Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 258 O único luxo de um santo laico: fotografias pessoais em biografias de Clóvis Beviláqua. The one luxury of a secular saint: Personal photographies in biographies of Clovis Bevilaqua. Wilton C. L. Silva* Resumo: O jurista Clóvis Beviláqua (1859-1944) ocupou posição privilegiada entre os “brasileiros notáveis” do contexto de transição do século XIX para as primeiras décadas do século XX no Brasil, como membro destacado de uma elite política e intelectual, tendo sido professor na Faculdade de Direito de Recife, autor do Código Civil de 1917, consultor do Ministério das Relações Exteriores e jurista de prestígio internacional, além de crítico literário e autor de livros de direito, filosofia e história. Suas biografias enfatizam a amplitude de seus conhecimentos jurídicos, os méritos da codificação civil da qual foi autor e o modo de vida humilde e generoso que lhe valeu a alcunha de “santo laico”. No entanto, o jurista cultivava o hábito de colecionar fotos de si e de sua família, comportamento que um de seus biógrafos caracterizou como sua única vaidade. A partir de quatro biografias de Clóvis Beviláqua, escritas por Lauro Romero (1956), Raimundo Menezes e Ubaldino de Azevedo (1959), Noemia Paes Barreto Brandão (1989) e Silvio Meira (1990), pretendemos discutir como essas imagens são utilizadas para ilustrar a trajetória do jurista e corroborar as distintas matrizes narrativas. Palavras-chaves: Clóvis Beviláqua. Biografia. Fotografia. Abstract: The jurist Clovis Bevilaqua (1859-1944) was a privileged member of a political and intellectual elite in the context of the transition from the nineteenth to the early decades of the twentieth century in this country, having been a professor at the Faculdade de Direito de Recife, author of the Civil Code of 1917, consultant for the Ministério das Relações Exteriores and jurist of international prestige, and literary critic and author of law, philosophy and history. * Mestre em Sociologia (UNICAMP) e Doutor em História (UNESP). Atualmente é Professor Assistente Doutor na UNESP, Campus de Assis (SP). wilton@assis.unesp.br Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 259 Their biographies emphasize the breadth of his legal knowledge, the merits of civil codification which was author and lifestyle humble and generous earning him the nickname "secular saint". However, the lawyer had the habit of collecting photos of himself and of his family and this behavior is characterized as a single vanity for his biographers. From four biographies of Clovis Bevilaqua, written by Lauro Romero (1956), Raimundo de Menezes and Ubaldino de Azevedo (1959), Noemia Paes Barreto Brandão (1989) and Silvio Meira (1990), we intend to discuss how these images are used to illustrate the trajectory of the jurist and corroborate the distinct narratives models. Keywords: Clovis Bevilaqua. Biography. Photography. O presente trabalho pretende apresentar esses processos de criação, manutenção e legitimação de aspectos da memória de um personagem a partir de quatro biografias de Clóvis Beviláqua (1859-1944), que por seus méritos historiográficos, por aspectos conjunturais em que foram produzidas ou ainda pela divulgação que obtiveram, mereceriam certo destaque: Clóvis Beviláqua (1956), de Lauro Romero, Clóvis Beviláqua (1960), de Raimundo de Menezes e Manoel Ubaldino de Azevedo, Clóvis Beviláqua na Intimidade (1989), de Noêmia Paes Barreto Brandão, e Clóvis Beviláqua Sua Vida Sua Obra (1990), de Silvio Meira. Clóvis Beviláqua foi, dentro da tradição polivalente e erudita do século XIX, jurista, filósofo, historiador e literato, tendo atuado como promotor público, membro da Assembléia Constituinte, secretário de Estado, consultor jurídico do Ministério do Exterior, além de um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ao mesmo tempo produziu uma significativa bibliografia na qual abordou temas filosóficos, literários, históricos e jurídicos, se destaca como autor do Código Civil Brasileiro, de 1916. Personagem que se torna interessante por sua trajetória, por sua figura humana e por suas obras. Filho de um padre, cultor de um modo de vida humilde e discreto que recusa inúmeras vezes títulos e honrarias, homem tímido casado com uma feminista com Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 260 quem criou revistas e livros, pai dedicado que assume filhos ilegítimos de sua filha como seus, membro-fundador da Academia Brasileira de Letras que dela se retira após a não aceitação da candidatura de sua esposa para a instituição, jurista que enfrenta Rui Barbosa sobre as características do primeiro Código Civil do país, especialista em Direito Internacional que prestou serviços à instituições internacionais e nunca fez uma viagem ao estrangeiro, entre outras realizações, situações e eventos que lhe valeram enorme reconhecimento em vida e a criação de mitos que sobrevivem de forma póstuma. Parece exato afirmar que a figura e a obra de Clóvis Beviláqua o caracterizariam como um personagem ilustre e desconhecido, no sentido de que é referenciado no campo jurídico e lembrado na história da literatura brasileira, mas suas obras não são reeditadas e seu nome não tem impacto fora dos círculos do Direito. No caso de Clóvis Beviláqua, tanto a memória cívica quanto a memória intelectual se diluem ao longo do tempo, caminhando para o esquecimento, talvez pela primeira se limitar a ser patrimônio de um grupo profissional, os advogados, e a segunda, pela sua vinculação à época em que foi produzida e pela inexistência de instâncias de sua reelaboração por instituições e grupos. Se o nome próprio é para o cidadão a expressão de sua identidade, na biografia converte-se em uma marca, que age como guardiã de uma obra, que construída social e historicamente se mostra como reflexo de realizações, vínculos, simpatias, antipatias, apreciações e indiferenças em um espaço relacional bastante amplo. Essas dimensões da memória do personagem contribuem para a constituição de sua biografia enquanto trama, não só construída pela narrativa, mas condicionada pelos fatores estruturais e conjunturais dos lugares e momentos em que a produzem. É dentro dessa perspectiva, de monumentalização, que as fotos surgem como material de apoio para a descrição biográfica, reiterando através das imagens as particularidades que a escrita busca afirmar. Nessa perspectiva seria possível discutir, entre outras questões, de que forma as fotografias são utilizadas em cada construção biográfica (tanto nas explicitações quanto nos ocultamentos), que referenciais se consolidaram como recorrentes sobre o personagem e sua trajetória e, ainda, que tipo de narrativa propõe a escolha das imagens. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 261 O livro de Lauro Romero, “Clóvis Beviláqua”, de 1959, é uma homenagem prestada doze anos após a morte do jurista e três anos antes que se completasse seu centenário. A biografia, de 371 páginas, oferece uma estrutura de sete capítulos, e três adendos, sendo estes compostos de indicações bibliográficas, obras consultadas e índice onomástico, além de nove imagens.1 Clóvis Beviláqua tem um número expressivo de fotos, sozinho, com a esposa, com a família, em diversas ocasiões, que foram tiradas em uma época onde era trabalhoso e custoso a obtenção de retratos. Esse apego a fotografia permite aos biógrafos a utilização desse recurso como instrumento narrativo, embora as imagens sejam muitas vezes recorrentes e repetitivas, pela seriedade dos rostos e da postura, a clara divisão entre o público e o privado, na qual o sorriso e a leveza parecem não dever ficar imortalizados, ao mesmo tempo em que se afirma o contexto solene de tais práticas. Em contraste com uma vida sem luxos, sem ostentações, sem laivos de arrivismo social e repleta de uma timidez excessiva, a constância dos retratos surge como demonstração única de vaidade do jurista, o que é apontado por alguns de seus biógrafos.2 Os capítulos são antecedidos de um Prefácio, de Hermes Lima, e são nomeados de “Explicação indispensável”, “O homem bom e justo”, “Sua vida e sua obra”, “O escritor”, “O filósofo”, “O jurista e o sociólogo”, além de três anexos (“Indicação bibliográfica de Clóvis Beviláqua”, “Indicação das obras consultadas” e “Índice onomástico”). Os capítulos possuem dimensões bastante diferentes, pois enquanto “O homem bom e justo”, sobre o exemplo moral do jurista, tem 14 páginas, “Sua vida e obra”, sobre uma visão panorâmica de suas realizações, tem 74, “O escritor” tem 58, “O filósofo” tem 54, e “O jurista e o sociólogo”, que encerra a biografia, tem 128, assim, como a obra filosófica do jurista está diretamente vinculada à Filosofia do 1 A relação foto por número de páginas, que oferece indícios do peso das imagens na narrativa biográfica, oferece uma proporção de 41,22 páginas por foto. 2 Uma demonstração dessa relação com as imagens de si e da família pode ser percebida pela a encomenda pelo jurista de cartões postais com o seu retrato com o texto do artigo 279 do seu projeto do Código Civil: “Pelo casamento, torna-se a mulher companheira e sócia de seu marido, cuja posição social compartilha e de cujo nome tem o direito de usar.” O texto proposto colocava a mulher em situação de igualdade jurídica frente ao homem no casamento mas o artigo aprovado depois de diversas emendas reacionárias e conservadoras retirava essa perspectiva mantendo a submissão feminina na relação conjugal. (MEIRA, 1990, p. 402-403) Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 262 Direito, assim como suas reflexões sociológicas, a dimensão jurídica de seu pensamento e obra ocupa ¾ do todo e o texto nesses capítulos específicos oferecem mais discussões advocatícias do que enfoque biográfico. Lauro Romero justifica a biografia não só pelos méritos e exempolos do jurista e como demonstração vínculo afetivo ou intelectual entre biógrafo e biografado, mas também como herança de admiração recebida dos pais a partir do convívio desses com o jurista, pois Silvio Romero, pai do biógrafo, declarou que Clóvis Beviláqua era um de seus “quatro evangelistas” e ainda fez deste padrinho de uma de suas filhas. (ROMERO, 1956, p. 19) A adjetivação desmesurada será uma constante ao longo do texto, e o autor reconhece que no livro “fala mais alto a voz do coração que a análise metódica e fria do crítico e o estudo sistemático devassador e muitas vezes indiscreto do biógrafo”, afastando ambições de interpretação ou mesmo de esgotamento do tema, pelo contrário, trata-se de “simples trabalho compilatório, incompleto de dados sobre a vida e a obra de nosso maior jurisconsulto. Romero identifica o trabalho de Macário Lemos Picanço como fonte privilegiada de informações sobre Clóvis Beviláqua enquanto literato, crítico, filósofo, sociólogo, jurista e educador, tendo o mérito de ter sido escrito antes do falecimento do biografado3, o que não lhe permitiu, no entanto, vislumbrar “cena após cena, integralmente completas, as diversas fases de sua vida.” (ROMERO, 1956, p. 20-21) A obra de Romero (1956) é original sobre dois aspectos: por representar uma homenagem intelectual e afetiva de alguém que se vincula de forma muito próxima de Clóvis Beviláqua, e por ser o primeiro trabalho de natureza biográfica após a morte do biografado (e publicada três anos antes de seu centenário, que despertou um inevitável sentimento hagiográfico) com significativa pesquisa documental e bibliográfica apresentando dados e documentos pouco conhecidos até então, além de oferecer um balanço significativo da obra do jurisconsulto. A obra oferece um índice de gravuras, listando nove imagens4, que oscilam entre o colecionismo, como um fac-simile da letra do jurista e fotos do edifício da 3 PICANÇO, Macário Lemos. “Clóvis Beviláqua, sua vida e sua obra. Rio de Janeiro: Educadora, 1935. 4 As fotos estão dispostas em folhas numeradas com o apêndice “A” (2-A, 40-A, 80-A, etc.) e constatam-se dois erros tipográficos: na p. 160-A deveria existir imagem do “Professor Clóvis Bevilaqua e sua esposa, D. Amélia de Freitas Bevilaqua “ mas não há tal foto no volume, e na p. 280-A, na qual deveria existir a fotografia da “Casa à Rua Barão De Mesquita, 506” ocorre a repetição da imagem da p. 12-0-A, do antigo edifício da Faculdade de Direito de Recife. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 263 Faculdade de Direito de Recife e da casa à rua Barão de Mesquita 506 onde viveu o biografado, e o singelo, como foto do jurista aos oito anos (que será reproduzida em diversas outras biografias5), as inevitáveis fotos com ar professoral e do casal Clóvis e Amélia Beviláqua. A trajetória de Clóvis Beviláqua, no entanto, encerra quatro estigmas: de filho de padre, de arrogância intelectual e ambição política na juventude, de homem submisso à esposa ao longo da vida, de intelectual limitado, particularmente no estilo de escrita e gramática, assim como o contraste com Rui Barbosa. A condição de filho de um padre, portanto concebido fora da instituição do matrimônio, que não era rara no Brasil do século XIX, o coloca na mesma situação de outros ilustres: José de Alencar (cujo pai – o senador José Martiniano de Alencar – viveu maritalmente com uma prima, Ana Josefina, com quem teve oito filhos), José do Patrocínio (filho de uma jovem quitandeira chamada Justina e do pároco da capela imperial, João Carlos Monteiro – que não lhe reconheceu a paternidade, mas encaminhou-o), Diogo Antônio Feijó (batizado como “filho de pais incógnitos”, mas que, segundo alguns pesquisadores, seria filho do vigário Manuel da Cruz Lima), Teodoro Fernandes Sampaio (filho de uma escrava com o sacerdote Manuel Fernandes Sampaio, que lhe comprou a alforria e cuidou para que o menino tivesse uma boa educação), entre outros.6 Sobre a polêmica no processo de codificação civil, quando Rui Barbosa, como paladino do purismo gramatical e do resguardo da linguagem jurídica na redação da obra, despejou pesadas críticas ao projeto de Clóvis Beviláqua, dando início a uma celeuma que envolveu juristas, intelectuais, políticos e instituições (o Supremo Tribunal Federal, as diversas faculdades de Direito e o Instituto da Ordem dos Advogados, entre outras), esta pode ser avaliada como resultado de uma disputa política entre grupos da república oligárquica, tensão entre concepções distintas de codificação jurídica e contenda retórico-literária no interior do discurso jurídico, mas não diminuiu nem os resultados da obra nem os envolvidos 5 Como em Meira (1990, p. 21), p. ex. 6 De certa forma, a trajetória de Clóvis Beviláqua parece refletir algumas das tensões desse contexto pessoal, pois criado em uma situação de relativa tolerância e usufruindo das vantagens dessa situação torna-se republicano e positivista refratário à Igreja enquanto instituição, como pai foi levado pelos preconceitos de sua época a assumir como suas as filhas de sua filha, e enquanto pensador e jurista se mostrou sensível às questões sociais (entre as quais a questão dos filhos ilegítimos). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 264 Finalmente, a relação do jurista com sua esposa, Amélia Carolina de Freitas Beviláqua, que adotava modos excêntricos frente à sociedade da época, rendeu à mulher uma memória construídas a partir de diferentes imagens: escritora arrivista que ambicionou entrar para a Academia Brasileira de Letras; dona de casa relapsa, que permitia que animais domésticos habitassem no interior da residência; mulher pouco vaidosa e desalinhada no vestir; esposa leviana ou adúltera, entre outras adjetivações negativas. Tais marcas indesejáveis, ou pontos de disputa, se fazem presentes ou ausentes tanto na narrativa quanto nas imagens dos distintos volumes, em processos destinados a comprovarem uma pureza original, pela ocultação, ou uma superação exemplar, pela afirmação. No caso de Romero (1956) tanto o texto como as imagens não permitem referências a nenhum dos estigmas, em uma abordagem oficiosa na qual a vida privada está praticamente ausente e na qual a estrutura narrativa favorece mais a obra do que o homem. Se por um lado não são feitas referências aos estigmas, sendo inclusive a questão do pai padre solenemente ignorada, por outro Romero (1956, p. 25) transcreve em nota de rodapé trecho de carta (já publicada em Vários Escritos de Tobias Barreto) do autor sergipano para Silvio Romero em que o missivista, naquilo que o biógrafo chama de “desabafo rápido e íntimo saído como das torturas do momento, devido que à péssima mania desses homens do norte, de atribuirem sempre a terceiros os seus infortúnios, ou insucessos”, classifica Clóvis Beviláqua de “felicíssimo desfrutável”, “o mais pretensioso da nova geração”, arrivista que “não vale nada” e que “alguma coisa melhor que escreva é plagiada”. Referencia ao casal, inclusive, transcreve juízo de Silvio Romero que assinala o entrelaçamento do saber, erudição, elevação de idéias e originalidade do pensamento com a modéstia, a despretensão e a moralidade, inclusive com referência às filhas do casal (p. 33-34) e de Humberto de Campos sobre o convívio da família com animais (p. 34-35). A segunda biografia, de Raimundo de Menezes e Manoel Ubaldino de Azevedo, foi resultado de um concurso público de monografias estabelecido pelo Ministério da Educação e Cultura, para as comemorações do centenário do jurista. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 265 A lei nº 3.426, de 10 de julho de 1958, assinada pelo presidente Juscelino Kubitschek, determinava providências para a comemoração do centenário de nascimento de Clóvis Beviláqua afirmava que o “preito de homenagem ao grande jurisconsulto pátrio” seria coordenado por uma comissão composta por “representantes dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Instituto da Ordem dos Advogados, Academia Brasileira de Letras, Supremo Tribunal Federal, Universidades do Brasil e do Ceará e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, constando da reedição e distribuição gratuita para bibliotecas públicas, centros de estudos e magistrados em exercício das obras completas do homenageado, assim como a instituição de um concurso de monografias sobre a vida e obra do jurista. Em parágrafo único do artigo 4 de tal lei é afirmado: “A reedição das obras completas de Clóvis Bevilacqua far-se-á mediante normas a serem fixadas por uma subcomissão organizada pelo Ministro da Educação e Cultura e subordinada à comissão de que trata o art. 2º desta lei, composta de juristas de renome, de forma que contenha as mesmas anotações destinadas a atualizar a doutrina da obra do mestre e referências à legislação brasileira atual.” A obra de Clóvis Beviláqua, portanto, é afirmada como uma reserva intelectual de natureza forense, que deveria ser cuidada e atualizada por membros da elite jurídica, em um ritual de reverência e endogênese da obra e de sua memória. A comissão julgadora do prêmio era composta por advogados, assim como os biógrafos laureados possuíam formação jurídica e o título da obra reforça de forma clara uma memória profissional: Clóvis Beviláqua: jurista-filósofo – Ensaio Bio- Bibliográfico. O livro, de 350 páginas, é dividido em cinco parte com quarenta e cinco capítulos, sendo que na primeira parte (com dez capítulos) o indivíduo é apresentado através de sua “Formação Moral e Intelectual”, na segunda (com nove capítulos) o intelectual é identificado por seu “Pensamento Filosófico e Político”, na terceira (com oito capítulos) as contribuições nos diversos campos do direito são elencadas em “Trabalhos Jurídicos”, na quarta (com doze capítulos) o “Código Civil Brasileiro” é o tema, e na quinta (com seis capítulos) ambiciona-se revelar “O Jurista na Intimidade”. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 266 O texto ainda oferece uma apresentação, uma cronologia, uma bibliografia, fontes para estudo, anexos e dezoito fotos.7 A obra filosófica e forense de Clóvis Beviláqua reforça a imagem dos bacharéis enquanto grupo privilegiado e busca reafirmar um destaque intelectual que esse grupo perdera justamente pela transformação social do século XX que rompeu com monopólio letrado exercido pelas “profissões imperiais” no século anterior.8 É motivo de destaque a percepção de uma ausência de análise crítica e um excesso de adjetivação em relação aos primórdios do pensamento intelectual brasileiro que foi forjado pelos bacharéis, sendo portanto repetitivos os “momentos sublimes”, as “conquistas empolgantes”, as “grandes teorias”, as “significativas renovações”, os “construtores do pensamento”, os “pregoeiros das idéias novas”, e toda uma série de hipérboles de retórica para não só dar cores á narrativa, mas também justificar uma concepção de mundo.9 Em Menezes; Azevedo (1959) percebe-se uma distribuição desigual entre as dimensões públicas e privadas do personagem, pois a ênfase na obra ocupa dois terços do livro, a partir de quem a primeira e a quinta partes, com a infância e intimidade, são retratadas em cento e quatro páginas, enquanto a segunda, terceira e quarta partes, sobre produção intelectual e jurídica, são desenvolvidas em cento e noventa e quatro páginas. Já na apresentação os autores afirmam sobre o biografado os “múltiplos aspectos do seu fascinante espírito, no acentuado pendor para as indagações filosóficas, nas tendências literárias, no domínio quase absoluto do saber jurídico, no beneditino trabalho de aprimoramento das instituições do direito pátrio” e seus 7 Segundo a relação das fotos que compõem o volume, dezoito imagens, e o número de páginas, trezentos e cincoenta, obtem-se uma proporção de 19,44 páginas por foto, o que demonstra mais que o dobro da obra anterior (ROMERO, 1956), o que pode se justificar pelo caráter oficial da publicação (no qual os custos de publicação são um fator menos determinante da inclusão ou não das imagens) e pelo nível de aprofundamento da pesquisa dos biógrafos, entre outros aspectos. 8 Em trabalho primoroso Coelho (1999) analisa a dinâmica social de constituição das três “profissões imperiais”, as tradicionais formações profissionais (medicina, advocacia e engenharia) que monopolizavam o controle da saúde, da tecnologia e das instituições ao longo do século XIX e das primeiras décadas do seguinte, sendo que se destacam como diferenciais analíticos a percepção da relação entre grupo profissional e Estado – na “qual as profissões emergem como uma condição de formação do Estado e a formação do Estado como uma condição maior da autonomia profissional – onde esta última exista" (p. 54) - e a discussão sobre a existência ou não de um projeto profissional de mobilidade coletiva entre os juristas brasileiros. 9 Um exemplo, entre muitos possíveis, desse fraseado “jurídico-filosófico” é a avaliação que Menezes; Azevedo (1959, p. 119) fazem da obra de Comte: “Sua repercussão está patente, na prodigiosa colheita de conhecimentos, no gigantesco progresso da ciência, em vésperas de devassar os recônditos segrêdos dos espaços siderais.” Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 267 atributos pessoais, como “a bondade, a indulgência, a mansuetude, a modéstia”, “a fortaleza de caráter, o patriotismo”, “o desinteresse incomum pelas coisas materiais, o idealismo”, entre outras qualidades daquele que é recorrentemente qualificado como “santo”. É recorrente a referência à santidade de Clóvis Beviláqua, como quando Euclides da Cunha o qualificou como “Sábio e Santo”, ou Pedro Calmon utilizou a expressão “Santo Leigo”, e em diversas outras referências em discursos e textos sobre o jurista nas quais essa perspectiva hagiográfica aparece. 10 Historiograficamente a biografia não adiciona novas fontes documentais e acrescenta bem pouco de significativo, mas se mostra como uma primeira tentativa de sistematização mais ampla do que se produziu a respeito do biografado, com um bom levantamento de fontes secundárias e um mapeamento da distribuição pulverizada de documentação sobre o personagem, já quando da edição do livro. Existem notas de rodapé, embora nem sempre com o detalhamento devido, ocorrendo na maioria delas omissões de características bibliográficas (local, editora, ano e página). No que se refere às dezoito fotos, também se fazem presentes exemplos de colecionismo, como uma de mobília e outra da “Epístola e Evangelhos” (entre as p. 40 e 41) que pertenceram ao pai do biografado, ou ainda uma de autógrafo do jurista (p. 299) ou outras duas, de frente e de reverso de pacote de jornais subscritados pelo jurista (entre as p. 288 e 289).11 Também se fazem presentes as inevitáveis fotos familiares, dos avós paternos (p. 45), de retrato pintado do pai (com colarinho de padre, p. 31), do jurista aos 8 anos sozinho (p. 44) e outra com a mãe (p. 32), e do biografado com a esposa na 10 Neder (2002) tem uma explicação original sobre essa forma de adjetivação, acreditando que além do fato do jurista ter nascido no dia da morte de São Francisco de Assis, ter levado uma vida sem luxos e franquear o interior de sua casa à animais domésticos diversos, se somaria uma luta político- ideológica: “As lutas políticas pela implantação de um código civil no Brasil sempre esbarraram na resistência cultural, política, ideológica e afetiva, da Igreja e dos pensadores católicos brasileiros, inscritos desde o último quartel do século XIX no terceiro escolaticismo, neo-tomista. (...) As acusações de impiedade e anti-clericalismo que eram imputadas aos codificadores dos códigos civis (em Portugal e no Brasil; Visconde de Seabra, em Portugal foi muito atacado publicamente, sobretudo por Alexandre Herculano), fez com que os admiradores de Clovis Bevilacqua o protegessem com uma áurea de sacralidade, exatamente para neutralizar os adversários das reformas e preservar no nome do civilista brasileiro.” 11 Também se observam erros de impressão no livro, pois a lista de gravuras (p. 12) atribui a localização errônea das fotos, pois essas páginas não seriam numeradas mas incluídas entre as páginas normais, o que agrava a dificuldade de localiza-las, como a de José Beviláqua (que consta de seu verso) que consta como na p. 31 e se encontra entre a p. 32 e a 33, a Mobília do pai que deveria ser encontrada na p., 37 e está entre a p. 40 e 41 (tendo em seu verso a foto das Epístolas e Evangelhos), etc. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 268 época do casamento (p. 72) assim como outras do jurista sozinho em diferentes fases da vida e duas com a esposa (uma na época do casamento, circa 1883, e outra de visita de ambos ao Palácio de Governo do Ceará, circa 1940). Em relação aos estigmas do jurista as fotos do pai padre (entre p.32 e 33) e outras duas, de fac-símiles de página manuscrita do Código Civil redigida pelo jurista e do jornal O Imparcial, de 1916, sobre a aprovação do Código Civil (entre p. 232 e 233) mostram as disputas pela memória. A primeira pela inserção da figura paterna, inclusive com sua veste religiosa, e a referência clara à atitude do sacerdote, que como diversos outros nos sertões brasileiros ostentavam “mancebia” e viviam de “portas a dentro” com companheiras. (MENEZES; AZEVEDO, 1959, p. 38-39) Os biógrafos traçam considerações sobre o impacto dessa situação na personalidade do biografado, citam a situação idêntica de Eça de Queiróz, e citam passagem do Projeto do Código Civil que defende reconhecimento indistinto dos filhos naturais e comentários do jurista que classifica os legisladores que não afirmam tal preocupação de dotados de “impudente cinismo”. (MENEZES; AZEVEDO, 1959, p. 39) No livro de Meira (1990, p. 22), no entanto, embora a menção ao pai de Clóvis Beviláqua na sua condição de padre esteja presente e esmiuçada no texto e também haja uma foto do mesmo com legenda que explicita a situação, a imagem não apresenta as vestes religiosas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 269 (MENEZES; AZEVEDO, 1959, p. 38-39) (MEIRA, 1990, p. 22) Curiosamente, se o fac-simile da página manuscrita do Código Civil redigida pelo jurista é um símbolo de seu trabalho e esforço enquanto codificador, o excerto do jornal O Imparcial, de 1916, sobre a aprovação do Código Civil oferece uma imagem em que há uma clara disputa pela paternidade do Código Civil e na qual a figura de Rui Barbosa, o severo crítico jurídico-gramatical, ocupa um maior destaque do que o próprio jurista (MENEZES; AZEVEDO, 1959, entre p. 232 e 233) embora a legenda não faça referência ao fato. Meira (1990, p. 260) utiliza-se de fac-simile da página inteira, identifica de forma correta a data, 27/12/1915, mas também não faz referência à presença em destaque de Rui Barbosa na montagem da capa e destaca o trabalho parlamentar na aprovação final do texto. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 270 (MENEZES; AZEVEDO, 1959, entre p. 232 e 233) (MEIRA, 1990, p. 260) A terceira biografia A biografia Clóvis Beviláqua na Intimidade (1989), de Noêmia Paes Barreto Brandão, de forma breve e despretensiosa, se propõe a criar um retrato positivo do biografado, pelo qual a autora confessa vínculos de respeito e afeto, ao mesmo tempo em que busca apresentar aspectos de sua vida privada a partir do acesso à sua correspondência familiar e depoimento de filhas e conhecidos. Se dentro de uma perspectiva acadêmica a obra, com 111 páginas e cerca de uma centena de notas de rodapé, tem problemas ao assumir um aspecto claramente laudatório, oscilando entre a “literatura de paternidade” e o velho panegírico, utilizar de forma ampla fontes secundárias e não introduzir grandes novidades sobre a vida do biografado, ao mesmo tempo em que sucumbe aos problemas clássicos do biografismo brasileiro (o teleobjetivismo, a perspectiva hagiográfica, a ambição de verdade e a inevitável ordenação temporal), por outro lado oferece uma perspectiva inovadora (a intimidade) e reafirma as bases consolidadas socialmente da memória do personagem. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 271 A obra justifica-se ao oferecer uma abordagem bastante particular, a descrição da intimidade do biografado a partir da recuperação da memória das filhas (Veleda e Floriza12) e de pessoas próximas a respeito do biografado. Historiograficamente o livro pouco acrescenta, uma vez que a imensa maioria das informações procede de material de fontes secundárias de fácil acesso e o texto mantém o tom apologístico de discursos solenes e de eventos memorialísticos. Sua relevância, por outro lado, é a introdução de algum material do acervo particular da família e a proposta de uma abordagem intimista sobre alguns momentos da vida do personagem. A estrutura narrativa, de forma pendular, oscila entre a divisão temática e a ordem cronológica, com nove capítulos intitulados ”Traços do temperamento”, “A vida em família”, “Primórdios”, “Juventude acadêmica”, “Funções na vida pública”, “Honrarias e homenagens”, “Velhice”, “Falecimento” e “Centenário de Nascimento”, consta de uma centena de notas de rodapé13 e de uma bibliografia ao final.14 Em linhas gerais a obra se estrutura da seguinte forma: “Traços de temperamento” que narra eventos que demonstram o romantismo, a bondade e os vínculos de amizade do jurista; “A vida em família” sobre o relacionamento com a família Freitas, com a esposa e as filhas são o foco; “Primódios” informa sobre ancestrais, a infância e a vida escolar; “Juventude acadêmica” descreve a vivência na Faculdade de Direito de Recife, a opinião de colegas e as idéias filosóficas; “Funções na vida pública” aborda as diversas funções exercidas pelo biografado; “Honrarias e homenagens” avalia a repercussão de sua obra; “Velhice” descreve as atividades intelectuais, os hábitos e os achaques nessa fase da vida; “Falecimento” tece considerações sobre o funeral; e “Centenário de nascimento” lista eventos na efeméride. Infelizmente a obra não oferece nenhuma imagem como apoio o texto, o que certamente se vincula mais ao aspecto econômico dos custos de reprodução do material gráfico no interior da biografia, visto ser uma edição de autor, do que pela falta de acesso à material relevante ou original, uma vez que a biógrafa não só se 12 O casal teve cinco filhas: Floriza, Dóris, Thereza (falecida aos 4 meses), Veleda e Vitória, sendo que na verdade, as três últimas eram filhas biológicas de Floriza que se separara do marido. O casal também criou um sobrinho de Clóvis, Aquiles Beviláqua. 13 As notas de rodapé carecem da precisão acadêmica, sendo na maioria das vezes imprecisas, como quando localizam um documento como arquivo familiar, uma carta por exemplo, mas não citam datas. 14 Sobre o Centenário, é significativo do prestígio que o jurista usufruiu até a década de 60 a exposição organizada na Biblioteca Nacional em sua homenagem nessa efeméride. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 272 utilizou de material já impresso como também de documentos originais de natureza familiar, aos quais teve acesso pela proximidade com as filhas do jurista. Finalmente, a quarta biografia, Clóvis Beviláqua: sua vida, sua obra (1990), de Sílvio Meira apresenta ao longo de quatrocentos e cincoenta e sete páginas de texto uma divisão em vinte e dois capítulos, que fazem um percurso clássico enfocando origens, família, formação, atividade profissional e intelectual, semelhante à biografia de MENEZES; AZEVEDO (1959), mas incorpora tópicos específicos sobre as relações com algumas instituições (IHGB, IAB e ABL) e algum material original (como fotos15, um discurso inédito e a bibliografia de Amélia Beviláqua).16 No Prefácio o autor vincula seu interesse pelo biografado por vínculos familiares, seu pai foi contemporâneo do jurista em Recife, de vivência, escrevera artigo sobre o mesmo quando na faculdade e recebeu livro autografado deste como forma de agradecimento, e de natureza profissional. Relembra visitas feitas à casa do biografado após a sua morte e o contato com as filhas Dóris e Veleda: “Mais tarde, no final da década de 40, tivemos oportunidade de visitar a casa da Barão de Mesquita. Clóvis não mais existia. Falecera em 1944. Mesmo assim, ali encontramos a sua biblioteca ainda intacta, suas comendas em vitrine própria, a simplicidade do ambiente em que vivera, pombos entrando pelas janelas e pousando nas mesas e 15 A ambição enciclopédica de Meira (1990), seu amplo trabalho de arquivo e a natureza acadêmica do livro, editado por uma universidade federal, justificam a presença de imagens como suporte narrativo, pois as 33 fotos distribuídas entre suas 457 páginas oferece uma média de 13,85 páginas por foto, o que representa o índice mais alto entre as quatro biografias analisadas 16 O sumário apresenta os seguintes capítulos: I. A terra natal. Viçosa na Serra de Ibiapara; II. Os ancestrais brasileiros, portugueses e italianos; III. A infância. Os primeiros estudos em Viçosa, Fortaleza e no Rio de Janeiro; IV. Recife. As influências de Tobias Barreto. Primeiros empregos e primeiras decepções. Volta ao Ceará; V. A Promotoria Pública de Alcântara, Maranhão. O casamento com Amélia Carolina de Freitas; VI. O regresso a Recife. Bibliotecário da faculdade de Direito. A República. Secretário do Governo do Estado do Piauí; VII. Clóvis parlamentar no Ceará. Os desencantos da política. A volta a Pernambuco. O revolucionário de idéias; VIII. Os primeiros livros jurídicos, literários e filosóficos. O magistério em Recife. Traduções. 1878 a 1899; IX. A elaboração do Código Civil Brasileiro. Antecedentes, no Império. A República. O projeto de Clóvis Beviláqua; X. A Consultoria do Ministério das Relações Exteriores, de 1906 a 1934. Correspondência com Ministro e outras personalidades; XI. Clóvis Beviláqua pensador. Positivismo, Monismo e Evolucionismo; XII. Clóvis Beviláqua e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; XIII. Clóvis Beviláqua e o Instituto dos Advogados Brasileiros; XIV. Clóvis Beviláqua e a Academia Brasileira de Letras. A candidatura de Amélia de Freitas Beviláqua; XV. Ainda o afastamento da Academia Brasileira de Letras. Honraria, medalhas e condecorações. A Ordem Nacional do Mérito; XVI. Clóvis Beviláqua no campo internacional. A Corte Permanente de Justiça Internacional; XVII. Clóvis Beviláqua e o Direito Romano. O Direito Comparado; XVIII. Um discurso que não chegou a ser lido. Clóvis Beviláqua e o Direito Criminal. O projeto de Código Penal da Armada; XIX. Clóvis Beviláqua e os moços. Dois momentos em Recife: 1906 e 1934; XX. Os últimos anos; XXI. A bibliografia de Clóvis Beviláqua; XXII. A produção literária de Amélia Beviláqua. Diplomas e honrarias concedidas a Clóvis Beviláqua. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 273 estantes. Sua filha Dóris nos ofertou vários papéis e fotografias, que gurdamos (sic) zelosamente, já pensando em escrever a obra biográfica que só agora surge. Voltamos outra vez, tempos depois. Dóris já era falecida. Fomos recebidos por Veleda, sempre atenta e delicada.” (MEIRA, 1990, p. 17) A narrativa reforça o vínculo do pessoal e de certa forma autobiográfica, na qual o biógrafo descreve a aproximação, o contato e a construção de seu objeto, em um processo de panteonização do personagem, tanto pela eleição de seus precursores quanto de similitudes e contrastes com outros notáveis. O subtítulo do livro, “Sua vida. Sua obra.”, oferece já inicialmente a perspectiva de análise, na qual essas duas dimensões se interpenetram diretamente como na idéia de “viobra” de Sainte-Beuve, com os abusos característicos do reducionismo e do teleobjetivismo. Assim, o aspecto panegírico com seus adjetivos superlativos e descrições míticas mantém a narrativa dentro de um modelo clássico, através do qual se narra a vida exemplar de um indivíduo excepcional. As fotos disponibilizadas no volume apresentam natureza semelhante à dos trabalhos anteriores, com concessões ao colecionismo, como na imagem do Palácio Beviláqua em Bolonha (p. 27) para demonstrar supostas origens aristocráticas da família, da paisagem de Fortaleza, São Luiz e Recife no século XIX (p. 48, 49 e 60), de óleo sobre tela de autoria do biógrafo retratando o biografado (p. 76), de foto do jurista com dedicatória ao biógrafo (p. 116). As imagens familiares também se fazem presentes, como na do jurista com a mãe aos oito anos (p. 22) e do pai (p. 23), dos avós paternos (p. 26) e diversas outras com a esposa. Uma raridade é uma foto da juventude, em Recife, com três amigos e na qual se encontra à esquerda, pois pelo temperamento tímido é de se imaginar que sua interação em grupo e ainda o registro destas era bastante raro. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 274 (MEIRA, 1990, p. 61) Diversas fotos pessoais do jurista são disponibilizadas no volume, muitas originais, sendo recorrente a utilização de sinais do pertencimento ao grupo seleto dos bacharéis ou à posição de destaque enquanto jurista, como uma do jurista em seu gabinete de trabalho, tendo estantes com diversos livros ao fundo (p. 187), ou envergando as vestes talares de professor (p. 325), ou ainda um fac-símile de diploma de “Étolie Du Devoir, 1ª. Classe” dos “Chevaliers du Devoir”, de Paris, datado de 1917 (p. 389), entre outras. O casal Beviláqua aparece em diversos momentos. As fotos representam poses estudadas como em foto de 1883, logo após o casamento, ambos de perfil e sobrepostos (p. 74), ou de 1899, quando da transferência do casal para o Rio de Janeiro, em que ambos estão sentados, ela a esquerda da foto e ele a direita, ambos ligeiramente voltados ao centro, ambos vestidos com maior formalismo e de olhar lançado ao horizonte em típica pose estudada (p. 135), ou ainda, uma identificada como sendo do início do século XX, em que ele sentado, trajando a inevitável casaca, tem a figura da esposa de pé ao seu lado, apoiada sobre seu ombro, com vestido com bordados, de braços à mostra, com anéis em ambas as mãos e pulseira no braço direito e relógio no braço esquerdo. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 275 (MEIRA, 1990, p. 117) Na foto do casal, legendada como do início do século XX, as roupas da esposa parecem se inserir na moda da década de 20, inclusive em um vestido bastante “coquette” para uma senhora da idade de D. Amélia, aliás entre as diversas críticas endereçadas à ela também consta em relação ao vestir-se o uso de roupas inapropriadas e certo desleixo no trajar-se.17 Apenas para efeito de contraste a foto de 1899 permite um contraste bastante claro em relação aos modos de se vestir da esposa. 17 Segundo FALCI (s.d.) a memória da esposa do jurista foi mantida da seguinte forma:“Amélia de Freitas Beviláqua é lembrada, ainda hoje, por pessoas já de certa idade que, com ela conviveram no Rio de Janeiro nas décadas de trinta e quarenta do século XX por apresentar atitudes ´modernistas´ de vanguarda, consideradas até um tanto ou quanto amalucadas. Lembrada como dona de casa excêntrica, onde os animais domésticos disputavam espaços nos sofás e poltronas, onde a banheira servia como ninho para galinhas em choco e onde os pombos e galos voavam por sobre as cabeças dos visitantes; ou como desalinhada e de mau aspecto sob o ponto de vista físico; lembrada ainda como de comportamento avançado sob o ponto de vista moral; muitos esquecem o valor literário que Amélia possuiu.” Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 276 (MEIRA, 1990, p. 135.) Outra foto que merece atenção mais detida é aquela legendada como “Clóvis Beviláqua em família”, na qual o casal já entrado em anos, ele com seus cabelos brancos, ela levemente curvada pela idade, estão em um ambiente externo, como um jardim, acompanhados de duas moças, muito possivelmente as filhas-netas Veleda e Vitória, filhas de Floriza. (MEIRA, 1990, p. 134.) A relação entre Clóvis Beviláqua e a esposa, sempre descrita como muito próxima, justificaria também a referência à candidatura frustrada de D. Amélia à Academia Brasileira de Letras. Assim se faz presente fac-símile da Revista LYRIO publicação de caráter feminista, literário e cultural lançada por D. Amélia como demonstração de vínculos intelectuais da escritora com a cena cultural do período, e excerto de artigo da Folha do Norte, de 1930, que se refere à polêmica entre o jurista e a ABL por ocasião da recusa da candidatura da esposa. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 277 (MEIRA, 1990, p. 249) (MEIRA, 1990, p. 290) Também aparece como material incomum sobre o jurista duas caricaturas, sendo a primeira de Raul Pederneiras, publicada na Gazeta Judiciária de 31/10/1959, embora a assinatura do caricaturista esteja sobreposta a data de 1943, retrata o jurista, usando seu recorrente terno preto, com livros em uma mão e um guarda chuva em outra, sendo ladeado por louros. A segunda caricatura, de Alvarus, datada de 1931, não apresenta referência de onde fora publicada. (MEIRA, 1990, p. 228.) (MEIRA, 1990, p. 289.) Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 278 Como última imagem, digna de nota, a foto de gosto duvidoso do corpo do jurista em seu velório, ladeado por “discípulos” (Meira, 1990, p. 412), que se inscreve na galeria do colecionismo macabro. As diferentes biografias abordadas apresentam limitações semelhantes, pois mesmo com a pesquisa documental e a busca de amplitude temática na abordagem do personagem, se fazem ausentes a análise crítica e a contextualização da narrativa, nas quais Clóvis Beviláqua parece flutuar acima de estruturas e conjunturas, instituições e indivíduos. Outro ponto problemático é a hierarquização de esferas, entre as quais a jurídica, não só ocupa o maior destaque como é o centro ao redor do qual as demais se estruturam – a produção intelectual literária ou de crítica literária, com maior magnitude na juventude, apresentaria profundidade mas seria abandonada ao longo do tempo, e a filosófica e a sociológica só existiriam para fundamentar a atividade do legislador e do jurista. Esses problemas e limitações se fazem presentes tanto na narrativa escrita como no conjunto de imagens disponibilizadas em cada obra, pois os vícios narrativos e os diferentes contextos e objetivos, que enfatizam distintas dimensões do público e do privado, surgem no texto e nas fotos. Tais obras reproduzem de forma bastante convencional os referenciais clássicos da biografia, portanto sem dialogarem com os questionamentos intelectuais e literários que este tipo de narrativa despertou ao longo do século XX, como na depuração estética produzida pelas biografias escritas por Lytton Strachey, André Maurois, Emil Ludwig e Sthephan Zweig tendo como referências questões intelectuais e estéticas da literatura, do historicismo alemão, da filosofia bergsoniana e nietzschiana e da psicologia freudiana que resultam na descrição multidimensional e complexa dos indivíduos. As origens corporativas ou memorialísticas das narrativas sobre a vida de Clóvis Beviláqua aqui analisadas reforçam, a partir de uma memória monolítica e consagrada do “santo laico”, os aspectos de determinismo, moralismo e didatismo (em contraste com a possibilidade de uma narrativa mais densa e crítica que poderia adotar uma ênfase mais relativista e multifacetada). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais Vol. 5 Nº 9, Julho de 2013 © 2013 by RBHCS 279 Em relação aos processos de construção e demolição, através das afirmações dos lugares comuns e dos estigmas já apresentados, refletem escolhas não só estéticas, mas também políticas, através das quais o personagem não é referenciado somente por si mas também pelos seus vínculos e significados. Os biógrafos de Clóvis Beviláqua aqui analisados, com suas obras situadas em um arco temporal entre as décadas de 50 e 90 do século XX, não possuem maiores ambições teóricas ou literárias, sendo as biografias escritas como uma entre outras de suas manifestações profissionais ou diletantes, portanto se fazem ausentes tanto a reflexão historiográfica quanto a invenção narrativa. A decodificação da relação entre biógrafos e biografado se anuncia pelas trajetórias dos primeiros e pelos títulos dos trabalhos, em meio às intenções autorais, contingências grupais e ambiências institucionais. BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, Pierre. “A Ilusão Biográfica”, In: FERREIRA, Marieta. AMADO, Janaina. Usos e abusos da História Oral. Rio de janeiro: Editora FGV, 1996, p. 183-191. BRANDÃO, Noêmia Paes Barreto. Clóvis Beviláqua na Intimidade. Rio de Janeiro: (s.e.), 1989. COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro (1822-1930). Rio de Janeiro: Record, 1999. 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