390 Revista Brasileira de Terapia Intensiva Vol. 18 Nº 4, Outubro – Dezembro, 2006 RESUMO JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: As indicações de transfusão de eritrócitos não estão bem estabelecidas em crianças gravemente enfermas. O objetivo deste estudo foi descrever a prática da transfusão de eritró- citos na UTI Pediátrica do Hospital de Clínicas da Uni- versidade Estadual Paulista (HC-UNESP). MÉTODO: Estudo retrospectivo observacional realiza- do durante o ano de 2003. RESULTADOS: Setenta e cinco pacientes receberam transfusão, havendo registro de 105 indicações. Mais da metade dos pacientes (53,3%) tinha menos que um ano de idade. Taquipnéia (75,2%), palidez (65,7%) e hipotensão (51,4%) foram os registros mais freqüente- mente observados antes da transfusão. Além disso, a gasometria evidenciou acidose metabólica (68,08%) e hipoxemia (63,8%). Dos 93 registros de valores de he- moglobina (Hb), 54 (58,1%) estavam entre 7 e 10 g/dL e dos 90 registros de hematócrito (Ht) observou-se que Transfusão de Eritrócitos em Crianças Internadas em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica* Red Blood Cell Transfusion in Children Admitted in a Pediatric Intensive Care Unit. Nelise Luciano Marvulo1, Rossano César Bonatto2, Mário Ferreira Carpi2, Sandra Mara Queiroz Ricchetti3, Marcos Aurélio de Moraes3, José Roberto Fioretto4. 1. Graduanda da Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP 2. Professor Assistente Doutor do Departamento de Pediatria- UNESP; Médico Diarista da UTI-Pediátrica da UNESP 3. Médico Diarista da UTI-Pediátrica da UNESP 4. Livre Docente do Departamento de Pediatria-UNESP, Chefe da UTI-Pediátrica. *Recebido da UTI Pediátrica do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual Paulista (HC-UNESP), Botucatu, SP. Apresentado em 05 de setembro de 2006 Aceito para publicação em 04 de dezembro de 2006 Endereço para correspondência: Departamento de Pediatria-UNESP Distrito de Rubião Júnior 18618-000 Botucatu, SP Fone: (14) 3811-6274 E-mail: jrf@fmb.unesp.br ©Associação de Medicina Intensiva Brasileira, 2006 66 (73,3%) apresentavam valores entre 21% e 30%. As principais indicações de transfusão foram anemia em 75 crianças (71,4%) e sangramento ativo em 26 (24,7%). O valor médio de Hb antes da transfusão foi de 7,82 ± 2,82 g/dL. Sete transfusões foram indicadas para pacientes com valores de Hb > 10 g/dL, crianças estas em pós-operatório imediato de intervenção cirúr- gica cardíaca e casos de choque séptico. CONCLUSÕES: A transfusão de eritrócitos vem sen- do utilizada criteriosamente, com indicações restritivas (Hb entre 7 e 10 g/dL). Nem sempre há anotação dos valores de Hb imediatamente antes da transfusão. A partir deste estudo, foi elaborado um protocolo de in- dicação de transfusão na unidade. Unitermos: anemia, crianças, transfusão de eritróci- tos, UTI-Pediátrica. SUMMARY BACKGROUND AND OBJECTIVES: Indications of red blood cell transfusion in critically ill children are not very well determined. This study aims to describe red blood cells transfusion practice at the PICU of UNESP-Botu- catu Medical School. METHODS: Retrospective observational study of all patients who received transfusion during 2003. RESULTS: Seventy five patients received transfusion and 105 indications were recorded. 53.3% of the pa- tients were less than one year of age. Increased respi- ratory rate (75.2%), paleness (65.7%), and hypotension (51.4%) were the alterations more frequently recorded, before transfusion. Also, metabolic acidosis (68.08%) e and hipoxemia (63.8%) were very frequently observed. From 93 hemoglobin (Hb) values recorded, 54 (58.1%) varied from 7 to 10 g/dL and from 90 records of he- matocrit (Ht) 66 (73.3%) varied from 21% to 30%. The main indications of the transfusion were anemia, in 75 children (71.4%), and active bleeding in 26 (24.7%). RBTI 2006:18:4:390-395 ARTIGO ORIGINAL DE pEDIATRIA TRANSFUSãO DE ERITRóCITOS EM CRIANçAS INTERNADAS EM UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIáTRICA 391Revista Brasileira de Terapia Intensiva Vol. 18 Nº 4, Outubro – Dezembro, 2006 The mean value of Hb before transfusion was 7.82 ± 2.82 g/dL. Seven transfusions were indicated for pa- tients with Hb levels higher than 10 g/dL (postoperative heart surgery and septic patients). CONCLUSIONS: red blood cells transfusion is carefully prescribed at the PICU by using restrictive indications (Hb between 7 and 10 g/dL). Not always is possible to find out records of the Hb levels immediately before transfusion. Hence, a protocol to better prescribe red blood cell transfusion at the PICU was adopted. Key Words: anemia, children PICU, red blood cell transfusion INTRODUÇÃO A transfusão de células vermelhas é prática essencial e freqüentemente utilizada em ambiente hospitalar1. No entanto, estudos recentes associam a transfusão de eritrócitos com maior freqüência de desenvolvi- mento de falência múltipla de órgãos e pior prognós- tico em pacientes politraumatizados, independente- mente de outros índices, inclusive da gravidade do trauma2,3. Pacientes que recebem transfusão de san- gue são mais propensos a terem sua internação pro- longada quando comparados com aqueles que não são submetidos a este tipo de procedimento. Além disso, a transfusão de derivados do sangue é tida como indutora de imunossupressão4. Há, também, relatos de que a exposição a leucócitos halogêni- cos nas transfusões pode desencadear resposta do sistema imune do receptor, com aumento do risco de infecção, recorrência precoce de malignidade e aumento da mortalidade5. A prática da transfusão de eritrócitos em pacientes gravemente enfermos exemplifica o fato de que a cau- sa primária de erros médicos é o resultado de mode- los antiquados de tratamento em meio à complexida- de da Medicina moderna. O aumento da mortalidade e lesões teciduais relacionados à anemia sustenta até hoje a regra “10/30” (taxas mínimas aceitáveis: hemo- globina de 10 g/dL e hematócrito de 30%) proposta por Adam e Lundy, há mais de 60 anos6, mesmo com evidências sugerindo que a transfusão pode, na ver- dade, piorar a evolução dos pacientes. É diante deste dilema que se criou uma confusão na determinação de valores mínimos de hematócrito (Ht) e hemoglobi- na (Hb) que podem ser aceitáveis para os pacientes graves3,4. Freqüentemente, as transfusões de eritrócitos são in- dicadas sem completo entendimento dos riscos e be- nefícios do procedimento, sendo baseadas em limites pessoais ao invés de levarem em conta indicações fi- siológicas e protocolos preestabelecidos. Também, a idade e co-morbidades parecem ter pouca influência na prática transfusional, sendo a presença ou não de anemia o principal fator determinante da transfusão. Dados recentes sugerem que muitos pacientes inter- nados em UTI toleram níveis de Hb abaixo de 7 g/dL e que uma estratégia transfusional de eritrócitos libe- ral leva a piores resultados clínicos. No entanto, este gatilho de 7g/dL de Hb para indicação de transfusão não é utilizado na prática, sendo que a maioria dos médicos intensivistas prefere adotar o antigo gatilho de 10 g/dL4. Há poucos relatos de indicações de transfusão de de- rivados do sangue para crianças internadas em UTI- Pediátrica (UTIP)2. Estudo transversal realizado com intensivistas pediátricos demonstrou importante varia- ção nos protocolos de atendimento e que o valor mí- nimo da concentração de Hb escolhido como gatilho para a transfusão variou de 7 a 13 g/dL. Também foi identificado que o volume de eritrócitos administrado não estava relacionado com o valor da concentração de Hb, sugerindo que a transfusão não havia sido ade- quadamente indicada2. Recentemente, Hebert e col.4 e Corwin e col.5 relataram que menos de 20% das UTI apresentam protocolo institucional próprio para a prá- tica da transfusão, reforçando a ampla variação dos critérios de indicação transfusional. Assim, o objetivo do estudo foi avaliar a prática da transfusão de eritrócitos na UTIP do Hospital das Clí- nicas da Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP, os critérios utilizados na indicação deste procedimento e avaliar a necessidade da implantação de protocolo específico para indicação de transfusão de eritrócitos na unidade. MÉTODO O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pes- quisa da Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP, sendo respeitadas a confidencialidade dos resultados e a não identificação dos pacientes. Foi realizado estudo retrospectivo observacional, sen- do os dados obtidos a partir de prontuários de pa- cientes internados na UTIP e que foram submetidos à transfusão de eritrócitos no período de janeiro a de- zembro de 2003. Foram incluídas crianças com idade entre 28 dias e 14 anos, casos estes selecionados com base no cruzamento de dados dos registros de saída 392 MARVULO, BONATTO, CARPI E COL. Revista Brasileira de Terapia Intensiva Vol. 18 Nº 4, Outubro – Dezembro, 2006 de bolsas de sangue do Hemocentro do Hospital das Clínicas-UNESP e dos registros de pacientes interna- dos na UTIP. Os pacientes transfundidos (PTs) foram aqueles que receberam pelo menos uma transfusão de eritrócitos durante a internação na UTIP e as crianças que não receberam transfusão (PNTs) foram separadas para comparação com relação a idade, sexo, diagnós- ticos de internação e escore Pediatric Risk of Mortality (PRISM) à admissão. Para registro dos dados foi elaborado um protocolo de pesquisa que continha: dados de identificação; diag- nóstico principal; dados clínicos registrados no dia da transfusão; dados laboratoriais no dia da transfusão; indicação da transfusão; número de transfusões e total de infusão; presença ou não de reação transfusional; tempo de internação na UTIP e evolução do paciente. Os dados foram coletados por graduanda do 4º ano do Curso de Medicina. Antes da coleta, ela reviu temas de Medicina intensiva pediátrica, principalmente os arti- gos sobre transfusão de hemocomponentes em crian- ças internadas em UTIP. Além disso, elaborou o proto- colo e o aplicou, inicialmente, de forma experimental em 10 casos. O treinamento permitiu segurança para obtenção dos dados e, ainda assim, se existissem dú- vidas elas seriam sanadas em duas reuniões semanais com o orientador do projeto. Hipotensão, taquicardia, taquipneia, perfusão perifé- rica lentificada e acidose metabólica foram definidas de acordo com a conferência de Consenso Internacio- nal sobre Sepse em Pediatria publicada em 20058, a qual explicita os valores normais para estas variáveis biológicas de acordo com a faixa etária. Hipoxemia foi definida por pelo menos um dos seguintes critérios, independendo do nível de FiO2: a) SaO2 < 90% e b) PaO2 < 60 mmHg7, hipercapnia por PaCO2 > 45 mmHg e anemia por um valor de Hb < 12 g/dL. Cianose foi de- finida como coloração azulada da pele, lábios, língua e leito ungueal. Análise Estatística A análise da distribuição das freqüências de sexo e diagnósticos à internação foi realizada utilizando-se o teste de Goodman para contrastes entre e dentro de populações multinomiais. A comparação dos pacien- tes transfundidos e não transfundidos quanto ao esco- re PRISM foi realizada pelo teste t de Student. Dados descritivos foram apresentados em número absoluto e/ou porcentagem. Os resultados foram discutidos no nível de significância de 5%. RESULTADOS No período eleito para o estudo, 250 crianças foram admitidas na UTIP. Destas, 75 (30%) receberam trans- fusão de células vermelhas durante a internação. Não foi possível analisar os registros de 10 pacientes, al- guns por não localização do prontuário e outros por ausência de anotações sobre a transfusão. Como os pacientes poderiam receber mais de uma transfusão, foram registradas 105 (42%) indicações de transfusão sanguínea, com média de 1,6 indicações por pacien- te. Quarenta e dois pacientes receberam apenas uma transfusão e um paciente foi submetido a seis transfu- sões, como ilustrado na figura 1. Figura 1 – Número de Transfusões Administradas para cada Pa- ciente A tabela 1 ilustra a caracterização dos casos quanto ao sexo, distribuição etária e escore PRISM. Tabela 1 – Caracterização da População quanto ao Sexo, Idade e Escore PRISM. Todos os Casos (n = 250) PTs (n = 75) PNTs (n = 175) Sexo (feminino) n (%) 128 (51,2) 39 (52) 89 (50,8) Idade, n(%) < 1 ano 138 (55,2) 40 (53,3) 95 (54,2)* 1 a 3 anos 63 (25,2) 17 (22) 40 (23) 3 a 5 anos 21 (8,4) 06 (8,57) 14 (8) > 5 anos 28 (11,2) 12 (16,2) 26 (14,8) PRISM (x ± dp) 9,5 ± 6,5 13,3 ± 4,8 6,5 ± 6# n = número de pacientes; PTs = pacientes transfundidos; PNTs = pacientes não transfundidos; PRISM = Pediatric Risk of Mortality. *p < 0,05 na comparação entre as freqüências de pacientes com menos de um ano de idade e as demais para PTs e PNTs. # p < 0,05 na comparação entre PTs e PNTs. TRANSFUSãO DE ERITRóCITOS EM CRIANçAS INTERNADAS EM UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIáTRICA 393Revista Brasileira de Terapia Intensiva Vol. 18 Nº 4, Outubro – Dezembro, 2006 Não houve diferença estatística significativa na distri- buição dos pacientes quanto ao sexo quando se com- parou os PTs e os PNTs. Quanto a idade, observou- se que mais da metade das crianças transfundidas (53,3%) tinham menos que um ano, sendo esta faixa etária a mais prevalente na população geral da UTIP e também nos PNTs. Levando-se em conta os 75 ca- sos de PTs, a insuficiência respiratória aguda (IRA) foi o principal diagnóstico, presente em 29 (38%) pacientes. Os demais diagnósticos foram, principalmente, sep- se/choque séptico (14,3%), pós-operatório imediato (13,3%), insuficiência cardíaca congestiva (5,7%), cho- que hipovolêmico (4,76%) e outros (23,9%). A freqü- ência de IRA foi significativamente maior quando com- parada aos demais diagnósticos dentro do grupo de PTs, na população geral e nos PNTs (p < 0,05 – teste de Goodman). Registro de palidez no dia da transfusão foi observado em 65,7% dos pacientes. A pressão arterial de 15,2% dos pacientes estava dentro da normalidade, 51,4% apresentavam hipotensão e esta variável não foi regis- trada em 33,3% dos pacientes. Taquicardia foi obser- vada em 19% dos exames pré-transfusionais. Havia taquipnéia em 75,2% dos pacientes, 40% apresenta- vam-se febris e 4,7% estavam hipotérmicos. Cianose foi referida em 3,8% dos casos. A perfusão periférica estava lentificada em 23 pacientes (21,9%) e não foi encontrado registro desta variável em 31,4% dos ca- sos. Dos 75 pacientes, foi obtido registro de gasometria arterial imediatamente antes da transfusão em 47 crianças, havendo acidose metabólica em 32 casos (68,08%), hipoxemia em 30 (63,8%) e hipercapnia em 23 (48,9%). Os valores pré-transfusionais de Ht e Hb estão apre- sentados na tabela 2. Dos 93 registros de valores de Hb, 54 (58,1%) estavam entre 7 e 10 g/dL e dos 90 registros de Ht observou-se que 66 (73,3%) apresenta- vam valor entre 21% e 30%. Não foi encontrado regis- tro dos valores de Hb em 12 pacientes e de Ht em 15. As principais indicações de transfusão de concentra- do de hemácias foram anemia em 75 crianças (71,4%), sangramento ativo em 27 (25,7%), hipoxemia refratária à administração de oxigênio em dois (1,9%) e em um paciente não foi obtido registro da indicação. O valor médio de Hb nos pacientes submetidos a trans- fusões de concentrados de hemácia foi de 7,82 ± 2,82 g/dL. Sete transfusões foram indicadas para pacien- tes com valores de Hb superiores a 10 g/dL, sendo os diagnósticos destas crianças pós-operatório imediato de ventriculoseptoplastia e choque séptico. Não foram registradas reações transfusionais. A tabela 3 ilustra os valores médios de Hb dos pacientes segundo os prin- cipais diagnósticos. A média de internação dos PTs foi de 8,7 dias, sendo que 21,9% permaneceram internados por mais do que 2 semanas. Receberam alta 73,3%, 1,9% foram trans- feridos para outros serviços e 20,9% foram a óbito. A mortalidade e o tempo médio de internação da popu- lação geral da UTIP foram, respectivamente, 11,2% e 3,2 dias e para os PNTs foram de 10,2% e 4,3%, res- pectivamente. DISCUSSÃO Existem poucos estudos sobre indicações de transfu- são de eritrócitos em crianças gravemente enfermas, fazendo com que haja grande variação de indicações de transfusão de células vermelhas em crianças inter- nadas em UTIP4,9. Observou-se que a maioria destes pacientes tinha me- nos de um ano de idade e a sepse foi a segunda causa Tabela 2 - Distribuição dos Pacientes segundo os Valores de Hematócrito e Hemoglobina Imediatamente antes da Transfusão. Hemoglobina (g/dL) Total Hematócrito (%) Total < 7 7 - 10 > 10 < 21 21-30 > 30 Pacientes (n - %) 32 (34,4%) 54 (58,1%) 7 (7,5%) 93 (100%) 17 (18,9%) 66 (73,3%) 7 (7,8%) 90 (100%) Tabela 3 – Valores Médios de Hemoglobina, antes da Transfusão, segundo os Diagnósticos. Diagnósticos Valores de Hemoglobina (g/dL) Sangramento ativo, n = 6 5,3 Insuficiência respiratória aguda, n = 41 7,2 Sepse/choque séptico, n = 38 7,9 Insuficiência cardíaca congestiva, n = 6 8,1 Pós-operatório imediato, n =14 9,1 394 MARVULO, BONATTO, CARPI E COL. Revista Brasileira de Terapia Intensiva Vol. 18 Nº 4, Outubro – Dezembro, 2006 mais frequente de internação. Além disso, sangramento ativo foi uma das principais indicações de transfusão. Embora as perdas primárias de sangue por cirurgia, trauma ou sangramento gastrintestinal representem as causas mais freqüentes de anemia em pacientes internados em UTIP, as concentrações de Hb podem diminuir mesmo na ausência de sangramento. Respos- ta anormal da eritropoetina à perda de sangue deter- minada por mediadores inflamatórios e vasodilatação secundária à resposta inflamatória levam a aumento do volume sanguíneo, contribuindo para diminuir o Ht em quadros sépticos10. Além disso, em Pediatria, é parti- cularmente importante e negligenciada a perda sanguí- nea induzida por coleta de amostras de sangue para exames laboratoriais5. No estudo Anemia and Blood Transfusion in Critical Care o volume médio diário de sangue retirado de flebotomia foi de 41 mL, sendo sig- nificativamente maior nos pacientes sépticos11. Apesar do volume de sangue retirado de cada paciente para exames laboratoriais não ter sido avaliado, é possível que a baixa idade destes pacientes tenha contribuído para a alta freqüência de anemia na população, tanto pela retirada de amostras de sangue como pela ca- rência de ferro. A primeira tem maior impacto nos pa- cientes de mais baixa idade, da mesma forma que a carência de ferro é mais frequente nos lactentes. No presente estudo, a transfusão de eritrócitos foi rea- lizada em 30% de todos os pacientes admitidos na unidade. Esta porcentagem está em acordo com vá- rios estudos que mostraram que a porcentagem de pacientes gravemente enfermos que receberam trans- fusão de sangue durante a internação variou de 20% a 53%10. Estudo Canadense, envolvendo 5.298 pacien- tes internados em UTI, relatou que 25% dos pacientes receberam transfusão de hemácias12 e no Reino Unido a porcentagem relatada foi 53%, em 1.247 pacientes avaliados13. Na literatura há intenso debate sobre qual o “valor críti- co” de Hb abaixo do qual a liberação de oxigênio para os tecidos é prejudicada e não se sabe qual nível de Hb deve ser utilizado para indicar a transfusão10. Historicamente, acreditava-se que os níveis de Hb deveriam ser mantidos em valores acima de 10 g/dL para que fosse garantida boa oferta de oxigênio aos tecidos. Atualmente, vários autores recomendam que as transfusões sejam realizadas diante de valores de Hb abaixo de 7 g/dL e que se evite transfusões com valores acima de 10 g/dL5,14-17. Estudos experimentais e clínicos relataram que o risco de morte se eleva sig- nificativamente em pacientes com valores de Hb entre 3,5 e 4 g/dL, taxa na qual a anemia aumenta a pro- dução de lactato e a extração de oxigênio eleva-se a mais de 50%. No entanto, o limite inferior de tolerância ainda não é conhecido. Para valores entre 6 e 10 g/dL, a indicação de transfusão de eritrócitos depende da extensão da perda sanguínea, doenças cardíacas sub- jacentes e estado clínico geral10. Apesar destes dados, não é de uso corrente a utili- zação de protocolos para normatizar a transfusão de eritrócitos em crianças gravemente enfermas2,4,5. Na UTIP, tem-se procurado indicar transfusão de eritróci- tos adotando critério mais restritivo, sem, no entanto, utilizar protocolo específico. Apesar disso, foram ob- servados que o valor médio de Hb dos pacientes an- tes da transfusão foi de 7,82 ± 2,82 g/dL. Estudos se- melhantes relataram valores de Hb de 8,6 ± 1,7g/dL1,5. Acrescenta-se que sete transfusões foram indicadas para pacientes com valores de Hb superiores a 10 g/ dL. No entanto, a análise dos prontuários evidenciou que eram pacientes em pós-operatório imediato de ci- rurgia cardíaca e distúrbio de coagulação e crianças em choque séptico, com distúrbio hemodinâmico e em uso de fármacos vasoativos. Estas condições clí- nicas podem justificar a indicação mais liberal nestes casos. Igualmente, indicações mais liberais em pacien- tes com diagnósticos semelhantes foram relatadas por Laverdière e col.2 e por Armano e col.7. Armano e col.7 caracterizaram como determinantes da transfusão de células vermelhas em crianças internadas em UTIP a presença de anemia, doença cardíaca, sepse e disfun- ção de múltiplos órgãos. Para os pacientes com sepse, no entanto, a oferta de oxigênio está aquém da de- manda tecidual e a transfusão de concentrado de he- mácias só é eficaz para aumentar a oferta de oxigênio quando o consumo não estiver limitado pelo conteúdo sanguíneo de oxigênio ou sua capacidade de transpor- te18. Existem evidências de que disfunções sistêmicas na microcirculação19 associadas à menor capacidade das hemácias transfundidas sofrerem alterações em seu formato podem trazer prejuízos consideráveis aos pacientes com sepse20,21. Interessante foi a observação de que os valores do escore PRISM foram significantemente mais elevados nos PTs, em acordo com Armano e col.7 que demons- traram que o escore PRISM é determinante da indica- ção de tranfusão, além dos já descritos. O tempo de internação dos PTs foi maior que o descri- to por outros estudos onde a permanência em UTI foi mais curta (média de 7,4 dias de internação)5. Sabe-se que o número de pacientes que recebem transfusão TRANSFUSãO DE ERITRóCITOS EM CRIANçAS INTERNADAS EM UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA PEDIáTRICA 395Revista Brasileira de Terapia Intensiva Vol. 18 Nº 4, Outubro – Dezembro, 2006 aumenta de acordo com o período de internação5, po- dendo este fator explicar a freqüência de transfusão de eritrócitos de 30% observada neste estudo. Acrescen- ta-se que esta freqüência está em acordo com outros relatos da literatura, como já referido. A literatura mostra que em 4% das transfusões pode haver reação transfusional5. Não se observou nenhum caso de reação transfusional, sendo que tal fato pode ser explicado pelos cuidados na preparação e na ad- ministração dos produtos do sangue adotados na ins- tituição. Limitações do Estudo O estudo tem como principal limitação seu desenho retrospectivo observacional, o qual faz com que pos- sa ter ocorrido perda de informações e/ou que algu- mas delas não sejam absolutamente corretas. Além disso, todos os protocolos foram preenchidos por uma graduanda do Curso de Medicina, a qual, apesar de treinamento prévio, pode ter perdido algum dado importante. Por outro lado, há um ponto favorável. O descompromisso da aluna com um ou outro resultado permitiu que os dados fossem anotados como apare- cem nos prontuários. CONCLUSÕES 1. Apesar de não haver protocolo específico, o serviço tem indicado transfusão de eritrócitos utilizando crité- rios mais restritivos, ou seja Hb entre 7 e 10 g/dL; 2. Nem sempre há anotação dos valores de Hb e Ht imediatamente antes da transfusão. A partir deste estudo, a equipe elaborou e instituiu protocolo de indicação de hemoderivados na unida- de para permitir registro de todos os dados e acom- panhamento mais adequado dos casos, limitando e adequando cada vez mais a transfusão de sangue na UTI-Pediátrica. REFERÊNCIAS 01. Hebert PC, Fergusson DA - Red blood cell transfusions in critically ill patients. JAMA, 2002;288:1525-1526. 02. 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