UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS JULIANA BEATRIZ DE PAULA GUIDA OS IMPACTOS DO AUMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19 NA EFETIVIDADE DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E NAS POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO FRANCA 2022 JULIANA BEATRIZ DE PAULA GUIDA OS IMPACTOS DO AUMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19 NA EFETIVIDADE DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E NAS POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Trabalho de Conclusão de Curso submetido pela aluna Juliana Beatriz de Paula Guida à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como parte das exigências para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de Concentração: Direito Penal. Orientador: Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges. FRANCA 2022 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. G946i Guida, Juliana Beatriz de Paula Os impactos do aumento da violência contra a mulher durante a pandemia do Covid-19 na efetividade das medidas protetivas de urgência e nas políticas de enfrentamento do Município de São Paulo / Juliana Beatriz de Paula Guida. -- Franca, 2022 73 p. : tabs. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Direito) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientador: Paulo César Corrêa Borges Coorientadora: Ana Lelis de Oliveira Garbim 1. Violência contra as Mulheres. 2. Mulheres Condições Sociais. 3. Direitos das Mulheres. 4. Patriarcado. 5. Violência Familiar. I. Título. JULIANA BEATRIZ DE PAULA GUIDA OS IMPACTOS DO AUMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19 NA EFETIVIDADE DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E NAS POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do título de Bacharel em Direito. BANCA EXAMINADORA Presidente: Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges 1º Examinador(a): Profª Ma. Ana Lelis de Oliveira Garbim 2º Examinador(a): Prof. Me. Luiz Gustavo Vicente Penna Franca/SP, 18 de novembro de 2022. Dedico este trabalho de conclusão de curso à minha mãe, Sandra, e à minha avó, Ercilia, duas mulheres fortes e inspiradoras que me ensinaram a sempre lutar pelos meus sonhos. AGRADECIMENTOS Começo agradecendo à minha mãe, um verdadeiro exemplo de força, pioneirismo e resiliência, primeira mulher da geração anterior da minha família a cursar o Ensino Superior e quem sempre me incentivou a estudar para que eu pudesse ser a pessoa que sou hoje. Ao meu pai, que me apoiou incondicionalmente e participou desses cinco anos de Graduação que certamente definirão os rumos da minha vida profissional. À minha irmã, com a qual me identifico tanto e que continuamente me dá forças para trilhar meu próprio caminho. À Lari e à Susy, irmãs que a vida me deu e pelas quais tenho enorme carinho e admiração. Exemplos de generosidade, empatia e potência feminina. Amo muito vocês. Àqueles que fizeram parte da minha vida de estudante em Franca e que tornaram essa pequena e distante cidade do interior de São Paulo, um lar, em especial as meninas da República Capitu, Ana, Yumi, Ju e Lara, e os cachorrinhos que adotamos nessa experiência única, Bolo e Torta. Vocês sempre estarão no meu coração e nas lembranças mais marcantes desses anos tão intensos e saudosos. Quero agradecer a todos aqueles que passaram, de alguma forma, por minha trajetória ao longo dos anos de estágio. Primeiramente, à Gabi e à Gi, exemplos de pessoas e de profissionais que trabalharam junto comigo na Promotoria de Justiça de Miguelópolis. Obrigada por terem feito dessa experiência uma oportunidade de imenso aprendizado e de reencontro comigo mesma e com o Direito. Hoje, posso chamá-las de companheiras de vida, por todo o apoio, a parceria e os momentos vividos, que, com certeza, irei levar comigo para sempre. À Vi e à Maria Clara, companheiras de estágio remoto que me deram todo o suporte emocional e me ensinaram muito mais do que Direito Administrativo e advocacia nos difíceis anos de pandemia. Me mostraram o valor do trabalho em equipe, da humildade e da perseverança. Ao André, à Nat e à Fabi, atuais colegas de trabalho que, diariamente, confiam em mim e no meu potencial. Minha gratidão ao ano de 2022, do qual saio pronta para os próximos desafios. Por fim, mas não menos importante, à UNESP de Franca e aos(às) Professores(as) da FCHS, por todo o conhecimento compartilhado e a criticidade despertada em mim. Vocês são responsáveis por formar não só juristas e operadores do Direito, como também, seres pensantes. “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. - Guimarães Rosa RESUMO O presente trabalho tem como objeto de pesquisa a questão da efetividade das medidas protetivas de urgência previstas na Lei nº 11.340/06 durante a pandemia do COVID-19, a partir do considerável aumento da violência contra a mulher nesse período, bem como seus possíveis reflexos nas políticas públicas dos órgãos de enfrentamento do Município de São Paulo. O objetivo da presente pesquisa é analisar os possíveis impactos das medidas de prevenção ao novo coronavírus, a exemplo do isolamento social, na esfera criminal e, consequentemente, na limitação da produção de efeitos jurídico-penais das medidas protetivas de urgência já instauradas, levando em consideração o tipo penal de descumprimento e as ações estatais de assistência à mulher em situação de violência doméstica. A fim de alavancar o estudo, será efetuado o levantamento de dados por meio das técnicas de pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e estatística, com enfoque em textos legislativos, materiais doutrinários e pontuais estudos de caso, sendo abordados majoritariamente pelos métodos histórico, dogmático-jurídico, empírico e indutivo. Palavras-chave: violência doméstica. medidas protetivas de urgência. políticas públicas. pandemia. ABSTRACT The present work has as its research object the question of the effectiveness of the urgent protective measures provided for in Law nº 11.340/06 during the COVID-19 pandemic, from the considerable increase in violence against women in this period, as well as their possible reflections on the public policies of the coping bodies in the Municipality of São Paulo. The objective of the present research is to analyze the possible impacts of preventive measures against the new coronavirus, such as social isolation, in the criminal sphere and, consequently, in limiting the production of legal and criminal effects of urgent protective measures already in place, taking into account consideration of the criminal type of non-compliance and state actions to assist women in situations of domestic violence. In order to leverage the study, data collection will be carried out through bibliographic, jurisprudential and statistical research techniques, focusing on legislative texts, doctrinal materials and specific case studies, being approached mostly by historical, dogmatic-legal, empirical and inductive. Keywords: domestic violence. urgent protective measures. public policy. pandemic. LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Tipos de serviços especializados e não especializados, municipais, estaduais e federais para mulheres vítimas de violência na cidade de São Paulo ...................................... 60 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 1 RAÍZES HISTÓRICAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER .... 12 1.1 O TRATAMENTO DESTINADO À MULHER NA SOCIEDADE ANTIGA ............. 12 1.2 O MACHISMO E O PATRIARCALISMO .................................................................... 16 2 A LEI MARIA DA PENHA COMO MARCO LEGISLATIVO CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ................................................................................................. 21 2.1 CONTEXTO HISTÓRICO E CRIAÇÃO DA LEI 11.340/06 ........................................ 21 2.2 A LEGISLAÇÃO ............................................................................................................ 24 2.3 AS DIVERSAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER .......................... 26 2.4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ..................................................................... 30 2.4.1 A dignidade da pessoa humana na Constituição Federal .......................................... 30 2.4.2 Dignidade humana e violência doméstica ................................................................ 33 3 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA .................................................................... 33 3.1 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA ....................................................................... 34 3.2 DISPOSIÇÕES GERAIS ................................................................................................ 36 3.3 MEDIDAS QUE OBRIGAM O AGRESSOR ................................................................ 39 3.4 MEDIDAS QUE PROTEGEM A VÍTIMA .................................................................... 40 3.5 DO CRIME DE DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA ............................................................................................................................................... 42 3.6 PRECEDENTES – ARTIGO 24-A DA LEI Nº 11.340/06 ............................................ 43 4 BUSCA PELA EFETIVIDADE DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19 ............... 47 4.1 INTRODUÇÃO DA PANDEMIA E MEDIDAS DE ISOLAMENTO .......................... 48 4.2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PANDEMIA DO COVID-19 – FATORES AGRAVANTES .................................................................................................................... 50 4.3 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E A EDIÇÃO DA LEI FEDERAL Nº 14.022/2020 ........................................................................................................................... 52 4.4 DADOS ESTATÍSTICOS SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM TEMPOS DE PANDEMIA .......................................................................................................................... 53 4.5 NOVAS MEDIDAS POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO EM ÂMBITO MUNICIPAL ......................................................................................................................... 57 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 64 10 INTRODUÇÃO A presente monografia tem como objeto de estudo a violência doméstica contra a mulher e se delimita na análise do aumento dos casos desse tipo de violência no contexto da pandemia de COVID-19, tratando da efetividade das medidas protetivas de urgência e destacando as políticas de enfrentamento do município de São Paulo. A violência doméstica é uma realidade social grave, existindo há séculos, e se fundamenta, sobretudo, em ideologias patriarcais, machistas e misóginas. O ódio e o menosprezo contra a mulher por parte dos homens fazem com que esta seja vítima constante de vários tipos de violência de gênero. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) surge como uma forma de conferir proteção à mulher vítima de violência doméstica, definindo os seus diversos tipos e prevendo a aplicação das chamadas medidas protetivas. Tais medidas elencadas pela legislação, assim como sugere a sua nomenclatura, visam proteger a mulher que já foi vítima ou que pode ser vítima de violência doméstica. Ademais, esse contexto de violência doméstica ganha novos contornos com a pandemia de COVID–19, doença que surgiu em dezembro de 2019, mas que atingiu o auge da contaminação no fim do primeiro semestre de 2020, se estendendo até 2021, ano em que se iniciou a vacinação. Durante a pandemia, as estatísticas da violência contra a mulher cresceram. Busca-se compreender os mecanismos pelos quais a pandemia do novo coronavírus agrava o fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher, sob o prisma interseccional dos diferentes pertencimentos sociais, principalmente de raça, etnia e classe social, e como esses fatores influenciam direta ou indiretamente nas condições de vulnerabilidade, sendo essa análise realizada à luz da Lei nº 11.340/06 e sua aplicação no contexto brasileiro. Nesta senda, demonstrar-se-á como os fatores agravantes da violência contra as mulheres decorrentes da pandemia – isolamento social, impactos socioeconômicos, sobrecarga do trabalho doméstico às mulheres, abuso de álcool e outras drogas, redução da atuação dos serviços de enfrentamento etc. – influenciam no descumprimento das medidas protetivas de urgência. A justificativa para o desenvolvimento dessa temática reside na necessidade de aprofundamento teórico a respeito da violência doméstica e familiar contra a mulher, trazendo 11 ao foco o período da pandemia de COVID-19, que, como será estudado, pode ter ocasionado o aumento das estatísticas. O objetivo geral da presente pesquisa é analisar os principais impactos da pandemia do COVID-19 na efetividade das medidas protetivas de urgência, a partir do levantamento estatístico e jurisprudencial, e na formulação de políticas públicas de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher à luz da Lei Maria da Penha; em particular, no contexto da edição da Lei Federal nº 14.022/20, levando em consideração as demais legislações aplicáveis, que serão tratadas ao decorrer da pesquisa. Assim, visando alcançar o objetivo traçado e conferindo um desenvolvimento coerente para o tema, no primeiro capítulo, serão estudadas as raízes históricas da violência contra a mulher, com enfoque especial no machismo e no patriarcalismo, bases estruturantes do preconceito social contra a mulher. No segundo capítulo, será tratada a Lei Maria da Penha como marco legislativo de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil. Nesse momento, será importante destacar o contexto de sua edição e as particularidades trazidas pelo legislador, como as diversas formas de violência contra a mulher, além do conceito da violência doméstica à luz da dignidade da pessoa humana. No terceiro capítulo, o foco serão as medidas protetivas de urgência, traçando seu conceito, suas disposições gerais e as medidas em si, de modo a elucidar as que obrigam o agressor e as que protegem a vítima. Também será importante estudar sobre o descumprimento dessas medidas no período em exame, trazendo à baila precedentes sobre o tema. No quarto e último capítulo, pretende-se adentrar efetivamente ao objeto de estudo e sua delimitação: a violência doméstica no contexto da pandemia de COVID-19. Nessa etapa, será importante compreender como se iniciou a crise sanitária e as medidas adotadas pelo Poder Público. Trazendo o estudo para o âmbito da violência doméstica, serão evidenciados dados estatísticos entre os anos de 2020 e 2022. O trabalho seguirá o método técnico-dogmático, bem como o método histórico de abordagem, o método empírico e a abordagem indutiva. A pesquisa se fundamentará em doutrinas e artigos científicos sobre o tema, dados estatísticos e julgados. 12 1 RAÍZES HISTÓRICAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER A violência contra a mulher é um fenômeno social que não surge sem um contexto anterior. Ela possui uma raiz, uma origem remota. O presente capítulo tem como objetivo inicial identificar as raízes desse tipo de violência. Nesse contexto, será destacado que a mulher foi tratada com discriminação social e familiar durante vários períodos históricos. Essa realidade, embora tenha mudado, não melhorou por completo, e isso se verifica pelos constantes casos de violência doméstica e de gênero estampados diariamente nos noticiários do Brasil. Assim, “Durante anos, nossa sociedade construiu, em torno de si e no senso comum, um estereótipo relacionado ao sexo feminino, primeiro passo para a construção das bases do preconceito e da discriminação”.(SILVA, 2010, p. 561) A mulher sempre foi vista com desprezo pela sociedade, diminuída à dona de casa e serva do homem. Faz-se importante, portanto, compreender o tratamento destinado à mulher na sociedade antiga, de forma breve, com o objetivo de investigar os motivos por trás da perpetuação desse tipo de violência até a atualidade. Essa base de conhecimento permitirá uma maior compreensão a respeito da violência doméstica na pandemia do COVID-19, período específico que, como será demonstrado, permitiu o agravamento desse fenômeno social. 1.1 O TRATAMENTO DESTINADO À MULHER NA SOCIEDADE ANTIGA A discussão referente às desigualdades entre homens e mulheres é antiga. Dos gregos antigos até poucas décadas atrás, a sociedade acreditava que a mulher era um ser inferior na escala metafísica que dividia os seres humanos e, por isso, os homens detinham determinados direitos, como o direito de exercer uma vida pública, ao contrário das mulheres, que sofriam diversas restrições a sua liberdade. Não são conhecidos os motivos que levaram os povos antigos a inferiorizarem as mulheres dessa forma. De acordo com Campos e Corrêa (2007, p. 99), pesquisas apontam que: A primeira base de sustentação da ideologia de hierarquização masculina em relação à mulher, e sua consequente subordinação, possui cerca de 2.500 (dois mil e quinhentos) anos, através do filósofo helenista Filon de Alexandria, que propagou sua tese baseado nas concepções de Platão, que defendia a ideia de que a mulher pouco possuía capacidade de raciocínio, além de ter alma inferior à do homem. Ideias, estas, que transformaram a mulher na figura repleta de futilidades, vaidades, relacionada tão-somente aos aspectos carnais. 13 Assim, era adotada a ideia de que a mulher não possuía plena capacidade intelectual, ao contrário do homem, por isso seria, teoricamente, inferior a este. Para Silva (2010, p. 561), “a cristalização de muitos dos conceitos de que o direito deveria estar a serviço dos homens, denominados os mais fortes, serviram para construir falsas ideias e moldar muitos dos preconceitos contra o sexo feminino.”. A legislação era elaborada por homens e para homens, sem proteger, nem minimamente, a mulher. Nesse vértice, a discriminação contra a mulher é um fato extremamente antigo na sociedade, como aponta Strey (1997). O autor busca no Código Hindu de Manu1 a previsão de que a mulher, enquanto criança, dependeria de seu pai; durante a juventude, dependeria de seu marido e, caso este viesse a óbito, dependeria de seus filhos. Entretanto, caso a mulher não tivesse filhos, ela dependeria dos parentes próximos de seu marido. Nesse contexto histórico, a mulher não poderia se autogovernar, ou seja, ela não tinha autodeterminação. Aqui há uma total retirada da autonomia da mulher, desrespeitando completamente a sua dignidade enquanto pessoa humana. No Império Romano, a mulher era considerada “rés”, ou seja, “coisa” ou “objeto”. Nesse período, as mulheres eram vítimas de diversos tipos de violência, no entanto, os agressores não eram punidos, posto que a violência contra a mulher não era vista como um crime. Ainda, não havia, à época, nenhum tipo de reprovabilidade social no fato de agir com violência contra uma mulher. Ainda, o Direito Romano retirava a capacidade jurídica da mulher. É possível perceber que a violência de gênero era legitimada e considerada algo socialmente “normal” (STREY, 1997). Lira explica esse tratamento destinado à mulher no Império Romano: No império romano a mulher levava o título de “rés”, ou seja, coisa. Para mostrar o seu autoritarismo, o homem usava da violência para com a mulher, atitude esta que era comum naquela época, não gerando nenhum tipo de reprovação perante a sociedade. O próprio Direito Romano já retirava da mulher de capacidade jurídica. Por sua vez a religião era prerrogativa masculina da qual a mulher somente poderia participar com a breve autorização do pai ou marido (LIRA, 2015, p. 01). Para os hebreus, a mulher também era tratada como um simples objeto e pertencia aos homens, assim como os animais e os escravos. Entretanto, sob o ponto de vista jurídico adotado 1 Código que contém as Leis de Manu, considerado o primeiro legislador que se tem notícia na humanidade. Foi escrito antes do Código de Hamurabi. 14 na época, a mulher era considerada um bem mais importante em comparação com os demais (DUBY, 1990). Na Grécia Antiga, de modo semelhante, as mulheres não possuíam quaisquer direitos, somente os homens. Nessa sociedade, o homem tinha total poder sobre a mulher. A respeito disso, Vrissimtzis (2002) explica que, nesse período, o homem era adepto da poligamia, tendo o direito de tomar várias mulheres. Além disso, o homem gozava de todos os direitos civis e políticos, além de possuir poder absoluto sobre a mulher. Como explica Casarino, Quevedo e Gervasoni (2014, p. 05), a maior valorização dada ao homem na sociedade grega antiga é verificada até mesmo nas artes, “as mulheres, frequentemente, eram retratadas nas figuras dos vasos gregos como aquelas que passavam o tempo dentro de casa fiando lã e ocupadas com tarefas domésticas”. Na Grécia Antiga não havia de que se falar de direitos jurídicos para as mulheres. Outro ponto que não dizia respeito a estas era a educação, vale ressaltar também que nem aparecer sozinhas em público elas poderiam. O homem além de possuir todos os direitos era também uma espécie de possuidor absoluto da mulher, tendo até a ideia de ter o direito sobre a vida de sua companheira (LIRA, 2015, p. 01). Com o início da Idade Média, a mulher permanece sendo subordinada ao homem. A legislação do século XIII ao XV continua a reconhecer a incapacidade jurídica da mulher, assegurando que os homens poderiam castigá-la e até mesmo matá-la (OPTIZ, 1993). Nessa época, por exemplo, os direitos gentílicos não abrangiam as mulheres, somente os homens. As mulheres eram, portanto, excluídas de todos os acontecimentos públicos. A mulher não poderia sequer comparecer em tribunais, sendo obrigatória sua representação por um homem. Este homem, que era o seu tutor, poderia usufruir de todo o seu dinheiro, além de poder castigá-la, e até mesmo vendê-la (OPTIZ, 1993). Assim, a mulher era vista como um ser criado para obedecer ao homem, sem possuir direitos básicos numa sociedade civil, como o direito de ler e escrever, pois tais habilidades eram reputadas inúteis para as mulheres, sendo necessárias somente para o homem. Útil era a arte do bordado e as atividades domésticas. Por isso, atualmente, a sociedade ainda tenta colocar a mulher em um lugar doméstico. São Jerônimo, um pioneiro Patrística da era medieval, odiava declaradamente as mulheres e frisava isso em seus discursos, comentando, em Adversus Jovianum, que elas são o princípio de todos os males por seduzirem os homens aos prazeres viciosos e não virtuosos (OPTIZ, 1993). 15 Com o fim da Idade Medieval e início da Idade Moderna, a mulher passa a ter uma representação distinta e começa a ser caçada pela Igreja Católica, época marcada pela chamada “caça às bruxas”. Nota-se que até mesmo na visão religiosa de antigamente a mulher carregava certo estigma. Durante a Idade Média, a discriminação contra a mulher foi a mais cruel. Para cada dez bruxas queimadas na fogueira da Inquisição, apenas um era bruxo. De acordo com a lei instituída pela Ordenação das Filipinas (1), ao marido “traído” era permitido o delito de matar a sua mulher e o seu rival. [...] Contudo, se o amante tivesse uma condição melhor que a do marido, a questão passaria para a Justiça Régia. Percebe-se aí a influência econômica nas decisões jurídicas. De acordo com o historiador Julles Michelet, a missão da mulher, ainda no século XIX, era devotar-se, tudo aceitar e saber resignar-se, enquanto que o homem era tido, por definição, como fogoso, impetuoso e trasbordante de energia física e sexual (SANTIAGO, 2008, p. 01). O cristianismo, como explica Lira (2015), retratava a mulher como um ser pecador, culpada pela retirada do homem do paraíso. Essa interpretação é puramente bíblica/religiosa, não devendo ter validade alguma. Findando a Idade Média e se iniciando a Idade Contemporânea, especialmente marcada pelo Iluminismo, destaca-se que o Código Civil Napoleônico reconhecia a mulher casada como sujeito incapaz perante o Direito, conferindo capacidade jurídica somente ao homem. Thomé explica que Rousseau destacou, à época, que toda a educação das mulheres deveria ser relativa ao homem e que toda mulher é feita para obedecer ao homem e suportar suas injustiças (THOMÉ, 1967). Com o advento da Primeira e Segunda Guerra Mundial, a mulher passou a receber papel distinto, tendo em vista que os homens foram para as batalhas. Elas assumiram na sociedade civil “trabalhos” que não eram considerados de “mulher”, ou seja, o trabalho de seus maridos/companheiros. Ainda, ressalta-se que, após as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, a dignidade da pessoa humana passou a ser considerado direito inerente a todos os seres humanos, independente de gênero. No contexto da Segunda Guerra Mundial, Leite e Noronha (2015) apontam que as mulheres começaram a trabalhar fora de casa e passaram a ter o poder de tomar decisões que antes eram impedidas, decidir se queriam casar e ter filhos, concretizando-se, assim, um passo para a sua liberdade. Ademais, foi no fim do século XX que a mulher passou a ser protegida pelos Direitos Humanos, em razão de todo o preconceito e a perseguição histórica. No entanto, mesmo com esses importantes documentos internacionais destinados a proteger a mulher, ela ainda é vítima de violência em âmbito doméstico e familiar. 16 Como visto, a mulher sempre foi alvo de preconceito social e estrutural. A violência doméstica sempre ocorreu no decorrer da História e acontece ainda na atualidade, pois trata-se de uma realidade presente em todas as sociedades que nasce de uma cultura de dominação e desequilíbrio de poder existente entre os gêneros masculino e feminino. Essa cultura (patriarcal e machista) é responsável pela inferiorização da condição feminina, resultando na violência de gênero. A violência contra a mulher no Brasil passa a ter destaque midiático no início do século XX, como se vê: No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, eram manchetes comuns no Jornal de Commercio e A Noite, no Rio de Janeiro, “Matou a esposa com uma punhalada” [...] Esses crimes passionais também chamavam a atenção dos cronistas, que consideravam culpadas as mulheres, mesmo que elas fossem vítimas (SANTIAGO; COELHO, 2008, p. 09). A luta das mulheres ficou em evidência com a vigente Constituição Federal de 1988, que trouxe importantes avanços para as mulheres e possibilitou a alteração do status jurídico das mesmas, tendo em vista que, até o ano de 1988, elas ainda se encontravam em posição de certa inferioridade e submissão em relação aos homens. Logo, a luta feminina e a revolução sexual foram responsáveis por transformar o mundo moderno no que diz respeito aos direitos e deveres das mulheres, proporcionando um grande salto na condição feminina nas últimas décadas (SILVA, 2010). Exemplo disso é a aprovação da Lei Maria da Penha, objeto de estudo do presente trabalho. 1.2 O MACHISMO E O PATRIARCALISMO A supremacia masculina na sociedade instaurou o patriarcado. O patriarcado é entendido como sendo um sistema contínuo de dominação masculina e diminuição feminina que se encontra presente, ainda na atualidade, nas estruturas sociais e estatais, mantendo as formas de divisão sexual do trabalho e perpetuando a violência de gênero, como a violência doméstica. A masculinidade se relaciona diretamente com o poder. Ser homem, portanto, representa uma espécie de poder. Certas características como a objetividade e a racionalidade são socialmente atribuídas aos homens, além da capacidade para dar ordens, o que lhe confere domínio sobre as mulheres (HARDY; JIMENEZ, 2001). 17 No livro intitulado “A Dominação Masculina”, do sociólogo Pierre Bourdieu (2014), é apontado que esse tipo de dominação ocorre por meio de hábitos e padrões sociais que são aprendidos e reproduzidos no dia a dia de forma inconsciente por ambos os gêneros. Apesar de aparentarem ser inofensivos, tais hábitos reforçam a criação de estigmas e destacam a diferenciação das pessoas pelo sexo/gênero e outras características biológicas, fazendo uma espécie de hierarquização social, sobrepondo o gênero masculino ao feminino e, dessa forma, perpetuando o patriarcalismo. Assim, de acordo com Saffioti, a relação de dominação invade todos os espaços sociais, fazendo nascer a violência de gênero: Não se trata de uma relação privada, mas civil; dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição; configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos os espaços da sociedade; tem uma base material; corporifica-se; representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2015, p. 48). Meneghel e Portella (2017) afirmam que, em sociedades com bases patriarcais, a condição feminina é o fator de risco mais alarmante para a violência de gênero letal. Isso porque é no patriarcalismo que surge o ódio contra a mulher, bem como a subjugação feminina na sociedade. O patriarcado se fortalece com determinadas estruturas sociais, como a família e a religião, por exemplo: O altar do patriarcado, fortalecido pela cultura machista se fortalece com a violência contra as mulheres e a morte das mesmas, o feminicídio. O patriarcado se reforça a partir das instituições da família, da religião e do estado, que fortalecem a desigualdade de gênero, justificando a violência, a partir do domínio masculino (ROCHA, 2018, p. 25). Saffioti (2015, p. 33) explica que também há uma classificação social entre mulheres, sendo que as negras e pobres são consideradas inferiores: “Na ordem patriarcal de gênero, o branco encontra sua segunda vantagem. Caso seja rico, encontra sua terceira vantagem, o que mostra que o poder é macho, branco e, de preferência, heterossexual”. O machismo, por sua vez, tem berço no menosprezo à condição de mulher, como bem explica Capez (2019), que destaca que é nessa situação de desprezo que surge a ideologia machista, que faz com que homens, notadamente ignorantes, se sintam superiores às mulheres. A partir dessa falsa concepção, os homens passam a acreditar que possuem o direito de agir com violência para com a mulher, considerada por eles um ser inferior. 18 Como enfatiza o autor, o machismo confere ao homem a errônea conclusão de que ele é superior à mulher por alguma razão ilógica e que, por isso, ele tem o direito de matar uma mulher simplesmente por ela ser mulher (CAPEZ, 2019). Destaca-se que a misoginia, juntamente com o machismo, é também um dos fatores da agressão contra a mulher. Misoginia é a repulsa ou o ódio contra as mulheres. Esta forma de aversão mórbida e patológica ao sexo feminino está diretamente relacionada à violência doméstica e ao feminicídio. A misoginia pode se manifestar de várias maneiras, incluindo a exclusão social, a discriminação sexual, a hostilidade, o androcentrismo, o patriarcado, as ideias de privilégio masculino, a depreciação das mulheres, a violência contra elas e sua objetificação sexual, por exemplo (VALLE, 2012). No ano de 1949, é publicada uma das mais célebres obras da história do feminismo no mundo, denominada “O segundo sexo”, da escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir (1990). Com essa publicação, a autora passou a denunciar as raízes culturais da desigualdade de gênero, contribuindo com uma análise profunda que trata de questões relativas à biologia, à psicanálise, ao materialismo histórico, aos mitos, à história e à educação para o desvendamento desta questão (ALVES; PITANGUY, 2007). De acordo com uma das principais autoras sobre o tema “mulher”, Simone de Beauvoir (1990), não se nasce mulher, mas se torna mulher ao se aprender comportamentos, formas de pensar e de agir em função do gênero. Quando a autora faz essa afirmação, ela considera todo um processo que é moldado por uma violência oculta, violência essa que se esconde por detrás de palavras bonitas como “altruísmo”, “generosidade”, “sinceridade”, “dedicação”, “docilidade”, “passividade” e tantas outras que, ao mesmo tempo que escondem, naturalizam a violência contra a mulher. Ela percebe que, durante o período de socialização, as mulheres são condicionadas psicologicamente a serem treinadas como mero apêndice dos homens. Dessa maneira, a figura feminina é transformada em objeto que é visto através do sujeito masculino, ou seja, como “o outro” (BEAUVOIR, 1990). Isso ocorre por meio da dominação masculina, já mencionada anteriormente. Sobre esse tema: No tocante à dominação masculina, esta pode ser violenta ou simbólica, sendo a simbólica aquela que é construída de forma inconsciente. Muitas vezes, as mulheres são constituídas como objetos simbólicos, cujo ser é um ser-percebido, ou seja, elas existem primeiramente pelo e para o olhar dos outros enquanto objetos receptivos, atraentes e disponíveis. Devido a esta dependência simbólica do olhar dos outros, com 19 frequência, a mulher vive em estado de insegurança emocional e corporal (CASARINO, et. al., 2014, p. 14). Conforme ensinam Teles e Melo (2017), a violência de gênero surge do poder de dominação do homem. Afirmam, ainda, que essa violência é fruto do processo de socialização das pessoas, e não da natureza, que os papeis impostos às mulheres reforçavam o patriarcalismo, bem como induziam as relações baseadas na violência. Seguindo o mesmo pensamento anteriormente exposto, de acordo com Gebrim e Borges (2014), a violência contra a mulher possui um caráter estrutural, pois trata-se de uma relação de poder que se baseia em padrões de dominação, controle e opressão. Esses padrões desaguam na discriminação, no individualismo, na exploração e na criação de estereótipos, que são transmitidos de geração a geração e reproduzidos tanto no âmbito público como no âmbito privado, por meio das diversas formas de agressão. De acordo com Rocha e Ulrich (2018, p. 04), “O alto índice de violência contra as mulheres e inclusive a morte das mesmas é resultado, portanto, de uma sociedade que exalta o masculino (homem-macho) em detrimento do feminino”. Assim, tornam-se habituais os crimes contra a mulher no regime patriarcal e machista, pois nele as mulheres estão submetidas ao controle dos homens, sejam eles seus maridos, membros de sua família ou desconhecidos. A desigualdade de poder entre homens e mulheres também é uma causa da violência de gênero: A violência de gênero é fruto da desigualdade de poder entre homens e mulheres. É praticada contra a mulher no âmbito do processo de dominação masculina e visa submetê-la aos usos, regras e valores da cultura patriarcal, perpetuando-se assim os papéis subservientes ou menos valorizados atribuídos à mulher, sendo que a própria aceitação e tolerância sociais em relação a esse tipo de violência é sintomática dessas relações hierarquizadas (PIRES, 2011, p. 131). Nas palavras de Meneghel e Portela (2017), as causas dos crimes praticados contra a mulher se devem ao desejo de posse sobre seus corpos. Na maioria das vezes, as mulheres eram constantemente culpabilizadas por não cumprirem o seu papel social de gênero, já designado previamente pela cultura machista e patriarcalista. Nesse sentido, a violência contra as mulheres abrange um extenso leque de agressões, não só físicas, como psicológicas, sexuais e patrimoniais que ocorrem de forma constante e que podem culminar em feminicídio (MENEGHEL; PORTELA, 2017). 20 Assim, como explicado pelos autores supracitados, comumente, quando a mulher não cumpre o papel imposto a ela pela cultura, a violência é usada como punição. De acordo com Gebrim e Borges (2014), foi a partir da década de setenta e sobretudo de noventa, devido à forte pressão de movimentos feministas, que a comunidade internacional começou a reconhecer a necessidade de tratamento jurídico sobre a problemática do gênero, levando em consideração os desafios sociais enfrentados historicamente pelas mulheres. Infelizmente, é comum que mulheres neguem a existência da realidade de violência ocasionada pelo machismo e pelo patriarcalismo. Essa negação é resultado da pressão da sociedade e, em alguns casos, da negação decorrente do trauma vivenciado pela mulher vítima de violência doméstica ou de gênero. Sobre esse assunto, Meneghel e Portella (2017) explicam que as mulheres são constantemente reprimidas e, por esse motivo, é comum que algumas neguem a existência de violência. Os autores destacam o chamado “terrorismo sexista”, sendo que a socialização de gênero se mostra como um fator de neutralização de diferenças entre os sexos. Não é correto, portanto, julgar a mulher que nega a existência dessa triste realidade de violência de gênero, porque, a depender de seu contexto de criação e possíveis traumas, essa violência pode ter sido naturalizada em sua vida. A violência contra a mulher, lamentavelmente, é um fato ainda vivenciado constantemente na realidade brasileira: Apesar das árduas conquistas dos direitos das mulheres e de alguns avanços legislativos e Jurídicos para a sua proteção, a desigualdade de gênero, a discriminação e a violência contra as mulheres ainda são uma realidade, sobretudo, em países com governos conservadores e autoritários. Sem dúvida alguma, as conquistas do movimento feminista, desde o direito ao voto à aprovação da Lei Maria da Penha, promoveram mudanças não só na legislação, mas na cultura também (CARVALHO, FREITAS, 2021, p. 124). Por fim, destaca-se que a expressão máxima da violência contra a mulher é o óbito. As mortes de mulheres decorrentes de conflitos de gênero, ou seja, somente pelo fato de serem mulheres, são denominadas feminicídios. Mas ainda há os assassinatos cometidos em virtude da violência doméstica. É imprescindível, pois, que a violência de gênero, em um contexto geral, seja amplamente debatida. Passa-se, então, ao estudo a respeito da Lei Maria da Penha, importante marco legislativo que visa combater e punir a violência doméstica e familiar. 21 2 A LEI MARIA DA PENHA COMO MARCO LEGISLATIVO CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Conforme estudado, a violência contra a mulher é fruto de uma sociedade eminentemente patriarcal e machista que, desde os primórdios, trata a mulher de forma desigual. Ao se refletir sobre a violência contra a mulher, percebe-se que “o poder do patriarcado/machismo é conduzido pelo desejo profundo de dominação, dos homens sobre as mulheres” (ROCHA; ULRICH, 2018, p. 24). A violência doméstica é uma realidade reconhecida pela atual Constituição Federal, ao estabelecer, no §8º de seu artigo 226: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (BRASIL, 1988). Muito embora os movimentos feministas tenham obtido inúmeras conquistas sociais, as mulheres ainda são menosprezadas socialmente: Apesar das mudanças alcançadas pelo movimento feminista e da legislação que assegura direitos às mulheres, ainda nos dias atuais, a família e a sociedade têm mantido resquícios da família patriarcal, mesmo que de forma velada, buscando fortalecer as relações de poder, submetendo a mulher ao domínio e ao controle dos homens (SOUZA; FARIAS, 2022, p. 2015). Com o passar do tempo e o aumento dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, fez-se necessária a edição de uma legislação específica que visasse à proteção da mulher e ao combate a esse tipo de violência. O Brasil editou essa legislação tardiamente, somente em 2006, após forte pressão internacional e de movimentos feministas provocada pelo caso emblemático da vítima Maria da Penha. Deste modo, faz-se necessário entender todo o contexto histórico por trás desse marco legislativo e os principais aspectos de seu texto. 2.1 CONTEXTO HISTÓRICO E CRIAÇÃO DA LEI 11.340/06 Como visto, a mulher constantemente foi tratada de forma indevida pela sociedade, pois houve a retirada de sua autonomia e dignidade em razão do machismo e do patriarcalismo, bases da violência de gênero. Nesse contexto, urgia a edição de uma legislação protetiva. Os movimentos sociais que objetivavam a proteção legal da mulher são antigos. Na década de setenta, época em que grupos de mulheres foram às ruas com o slogan “quem ama 22 não mata”, foi levantada de forma enérgica a bandeira contra a violência de gênero, bem como a violência doméstica (CALAZANS; CORTES, 2011). Isso porque a violência doméstica contra a mulher é uma forma de violência de gênero, sendo um dos mais preocupantes tipos de violência existentes na atualidade, já que ocorre, na maior parte das vezes, no seio familiar, em ambiente íntimo, local onde deveria reinar o afeto e, sobretudo, o respeito. Como explica Silva e Silva (2020, p. 45), “A violência doméstica contra a mulher é um problema que atinge toda a sociedade. A opressão está relacionada à violência pois os interesses do agressor são diferentes dos da vítima, fruto da superioridade masculina propagada pela cultura patriarcal que estamos inseridos”. Os autores enfatizam que a violência surge da superioridade masculina baseada na cultura patriarcal. A edição de legislação específica no Brasil teve como marco os episódios de violência sofridos por Maria da Penha Fernandes. Maria da Penha, farmacêutica, no dia 29 de maio de 1983, em Fortaleza, enquanto dormia, foi atingida por um disparo de espingarda feito pelo seu então marido. O disparo atingiu sua coluna e, em virtude dessa lesão, Maria ficou paraplégica. As agressões, contudo, não cessaram (LIMA, 2020). Uma semana após esse episódio de violência, o então marido de Maria da Penha voltou a agredi-la. Dessa vez, enquanto ela tomava banho, recebeu dele, de forma cruel e impiedosa, uma descarga elétrica (LIMA, 2020). Maria da Penha formaliza denúncia e o marido é indiciado por tentativa de homicídio. Após 08 (oito) anos de processo, no ano de 1991, ocorreu o julgamento e, mesmo condenado, aquele saíra em liberdade. No ano de 1996, outro julgamento ocorreu e, novamente, o acusado não foi preso, restando a sensação de impunidade. Importante destacar brevemente que é justamente essa sensação de impunidade que silencia as mulheres. O medo de seu agressor não ser, de fato, punido, voltar para casa e cometer novamente um crime de violência. Maria da Penha, diante da impunidade de seu agressor, entende que o Estado é diretamente responsável por essa situação. Ela então formaliza denúncia contra o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1997. No ano de 2001, o Brasil foi condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), por negligência e omissão em relação à problemática social da violência doméstica, tendo sido recomendada a tomada de providências a respeito. Ainda no ano de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou o relatório nº 54/2001, no qual as principais disposições referem-se a completar, de forma rápida e efetiva, o processamento penal 23 do responsável pela agressão e tentativa de homicídio sofrida pela vítima Maria da Penha. O relatório dispõe, ainda, sobre a necessidade de se proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a respeito do crime. Também estabelece a adoção de medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima a adequada reparação simbólica e material das agressões, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o agressor. Por fim, sugere a intensificação do processo de reforma legislativa para evitar a tolerância do tratamento discriminatório contra a mulher por parte do Estado Brasileiro, especialmente a respeito da violência doméstica. Parte do relatório, em seu texto original, deve ser citada: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado Brasileiro as seguintes recomendações: 1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia. 2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva [...]. 3. Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão, as medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações [...]. 4. Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil [...] (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001). A prisão do acusado somente se concretizou em setembro de 2002, ou seja, após 19 (dezenove) anos da ocorrência dos crimes. Necessário destacar que essa prisão só veio a ocorrer após a grande pressão internacional exercida sobre o Brasil, devido aos esforços da própria vítima, Maria da Penha. Por fim, no ano de 2006, entra em vigor a Lei Federal nº 11.340, que recebeu o nome de “Lei Maria da Penha”, por sugestão da OEA. Na época, seu advento foi uma inovação legislativa necessária. Lamenta-se que o referido marco legislativo só tenha sido promulgado após forte pressão internacional e diversos episódios de violência doméstica e familiar contra diversas mulheres Brasil afora, inclusive a própria Maria da Penha. De acordo com Carmen Hein de Campos: A LMP é fruto de um acúmulo feminista tanto político quanto teórico e corresponde à mais inovadora legislação pensada para o enfrentamento à VDFCM (violência doméstica e familiar contra a mulher). A lei rompe com a lógica privatizante da violência doméstica e o tratamento como delito de menor potencial ofensivo e propõe uma abordagem integral, entendendo a complexidade da violência doméstica e familiar (CAMPOS, 2017, p. 11). Sem os apelos feitos por Maria da Penha em âmbito internacional, a legislação, que já sobreveio tardiamente, surgiria somente depois, sobretudo porque, mesmo com essa inovação 24 legislativa, os casos de violência doméstica continuaram ocorrendo. Nota-se, portanto, que o desprezo contra a mulher está enraizado na sociedade e nas mentes masculinas. 2.2 A LEGISLAÇÃO Conforme exposto no tópico anterior, a legislação de proteção às vítimas de violência doméstica e familiar tem como marco o ocorrido com Maria da Penha e seu empenho em buscar a responsabilidade internacional do Estado Brasileiro diante da impunidade de seu agressor. De acordo com Basted (2011), a luta feminista é também uma das grandes responsáveis pela aprovação dessa importante legislação. O autor afirma que foi essa luta pelo direito a uma vida livre de violência que possibilitou a edição da Lei Maria da Penha, no ano de 2006. Trata- se, portanto, de um caso exemplar de exercício de uma cidadania ativa, expressa no discurso e na atuação das feministas no espaço público. A vítima Maria da Penha representa inúmeras mulheres vítimas desse tipo de violência, tanto as que foram à luta, pedindo proteção e mudanças legislativas, quanto as que, infelizmente, foram silenciadas (BASTED, 2011). Antes da entrada em vigor da Lei nº 11.340/06, os casos de agressão e violência doméstica eram de competência dos Juizados Especiais e as sanções aplicáveis ao agressor eram o pagamento de cestas básicas e a prestação de serviços à comunidade, desde que a infração fosse considerada de menor potencial ofensivo. Logo, a Lei Maria da Penha foi um verdadeiro divisor de águas no tratamento jurídico dispensado à mulher vítima de violência doméstica e familiar, por garantir uma punição mais dura ao agressor. O conceito de violência doméstica adotado pela referida Lei ultrapassa a limitada noção dos crimes de lesão corporal de natureza leve ou ameaça, previstos no Código Penal Brasileiro. Trata-se de um tipo penal cometido contra um grupo social vulnerável específico: as mulheres. As Disposições Preliminares da Lei Maria da Penha acompanham a posição das Nações Unidas e de organismos e instituições de direitos humanos que ampliaram o conceito de segurança, onde se entendeu que o medo da violência é uma questão completamente diferente para mulheres e homens. Nesse sentido, a segurança legislativa também deve ser distinta (BASTED, 2011). Em uma perspectiva ampla, muitos são os pontos de inovação da legislação supracitada, como se vê: 25 a) tutela penal exclusiva para as mulheres; b) criação normativa da categoria violência de gênero; c) redefinição da expressão vítima; d) exclusão dos crimes de violência doméstica do rol dos crimes considerados de menor potencial ofensivo e suas consequências; e) previsão de a companheira ser processada por violência doméstica e familiar em relações homoafetivas; f ) criação de medidas protetivas de urgência; g) criação dos juizados especializados de VDFCM com competência civil e criminal; h) tratamento integral, intersetorial e interdisciplinar da violência doméstica e familiar (CAMPOS, 2017, p. 12). A respeito do surgimento da legislação em análise, Lima (2020) esclarece que, ao se considerar que a mulher, até os dias atuais, é constantemente oprimida na sociedade, opressão essa que tem como autor, na maioria das vezes, o homem, a Lei Maria da Penha surge de forma a criar mecanismos para conter a violência doméstica e familiar contra a mulher, destinando uma proteção especial ao gênero feminino, que é considerado vulnerável quando inserido em situações específicas elencadas pelo seu artigo 5°, quais sejam: a) ambiente doméstico; b) ambiente familiar; ou c) relação íntima de afeto. Como ressaltado pelo autor, as mulheres compõem um grupo vulnerável na sociedade e nas relações e é sobretudo nas relações desenvolvidas em ambiente doméstico e familiar que essa vulnerabilidade se destaca, porque o homem usa a opressão como caminho para a violência concreta. De acordo com Porto (2021), a Lei Maria da Penha surge no ordenamento jurídico brasileiro para modificar uma realidade social de discriminação da mulher, notadamente nas relações domésticas e familiares, além de regulamentar as relações econômicas e sociais que são afetadas com a violência doméstica. Esse fenômeno que a legislação em tela tem como finalidade modificar foi forjado ao longo da história e é responsável pela discriminação da mulher nas relações familiares ou domésticas: Mais do que para regulamentar quaisquer relações econômicas ou sociais, a Lei Maria da Penha ingressa no sistema jurídico brasileiro com uma finalidade muito determinada: contribuir para modificar uma realidade social, forjada ao longo da história, que discrimina a mulher nas relações familiares ou domésticas, aviltando-a à condição de cidadã de segunda categoria, rebaixando sua autoestima e, por consequência, afetando-lhe a dignidade humana (PORTO, 2020, p. 24). Com foco em aspectos técnicos da legislação, importante esclarecer que somente a mulher pode ser vítima desse tipo de violência, conforme expresso na própria Lei nº 11.340/06. Já o sujeito passivo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que a violência ocorra no âmbito doméstico, no espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, ou desde que ocorra dentro da comunidade familiar onde há, de fato, ligação familiar entre as pessoas. 26 Logo, grande parte das análises doutrinárias e jurisprudenciais a respeito da Lei Maria da Penha dá enfoque especial aos seus aspectos punitivos, destacando sua importância na defesa do direito das mulheres a uma vida sem violência. 2.3 AS DIVERSAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A violência é um ato que atenta contra a integridade física e/ou psicológica de uma pessoa. Mas não se esgota aí, ela também pode atingir bens jurídicos variados, como o patrimônio, por exemplo. O termo “violência” deriva do latim “violentia” (vis, que se refere a força e vigor) e é relativo à utilização de força desmedida sobre outra pessoa ou até mesmo um objeto. Sabe-se que a violência não escolhe cor, etnia ou qualquer outra classificação, ela ocorre em vários meios. Saffioti explica como se manifesta a violência doméstica: A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de regra, intervenção externa. Raramente uma consegue desvincular-se de um homem violento sem auxílio externo. Até que este ocorra, descreve uma trajetória oscilante, com movimentos de saída da relação e de retorno a ela. Este é chamado ciclo de violência, cuja utilidade é meramente descritiva (SAFFIOTI, 2015, p. 84). Como visto, a autora aponta que a violência ocorre com mais frequência quando uma relação afetiva é rompida e o homem não aceita o término, se mostrando violento. Nucci (2020) conceitua violência em sua obra, explicando que, em linhas gerais, significa qualquer forma de constrangimento ou força utilizada contra outra pessoa. Tal força pode ser física ou moral. Nota- se que ele enfatiza que a violência se manifesta de diversas maneiras, podendo ser física, moral, psicológica, dentre diversas outras formas: Violência significa, em linhas gerais, qualquer forma de constrangimento ou força, que pode ser física ou moral [...]. Portanto, não se fala apenas em violência física, mas sim moral e psicológica que, abalam a vítima não apenas fisicamente, mas diminuem seu ego e abalando o seu íntimo (NUCCI, 2020, p. 590). Em sentido semelhante conceitua Teles e Melo (2017), ao afirmarem que a palavra “violência” presume a utilização de força física, intelectual ou psicológica com a finalidade de submeter o outro a realizar algo fora de seu interesse ou impedi-lo de determinada ação, podendo suceder ameaças, alienação ou jura de morte. 27 Nesta esteira, é necessário desmistificar que a violência contra a mulher ocorre somente na forma física. Um homem com ideologias machistas e patriarcais não só agride fisicamente uma mulher, ele também pode agredi-la psicológica e moralmente, sendo que tal violência pode até mesmo ser patrimonial. Nestas linhas, percebe-se que a violência não recai somente sobre um corpo humano físico, ela pode ser também moral, psicológica, patrimonial, entre outras, tendo em vista que não é só a lesão no corpo da vítima que abala o seu íntimo e desrespeita a sua dignidade. A partir do inciso II da Lei nº 11.340 de 2006, são contextualizadas as formas de violência diversas da física, pois, conforme mencionado anteriormente, a violência contra a mulher tem formas diversas (BRASIL, 2006). A violência física é aquela que deixa marcas externas no corpo da vítima. Geralmente se exterioriza em tapas, socos, chutes e diversas outras formas que se consubstanciam no uso da força física por parte do autor. Portanto, o agressor se utiliza de sua força contra o corpo da vítima. É o tipo de violência que é facilmente detectado em exame de corpo de delito. Contudo, em alguns casos, mesmo com a utilização da força física, marcas visíveis podem não ser deixadas. Cunha e Pinto (2021), nesse sentido, afirmam que a violência física consiste no uso da força, que pode se exteriorizar por meio de socos, tapas, pontapés, empurrões, arremesso de objetos, queimaduras etc., cujo objetivo principal é ultrajar a integridade ou a saúde corporal da vítima. Tais agressões podem ou não deixar marcas aparentes. Portanto, qualquer agressão que ofenda o corpo e a saúde da mulher com o uso de força física, mesmo que não deixe marcas, considera-se violência física. Dias (2015) leciona no sentido de que não é somente a lesão dolosa, a lesão culposa também constitui violência física, visto que nenhuma distinção é feita pela Lei sobre a intenção do agressor. A Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) também protege a autoestima e a saúde psicológica da mulher. A violência psicológica é uma agressão emocional, atinge o bem-estar psíquico da mulher. Geralmente causa danos sérios que necessitam de acompanhamento de profissional da saúde mental visando amenizar os traumas deixados. A violência psicológica é configurada quando o agressor ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima. O agente sente prazer em ver a vítima sofrendo, configurando, assim, a vis compulsiva. É o tipo de violência que muitas mulheres possuem dificuldade de identificar porque o agressor pode ter facilidade em manipular suas ações. De acordo com Maria Berenice Dias, foi a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica que abordou, inicialmente, a violência psicológica 28 como uma forma de violência que deveria ser combatida. Esse tipo de violência não é muito abordado, pois é conhecido por ser uma “violência invisível”, sendo capaz, no entanto, de ocasionar danos irreparáveis na vida de uma mulher (DIAS, 2015). A doutrina critica a expressão violência psicológica, que poderia ser aplicada a qualquer crime contra a mulher, pois todo crime gera dano emocional à vítima e aplicar um tratamento diferenciado apenas pelo fato de a vítima ser mulher seria discriminação injustificada de gêneros (DIAS, 2015). A violência psicológica é tão grave que vem ganhando atenção do legislador brasileiro. Importante, então, destacar que, em junho de 2021, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 741/2021, que deu origem à Lei Ordinária nº 14.188/2021, a qual inclui no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher. De acordo com o texto da referida Lei, a violência psicológica é aquela que causa dano emocional à mulher e que lhe prejudica e perturba o pleno desenvolvimento ou que visa degradar ou controlar as suas ações, comportamentos, crenças ou decisões. Essa prática ocorre por meio de ameaças, humilhações, constrangimentos e outras formas que atingem diretamente o seu psicológico (BRASIL, 2021) Ainda, referida legislação também alterou uma parte da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) com o objetivo de incluir no texto, a partir do artigo 12-C, caput, o risco – atual ou iminente – à integridade psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, como fundamento para o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência. A violência sexual no ambiente doméstico geralmente tem como vítima a esposa ou a companheira. Para se configurar esse tipo de violência, é necessário que a mulher seja obrigada a praticar ato sexual contra a sua vontade. Impedir que a mulher utilize de contraceptivos também é considerado violência sexual, bem como a retirada de método contraceptivo de barreira sem a autorização da parceira durante o ato sexual. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica – chamada Convenção de Belém do Pará – reconheceu a violência sexual como violência contra a mulher. Afirma, ainda, a autora, que os delitos chamados, equivocadamente, de crimes “contra os costumes”, que passaram a ser chamados de “crimes contra a dignidade sexual” com o advento da Lei nº 12.015 de 2009, abarcam as diversas formas de violência sexual. Nesse sentido, quando a mulher é obrigada a manter relação sexual sem seu consentimento, será configurado o crime de estupro, que é um crime contra a dignidade sexual. Outros crimes contra a liberdade sexual também configuram violência sexual quando praticados contra a mulher, 29 como o atentado violento ao pudor; a posse sexual mediante fraude; o atentado ao pudor mediante fraude; o assédio sexual e a corrupção de menores. Todos esses delitos, se cometidos no âmbito das relações domésticas, familiares ou de afeto, constituem violência doméstica e o agente submete-se à Lei Maria da Penha. A iniciativa de trazer o crime de violência sexual para a Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) demonstra a necessidade de se individualizar essa conduta como um tipo de violência contra a mulher que pode ocorrer no ambiente doméstico. O estupro não ocorre somente com autor e vítima que se desconhecem. Há a ocorrência do crime em questão dentro da família e quando o autor e a vítima são marido e mulher. Nesse sentido, nos casos de violência sexual no âmbito doméstico, aplicar-se-á o Código Penal. Somente no caso de a vítima ser mulher que será aplicada a Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), por um critério de especialidade da legislação. A violência patrimonial também ocorre no âmbito doméstico. O legislador definiu no artigo 7º, IV, da Lei em análise a violência patrimonial como sendo a conduta que configure a subtração (há também outros verbos nucleares que se relacionam ao furto/roubo) de um bem ou até mesmo de um documento da mulher. Geralmente, o intuito também é abalar a saúde mental da mulher. A violência patrimonial se compara aos crimes contra o patrimônio previstos no Código Penal. No entanto, no âmbito da violência doméstica, esse crime passa a ter contornos especiais, justamente por ser a mulher a vítima e o crime ter sido cometido no ambiente doméstico e/ou familiar. Ademais, em 15 de fevereiro de 2022, foi editada a Recomendação CNJ nº 128, orientando os órgãos do Poder Judiciário a adotarem o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, de modo a colaborar com as Políticas Nacionais da Resolução CNJ nº 254/2020, relativas ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário. A violência moral é delineada no artigo 7º, V, da Lei supracitada, e é “entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”. Ou seja, são delitos que, na concepção do Código Penal, são os chamados “crimes contra a honra”, mas, quando adentram o ambiente familiar, denominam-se “violência moral” (BRASIL, 2006). Conforme Cunha e Pinto, a violência moral, que também pode ser verbal, geralmente ocorre juntamente com a violência psicológica. Ela se dá através de conduta que consiste em calúnia, difamação ou injúria: A violência verbal, entendida como qualquer conduta que consista em calúnia (imputar a vítima a prática de determinado fato criminoso sabidamente falso), difamação (imputar a vítima a prática de determinado fato criminoso) ou injúria (atribuir a vítima qualidades negativas) normalmente se dá concomitante à violência psicológica (CUNHA; PINTO, 2021, p. 67). 30 Além disso, a agressão moral configurada na Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) está interligada com a violência psicológica, sendo que, nesse caso, na visão civilista, são concomitantes, ou seja, são manifestadas ao mesmo tempo. Portanto, é cabível uma ação de indenização por dano material e moral. Sousa explica que, normalmente, a violência doméstica passa por fases: Quando se analisa a ocorrência da violência doméstica e a forma que a mulher é agredida, nota-se que a violência é cometida de forma cíclica, perpassando por fases, isto é, primeiramente, a violência ocorre dentro do campo da “tensão”, na qual a mulher é submetida a uma sequência de ameaças, pressões psicológicas e injúrias (SOUSA, 2021, p. 16). Assim, não raramente, a mulher é vítima de mais de um tipo de violência, iniciando com a violência psicológica, moral, física e até mesmo sexual. A Lei Maria da Penha foi inteligível em trazer todas essas condutas em seu texto, de modo a enquadrá-las como violência doméstica e/ou familiar. 2.4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O contexto da violência doméstica contra a mulher deve ser considerado sob a ótica dos direitos humanos e fundamentais. A dignidade da pessoa humana passou a ter elevada importância a partir da segunda metade do século XX. No Direito Brasileiro, encontra-se prevista na Constituição Federal, sendo possível afirmar que todos os direitos básicos do ser humano têm como alicerce a dignidade da pessoa humana. No caso da violência doméstica e/ou familiar contra a mulher, há flagrante desrespeito à sua dignidade. Sendo assim, é importante se estudar a temática também à luz da Carta Magna, com foco na dignidade da pessoa humana. 2.4.1 A dignidade da pessoa humana na Constituição Federal A dignidade da pessoa humana é responsável por conceder unidade aos direitos e às garantias fundamentais, pois trata-se de um valor inerente à personalidade humana, princípio basilar que fundamenta a existência dos direitos humanos. De acordo com Alexandre de Moraes (2017), a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral que nasce com a pessoa e se manifesta de forma singular na autodeterminação 31 consciente e responsável da própria vida. Tal valor também traz consigo a pretensão ao respeito por parte de terceiros: A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES, 2017, p. 128). Foi uma opção do constituinte originário não incluir a dignidade da pessoa humana dentre os direitos fundamentais no rol do artigo 5°, mas, sim, considerá-la um dos fundamentos da República Federativa do Brasil: “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, institui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana [...]” (BRASIL, 1988). Assim, o homem ou a mulher, enquanto espécie humana, não podem ser considerados uma coisa ou um mero objeto, sendo essa a ideia central extraída da dignidade humana. Tal princípio encontra fundamento inicial nas ideias de Immanuel Kant (2009), que leciona que os seres cuja existência dependa da natureza, por não serem seres racionais, possuem valor relativo e, por esse motivo, são considerados “coisas”. Por outro lado, os seres racionais são chamados de pessoas e possuem natureza distinta da dos objetos, não podendo ser empregados como simples meio e objeto, devendo, assim, haver o limite no seu tratamento. Como se vê, pela filosofia kantiana, o homem é compreendido como um ser racional e existe como um fim em si mesmo, não como meio, ao passo que os seres que não são providos de razão possuem valor relativo e condicionado ao de meio e, por essa razão, são chamados de “coisas”. [...] a noção de dignidade não está fundada numa qualidade natural do homem e tampouco pode ser identificada com a sua condição e prestígio na esfera social, assim como não pode ser reconduzida à tradição cristã, de acordo com a qual a dignidade é concessão divina. Pufendorf sustenta que mesmo o monarca deveria respeitar a dignidade da pessoa humana, considerada esta como a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção. (SARLET, 2001, p. 36). A dignidade da pessoa humana começou a ser vista como um direito necessário e amplamente discutido somente após o advento da Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito bélico (1939-1945), fora colocada em prática toda a ideologia nazista de “purificação da raça 32 ariana”. Foi nesse período que ocorreu um dos capítulos mais aterrorizantes de nossa história, com o total desrespeito a diversos povos, aos seus direitos e, principalmente, à dignidade da pessoa humana. Assim, como ressalta Willis Santiago Guerra Filho (1996), a doutrina do respeito à dignidade humana é de origem alemã, remetendo diretamente à ética Kantiana estudada anteriormente, cujo entendimento intrínseco é o de que a boa conduta seja amplamente considerada, de forma universal, decorrendo, dentre outras, a proibição do tratamento violento em relações íntimas, da objetificação do ser humano, como meio para a consecução de certos fins, independentemente de quais fins sejam. De fato, ao realizar uma busca na jurisprudência da Alemanha, sobretudo do Tribunal Constitucional Federal, afirma Haberle (2005) que é corriqueiro encontrar pareceres tratando a dignidade da pessoa humana como o valor jurídico mais importante dentro do ordenamento constitucional, como um valor jurídico supremo ou até mesmo o fim supremo de todo o direito. Ou seja, encontra-se estabelecido no país que a dignidade da pessoa humana é um princípio de extrema relevância. Na atualidade, o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser compreendido sob duas vertentes: primeiro, serve de mecanismo de proteção individual, tanto com relação aos outros indivíduos como também frente ao Estado; segundo, constitui um dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes (PAULO; ALEXANDRINO, 2013). A proteção à dignidade humana deve ser assegurada pelo Estado em todas as hipóteses, no entanto, não deve haver a sua banalização, tendo em vista a amplitude do princípio e a possibilidade de diferentes interpretações. Neste sentido Daniel Sarmento (2016) se posiciona, explicando que o principal déficit de efetividade da dignidade da pessoa humana no Brasil não decorre de uma razão genuinamente jurídica ou econômica, mas, sim, de uma cultura bem enraizada que não considera que todas as pessoas são dignas de forma isonômica. Nessa perspectiva, a dignidade humana, de forma paradoxal, se converte em seu inverso: uma ferramenta adicional para reforçar e reproduzir o status quo de hierarquia e assimetria que consagra privilégios para uns à custa do tratamento indigno dispensado a outros. A partir de toda essa exposição, é possível compreender a tamanha importância da dignidade da pessoa humana no contexto social atual, que fundamenta o combate a todos os tipos de violência e discriminação. 33 2.4.2 Dignidade humana e violência doméstica Muitos questionam o fato de a Lei Maria da Penha se destinar somente à mulher, o que ensejaria o desrespeito ao princípio da isonomia, previsto constitucionalmente. A Lei já foi, inclusive, acusada de ser inconstitucional. Todavia, trata-se de uma legislação votada de forma democrática pelo Parlamento brasileiro que preenche uma lacuna histórica enorme e, ao mesmo tempo, representa a luta feminina contra a violência doméstica e de gênero. A Lei surge então bem construída sob o pilar da dignidade da pessoa humana. Os artigos 2° e 3° da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) apresentam direitos e garantias fundamentais inerentes à pessoa humana que devem ser assegurados a toda e qualquer mulher, como por exemplo a oportunidade e a facilidade para se viver sem violência, a preservação de sua saúde mental e física, o direito à educação, à dignidade, à liberdade etc. Todas essas garantias integram o conceito de dignidade da pessoa humana. De acordo com as lições de Renato Brasileiro de Lima (2020), à primeira vista, a previsão desses direitos parece redundante, tendo em vista que são direitos destinados a qualquer ser humano, independente do gênero. Mas é necessário considerar que, historicamente, os direitos humanos foram construídos e desenvolvidos com a exclusão das mulheres, como já estudado nos tópicos anteriores. A dignidade da pessoa humana, conceito tão importante na atualidade, já foi violado de diversas formas no decorrer da história e ainda é desrespeitado recorrentemente pelos próprios seres humanos, como é o caso da violência doméstica e familiar contra a mulher. A Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher foi promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 4.377/2022 e, de acordo com Andreucci (2013), se baseia na ideia de que, mesmo existindo diversos instrumentos internacionais visando à garantia dos direitos humanos e repudiando qualquer forma de discriminação, as mulheres continuam sendo alvo de grande desigualdade atualmente. Portanto, de acordo com essa Convenção, a discriminação contra a mulher viola diversos princípios, dentre eles a dignidade da pessoa humana e dificulta a inserção da mulher em diversas áreas sociais e econômicas. 3 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA 34 A Lei Maria da Penha traz mecanismos específicos de proteção integral à mulher vítima de violência doméstica e/ou familiar chamados de “medidas protetivas”. A necessidade da medida se justifica no perigo enfrentado pela vítima, que pode ser inferido a partir do seu próprio depoimento. Em vários casos elas relatam sentir medo, a mudança de rotina e que evitam sair de casa desacompanhadas. Denunciam, ainda, as sequelas físicas e psicológicas e a conduta do agressor, que pode usar armas de fogo ou objetos perigosos (FERNANDES, 2018). A partir dos danos experimentados e os que podem potencialmente acontecer, fez-se necessária a adoção dessas medidas. Como é destacado por Maria Berenice Dias (2012, p. 45), “Elenca a Lei Maria da Penha um rol de medidas para assegurar efetividade ao seu propósito: garantir à mulher o direito a uma vida sem violência. Tentar deter o agressor bem como garantir a segurança pessoal e patrimonial da vítima e sua prole agora não é encargo somente da polícia”. Ou seja, o objetivo primordial é a proteção da mulher e de sua família. A Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), em seus artigos 18, 19, 20 e 21, apresenta algumas disposições gerais acerca das medidas protetivas de urgência. Contudo, cabe destacar que esse rol é meramente exemplificativo, posto que eventuais medidas não previstas podem ser adotadas para a proteção da mulher. Essas medidas possuem o objetivo de garantir a liberdade da mulher em buscar a proteção estatal em face do agressor. Elas não possuem um rito específico, entretanto, é necessário que seja simples e de rápida tramitação, devido ao objeto do processo, além disso, só será concedida em casos de violência contra mulher efetuada no ambiente doméstico ou familiar do casal (SILVA; SILVA, 2020). Logo, as medidas protetivas são mecanismos inovadores, e inseridos na legislação são adotados pela autoridade policial e judiciária quando necessário. A sua efetividade é a maior problemática do tema, e isso será estudado no capítulo posterior, mas antes cabe compreender com mais detalhes as peculiaridades dessas medidas. 3.1 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA De acordo com Portella (2011), a expressão “medidas protetivas” significa uma providência jurisdicional adequada para proteger a mulher vítima de violência doméstica ou familiar. O objetivo é assegurar os direitos fundamentais dessas mulheres, bem como a sua dignidade humana, sem diferenciações de raça, orientação sexual, idade e classe social. Ou seja, são universais, mas, dentro da Lei Maria da Penha, são conferidas somente à mulher. 35 Para Pires (2011, p. 134), “a teleologia eminentemente protetiva da Lei está, bem se vê, direta e intimamente ligada com o reconhecimento de que a mulher está em desigualdade de poder com o agressor em razão de ser mulher”. Por esse motivo, a edição da Lei Maria da Penha, juntamente com a previsão de medidas protetivas de urgência, foi necessária. Porto destaca que o legislador editou essas medidas inspirado em documentos internacionais que versam sobre direitos humanos: O legislador brasileiro, inspirado em documentos internacionais dos quais o Brasil tomou parte, sensibilizou-se contra uma injusta tradição de nefandas consequências: a violência generalizada contra a mulher por parte do homem, e deliberou legislar sobre o tema, buscando, dentre outros meios mais tipicamente promocionais, combater uma das causas desta lamentável tradição: a impunidade ou, no mínimo, a proteção deficiente, através da autorização de medidas protetivas de urgência a serem deferidas em favor da mulher agredida, com nítido cunho cautelar e inspiradas nas ideias de hipossuficiência da vítima, informalidade, celeridade e efetividade (PORTO, 2021, p. 105). No que se refere à natureza jurídica, Bechara (2010) explica que o que determina a natureza jurídica de um instituto é a sua relação com o objeto da disciplina paradigma. Assim, para se chegar a uma conclusão a respeito da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência, é importante confrontar sua definição legal com as definições do Direito Penal e Civil, que integram a própria Lei Maria da Penha. Logo, muito embora a legislação se enquadre no Direito Penal, ela pode gerar consequências no Direito Civil. As medidas protetivas de urgência devem então ser consideradas à luz do Direito Penal e do Direito Civil, mas com enfoque em seu maior objetivo: a proteção da mulher em situação de risco em decorrência da violência doméstica, se enquadrando melhor na seara do Direito Penal e possuindo natureza criminal (BECHARA, 2010). Fredie Didier Jr. e Rafael Oliveira, por sua vez, explicam em sua obra que as medidas protetivas previstas na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) são espécies das medidas provisionais previstas no Código de Processo Civil Brasileiro: “A natureza jurídica, no entanto, como já anunciado, é a mesma: providências de conteúdo satisfativo, concedidas em procedimento simplificado, relacionadas à parte do conflito (no caso, do conflito familiar e doméstico)”. (DIDIER; OLIVEIRA, 2010, p. 24). Grande parte da doutrina defende que se trata de medida cautelar, como é o caso de Denilson Feitoza: Assim, firmamos um primeiro ponto: há procedimentos cíveis e criminais separados, conduzidos por juízes com competência cumulativa, cível e criminal, quanto à matéria violência doméstica e familiar contra a mulher. As medidas protetivas, por sua vez, 36 são, conforme o caso, medidas cautelares preparatórias, preventivas ou incidentes, como constatamos por suas características e por interpretação sistemática com outras leis. A mudança de denominação (“protetivas”) não lhes retirou seu caráter. Por outro lado, há várias medidas protetivas, na Lei 11.340/06, que têm, de modo geral, caráter dúplice, podendo ser utilizadas como medidas cautelares cíveis ou criminais (FEITOZA, 2009, p. 626). Pires (2011) entende que as medidas protetivas têm natureza jurídica cível sui generis, pois constituem ora ordens mandamentais satisfativas, ora inibitórias e reintegratórias (preventivas), ora antecipatórias, ora executivas, todas autônomas e independentes de outro processo e que visam proteger os bens jurídicos tutelados pela Lei Maria da Penha e instruir futuro processo civil e/ou criminal. Assim, nota-se que ainda não há um consenso a respeito da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência. O que importa destacar, por ora, é que elas reverberam tanto no Direito Civil como no Direito Penal. 3.2 DISPOSIÇÕES GERAIS Sobre o deferimento de medidas protetivas, Fernandes (2018) esclarece que é necessário que a violência seja de fato praticada contra a mulher e que se comprove o fumus boni iuris2 e o periculum in mora3. As medidas protetivas de urgência estão dispostas nos artigos 18 ao 21 da Lei Maria da Penha. O pedido de medidas protetivas pode ser formulado diretamente pela vítima à autoridade policial, que, nessa situação, possui capacidade postulatória, não sendo necessário, ao menos nesse momento, que a vítima esteja acompanhada de advogado ou defensor público. Aliás, a própria autoridade policial pode deferir tais medidas, devido à sua urgência, não sendo indispensável a prévia autorização ou análise judicial. No entanto, o artigo 18 da Lei nº 11.340/06 dispõe sobre o procedimento a ser adotado pelo juiz no deferimento dessas medidas: Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas: I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso; III – comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis (BRASIL, 2006). 2 Fumaça do bom direito. 3 Perigo da demora. 37 Entende-se que essas medidas autorizadas pelo Poder Judiciário são requeridas em processo que já esteja em andamento. Em outros casos, tendo a autoridade policial notícia da prática de algum tipo de violência doméstica ou familiar, ele mesmo deve deferir as medidas necessárias, concluindo o Inquérito Policial em tempo legal e o remetendo ao Ministério Público. De volta à análise do artigo 18, o dispositivo enfatiza que o magistrado deve, em 48 (quarenta e oito) horas, decidir sobre as medidas protetivas de urgência. Caso seja necessário ajuizar ação de divórcio, visando à separação legal da ofendida e do autor, o magistrado deverá encaminhar a vítima ao Poder Judiciário para que tal ação seja proposta. O artigo 19, por sua vez, preceitua que as medidas protetivas de urgência podem ser deferidas de imediato: Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. §1º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado. §2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. §3º Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público (BRASIL, 2006). Assim, o magistrado também deve comunicar ao Ministério Público o fato ocorrido e, se o agressor portar arma de fogo, deve determinar sua imediata apreensão. O artigo supracitado, ademais, informa que essas medidas podem ser concedidas independentemente de audiência prévia e serem aplicadas isolada ou cumulativamente, depende do caso concreto. As medidas protetivas já aplicadas também podem ser substituídas por outras de maior eficácia com a finalidade de garantir maior proteção à vítima de violência doméstica ou familiar. Medidas novas também podem ser deferidas a requerimento do Ministério Público ou da ofendida, bem como revistas aquelas já deferidas anteriormente, tudo a fim de proteger a vítima, seus familiares e seu patrimônio. Outrossim, a prisão preventiva do agressor será cabível em qualquer fase do processo e a ofendida deve ser comunicada de todos os atos, notadamente do ingresso e da saída do agressor da prisão, conforme dispõem os artigos 20 e 21: Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. 38 Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público. Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor (BRASIL, 2006). Nota-se, portanto, que as medidas protetivas de urgência têm o viés de, assim como sugere sua nomenclatura, conferir proteção à mulher. Trata-se de medidas com a finalidade precípua de garantir a integridade física e psicológica da vítima. No que diz respeito à prova, é importante ressaltar que a sua exigência, bem como a exigência de testemunhas, subverte a própria lógica da Lei Maria da Penha, embora seja uma forma de adequar o procedimento ao rito processual penal tradicional. Isso porque, no processo penal, para que seja comprovada a existência do delito, há a necessidade da verificação de autoria e de materialidade. Ou seja, no rito ordinário, no caso de ameaça e/ou violência psicológica contra a mulher, dificilmente haverá provas, o que resultaria na ausência do requisito da materialidade. Assim, com relação à violência contra a mulher, sabe-se que normalmente ela ocorre entre quatro paredes, não havendo testemunhas oculares. A preocupação com a prova é uma opção inadequada para o deferimento de medidas protetivas, tendo em vista que as mesmas se revestem de caráter protetivo e urgente, não de instrumentalização para o processo penal (CAMPOS, 2017). Nesse contexto, não se trata de considerar a palavra da vítima como única e verdadeira, suprimindo os direitos à ampla defesa e ao contraditório do suposto agressor. Trata-se apenas de ressignificar a palavra da mulher nesse contexto em especial, livrando-a de estereótipos e discriminações que muitas vezes aportam aos autos (SANCHES; ZAMBONI, 2022). Sobre essa discussão, importante colacionar o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça: RECURSO EM HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA.MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO. PALAVRA DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Em se tratando de casos de violência doméstica em âmbito familiar contra a mulher, a palavra da vítima ganha especial relevo para o deferimento de medida protetiva de urgência, porquanto tais delitos são praticados, em regra, na esfera da convivência íntima e em situação de vulnerabilidade, sem que sejam presenciados por outras pessoas. 2. No caso, verifica- se que as medidas impostas foram somente para manter o dito agressor afastado da ofendida, de seus familiares e de eventuais testemunhas, restringindo apenas em menor grau a sua liberdade. 3. Estando em conflito, de um lado, a preservação da integridade física da vítima e, de outro, a liberdade irrestrita do suposto ofensor, 39 atende aos mandamentos da proporcionalidade e razoabilidade a decisão que restringe moderadamente o direito de ir e vir do último. 4. Recurso em habeas corpus improvido. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 34.035. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Brasília, DF, 5 de novembro de 2013. Na decisão em destaque entendeu-se que, em casos relacionados à violência doméstica ou familiar contra a mulher, a palavra da vítima ganha valor especial para o deferimento de medidas protetivas de urgência, sobretudo considerando que esse crime é cometido, comumente, na esfera íntima, sem testemunhas. 3.3 MEDIDAS QUE OBRIGAM O AGRESSOR As medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor estão elencadas no artigo 22 da Lei nº 11.340/06 e visam proteger a integridade física e psicológica não só da vítima, como também de familiares e testemunhas. A primeira medida, que consta do inciso I, é a suspensão da posse ou a restrição do porte de arma. A arma de fogo é letal e pode ser utilizada contra a mulher, assim, a medida visa protegê-la de ações impensadas (ou até mesmo premeditadas) do homem, que pode se valer da arma de fogo para intimidar ou atentar contra a integridade física da mulher. No entanto, como explica Rogério Sanches (2019, p. 198), por se tratar de medida temporária, deve ser revista com frequência. Isso porque “definida a situação do agressor com a conciliação ou pacificados os ânimos com a separação, não mais se justifica o impedimento imposto àquele primeiro para que utilize sua arma”. A segunda medida consiste no afastamento do agressor do lar. A respeito dessa medida dispõe Alice Bianchini: O afastamento do agressor do lar visa preservar a saúde física e psicológica da mulher, diminuindo o risco iminente de agressão (física e psicológica), já que o agressor não mais estará dentro da própria casa em que reside a vítima. O patrimônio da ofendida também é preservado, uma vez que os objetos do lar não poderão ser subtraídos ou destruídos. É bastante comum a destruição, por parte do agressor, dos pertences da mulher, inclusive de seus documentos pessoais, como forma de tolher sua liberdade, provocar-lhe baixa estima e diminuir sua autodeterminação, no intento de que ela desista do prosseguimento da persecução criminal (BIANCHINI, 2020, p. 189). A terceira medida visa à proibição de certas condutas, como é o caso da aproximação da ofendida ou contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas, bem como a restrição ou suspensão de frequentar determinados lugares. 40 Cunha (2019) afirma que para que a medida seja eficaz, especialmente a última, é conveniente que o magistrado imponha limites claros. Por exemplo, proibir que o agressor transite pela rua da vítima ou que ele se aproxime do quarteirão de sua residência. Pires (2011, p. 135) explica que “A liberdade de locomoção do agressor tem limite constitucional no direito de a vítima ter sua integridade física, psicológica, sexual e moral preservada”, ou seja, no caso de violência contra a mulher, a retirada da liberdade do agressor de frequentar alguns lugares é perfeitamente aceitável. A quarta medida consiste na restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores. O direito de visitas é extremamente importante para manter o vínculo afetivo entre genitor e filho. No entanto, em casos de violência doméstica, esse direito pode vir a ser suspenso a fim de garantir a integridade física e psicológica da vítima e do menor. Isso porque, infelizmente, é comum que o agressor se utilize do direito de visitas ao filho para praticar algum tipo de violência. A quinta medida é a de prestação de alimentos provisionais ou provisórios. É sabido que ainda é comum que mulheres dependam financeiramente do homem. Essa realidade também tem como fundamento o patriarcalismo, que coloca a mulher sempre no ambiente doméstico, dependendo de seu marido. Assim, caso a mulher vítima de violência doméstica ou familiar não tenha meios financeiros para se manter, essa medida pode ser decretada. Para Cunha (2019, p. 204), “os alimentos possuem nítido caráter cautelar, fixados liminarmente, sujeitos à mutabilidade e de eficácia temporal limitada, até o julgamento, inclusive, de eventual recurso extraordinário”. Ou seja, os alimentos, nesse caso, não são definitivos, devendo subsistir sua prestação em prazo determinado pelo juiz. As penúltimas e últimas medidas foram incluídas pela Lei nº 13.984/2020, quais sejam: “VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio” (BRASIL, 2006). Tais medidas são importantes, pois a partir desses programas e do acompanhamento psicossocial o agressor pode enfim mudar sua visão e pensamento a respeito da violência doméstica. Ou seja, além de medidas práticas que auxiliem em evitar a violência, como o distanciamento, por exemplo, a educação e o acompanhamento psicossocial atuam diretamente na mudança de comportamento do agressor. 3.4 MEDIDAS QUE PROTEGEM A VÍTIMA 41 As medidas que protegem a vítima estão dispostas nos artigos 24 e 25 da Lei Maria da Penha. O artigo 23, por sua vez, traz a seguinte redação: Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV - determinar a separação de corpos. V - determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga (BRASIL, 2006). A primeira medida disposta no artigo supracitado é o encaminhamento da vítima e de seus dependentes a programa que vise à sua proteção, como casas-abrigo, por exemplo. O objetivo é amparar a mulher que não pode mais permanecer em sua casa devido ao fato de o agressor lá residir. A segunda medida é a recondução da vítima e de seus dependentes para a sua residência após o afastamento do agressor. Nesse caso, é necessária a prévia determinação da medida protetiva de afastamento do lar. A terceira medida visa resguardar os direitos da ofendida no que tange ao poder familiar e aos bens por ela possuídos. Assim, caso a vítima seja afastada do lar, seus direitos estarão preservados e esse afastamento não poderá ser utilizado como fundamento de eventual ação que vise prejudicá-la. A quarta medida em destaque refere-se à separação de corpos e pode ser deferida a casais que sejam devidamente casados ou que vivam em união estável. Cunha (2019) explica que não se exclui dessa proteção a concubina, nem a mulher agressora (em caso de casamento ou união homoafetiva), sendo inadmissível a denegação da medida cautelar somente pelo fato de ambas não serem casadas, por exemplo. O inciso V, que traz a última medida desse artigo, foi incluído pela Lei nº 13.882/2019, e trata da garantia de vaga aos filhos da vítima em Educação Básica próxima de seu lar, independentemente da disponibilidade de vagas. Tal medida tem a finalidade de impedir que, em razão da violência doméstica ocorrida no seio familiar, os menores deixem de frequentar a escola. O artigo 24, por sua vez, tem a seguinte redação: Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor 42 à ofendida; II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo (BRASIL, 2006). Esse artigo tem como escopo a proteção dos bens particulares da vítima e daqueles que foram adquiridos durante a sociedade conjugal. A primeira medida é a restituição de bens subtraídos de forma indevida pelo agressor; a segunda é a proibição de venda ou locação de bens e propriedades que sejam dos dois; a terceira medida é a suspensão de eventual procuração que a vítima tenha assinado em favor do agressor; e a quarta é a prestação de caução provisória, por meio de depósito judicial, por perdas e danos que decorram da violência sofrida. 3.5 DO CRIME DE DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA Quando a Lei nº 11.340/06 foi promulgada, não havia sido tipificado como crime o descumprimento de medidas protetivas de urgência e, dessa forma, não era possível garantir que aquela fosse plenamente eficaz. Contudo, em 2018, foi aprovada a Lei nº 13.641, na qual o descumprimento da medida protetiva de urgência foi tipificado como crime a partir do artigo 24-A, que prevê pena de detenção de 03 (três) meses a 02 (dois) anos (BRASIL, 2018). Inicialmente, imperioso destacar que existem falhas nos procedimentos de concessão das medidas protetivas de urgência e no seu posterior monitoramento, o que dificulta a garantia de cumprimento dos objetivos para os quais foram criadas. Tais lacunas têm colocado em xeque a eficácia da própria Lei nº 11.340/06. Nesse cenário, fez-se necessária a edição da Lei nº 13.641/18. A legislação, em síntese, reforça a possibilidade de concessão de medida protetiva de urgência independentemente da existência de Inquérito Policial instaurado ou Ação Penal ajuizada, estabelecendo expressamente no artigo 24-A, §1º, que a configuração do crime de descumprimento da medida protetiva de urgência “independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas” (BRASIL, 2018). De acordo com Silva e Silva (2020, p. 49), “O crime será configurado independente da competência civil ou criminal do juiz que deferiu a me