama de produções de subjetividade típicas desse dispositivo ou se seria um modo de subjetivação aquém do dispositivo de sexualidade e, consequentemente, por quais vias se dá essa inclusão ou exclusão. Conclui-se que a assexualidade está localizada dentro da história recente dos usos do sexo, e se constata que a assexualidade é uma produção típica do dispositivo de sexualidade, na medida em que se sustenta na mesma lógica do sexo a qual busca questionar. Palavras-chave: Assexualidade. Subjetivação. Dispositivo de sexualidade. Tribo virtual. BEZERRA, Paulo Victor. The Convex of the Excess: Asexuality. 2015. 143 pp. Thesis (PhD in Psychology). State University of São Paulo - UNESP. Assis, 2015. ABSTRACT The Asexuals define themselves as people who do not experience sexual attraccion. The idea of an asexual individual brings up discussions about the political uses of sex, calls into question the epistemology of sexuality and raises debates about contemporary modes of subjectification. This thesis presents the scientific development of asexuality and outlines some understanding on the issue. The first chapter provides a detailed narrative of all the scientific writings on asexuality, covering every article and book published until now, including the early sources that somehow are related to it. These researches were compiled intending to rebuild identify and contextualize the first mentions to the idea of asexuality as well as the unfolding of the asexual´s virual communities, which boosted the scientific production on this field. It is noted that the scientific production on asexuality is much like the scientific production on sexuality, rendering the main focusses of the last: the widely held task of legitimating, universalizing and naturalizing, commonly under a biological approach, but it also contains a fewer critical works, aligned with the policies of identity and uses of sex. The second chapter takes asexuality, instead of the asexual individuals, as object of study. Grounded on some articles, on the virtual sites of meeting as well as on some contemporary psychosocial theorists, a possibility of understanding about the group is presented, identifying it as a virtual tribe. Moreover, the ideas of simulacra society, spectacle society, the semblance subject and the subjectivity built over immaterial labor, amongst others, are coordinated in order to comprehend the emergency of asexuality and its position in the present, picturing it as both a form of subjectivation and of resistance. The third chapter reaches to position asexuality within the readings of Foucault´s History of Sexuality. The concept of sexuality device is presented and discussions about asexuality belonging or not to its subjectivities´ line of production are made, pointing out the criteria of including or excluding asexuality to such device. It is concluded that asexuality is placed within the recent history of usages of sex, noting asexuality as a typical product of the sexuality device, once it relies on the same logical framework that it supposedly disapproves. Keywords: Asexuality. Subjectification. Sexuality device. Virtual tribe. SUMÁRIO 1. APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 9 2. JUSTIFICATIVA E OBJETIVO ................................................................................ 14 3. APORTES METODOLÓGICOS ............................................................................... 14 4. A HISTÓRIA DA ASSEXUALIDADE ...................................................................... 18 O relatório Kinsey e os primeiros trabalhos ...................................................................................... 18 O surgimento das comunidades virtuais e as pesquisas atuais .......................................................... 24 Definições e abordagens atuais ......................................................................................................... 25 Produções sobre a visão dos assexuais acerca de si mesmos ............................................................ 32 Ensaios críticos .................................................................................................................................. 35 Discussões sobre as contribuições da assexualidade para o campo das pesquisas em sexualidade e para uma compreensão da cultura ..................................................................................................... 45 Discussão........................................................................................................................................... 49 5. A TRIBO DOS ASSEXUAIS E O LUGAR DA ASSEXUALIDADE NA SOCIEDADE ATUAL ...................................................................................................................... 54 Sujeito e grupalidade no cenário atual .............................................................................................. 54 A tribo virtual dos assexuais ............................................................................................................. 57 A assexualidade como modo de subjetivação da atualidade ............................................................. 60 A assexualidade como resistência ..................................................................................................... 62 Discussão........................................................................................................................................... 63 6. UMA LEITURA DA ASSEXUALIDADE A PARTIR DO DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE OU A TRAGÉDIA DE EROS ............................................................. 66 Preâmbulo ......................................................................................................................................... 66 Revestimentos históricos da sexualidade .......................................................................................... 67 O paradigma da (des)repressão e o dispositivo de sexualidade ........................................................ 68 As estratégias de poder no jogo da subjetivação pela sexualidade: o biopoder ................................ 75 A subjetivação pelo sexo e o discurso da liberação sexual ............................................................... 77 E a assexualidade? ............................................................................................................................. 82 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 88 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 92 APÊNDICE: CONTROVÉRSIAS E COMPLEMENTAÇÕES DE RESULTADOS DE PESQUISAS A PARTIR DE DIFERENTES APORTES METODOLÓGICOS ................ 102 Pesquisas estatísticas e demográficas .............................................................................................. 102 Pesquisas qualitativas ...................................................................................................................... 113 Pesquisas que utilizam métodos mistos .......................................................................................... 122 Contribuições teóricas/conceituais .................................................................................................. 128 Livros sobre a assexualidade ........................................................................................................... 135 Resenha do livro Understanding Asexuality de Anthony Bogaert (2012). ..................................... 135 Resenha do livro Assexualities: feminist and queer perspectives de Karli Cerankowski e Megan Milks (2014) .................................................................................................................................... 138 9 1. APRESENTAÇÃO A assexualidade passa ao largo do psicologismo simplista que comumente se encontra em algumas entrevistas nos grandes meios de comunicação ou naquelas matérias jornalísticas que não exploram mais do que a manchete. Há ainda uma quantidade relativamente pequena, porém crescente, de material sobre a assexualidade. Além de entrevistas e matérias na imprensa, existem alguns sítios e comunidades virtuais brasileiras e estrangeiras muito bem organizadas e articuladas com a mídia e com a ciência, sendo que a considerável variedade geográfica dos membros dessas comunidades aponta que não se trata de um fenômeno localizado, pelo contrário, os assexuais fazem-se presentes em toda a sociedade economicamente desenvolvida. A partir do ano de 2004, a produção acadêmica sobre a assexualidade e sobre os assexuais multiplicou-se exponencialmente, e mais recentemente é notável também a diversificação das abordagens teóricas e metodológicas. Sem dúvida, a atualidade do tema e a oportunidade de trabalhar com uma questão nascente funcionaram como a força motriz de nosso interesse pela assexualidade. Construímos um projeto de doutorado e o apresentamos ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, na linha de pesquisa intitulada Processos psicossociais e de subjetivação no contemporâneo. Já no início de nossas leituras acadêmicas sobre os assexuais, algumas perguntas muito comuns puderam ser respondidas, desvelando a complexidade do tema. Seria a assexualidade derivada de uma opção religiosa? Não, necessariamente. A religião cultiva papéis sexuais bastante rígidos e demarcados, os quais tendem a ser repelidos pelos assexuais. Além disso, os próprios assexuais fazem uma clara distinção entre a assexualidade e o celibato. Um assexual seria, então, uma pessoa com péssimas experiências de relacionamento que optou por não mais se relacionar? Também não. A teoria do trauma, que há muito não é capaz de dar conta de explicar a sexualidade, não é igualmente adequada para a compreensão dos assexuais. Algumas pesquisas, e até mesmo as produções discursivas dos próprios assexuais, mostram que não se trata 10 de experiências traumatizantes, além de a maior parte dos assexuais manter ou desejar manter relacionamentos amorosos. A assexualidade transcende as atuais identidades de gênero ou orientação sexual? Não exatamente. Embora existam alguns poucos que relatem pertencer ao gênero assexual, grande parte se identifica como masculino e feminino, além de se identificarem como heteroassexual, homoassexual, biassexual e até mesmo como panassexual. Mas, ao menos, pode-se definir que um assexual é aquele que não pratica qualquer ato sexual? Pois então, não. A maior parte dos assexuais se masturbam com uma frequência muito próxima à da população geral e, mais do que isso, boa parte dos assexuais, ainda que com uma frequência menor, mantém relações sexuais! Assim, podemos começar pela definição de alguns pontos de partida que guiam esta tese: a assexualidade não pressupõe a absoluta ausência de práticas sexuais; não pretende transcender os gêneros, como masculino e feminino, nem as orientações sexuais já conhecidas, como hetero, homo ou bissexual; não pode ser compreendida pela teoria do trauma psicológico, mas por um processo que leve em consideração os marcadores e as construções sociais de nosso tempo histórico, inclusive o lugar dos sujeitos nesse contexto; e, sobretudo, a assexualidade não é derivada de instituições culturais, como a religiosa, que secundariamente organizam as manifestações e os usos do sexo. Além disso, há no tema da assexualidade algumas características muito atuais que nos permitem situá-la como um fenômeno e uma produção cultural típica de nosso tempo: a relação avessa dessas pessoas com certa representação hegemônica da sexualidade e a transformação disso em uma causa política, ao mesmo tempo em que se mostram dependentes da mídia e do projeto de sujeito do espetáculo; a associação desses sujeitos em torno de comunidades virtuais; a construção de seus espaços de sociabilidade, a partir dessas comunidades; e a própria emergência da assexualidade enquanto um marcador identitário, em função dos ambientes virtuais, aponta que estamos diante de um tema bastante desafiador e frutífero para o estudo da subjetividade contemporânea. Nossas leituras demonstram que o ponto de convergência de inúmeras matérias jornalísticas e artigos científicos é a comunidade virtual denominada Rede Assexual de Visibilidade e Educação (sigla em inglês: AVEN). Através de uma 11 ambientação nessa e em outras comunidades, pudemos perceber que a AVEN tem uma influência capital, orientando o conteúdo e a forma de operar de todo o grupo. Mais ainda, notamos que a AVEN tem uma influência fundamental também na produção discursiva sobre a assexualidade, bem como na regulação das políticas de visibilização e desestigmatização que se formam em torno da mesma. Do ponto de vista acadêmico, a assexualidade tem fomentado algumas discussões já conhecidas sobre a orientação sexual e o campo das patologias, do ponto de vista de um modelo nosográfico, no qual ainda se apoiam certas práticas “psi”. Movimenta ainda o conhecido campo da biologia ou da neurobiologia da sexualidade e os debates sobre as minorias sexuais e suas políticas de inclusão e visibilização. Além disso, a própria ideia de um sujeito assexual traz à tona a discussão da sexualidade compulsória, dos usos sociais do sexo e, principalmente, acende discussões sobre as epistemologias da sexualidade, suscitando debates tanto sobre a ideia de naturalidade da sexualidade quanto sobre uma possível naturalidade da assexualidade. Embora esta tese esteja dividida em três capítulos subsequentes, como não poderia deixar de ser, ressaltamos que não há de fato uma relação de linearidade entre os capítulos, mas sim uma circularidade. Dessa forma, pode-se iniciar a leitura pelo segundo ou terceiro capítulo, desde que se reservem as considerações finais. No primeiro capítulo, apresentamos uma narrativa minuciosa e, por vezes, exaustiva, de toda a produção bibliográfica sobre o tema, contemplando todos os artigos e livros publicados até o presente, bem como daquelas fontes, citadas nessas pesquisas, as quais se relacionavam diretamente com a assexualidade. Compilamos essas leituras de modo a reconstruir, identificar e contextualizar as primeiras menções ao termo e os desdobramentos do surgimento das comunidades virtuais de assexuais, fato que impulsionou e justifica a atual produção acadêmica a esse respeito. Esse trabalho é de considerável importância, porque, além de reunir em um só texto todo o percurso histórico da assexualidade, abrindo caminho para futuros pesquisadores do tema, possibilita um exame do conjunto de tais produções e, portanto, do papel desempenhado pela academia, na produção da assexualidade. Embora essa possibilidade não estivesse originalmente contemplada em nosso projeto, terminamos por compreender que talvez ela seja uma legítima contribuição, no sentido de facilitar leituras críticas e o fomento dessas discussões, em língua 12 portuguesa. Destacamos ainda que esse capítulo colabora para que se tenha uma visualização completa do que se tem produzido a esse respeito e dos discursos mais comuns dos assexuais, suscitando perguntas, críticas, e delineando parte das possibilidades de entendimento da questão. O apêndice que segue a esta tese pode ser considerado um adendo a esse primeiro capítulo. Nele, fazemos uma sistematização mais pormenorizada de todos os artigos mais recentes, agrupando-os de acordo com suas vertentes metodológicas. Ao final, há ainda duas resenhas que produzimos referentes aos dois livros que existem sobre o tema. A primeira, relativa ao livro Understanding Asexuality, de Anthony Bogaert (2012), já se encontra publicada na Revista Latino- Americana de Geografia e Gênero, enquanto a segunda, sobre o livro Asexualities, organizado por Cerankowski e Milks (2014), foi submetida à revista Arquivos Brasileiros de Psicologia, em setembro de 2014. No segundo capítulo, apresentamos uma contribuição original, na medida em que elegemos como objeto de nosso estudo a assexualidade, e não os assexuais. Assim, buscamos compreender a assexualidade enquanto um fenômeno de grupo, identificando sua demanda expressa e sua função para aqueles que o compõem. A partir de alguns artigos (SCHERRER, 2008; 2010; CARRIGAN, 2011; HAEFNER, 2011; SUNDRUD, 2011; YULE et al., 2013), da navegação por seus loci virtuais de encontro, e de alguns autores contemporâneos (MAFFESOLI, 1998; LEVY, 1999), indicamos uma possibilidade de entendimento acerca desse grupo, identificando-o como uma tribo virtual (CORREA, 2005; TUOMINEN, 2011). Uma das discussões desse segundo capítulo surgiu ainda enquanto fazíamos nossas leituras iniciais, quando notamos que há uma proeminente questão com relação ao discurso hegemônico sobre o uso intensificado e generalizado do sexo. Essa insurgência dos assexuais nos levou a trabalhar com a hipótese, por certo período, de que poderia haver uma dificuldade de os assexuais subjetivarem o sexo em si, ou seja, em atribuir sentidos outros que não aqueles impostos pela cultura, ou em transformar em experiência corporal singular os discursos excessivos e massificados que circulam em nossa sociedade. Isso pressuporia uma relação pura entre o processo de atribuição de sentido e a experiência corporal, o que não acontece na atual conjuntura. O processo de atribuição de sentidos às experiências corporais já está em boa parte atravessado por outros sentidos e, no caso de nosso contexto, por toda 13 uma cultura da imagem e da estética (BIRMAN, 2001). Assim, com as ideias de sociedade do simulacro (BAUDRILLARD, 1991), sociedade de risco (BECK, 2011; CASTEL, 1987), sociedade do espetáculo (DEBORD, 1967/1997), do sujeito da aparência (BAUMAN, 2001), da subjetividade forjada pelo trabalho imaterial ou “cognitivo” (GORZ, 2005; NEGRI, 2001) e do conceito de dispositivo de sexualidade (FOUCAULT, 1988), esboçamos um entendimento a propósito da emergência da assexualidade e da posição que ela toma, nesse cenário, posicionando-a tanto como um modo de subjetivação (FOUCAULT, 1984) contemporâneo quanto como uma resistência à cultura hegemônica. Ao tomarmos a assexualidade enquanto uma resistência aos atuais padrões de uso do sexo, nós nos afastamos daquela parcela da literatura que toma a assexualidade, ainda que implicitamente, como uma dissidência desses padrões e, consequentemente, como uma produção revolucionária. Embora a assexualidade apresente uma considerável originalidade dentro do paradigma da sexualidade, representando uma injeção de crítica, e traga em si o potencial de fomentar discussões e questionamentos sobre os usos do sexo, o terreno de onde ela brota, sua lógica interna até este momento e muito dos discursos dos assexuais reproduzem o que há de mais atual em termos de controle social: a biopolítica (FOUCAULT, 1988; AGAMBEM, 2010) e algumas estratégias de biopoder (PELBART, 2008; AGAMBEM, 2010). No terceiro capítulo, procuramos posicionar a assexualidade dentro das possibilidades de leitura iniciadas por Foucault, em sua História da Sexualidade (1988). Tomamos o conceito de dispositivo de sexualidade como o epicentro de nossas leituras acerca desse fenômeno, buscando responder: 1) se a assexualidade pode ser incluída na gama de produções de subjetividade típicas desse dispositivo ou se seria um modo de subjetivação aquém do dispositivo de sexualidade; 2) consequentemente, por quais vias se daria essa inclusão ou exclusão. Através desse capítulo, pudemos compreender onde a assexualidade se localiza, dentro da história recente dos usos do sexo, e verificamos que a assexualidade é uma produção típica do dispositivo de sexualidade, na medida em que se sustenta na mesma lógica do sexo, a qual busca questionar, amparando-se integralmente em produções discursivas, ao mesmo tempo em que aparentemente se afasta de uma física do sexo ou de um sexo-experiência, todavia, não o transcende, uma vez que se ampara em um ideia de corpo sem desejo sexual. 14 2. JUSTIFICATIVA E OBJETIVO Uma pergunta frequente que tivemos de responder, durante os congressos e encontros nos quais apresentamos partes desta tese, refere-se ao motivo pelo qual nós e outros pesquisadores nos pusemos a estudar a assexualidade. De nossa parte, podemos responder seguramente que o que nos moveu para o estudo da assexualidade é tanto o caráter atual do tema, o fato de ser distintamente um fenômeno de nosso tempo e desta configuração social, quanto seu potencial analítico e ilustrativo do movimento de produção do sujeito contemporâneo. Essa mesma pergunta foi feita por Bishop (2013) a alguns pesquisadores, os quais se têm dedicado a esse tema, sendo que as respostas apontaram predominantemente para a novidade e a falta de trabalhos nessa área e, consequentemente, o potencial acadêmico das discussões e das produções sobre a assexualidade. Somado a isso, alguns dos pesquisadores relataram que também já eram estudiosos da sexualidade. O brasileiro Mauro Brigeiro (2013) elenca três principais razões para o crescente interesse acadêmico na assexualidade. Para ele, o caráter insólito e curioso de uma sexualidade que nega o sexo, a possibilidade de pioneirismo na produção de sentidos em um campo ainda pouco estudado e a politização da sexualidade são os principais motivadores dos estudiosos que se embrenham por esses campos. Diante desse panorama e de tantas questões que nos ocorriam sobre o assunto, elegemos como foco de nosso trabalho examinar a assexualidade como modo de subjetivação da contemporaneidade, isto é, produzir alguma inteligibilidade a propósito de como essa forma de subjetivação, que tem como plataforma fundamental a abdicação da sexualidade, se articula com processos de subjetivação emergentes da atualidade. 3. APORTES METODOLÓGICOS Procedemos a uma minuciosa busca nas seguintes bases de dados e consultas: Portal de Periódicos da Capes (http://www.periodicos.capes.gov.br/); Scielo (http://www.scielo.org/php/index.php); Sage (http://online.sagepub.com/); 15 Google Acadêmico (http://scholar.google.com.br/); Biblioteca Virtual em Saúde (http://www.bireme.br/php/index.php), nas quais buscamos pelos termos: Assexualidade; Assexual; Asexualidad; Asexual; Asexuality, a fim de obtermos as publicações em português, inglês e espanhol. A busca retornou inúmeros trabalhos da área da biologia e pesquisas ligadas à sexualidade de pessoas portadoras de deficiência de diversas categorias. Um grande número de trabalhos também se relacionava com a psicologia e a representação social da velhice e da infância. Alguns outros mencionavam a assexualidade do ponto de vista de uma representação equivocada ou preconceituosa a respeito de mulheres, parturientes ou ainda de alguns trabalhadores no exercício de suas profissões, como enfermeiros e professores. Eliminados os textos que, tais como os descritos acima, não correspondiam ao foco desta pesquisa, mantivemos apenas o material que versa sobre a assexualidade enquanto uma vertente possível da sexualidade humana. Dessa maneira, permanecemos com um total de 40 trabalhos distribuídos nos seguintes formatos: um livro; um livro tipo coletânea de artigos; três capítulos de livro; uma tese de doutorado, um texto acadêmico (pesquisa de graduação); duas dissertações de mestrado; dois artigos em anais de congresso e 29 artigos em revistas acadêmicas. Quanto ao idioma, destacamos que, desse material, a grande maioria, trinta e três, foi escrita em inglês, com exceção de dois artigos em espanhol e das fontes em português que corresponderam aos dois anais de congresso, a uma das dissertações, a um artigo e a um capítulo de livro, totalizando cinco textos. A partir da leitura desse material, algumas fontes secundárias foram aparecendo, principalmente aquelas associadas ao histórico do conceito de assexualidade, sua recorrência na sexologia e nos estudos de gênero. Procuramos, então, revisar também esse material, alguns com um pouco mais de dificuldade de achar, como é o caso de Johnson (1977) e Rothblum e Brehony (1993), edições não muito populares e já esgotadas nas grandes livrarias, outras com certa facilidade, como é o caso de Kinsey (1948, 1953). Duas preocupações centrais orientaram esse nosso trabalho de revisão da literatura acadêmica acerca da assexualidade. A primeira, coerente com o percurso que apresentamos no último capítulo, é a de delinear um panorama das estratégias acadêmicas de produção de saber sobre a assexualidade, esclarecendo, assim, as 16 vias privilegiadas das estratégias de legitimação desse emergente modo de subjetivação. Nossa segunda preocupação, coerente com a função acadêmica, é aquela de expor o conjunto das pesquisas já existentes, a fim de que os interessados no tema não necessitem refazer esse caminho completamente. Assim, apesar de se tratar de um texto longo e de leitura, por vezes, pouco simpática, reafirmamos a inevitabilidade da tarefa, animados pela esperança de que uma revisão desse tipo não careça de ser refeita no futuro. Embora tenhamos plena consciência de que as produções e as pesquisas sobre a assexualidade só tendem a se multiplicar, pudemos compreender que a matriz de produção de inteligibilidade sobre esse fenômeno já esteja bem formada. Pode-se facilmente visualizar isso através da ancoragem dos trabalhos mais recentes, no qual incluímos esta tese, nos dados e até mesmo em alguns temas de discussão aberto pelos trabalhos já publicados. Dessa maneira, há um crescente preenchimento e o desenvolvimento de diálogos restritos a certas vertentes metodológicas e a certas linhas de entendimento da assexualidade. Muita dificuldade tivemos em organizar e categorizar as pesquisas, já que, na maior parte das vezes, não é possível enquadrá-las e isolá-las em linhas unívocas ou simplistas, o que mostra a relativa complexidade das produções. No entanto, achamos que alguma sistematização seja necessária para o esclarecimento das estratégias de poder-saber que têm sido utilizadas e produzidas nesse processo de apropriação acadêmica de um acontecimento social. Inicialmente, partimos de uma sistematização proposta anteriormente (PRZYBYLO, 2012). Nesse capítulo, buscamos manter e ampliar as categorias inicialmente propostas por essa autora, atualizando e ampliando-a. A partir de determinado ponto, optamos por sintetizar as definições, tendências e discussões que têm sido recorrentes nesse campo. Por fim, apresentamos uma leitura completa de todo o material levantado, organizando-o em função das abordagens metodológicas utilizadas. No segundo capítulo, além de nos valermos da bibliografia sobre a assexualidade, buscamos outras leituras acadêmicas sobre a produção de subjetividade, na atualidade, bem como procuramos ambientar e trazer elementos dos discursos presentes em algumas comunidades assexuais. No sítio da AVEN, há um cabeçalho que atravessa todas as páginas e subseções, com um logotipo e uma frase associada, onde se lê a definição que a maioria dos assexuais e até alguns pesquisadores repetem como um mantra: “Um assexual é uma pessoa que não 17 sente atração sexual” (AVEN, 2014, http://www.asexuality.org/home/). Uma mensagem de boas-vindas explica que estamos na maior comunidade virtual de assexuais e que esta reúne o maior arquivo de materiais sobre o assunto. No rodapé da página, o internauta encontrará links para o redirecionamento a sítios em mais 15 idiomas, incluindo português, russo e chinês. O sitio também se propõe a tarefa de reunir diversos links a respeito da assexualidade. Tem uma seção destinada às aparições na mídia, tanto em textos de jornais quanto entrevistas ou simples menções ao grupo. Outra seção reúne os trabalhos científicos publicados sobre o tema, como artigos em revistas acadêmicas, teses e dissertações. Destacamos o tópico nomeado Perspectivas Assexuais, onde há uma série de textos, de diferentes colaboradores, que versam sobre alguns tópicos comuns a todos, como a descoberta da própria assexualidade; a maneira de lidar com a família e com a sociedade, além de trazer opiniões e experiências sobre os assuntos relacionados à assexualidade. Há também um movimentado fórum, organizado em tópicos que vão desde a assexualidade, visibilidade e educação, até discussões sobre comunidade e identidade. No sítio da comunidade assexual brasileira (www.forumassexual.org), denominada A2, encontramos o mesmo formato da AVEN: um cabeçalho que define o assexual como “[...] uma pessoa que não tem interesse na prática sexual com outra pessoa” (A2, 2014). De forma análoga, há igualmente uma série de tópicos e subtópicos de discussão e materiais que foram veiculados na mídia. Essa comunidade mantém ainda uma página na rede social facebook, com várias postagens em tons informativos, algumas muito bem-humoradas. No Brasil, há também um blog da pesquisadora Elisabete de Oliveira (http://assexualidades.blogspot.com.br). Doutoranda em Educação na Universidade de São Paulo, ela reúne algum material com o qual vem trabalhando, posta algumas resenhas de textos sobre o tema e a sua produção, principalmente entrevistas na mídia brasileira. Por fim, baseamo-nos nos conceitos e linhas de argumentação delineados por Foucault, sobretudo em sua História da Sexualidade, para situar a assexualidade dentro das produções subjetivas típicas do dispositivo de sexualidade. 18 4. A HISTÓRIA DA ASSEXUALIDADE O relatório Kinsey e os primeiros trabalhos Uma parte de nossa revisão bibliográfica (YULE, 2011; MACINNIS; HODSON, 2012; PRZYBYLO, 2012) apontou que a primeira vez que a categoria assexual apareceu foi no célebre relatório de Alfred Kinsey, publicado em 1948 e 1953, cuja principal característica foi a produção estatística das informações sobre as diferentes práticas sexuais da população branca estadunidense. Porém, ao tomarmos para leitura essas obras, pudemos notar que a categoria assexual não se encontrava lá; ainda assim, mantivemos essa referência, mas a ampliamos e a pormenorizamos, para fins de esclarecimento. Alfred Kinsey coordenou uma grande pesquisa sobre a sexualidade, em 1938 e 1953, com a participação de mais de 18.000 indivíduos. As duas publicações resultantes, Sexual Behavior in the Human Male (1948) e Sexual Behavior in the Human Female (1953), das quais somente a segunda foi publicada no Brasil, mostram que Kinsey e seus colaboradores utilizaram o método taxionômico (aquele tipicamente usado pela scientia sexualis, tal como expusemos no último capítulo) nomeando, descrevendo e classificando as condutas sexuais relatadas. No entanto, esse trabalho de classificação foi feito diretamente a partir dos relatos, de modo a não contemplar qualquer conceito anterior, como psicopatia, parafilia, perversão, assim como buscou ser isento das concepções morais que comumente vêm atreladas às práticas sexuais. Sena (2007) escreve que Kinsey esperava que a repercussão de suas pesquisas fosse a de “[...] informar que o que os indivíduos consideravam conduta anormal não era ‘tão anormal’ quanto o indivíduo supunha” (p. 175). A partir desse grande levantamento dos comportamentos sexuais, elaborou- se uma série de correlações estatísticas e uma escala de orientação sexual, a escala HH (escala Heterossexualidade-Homossexualidade). Trata-se de uma escala de 7 pontos, onde 0 é exclusivamente heterossexual, 6 é exclusivamente homossexual e 3 corresponde à bissexualidade. Nossa leitura dessas obras revelou que, de fato, a assexualidade não está contemplada em nenhuma das duas. Mais do que isso, em Sexual Behavior of the Human Male (1948), há uma clara associação 19 entre a baixa ocorrência de desejo sexual e a sublimação, a religiosidade, a deficiência mental e física, a timidez e a inibição (KINSEY et al, p. 201-210). Essa publicação justifica a verificação de pessoas com níveis muito baixos de desejo sexual, explicando que alguns de seus entrevistados possuíam debilitação física ou mental permanentes, outros eram ex-detentos, que, por terem passado muito tempo confinados e não aceitarem manter relações homoeróticas ou se masturbarem, teriam baixado sua libido; no entanto, sabia-se que a maioria desses sujeitos era extremamente tímida, tinha medo de entrar em contato com outras pessoas. Kinsey (1948) ainda classifica parte desses últimos como “apáticos” (p. 209). Kinsey e seus colaboradores (1948, p. 315) também associam a falta de atividade sexual à adolescência tardia, o que os colocam na trilha do pressuposto de que a sexualidade é fisiologicamente causada. Uma parte de suas análises concentrou-se em verificar a frequência das atividades sexuais associada à idade de maturação biológica. Dessa forma, quase 20% dos adolescentes tardios não tiveram coito até a idade de 35 anos e se mostram altamente dependentes da masturbação e de fantasias noturnas para chegarem à ejaculação. Esse grupo chega a inteirar 3% da amostra de homens adultos. O grupo “X”, que tem sido associado aos assexuais em alguns dos trabalhos por nós revisados, nem de longe se refere à assexualidade, em seu sentido corrente. Nas tabelas estatísticas e gráficos elaborados por Kinsey (1948), o grupo “X” é o único que não compõe a distribuição das porcentagens na escala HH, por representar indivíduos os quais não relataram qualquer experiência, contato ou comportamento sexual, como é o caso predominante de crianças de 5 anos. Nas tabelas apresentadas, vê-se que gradativamente esse grupo vai diminuindo até quase desaparecer, na idade de 19 anos, e reaparecer muito ligeiramente, após os 40 anos, em pessoas casadas, representando cerca de 3% da amostra. Isso também é observável no Sexual Behavior of the Human Female (1953), porém, essa porcentagem varia de 14% a 19% em mulheres solteiras e cai para 1% a 3% do total de mulheres casadas que não relataram qualquer atividade sexual envolvendo outras pessoas. Pode-se fazer uma ressalva: se fosse necessário localizar a assexualidade, dentro do trabalho de Kinsey, ainda que essa localização seja bastante anacrônica, ela certamente estaria contida no grupo “X”, entretanto, a caracterização geral da assexualidade, tal como os assexuais a descrevem hoje, 20 não poderia ter sido contemplada por Kinsey e seus colaboradores, de acordo não apenas com sua proposta metodológica e epistemológica, mas também pelo objetivo geral de seu estudo. A ideia de assexualidade humana só apareceria realmente em 1977, em uma coletânea de artigos sobre minorias sexuais oprimidas (GOCHROS; GOCHROS, 1977), em que há um capítulo intitulado: “Mulheres Autoeróticas e Assexuais: dois grupos invisíveis” (JOHNSON, 1977). No referido capítulo, Myra T. Johnson (1977) levanta o problema da invisibilidade e da opressão à assexualidade de algumas mulheres, embasada por uma série de cartas enviadas a editores de revistas femininas. Ela ocupou-se daquelas cartas com relatos de mulheres que reclamavam da extrema sexualização do conteúdo da revista, muitas vezes incomodando-se com a imagem do feminino retratada nessas publicações, sob a alegação de elas mesmas não se viam contempladas por tal conteúdo. Atuando em defesa da diversidade e da liberdade sexual, Johnson (1977) assume o ponto de vista dessas mulheres e faz uma severa crítica à ditadura do sexo e à incompleta revolução sexual que estava em curso. Assim, a assexualidade é descrita de uma maneira muito próxima, senão idêntica, à contemporânea, e surge em um contexto igualmente similar, com o mesmo sentido que muitas vezes observamos hoje: como a tentativa de visibilidade de uma diferença sexual impensável em um contexto de imperativo sexual. Já em 1980, Michael D. Storms, da Universidade do Kansas, escreve um artigo intitulado Teorias da Orientação Sexual, no qual desenvolve um novo modelo teórico de orientação sexual. Storms (1980) argumenta que os modelos que se tinham até então eram baseados no papel de gênero desempenhado e não na orientação erótica; com efeito, o modelo orientado pelo papel desempenhado sustenta que o sujeito bissexual teria um desejo menos heterossexual do que os totalmente heterossexuais, ao mesmo tempo em que é menos homossexual do que os totalmente homossexuais. Para resolver esse problema, Storms (1980) propõe um modelo fundamentado na orientação erótica, na qual o desejo é bidimensional e funcionaria de maneira independente. Ao transpor esse modelo para um gráfico cartesiano, obtêm-se não três, mas quatro possibilidades: os assexuais seriam aqueles sujeitos com baixa orientação erótica para ambos os eixos. Como o objetivo de seu trabalho era construir um modelo mais fidedigno à experiência homo e 21 bissexual, Storms (1980) não se detém em discorrer sobre a assexualidade em seu texto. Alguns anos depois, em um estudo de 1983, Nurius menciona novamente a assexualidade, conceituando-a como a quarta orientação sexual. A despeito de propor esse conceito, essa autora tinha como foco a comparação entre comportamentos e definições de heterossexualidade e homossexualidade. Tal como Storms (1980), ela colocou em um plano cartesiano os relatos de preferências sexuais baseados em uma escala de atividade e preferência sexual (SAPS- Sexual Activity and Preference Scale). Os participantes preencheram duas vezes a escala, uma com a frequência com que realmente praticam certos comportamentos sexuais, outra com a frequência com a qual gostariam de praticar. O plano cartesiano foi preenchido de maneira que comportamentos ou desejos heterossexuais eram alocados ao longo ou próximos ao eixo x; comportamentos ou desejos considerados homossexuais eram alocados ao longo ou próximos ao eixo y; e comportamentos ou desejos bissexuais, alocados em um ponto equidistante entre os dois eixos. Assim, a coordenada 0,0 corresponderia à assexualidade, sendo pontuada pela ausência de desejo ou comportamento. Diferentemente de Storms (1980), Nurius (1983) presta-se a analisar a assexualidade, associando-a a patologias e traços negativos de personalidade, não considerando a assexualidade como uma possibilidade saudável, tal como Johnson (1977) e os assexuais a defendem, hoje. Em 1986, em um artigo de Masters, Johnson e Kolodny, a assexualidade também é contemplada, todavia, no mesmo sentido patológico já atribuído por Nurius (1983). A argumentação desses autores (MASTERS; JOHNSON; KOLODNY, 1986) incluem a assexualidade como uma disfunção típica da população homossexual, deduzindo, com amparao em outra pesquisa, que cerca de 11% das lésbicas e 16% dos gays seriam assexuais. No início da década de 1990, Berkey e colaboradores (1990) propuseram uma escala multidimensional da sexualidade, em que a assexualidade era uma das possibilidades de orientação sexual. No trabalho de validação dessa escala, 148 participantes preencheram um questionário com cerca de 30 questões, das quais cinco contemplavam a assexualidade. A despeito disso, nenhum dos participantes marcou esses itens, mantendo-os apenas como uma possibilidade do ponto de vista teórico. 22 Pouco anos depois, em um livro intitulado Boston Marriages: Romantic but asexual relationships among contemporary lesbians (ROTHBLUM; BREHONY, 1993), o tema da assexualidade é tratado do início ao fim, embora atrelado aos relacionamentos lésbicos. O livro é uma coletânea de artigos teóricos e estórias pessoais, organizados pela psicóloga Esther D. Rothblum e pela psicoterapeuta Kathleen A. Brehony. Ao descrever o processo de pesquisa, elas afirmam que pensar a partir do prisma das relações assexuais as forçou a rever suas próprias premissas sobre a sexualidade. Nesse sentido, elas escrevem que “[...] esperam que os leitores sejam desafiados a reconsiderarem as premissas do que constitui as relações lésbicas”1 (ROTHBLUM; BREHONY, 1993, p. 12). Boston Marriages ou Casamentos de Boston consagrou-se como uma expressão que denomina uma relação sem sexo. As autoras (ROTHBLUM; BREHONY, 1993) explicam que o termo remonta ao final do século XIX, quando muitas jovens daquela cidade saíam da casa de seus pais para dividir casas alugadas com outras mulheres, a fim de ter mais liberdade e se livrarem da obrigação do casamento. Algumas fontes citadas pelas autoras apontam que essa expressão reflete a invisibilidade da sexualidade lésbica, defendendo que, de fato, havia muito mais do que somente uma amizade e uma fuga ao casamento heterossexual, naquelas relações. De qualquer maneira, a expressão ficou consagrada entre os casais de lésbicas como uma relação amorosa na qual o sexo não é praticado. Na verdade, os artigos desse livro abrem outras possibilidades para se repensar os critérios de intimidade nos relacionamentos e, apesar de construir-se todo em torno do tema da lesbianidade, pode ser útil para o entendimento da identidade assexual que agora se impõe, já que, nessa obra, a assexualidade é definida em termos de “ausência de atividade sexual”, deixando como secundário o desejo e a atração. Um pouco mais adiante, em um trabalho sobre transexuais publicado no ano de 2000, Green refere-se à assexualidade presente em algumas pessoas transexuais por ele estudadas. Nesse trabalho, ele não chega a aprofundar-se no tema da assexualidade, explicando somente que o termo remete à “[...] falta de 1 “Hope that readers will be challenged to reconsider the very basis of what constitutes a lesbian relationship”. 23 atração ou comportamento sexual” (GREEN, 2000, p. 791 apud PRAUSE; GRAHAN, 2007). Pode-se visualizar, já nessas primeiras aparições acadêmicas da ideia de assexualidade, a matriz das produções por vir. Fazendo a imagem de trilhas de investigação e entendimento, vemos que estão postos aí os principais caminhos que serão implementados, ampliados e seguidos pelos pesquisadores mais recentes, às vezes declaradamente, às vezes intuitivamente. Cronologicamente, a primeira linha a surgir, a partir de Johnson (1977), é aquela que toma a assexualidade como mais uma possibilidade de manifestação da sexualidade humana, encoberta, ou em termos mais atuais, invisibilizada por um discurso hegemônico de naturalidade de uma sexualidade sexual e de sua inexorável prática. Este é um dos grandes caminhos de entendimento tomados pelo movimento assexual, com posteriores variações e bifurcamentos. Na sequência, a ideia de uma orientação sexual assexual, tal como preconiza Storms (1980), seguido por Nurius (1983), será igualmente deflagradora de uma via privilegiada do entendimento dessa questão. Embora muitos dos autores posteriores não a citem diretamente, é notável como a ideia de orientação sexual permeia, embasa e concentra inúmeras pesquisas e linhas de argumentação, por parte dos próprios assexuais. Especulamos que isso aconteça por se tratar de uma concepção bastante difundida na sociedade como um todo. Malgrado Berkey (1990) também se alinhe à ideia de uma orientação sexual assexual, conjuntamente com a associação da assexualidade com o campo das patologias, tal como Nurius (1983), ele o faz baseado em pesquisas empíricas, abrindo uma grande via de abordagem do tema, que é ainda seguido por Green (2000). Pode-se apontar que essa é atualmente a maior corrente de compreensão e produção de inteligibilidade sobre a assexualidade, culminando, porém, não na patologização, mas na busca por provas e dados em favor da despatologização da assexualidade. Por fim, Rothblum e Brehony (1993) podem ser consideradas as pioneiras da ideia de dissociação entre relacionamentos afetivos e sexuais e a discussão das micropolíticas de identidade que os usos da sexualidade envolvem. 24 O surgimento das comunidades virtuais e as pesquisas atuais A explosão da assexualidade enquanto um fenômeno de grupo tem início em 2000, com a criação de um grupo virtual no sítio Yahoo, chamado Haven for the Human Amoeba - HHA (Refúgio para as amebas humanas). O modelo de grupos virtuais do Yahoo era basicamente centrado na troca coletiva de e-mails e na conservação de tópicos de discussão online. Hinderliter (2013) salienta que o grupo cresceu exponencialmente até meados do ano seguinte, 2001, tanto em quantidade de membros como em conteúdo discursivo assexual produzido. Nesse mesmo ano de 2001, o estadunidense David Jay, recém-ingressado na universidade, criou uma página na internet com a intenção de dar visibilidade à assexualidade e nomeou-a AVEN (Asexual Visibilty and Education Network ou Rede Assexual de Visibilidade e Educação). De acordo com Hinderliter (2013), David Jay não sabia da existência da Haven, ao criar a AVEN, somente algum tempo depois é que ele teria encontrado a HHA e mantido colaborações mútuas, até o ponto em que o grande número de visitas e matérias no sítio da AVEN exigiu a mudança para um domínio próprio. Não podemos deixar de apontar que há uma coincidência sonora entre Haven e AVEN, a qual aponta para uma relação direta entre ambas, porém, na medida em que Hinderliter (2013) sustenta que o fundador da AVEN desconhecia a HAVEN, no momento da criação de seu sítio, é inevitável especularmos que muito provavelmente se trate de uma narrativa mítica, alçando o fundador da atual grande comunidade assexual como uma espécie de “messias”, um homem sensível às causas de seu tempo ou no mínimo um legítimo pioneiro, um realizador visionário, com toda a carga semântica que isso pode ter, em uma sociedade como a estadunidense. Isso, em certo sentido, acentua a força institucional da AVEN de uma forma ou de outra. Quer dizer, se produção narrativa intencional ou se reprodução dos acontecimentos, esta é a única versão circulando, e seu efeito é sem dúvida aquele de reforçar uma forte aura em torno dessa comunidade. De qualquer modo, Hinderliter (2013) também dá outros indicativos de uma relação entre a AVEN e a HAVEN, uma vez que marca a diferenciação da primeira no que tange à ideia de quem poderia ser considerado assexual e, portanto, participar da comunidade, e quem não poderia, enfatizando o desejo de David Jay de pensar a assexualidade sem incorrer em discursos preconceituosos ou disputas 25 menores, postulando, para isso, uma definição bastante ampla para contemplar o maior número de pessoas possível (HINDERLITER, 2013), sublinhando, assim, uma política inclusiva da AVEN em detrimento de uma política excludente e pouco abrangente da HAVEN e outras comunidades. Com o permanente trabalho de divulgação na mídia encabeçado pela política de David Jay, o tema da assexualidade começa a suscitar inúmeros debates públicos, acendendo o interesse acadêmico por essa questão. Na medida em que tomamos como interesse desta pesquisa, conforme nossas leituras e as ideias expostas no último capítulo, o exame das produções discursivas de legitimação e produção de saber/poder da ciência do sexo, não enveredaremos por uma análise mais detalhada e embasada das políticas, estratégias e produções narrativas da comunidade assexual. Lembramos, porém, que uma porção muito significativa das políticas dos assexuais se ampara e se constrói a partir dos trabalhos acadêmicos ou meramente os reproduz. Na esteira da objetificação acadêmica da assexualidade, várias correntes, por vezes contraditórias, irão produzir discursos, inteligibilidades, definições, construindo formas de abordar o tema e se erigindo, com raras exceções, em função do papel legitimador conferido à produção científica, reproduzindo argumentos essencialistas e universalistas e representando a assexualidade como uma grande descoberta científica – daquele tipo que sempre esteve lá, mas ninguém teria observado antes. Definições e abordagens atuais Continuando na trilha aberta por Storms (1980), Nurius (1983) e Green (2000), estão os quatro trabalhos de Bogaert (2004; 2006; 2012a; 2012b), os quais sustentam a assexualidade como uma falta de orientação sexual e, mais recentemente, as pesquisas de Yule e colaboradores (2014) e MacNeela e Murphy (2015), que definem a assexualidade como uma orientação sexual. Como claro legado da scientia sexualis tradicional, aquela que busca classificar, circunscrever e definir comportamentos específicos para determinadas identidades, tal como expusemos no último capítulo desta tese, essa concepção é também utilizada pela AVEN e, consequentemente, pelos próprios assexuais, conforme destacam as pesquisas de Carrigan (2011) e Brotto et al. (2010). 26 Nesse sentido, Pinto (2014) faz um aparente retorno àquelas perspectivas sobre a sexualidade datadas de antes dos anos de 1990. Aparentemente, porque compreendemos que ela não voltou necessariamente à teoria de Storms (1980), mas repete essa teoria, com base nos sítios assexuais, exemplificando a tendência desses trabalhos em simplesmente reproduzir os discursos proferidos e sustentados nos sítios assexuais. Além de trabalhar com a ideia de que a assexualidade é uma orientação sexual, explicada em termos de “[...] gênero(s) para os quais um indivíduo é atraído” (p. 335), essa pesquisadora traz uma definição sexualidade como um continuum de desejo e atração, no qual os sujeitos sexuais e os assexuais se opõem nos dois extremos dessa linha. Na intersecção entre as tentativas de compreensão puramente através da ideia de desejo e atração ou através da ideia de orientação sexual, está a própria definição da AVEN, que toma a assexualidade como uma orientação sexual caracterizada pela falta de atração sexual, definição esta que não exclui a eventual presença de desejo sexual ou comportamentos sexuais. Sobre essa concepção, Brigeiro (2013) analisa que tal é “[...] explicitada como uma condição que pressupõe uma ausência de controle dos sujeitos sobre o seu processo de constituição” (p. 265). A tentativa de explicar a assexualidade a partir de uma “falta de atração sexual” também tem sido recorrente em uma certa parcela das pesquisas (STORMS, 1980; GREEN, 2000; PRAUSE; GRAHAM, 2007; BROTTO et al., 2010; BROTTO; YULE, 2011; YULE, 2011; YULE et al., 2014). Todavia, ressaltamos que, tal como na concepção proposta pela AVEN, congruente inclusive com as conclusões de várias dessas pesquisas, especialmente aquelas datadas do ano de 2007 até o presente, essa falta de atração sexual não implica falta de algum tipo de desejo sexual, levando à necessária conclusão de que os assexuais possuem desejo, mas não o desejo de relação. De forma muito parecida com o que acontece com a concepção de orientação sexual, esses trabalhos não se preocupam em especificar o que eles estão chamando de desejo e atração sexual, tomando-as como definições unívocas e universalmente subentendidas. Muitos desses trabalhos, porém, asseguram-se na exploração empírica da assexualidade, reproduzindo, confirmando e conferindo um status de científico aos discursos dos assexuais, de maneira que se faz necessário assinalar que essas pesquisas tomam por científico muito mais os métodos do que a 27 produção filosófico-epistemológica, não lançando um olhar mais atento ou promovendo discussões e cotejamentos com alguma noção de sujeito, de desejo e até mesmo de orientação sexual que não seja aquela alcançada por seus instrumentos de coleta de dados. Como é comum, quando se trata do tema da sexualidade, alguns pesquisadores partem da premissa pura e tão somente de uma biologia que envolve, explica e define os usos do sexo. Nesse sentido, alguns estudos, como os de Bogaert (2004), Prause e Graham (2007) e Lemos (2011), buscam as correlações fisiológicas e biológicas, os chamados fatores associados, como numa frenologia ampliada. Nessa linha, há também a tentativa de se evidenciar a assexualidade no processo de desenvolvimento anatomo-fisiológico (YULE, 2011). Nessa corrente, é muito comum também a herança (des)patologizante do dispositivo de sexualidade, segundo expomos no último capítulo desta tese, de sorte que vários autores se preocupam fortemente com a não inserção da assexualidade no rol das disfunções previstas nos DSMs (BOGAERT, 2006; PRAUSE; GRAHAM, 2007; BROTTO et al., 2010) ou se preocupam em promover investigações que testem as possibilidades de a assexualidade ser uma disfunção orgânica, tendo concluído negativamente (BROTTO; YULE, 2011). É interessante notar que os trabalhos os quais revelam uma relação direta com a sexologia geralmente se ancoram em metodologias empíricas e colocam-se como neutros, suprateóricos e livres de ideologias. Nesses trabalhos, pode-se identificar o uso de escalas e questionários fechados, que, através de perguntas e questionamentos nada neutros, enquadram o fenômeno. Esse é o caso das pesquisas de Prause e Graham (2007), Brotto et al. (2010), Brotto e Yule (2011), Lemos (2011) e Yule (2011). No caso de Yule (2011), a autora buscou desenvolver um questionário, tipo teste, para diagnosticar assexuais, acompanhado de uma escala de medida da assexualidade. Por sua vez, em Brotto et al. (2014), apresenta-se uma pesquisa sobre os indicadores biológicos da assexualidade, considerando-se a razão métrica do comprimento dos dedos, a sequência fraternal de nascimento e a lateralidade (destro ou canhoto) como indicadores do desenvolvimento neurológico ligados à orientação sexual. Há ainda uma forte corrente de essência darwinista, porém invertida, no que se refere às explicações e às tentativas de legitimação da assexualidade pelo uso 28 dos conhecimentos científicos tradicionais. A própria ideia inicial das comunidades virtuais dos assexuais apontava para esse caminho, quando comparavam os assexuais às amebas, organismos de reprodução assexuada, a fim de buscar uma referência concreta e biológica para a assexualidade humana. Bogaert (2012b) dedica um capítulo inteiro de seu livro a explicar a história da assexualidade humana com base em uma história natural da evolução dos modos de reprodução dos organismos, argumentando que a assexualidade não só sempre fez parte do repertório biológico do planeta Terra, como é a sua forma mais antiga. Não podemos deixar de assinalar que, assim como a definição essencialista de assexualidade subverte e desafia a definição essencialista de sexualidade, esta visão, por sua vez, subverte a tradição darwiniana, a qual parte da premissa de que a adaptação é mais eficiente através da pluralidade genética e, portanto, da reprodução sexuada. Essa noção, embora bastante ingênua, é uma das tentativas mais vigorosas de naturalizar a assexualidade e disfarçar tal fenômeno com uma roupagem de “simples e elementar”. Outra expressão acadêmica dessa manobra é a tese de doutorado recém- defendida no Brasil, cujo título, “Minha vida de ameba" (OLIVEIRA, 2015), repete exatamente essa noção. Embora ainda não tenhamos tido acesso ao conteúdo completo desse trabalho, por ser ainda muito recente, é inevitável associar, ao menos esse título, a essa vertente de entendimento e produção de inteligibilidade. Tão radical quanto ele é a pesquisa de Portillo e Paredes (2011), do Instituto de Neurobiología da Universidade Nacional Autônoma do México, na qual buscam examinar as possibilidades biológicas da assexualidade, por meio do estudo de algumas espécies de mamíferos. Eles explicam que pesquisas com populações de diferentes espécies de mamíferos revelam que há uma recorrência que varia de 1% a 5% de machos que não copulam, designados não copulantes (NC). Existe uma área do cérebro dos mamíferos chamada Área Pré-Óptica Média (APM), que é a estrutura neuronal responsável pelo comportamento sexual, tanto em machos quanto em fêmeas. Quando os machos que copulam entram em contato com os odores de uma fêmea receptiva, essa área (APM) apresenta forte atividade, o que não acontece com machos NC. Ademais, observou-se que o tamanho dessas estruturas em machos NC são menores do que nos machos copuladores, similares, em tamanho, ao das fêmeas. O estudo (PORTILLO; PAREDES, 2011) conclui ainda que o APM dos machos não copuladores evidencia alterações nos receptores de 29 testosterona e estradiol, hormônios responsáveis por ativar os comportamentos sexuais. Ressaltamos que esse tipo de ciência tem sido bastante rechaçada pelos ativistas das sexualidades, embora tenha encontrado boa ressonância no grupo assexual, justamente porque funciona como um legitimador inquestionável (para aquela parcela que aceita essas premissas) da assexualidade. Uma das associações mais recorrentes das pesquisas sobre a assexualidade remonta à velha relação entre sexualidade e saúde. Enquanto os trabalhos iniciais se preocuparam sobremaneira em investigar a possibilidade de a assexualidade ser fruto de algum tipo de mazela psicológica (BOGAERT 2004; 2006; BROTTO et al., 2010), o movimento seguinte foi aquele de produzir discursos orientados para a promoção da saúde mental dessa população (BROTTO; YULE, 2011; HAEFNER, 2011). No entanto, os assexuais, por eles mesmos, não associam suas assexualidades a distúrbios sexuais, hormonais ou psicológicos (YULE et al., 2014). Posteriormente, Chasin (2013) procurou desvincular a assexualidade de quaisquer patologias, argumentando que, se os assexuais são acometidos por algum tipo de sofrimento em decorrência dessa condição, é porque a sociedade os estigmatiza e lhes imprime um rótulo de inadequação, sendo, portanto, necessário que o contexto social mude e se adeque a essa emergente experiência (a)sexual. Nessa mesma linha, há também um empenho do próprio grupo de assexuais em despatologizar a assexualidade, como exposto no trabalho de Hinderliter (2013), que narra os esforços práticos e teóricos dos assexuais para diferenciar a assexualidade dos distúrbios descritos nos DSMs e inscrevê-la no texto da próxima edição do DSM como uma exceção a tais distúrbios. As pesquisas de Brotto et al. (2010), Haefner (2011) e Sundrud (2011) apontam igualmente para o desejo dos assexuais de acabar com o estigma social em torno da assexualidade, sempre citando o trabalho de visibilização e informação da AVEN. Nesse sentido, tem-se ainda o trabalho de Oliveira (2013). Colocando-se do ponto de vista da educação, a brasileira tem a preocupação central de desestigmatizar os assexuais, relatando que estes sofrem discriminação homofóbica no espaço escolar. Ela claramente se vê como uma porta voz da política de visibilidade e desestigmação da AVEN, porém, no âmbito escolar brasileiro. Há, em acréscimo, aquelas pesquisas que procuraram investigar os efeitos prejudiciais do estigma assexual (MACINNIS; HODSON, 2012; BROTTO et al., 30 2013; MACNEELA; MURPHY, 2015). O artigo de Yule et al. de 2013 parte dos dados produzidos por suas pesquisas anteriores, postulando uma hipótese inversa à comum associação entre patologia e identidade assexual, questionando os prejuízos psicológicos decorrentes do efeito negativo de ser um assexual em uma sociedade não assexual. Muito mais enfático é o artigo de MacInnis e Hodson (2012), no qual eles desenvolvem toda uma investigação do preconceito sofrido pelos assexuais por conta de suas identidades. Amparadas por essa pesquisa, Brotto et al. (2013) também se propuseram estudar os efeitos do estigma de ser assexual correlacionando índices de saúde e o funcionamento interpessoal, comparando assexuais, não-heterossexuais e heterossexuais nesses aspectos. Já o pesquisador Australiano Terry (2012), apesar de não se dedicar diretamente ao tema da assexualidade, tem o seu trabalho sobre o celibato laico citado inúmeras vezes nas pesquisas sobre a assexualidade. Suas entrevistas mostram que a opção pelo celibato é um tipo de defesa contra a ingovernabilidade do sexo, agravada pelo imperativo sexual da sociedade atual. Uma tese muito similar é a de Bogaert (2012b), no capítulo intitulado “A loucura do sexo”. Nesse capítulo, ele sustenta a tese de que o sexo não faz sentido e de que a maior parte da força do sexo está não no ato, mas em seu caráter prospectivo, criando uma inclinação psicológica incontrolável, tal como na adição química, amparada, porém, pela necessidade biológica de espalhar os genes. Nesse mesmo capítulo, Bogaert (2012b) envereda sua discussão pela ordinária associação entre a sexualidade e os chamados comportamentos de risco. Outros autores partem da compreensão da assexualidade pelo prisma da identidade (SCHERRER, 2008; CERANKOWSKI; MILKS, 2010; MUNÁRRIZ, 2010; POSTON; BAUMBLE, 2010; SUNDRUD, 2011; CHASIN, 2013; HINDERLITER, 2013; GRESSGÅRD, 2013; CHU, 2014; MACNEELA; MURPHY, 2015). Com exceção da pesquisa de Poston e Baumble (2010), esses trabalhos trazem definições mais refinadas e alinhadas a alguma filosofia do sujeito e concepções ligadas às áreas da psicologia não psicometrista. Consequentemente, aqui encontramos discussões mais engajadas e críticas, as quais não deixam de levar os discursos dos assexuais em consideração, contudo, nem por isso esgotam aí suas possibilidades de entendimento da questão. Alguns desses trabalhos defendem que a identidade assexual se constrói a partir, especialmente, da comunidade virtual (SCHERRER, 2008; MUNÁRRIZ, 2010; 31 HINDERLITER, 2013; CHASIN, 2013; CHU, 2014; MACNEELA; MURPHY, 2015), outros, a partir das atuais políticas neoliberais de cidadania (CERANKOWSKI; MILKS, 2010; GRESSGÅRD, 2013), e outros, ainda, a partir de diferentes teorias de identidade (SUNDRUD, 2011; CHU, 2014; MACNEELA; MURPHY, 2015). A despeito de não se amparar em uma definição da assexualidade com base na identidade, Bogaert (2012b) traz um capítulo sobre a identidade assexual, onde ele versa sobre a importância das identidades como um operador de reconhecimento socialização de modo geral, colocando a identidade assexual como uma resposta a essas necessidades humanas. Mantendo sua retórica um tanto rasa, ele se propõe explicar a questão das políticas identitárias que rondam a assexualidade com um desenvergonhado “porque sim”, porque “causas são importantes para as pessoas” (p. 147). No ano de 2008, Scherrer inaugura as pesquisas que abordam a assexualidade como um fenômeno cultural, produzido pelos paradigmas atuais de utilização e representação do sexo e da sexualidade. Na sequência, Cerankowski e Milks (2010) partem de uma leitura feminista e queer para argumentar que a assexualidade é uma saída instigada pela opressão do imperativo sexual da sociedade atual. O livro organizado por Cerankowski e Milks (2014) dedica uma seção inteira, composta por três capítulos, para discutir tanto a assexualidade como uma causa política como seus potenciais usos e implicações. Já Munárriz (2010) e Carrigan (2011) veem a assexualidade também como um fenômeno cultural, sem, no entanto, se aprofundarem em discussões sobre as políticas culturais ou sexuais. Nessa mesma linha está a pesquisadora canadense Ela Przybylo (2011), a qual define a assexualidade como um produto da, e uma reação à sociedade hipersexualizada. Amparada por leituras da chamada sociedade pós-moderna, ela situa a assexualidade como uma identidade sintomática da desorientação e da falência de referenciais que assolam a sociedade atual. Em seu texto de 2012, ela reafirma a assexualidade como uma construção histórico-social típica do contexto atual. De forma análoga, Gressgård (2013) reconhece a identidade assexual como possível com a proposta neoliberal de autorregulação da cidadania e com atual configuração dos sentidos de cidadania sexual. Várias dessas pesquisas ressaltam que parte importante da identidade assexual é a sua diferenciação às normas sociais (PRZYBYLO, 2011; HAEFNER, 2011; MACNELLA; MARPHY, 2015). Nesse sentido, Haefner (2011) e MacNeela e 32 Murphy (2015) trazem recortes de discursos os quais mostram como os assexuais maldizem a sexualidade compulsória e se sentem prejudicados por esta, visto que eles frustram tais expectativas sociais com relação aos usos do sexo. Já Sundrud (2011) sistematiza os discursos de seus entrevistados em quatro temas, dos quais dois se referem diretamente à assexualidade como uma ruptura e construção de alternativas à expectativa heteronormativa. Produções sobre a visão dos assexuais acerca de si mesmos Na medida em que alguns estudos investigam a maneira como os assexuais narram suas visões sobre a sexualidade, tem sido comum aparecer uma noção de sexo como penetração (SCHERRER, 2008; LEMOS, 2011), a noção bastante heteronormativa de casamento (SCHERRER, 2010; LEMOS, 2011) e relacionamento amoroso como dependente do sexo (HAEFNER, 2011; AICKEN et al., 2013). No que toca a este último quesito, Aicken et al. (2013) afirmam que mais da metade das mulheres assexuais por eles pesquisadas concordaram ou concordaram fortemente com a afirmação de que “[...] sexo é a parte mais importante de qualquer relacionamento”2 (AICKEN et al., 2013, p.129). Algumas pesquisas enfatizam que a atividade sexual é vista de maneira bastante peculiar pelos assexuais, porque atividades que não envolvem penetração ou interação genital-genital (SCHERRER, 2008) e até mesmo atividades masturbatórias (BROTTO et al., 2010) são significadas como meras atividades fisiológicas, as quais nada têm de emocional e sexual. Ainda, tem-se que grande parte dos pesquisados (PRAUSE; GRAHAM, 2007; SCHERRER, 2008) fazem uma clara distinção entre experiência sexual e atração sexual, concluindo que a identidade assexual se baseia muito mais em uma diferenciação pela ausência de desejo do que pela falta de experiências. A busca por parcerias românticas também é um tema bastante discutido, em vários trabalhos (BOGAERT, 2004; SCHERRER, 2008; BROTTO et al., 2010; CARRIGAN, 2011), de modo que a definição das fronteiras entre a afetividade física e a interação sexual se mostra importante para uma identidade assexual, sendo 2 “[…] sex is the most important part of any marriage or relationship”. 33 tema de inúmeros falas (SCHERRER, 2008; BROTTO et al., 2010) e discussões (GRESGAARD, 2013; HAEFNER, 2011). Nesse sentido, destacamos a tese de doutoramento de Haefner (2011), onde ela procura desenvolver toda uma teoria sobre como os assexuais podem negociar os limites sexuais, em seus relacionamentos amorosos. Dentre os que namoram parceiros que não são assexuais, há aqueles que se colocam a favor de que o parceiro sexual possa satisfazer essa necessidade fora do relacionamento, com a condição de que não se apaixone ou se envolva também amorosamente. A maioria dos pesquisados de Haefner (2011), porém, relata que fariam, ou fazem, sexo consensual indesejado. Quer dizer, apesar de não desejarem fazer sexo, eles aceitam satisfazer as necessidades de seus parceiros. Assim, alguns assexuais afirmaram que até gostam do sexo, apesar de não desejarem (HAEFNER, 2011, p. 98-108). Pode-se pensar o sexo consensual não desejado como a produção, por excelência, do dispositivo de sexualidade, da lógica do sexo, a que se refere Foucault (1988). Há igualmente aqueles que se narram como arromânticos, como não desejosos de manter relacionamentos amorosos (CARRIGAN, 2011); no entanto, observa Scherrer (2008), mesmo os arromânticos mantêm fortes laços de amizade. Scherrer (2010) também aponta os laços profundos de intimidade nas parcerias assexuais. Em Brotto et al. (2010) e em Haefner (2011), o desejo romântico de manter parcerias amorosas é definido em oposição ao desejo sexual, como excludentes. Desse modo, Brotto et al. (2010, p. 614) condensam uma máxima dos assexuais: “Há um forte sentimento de que, uma vez que você pode fazer sexo sem amor, por que não poderia amar sem fazer sexo?” Inúmeras pesquisas trabalham com a ideia de que há um marco na construção da identidade assexual, que é o encontro dos sujeitos com a AVEN (BROTTO et al., 2010; CARRIGAN, 2011; HAEFNER, 2011; SUNDRUD, 2011; CHASIN, 2013). Esta última opta por se referir aos integrantes dessa comunidade como “pessoas do espectro assexual” e ressalta que vários de seus pesquisados consideram suas próprias assexualidades como primariamente uma “desidentificação” com a sexualidade, enquanto outros, porém, não partilham dessa desidentificação, mas com uma identificação positiva com outras pessoas do espectro assexual, já para ela mesma, que também é assexual, a identidade assexual é as duas coisas (CHASIN, 2013, p. 407). 34 O trabalho de Hinderliter é primoroso em mostrar o percurso do grupo e a construção de uma identidade assexual hegemônica, a partir da criação da AVEN. A primeira grande divisão do grupo foi protagonizada por aqueles que eram antissexuais, “[...] os quais achavam que as pessoas que eram assexuais eram melhores do que aqueles que não eram”3 (HINDERLITER, 2013, p. 171). A segunda divisão envolveu o grupo que pensava que somente as pessoas que não se masturbavam poderiam ser consideradas assexuais. As comunidades menos inclusivas não perduraram muito, ao passo que a AVEN cresceu e se tornoue o eixo central do movimento assexual, na medida em que muitos dos seus membros mantêm outras atividades sobre a assexualidade na internet, como sítios de agenciamento amoroso e canais no youtube, fazendo sempre menção direta às definições e políticas daquela comunidade. Hinderliter atribui o sucesso da AVEN, em detrimento das antigas comunidades assexuais, ao fato de que a primeira adota uma definição ampla e conscientemente mantém uma política inclusiva (HINDERLITER, 2013, p. 172). Os entrevistados de Munárriz (2010) definiram a assexualidade com base em dois polos principais: um se trataria de uma condição biológica congênita, genética; o outro, de um posicionamento cultural, de um desejo de posicionar-se a favor da construção de uma cultura diferente da hegemônica. Já Carrigan (2011) chama a atenção para uma certa gradação, por assim dizer, da identidade assexual, a qual congrega desde sujeitos que relatam que nunca sentiram atração e isso não os incomoda, até uma assexualidade radical, na qual o sujeito declara que vomitaria, se fizesse sexo. Assim, existem os sex- positives, ou a-positives, que endossam o sexo como uma coisa positiva e saudável, mesmo não sentido vontade e não o praticando. Os sex-neutral simplesmente não se interessam por sexo, no entanto, alguns podem querer fazer sexo em certos contextos, os demisexuals, aqueles que sentem atração sexual, mas somente no contexto do relacionamento romântico, e nunca independentemente deste; e os Gray-a, um termo abrangente que congrega aqueles que se situam na área entre os assexuais e os sexuais. Por outro lado, há ainda os que se declaram sex-averse e anti-sex, para quem a própria ideia de sexo e sua prática são extremamente problemáticas e indesejadas. 3 “Who thought that people who were asexual were better than those who were not”. 35 Outra subcategoria que surgiu dentro desse tema foi aquilo que Haefner (2011) e Carrigan (2011) identificaram como “fluidez romântica” (romantic fluidity): “A fluidez romântica sugere que para alguns dos participantes o sexo e o gênero de seus potenciais parceiros não importam”4 (HAEFNER, 2011, p. 109). Um discurso muito frequente, nas comunidades online, são as vantagens e benefícios da assexualidade. Nesse sentido, o artigo de Prause e Graham (2007) enfatiza que as vantagens mais citadas são, respectivamente, a evitação de problemas comuns dos relacionamentos íntimos, a diminuição do risco de doenças e gravidez não desejada, e mais tempo livre. Embasado por essa pesquisa, Bogaert (2012b) elenca o que para ele seriam os “[...] cinco grandes benefícios da assexualidade” (p. 113), sendo os três primeiros os já citados e os outros dois a evitação da loucura do sexo e a vantagem de sofrer menos pressão social para encontrar um parceiro adequado. Ensaios críticos Em 2009, Andrew C. Hinderliter enviou uma carta aos editores da revista Archives of Sexual Behavior, n. 38, na qual se propôs discutir algumas questões metodológicas acerca das pesquisas sobre a assexualidade. Nesse texto, Hinderliter (2009), que se apresenta como assexual, revisa os estudos que haviam sido publicados até então e critica principalmente o uso de instrumentos e questões sexo- normativas para se compreender os assexuais. Aponta que novos instrumentos deveriam ser criados para incluir também as possibilidades de investigação desse fenômeno, sobretudo questões que contemplassem a possibilidade da assexualidade para além de uma falta de atração sexual. Ademais, critica o recorrente uso e a necessidade de incluir as escalas e questionários previamente desenvolvidos para as disfunções e distúrbios, uma vez que a aplicação dessas escalas já se mostrou inapropriada para essa população. Nessa mesma edição da revista, Brotto e Yule (2009) dão uma resposta a Hinderliter (2009). Nessa réplica, elas elogiam a iniciativa de Hinderliter em contribuir para pensar essas pesquisas e adiantam que já estão desenvolvendo questões 4 “Romantic fluidity suggests that for some participants the sex and gender of a potential partner does not matter”. 36 menos enviesadas pela pressuposição sexual. Endossam a dificuldade dessas pesquisas, já que o campo é novo e inesperado pela ciência, sendo necessário o desenvolvimento de medidas de identificação assexual que não sejam pautadas no paradigma sexual. Entretanto, lembramos que não se pode reduzir as impossibilidades de investigação somente aos instrumentos, mas é importante que se expandam e se reconfigurem as perguntas, pois são estas últimas que direcionam, inclusive, a formulação dos instrumentos de pesquisa. Essa troca de cartas acende algumas discussões, que posteriormente outros pesquisadores vão contemplar. Uma delas é a assexualidade como um novo paradigma de entendimento científico, porque tanto os instrumentos quantitativos quanto as tentativas de uma compreensão mais qualitativa ainda são pautados na pressuposição da prática sexual ou da sexualidade como uma condição dada. No ano seguinte, 2010, o espanhol Luiz Álvarez Munarriz, da Universidade de Múrcia, escreveu um artigo bastante crítico, onde investiga a identidade assexual. O autor faz apontamentos muito contundentes e advoga que a assexualidade é uma identidade sustentada no virtual, que tenta ganhar espaço no real. Em sua visão, o erotismo arraigado nos “poros” de nossa sociedade por vezes desconecta o gozo da intimidade e da experiência amorosa. Para ele, é essa desconexão que propicia o aparecimento da apatia e da indiferença em relação ao sexo e estaria na base da identidade assexual. O pesquisador escreve ainda que compreender a assexualidade é uma tarefa até mesmo necessária, visto que, segundo esse autor, a assexualidade marcaria o fim da era da sexualidade, um período de uma concepção que se iniciou com a sexologia, há 200 anos (MUNÁRRIZ, 2010). Ele escreve, igualmente, que tentou recrutar assexuais, tanto na universidade em que leciona quanto em outras próximas, todavia não encontrou, o que para ele reforça a ideia de que essa identidade é predominantemente virtual. Dessa forma, o autor fez uma incursão pelas comunidades virtuais dos assexuais e acabou elegendo aquela que achou que tinha o maior apelo midiático e número de membros: a AVEN. Munárriz (2010) identificou que há duas premissas básicas da qual partem os assexuais, para a construção e afirmação dessa identidade: uma é a de que se trataria de uma condição biológica congênita, genética; e a outra, de que se trata de um posicionamento cultural, de um desejo de posicionar-se a favor da construção de uma cultura diferente da hegemônica. Quanto ao marcador biológico, ele notou que 37 se divide nas explicações sobre a ausência total de desejo e a ideia de diferentes graus de desejo. O autor argumenta que há uma série de construções que não podemos superar, tomando, como a principal delas, a tendência sexual que provém do fato de nossos corpos serem sexuados. O autor parte do pressuposto de que o sexo é componente essencial da identidade sexual, mas, ao humanizarmos o sexo, poderíamos inclusive pensar em uma assexualidade. Ou seja, só a humanização do sexo é capaz de desconectá-lo do corpo e dos marcadores biológicos que dão suporte à própria experiência de humanização. Seguindo essa linha de raciocínio, conclui que, sendo a sexualidade um traço fundamental da identidade, a única maneira plausível de explicar a força desse grupo bastante heterogêneo é que sua fonte está no contato com a internet e na socialização virtual. Munárriz (2010) complementa, ainda, escrevendo que os atores assim o são, na medida em que são reconhecidos pelo público ou por outros atores, contudo, na internet, se perde a consciência e se tenta recuperá-la, mediante um processo de retroalimentação, produzindo-se um curto-circuito narcisista: eu mesmo como o outro (MUNÁRRIZ, 2010, p.12). Para o pesquisador, “[...] a participação na comunidade virtual lhes permite viver tão intensamente essa identidade imaginária, que termina por converter-se para eles em suas verdadeiras identidades”5 (MUNÁRRIZ, 2010, p.12). Embora compreendamos, e até partilhemos, da crítica de Munárriz, lembramos que um avanço interessante seria aprofundar a discussão entre uma identidade “imaginária” e uma “verdadeira” identidade, para manter os termos utilizados por esse autor, pois nos parece que toda identidade é imaginária por excelência, é sempre construída a partir da experiência do sujeito no mundo, qualquer que seja a plataforma na qual se dê essa experiência. No caso da identidade sexual,l especulamos que se construa a partir, também, mas não somente – e nesse caso talvez a identidade assexual seja o melhor exemplo – de uma experiência corporal. Mas essa questão realmente se mostra profícua, já que, ainda dentro dessa mesma suposição, há uma forte experiência corporal, todavia, uma experiência de não-desejo, que sustentaria a identidade assexual. A observação de Munárriz (2010) de que essa identidade emana da rede parece mesmo bastante plausível, afinal, ao conectar-se na rede, a linguagem e a 5 “La participación en la comunidad les permite vivir tan intensamente esa identidad imaginada que termina por convertirse para ellos en su verdadeira identidad”. 38 presença que se necessita fazer é nada corporal. O ciberespaço não consegue atrelar o corpo ou pelo menos o contato corporal à sua linguagem. Faz sentido essa experiência passar a não importar do ponto de vista de uma ligação com o outro, da mesma maneira que faz sentido que a maioria dos assexuais seja constituída de autoeróticos, masturbadores profissionais. No ano seguinte, 2011, a doutoranda canadense Ela Przybylo apresenta um artigo na revista Sexualities, com o propósito principal de situar a assexualidade como um produto e uma reação contra aquilo que ela chamou de sexusociety. Essa autora parte da ideia de que o “mundo sexual” está para os assexuais como o patriarcado para as feministas e a heteronormatividade para a população LGBTQ. Ou seja, uma força opressiva contra a qual alguma forma de organização e rebelião deve ser feita (PRZYBYLO, 2011, p. 446). Ela recorre a Foucault para esclarecer que o poder que o sexo tem de operar na sociedade não é uma voz isolada, mas uma multiplicidade de forças que formam uma cadeia ou um sistema, no qual algumas repetições preferenciais se sobressaem a despeito de outras, sendo que as repetições preferenciais da sexusociety são o imperativo do coito, do orgasmo masculino e de uma ideia de práticas sexuais bastante normatizadas e, diríamos, até mesmo pasteurizadas. Ela baseia-se na ideia da sociedade do simulacro para analisar que a sexualidade também sofre da morte dos referenciais reais, renascendo apenas como sistema de signos e representações que nada têm de real. A produção simulada de uma sexualidade sem base na experiência corporal, no orgasmo físico, já é a própria sexualidade sem sexo de que falam os assexuais. Por fim, a autora defende também que a assexualidade é uma busca por segurança, tanto física quanto identitária, no mundo desorientado da pós- modernidade (PRZYBYLO, 2011, p. 454), ressaltando que as práticas românticas e principalmente a prática do poliamor, na qual alguns desses sujeitos constroem fortes laços de amizade, desafiam verdadeiramente as normas e encontram saídas legítimas para aquilo que os afeta (PRZYBYLO, 2011, p. 456). Essa pesquisa significa uma notável contribuição, tanto para um entendimento social e historicamente situado do fenômeno da assexualidade quanto para os sentidos que envolvem a questão. Em 2012, Przybylo publica uma cartografia da produção científica sobre a assexualidade. Nesse texto, ela assume duas premissas básicas: a de que a 39 assexualidade enquanto uma identidade é específica de nosso momento cultural e a de que a pesquisa científica sobre a assexualidade, enquanto um produtor de credibilidade, também produz as possibilidades e impossibilidades do que conta como assexualidade e como ela opera. O trabalho é dividido em duas seções; na primeira, a autora revisa as primeiras produções sobre a assexualidade e, na segunda, analisa as produções recentes. No que se refere às produções recentes, a autora identifica que os trabalhos respondem a duas linhas principais, sendo a primeira a tentativa de legitimação da assexualidade através da produção de discursos verdadeiros, enquanto a outra linha busca argumentos que tirem a assexualidade do campo das patologias. A referida autora passa, então, a descrever o movimento dessas duas linhas, ao longo dos trabalhos revisados. Por fim, Przybylo (2012) escreve: Como eu demonstrei, enquanto a pesquisa científica sobre a assexualidade é fundamental na legitimação da assexualidade, ela o faz através da reprodução de noções normativas, essencialistas e nocivas sobre a (a)sexualidade e diferença sexual. As mulheres são identificadas como mais receptivas, maleáveis e menos coordenadas sexualmente do que os homens e a assexualidade torna-se mapeada sobre e no corpo biológico. [...] Apesar de a ciência sexual desempenhar um papel central na formação da assexualidade contemporânea, seu papel certamente não é simples. Uma vez que o estudo científico do sexo oferece oportunidades para a formação assexual, identificação, e ação, mas também colabora para limitar e restringir a forma da assexualidade contemporânea tomará. Neste artigo eu tenho argumentado que os discursos que estão sendo construídos, em partes pela sexologia, precisam ser considerados com cuidado e incansavelmente analisados6. (PRZYBYLO, 2012, p. 239). Identificamos, nesse trabalho de Przybylo (2012), a inauguração do necessário movimento de crítica interna à produção do discurso científico sobre a assexualidade. Apesar de ela claramente se incomodar com a visão do feminino nesses trabalhos, suas análises situam a assexualidade em outro território científico e poderão guiar futuros pesquisadores do tema. 6 “As I have demonstrated, while the scientific research on asexuality is instrumental in legitimizing asexuality, it does so through the reproduction of normative, essentialist, and harmful notions about (a)sexuality and sexual difference. Women are rendered as more receptive, pliable, and less sexually coordinated than men and asexuality becomes mapped on and in the biological body. [...] Although sexual science is playing a central role in the formation of contemporary asexuality, this is certainly not a simple role. Instead, the scientific study of sex provides opportunities for asexual formation, identification, and action, but also functions to limit and restrict the shape that contemporary asexuality will acquire. In this article I have ultimately argued that the discourses that are woven, in part by sexology, need to be carefully considered and relentlessly scrutinized”. 40 Em 2013, Andrew Hinderliter apresenta um artigo na edição especial sobre a assexualidade da revista Psychology & Sexuality. Seu artigo examina as relações e as diferenças entre assexualidade e o distúrbio de desejo sexual hipoativo (HSDD - Hypoactive Sexual Desire Disorder), listado no DSM; examinando as histórias e as bases conceituais de cada um, expõe o contexto primário em que esses termos foram primeiramente utilizados e suas incursões por discursos sociais mais amplos (HINDERLITER, 2013). Algumas das passagens desse artigo de Hinderliter (2013) empregamos nas primeiras partes deste capítulo, quando procuramos esboçar a história da assexualidade. Logo na introdução, há um interessante fato acerca da política para a despatologização da assexualidade encabeçada pela AVEN. Durante os anos de 2008 e 2009, alguns membros da AVEN formaram uma força-tarefa que culminou em uma série de entrevistas com estudiosos da sexualidade humana sobre a possibilidade de tornar o DSM mais amigável com os assexuais. Um relatório foi enviado para o subgrupo de trabalho sobre disfunções sexuais do DSM-V, sugerindo que a assexualidade fosse explicitamente mencionada como uma exceção no tópico sobre HSDD (HINDERLITER, 2013, p. 167). Fazendo o levantamento da história da HSDD, Hinderliter (2013) encontrou que até o DSM-II, lançado em 1968, não havia nenhuma lista específica de disfunções sexuais. No DSM-III, de 1980, aparece pela primeira vez o Desejo Sexual Inibido (ISD), o qual, posteriormente, é renomeado para HSDD, em 1987, com o lançamento do DSM-III-R (HINDERLITER, 2013, p. 169). Alguns estudos epidemiológicos foram feitos e se observou uma taxa altíssima de psicopatologias na população em geral, que se mostrou tão alta que se concluiu que os critérios eram superinclusivos, gerando muitos diagnósticos do tipo falso-positivo. Por causa disso, na versão de 1994, o DSM-IV, mais da metade dos diagnósticos que ganharam o critério de tais comportamentos só poderiam ser considerados distúrbios se trouxessem sofrimento acentuado ou dificuldade interpessoal (SPITZER; WAKEFIELD, 1999 apud HINDERLITER, 2013, p. 169). Mais recentemente, o subgrupo de trabalho sobre disfunções sexuais do DSM-V tem como proposta a divisão das disfunções de acordo com o gênero. O diagnóstico para homens permaneceria o mesmo, enquanto o diagnóstico para mulheres seria substituído por Distúrbio de Interesse/Excitação (feminino) (SIAD – (female) Sexual Interest/Arousal Disorder) (BROTTO et al., 2010; GRAHAM, 2010 41 apud HINDERLITER, 2013). Essa mudança está sendo proposta por pesquisadoras da assexualidade, por terem encontrado que, em mulheres, não há uma correlação muito forte entre o desejo, neste caso, no sentido de excitação biológica, e o interesse subjetivo ou o reconhecimento desse desejo e sua colocação em prática. Esse artigo tem sua principal contribuição no fato de trazer o levantamento histórico não apenas da assexualidade, mas também de seu suposto diagnóstico como uma disfunção sexual, dando um bom panorama dos conceitos envolvidos em ambos os casos. Nessa mesma edição da revista Psychology & Sexualities, Randi Gressgård, professora da Universidade de Bergen, Noruega, traz uma contribuição muito valiosa, na qual contextualiza a identidade assexual como um desdobramento da proposta de autorregulação da cidadania neoliberal, ao mesmo tempo em que examina as novas configurações e os novos sentidos da cidadania sexual. A autora (GRESSGÅRD, 2013) recorre aos conceitos foucaultianos de objetificação e subjetificação/sujeição (objetification and subjetification/subjection), para elaborar a relação entre a formação da subjetividade moderna e a formação da identidade sexual, com a pergunta: “Como esse repertório conceitual de objetificação e subjetificação pode lançar luz no intercâmbio do saber especialista e a formação da identidade assexual?” O processo de subjetificação, ou assujeitamento, seria aquele em que esses sujeitos correspondem ao desejo de encontrar a verdade sobre a assexualidade, enquanto o processo de subjetivação seria a transformação deles em objetos de si, em experts de suas próprias assexualidades. Contudo, Gressgård (2013) sugere que a abordagem da formação do sujeito assexual poderia envolver a subjetivação em termos de intervenção crítica: [...] na medida em que o conhecimento não é nem exaustivo nem determinista, o processo de sujeição pode também envolver práticas de resistência que, em vez de perguntar ‘quem sou eu?’, permitem que os sujeitos questionem o saber/poder do governo de si. Isto pode ser visto como uma intervenção crítica em termos de de subjetificação e, num certo sentido, desumanização através de reconfigurações do humano7. (GRESSGÅRD, 2013, p. 186). 7 “However, insofar as knowledge is neither exhaustive nor deterministic, subjection might also involve practices of resistance that, instead of asking ‘who am I?’, allow subjects to question self-governing power/knowledge. This could be perceived as a critical intervention in terms of de-subjectification and, in a certain sense, de-humanisation by way of reconfigurations of the human”. 42 Por fim, Gressgård (2013), faz uma afirmação que não podemos deixar de transcrever: Minha discussão sugere que a articulação da orientação assexual como objeto de interesse público é um elemento perturbador do tecido social. A perturbação real, no entanto, tem menos a ver com o conteúdo concreto das reivindicações assexuais do que com o fato de que a articulação da identidade assexual confronta-nos com algo que queremos saber mas tememos perguntar, parafraseando Woody Allen: como seguramente traçar a fronteira entre a afeição física e a interação sexual; intimidade sexual e não-sexual; desejo sexual e não sexual; amigos e amantes/queridos; relacionamentos primários e secundários, etc8. (GRESSGÅRD, 2013, p. 188). O artigo de Gressgård (2013) é uma excelente contribuição para os estudos da assexualidade, sobretudo pelo fato de que alça a questão a um olhar muito mais amplo do que a intimidade ou o desvelamento da personalidade assexual. Esse artigo, juntamente com alguns poucos outros, traz a discussão para o âmbito da relação entre esse microuniverso e o macrouniverso social no qual se infunda e do qual é efeito, sem, no entanto, descartar o seu potencial subversivo e criativo. Ainda em 2013, há a primeira contribuição brasileira em formato de artigo para o tema da assexualidade. Trata-se do trabalho de Mauro Brigeiro, doutorando em Antropologia Social na UNICAMP. Nesse texto, Brigeiro (2013) faz uma etnografia de comunidades virtuais formadas por sujeitos autodenominados assexuais e analisa a relação entre política sexual e a produção do conhecimento. O autor inicia seu artigo com uma série de depoimentos de sujeitos assexuais, onde estes explicam e argumentam sobre a experiência assexual, destacando que “[...] os discursos assexuais indicam certas dinâmicas de diferenciação social que se derivam a partir da manifestação do desejo sexual ou de sua ausência” (BRIGEIRO, 2013, p. 256). Ele observa que esses sujeitos rechaçam terem suas experiências explicadas pela nosologia psiquiátrica corrente, apesar de, curiosamente, recorrerem até com certa veemência a pesquisadores capazes de iluminar e legitimar suas condições, chamando a atenção do leitor para a organização da comunidade, no que tange ao incentivo à participação de pesquisas 8 “My argument suggests that the articulation of asexual orientation as a matter for public concern is a disturbing element in the fabric of society. The rea