ADLER EDUARDO DIAS SHIRAKURA A Revolução Espanhola (1931-1939): Um debate entre Leon Trotsky e Andreu Nin Marília, SP 2018 2 ADLER EDUARDO DIAS SHIRAKURA A Revolução Espanhola (1931-1939): Um debate entre Leon Trotsky e Andreu Nin Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de Marília, para a obtenção do título de Mestre. Área de Concentração: Ciências Sociais Orientador: Prof. Dr. Leandro de Oliveira Galastri Marília, SP 2018 3 S558r Shirakura, Adler Eduardo Dias A Revolução Espanhola (1931-1939): Um debate entre Leon Trotsky e Andreu Nin / Adler Eduardo Dias Shirakura. -- Marília, 2018 143 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Dr. Leandro de Oliveira Galastri 1. Ciência Política. 2. Revoluções. 3. Partidos Comunistas. 4. Frentes Populares. 5. Contra-Revoluções. I. Título. 4 ADLER EDUARDO DIAS SHIRAKURA A Revolução Espanhola (1931-1939): Um debate entre Leon Trotsky e Andreu Nin Dissertação para obtenção do título de Mestre, da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de Marília, na Área de Concentração em Ciências Sociais. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Leandro de Oliveira Galastri (Orientador) Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP, Campus de Marília Prof. Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP, Campus de Marília Prof. Dr. Aruã Silva de Lima Docente do Programa de Pós-Graduação em História, UFAL, Campus Sertão Marília, 31 de agosto de 2018. 5 Dedico aos homens e mulheres que sacrificaram suas vidas pela causa da revolução social na Espanha, que seu exemplo seja um farol que ilumine o futuro. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa. A todos os funcionários da UNESP de Marília que com seu trabalho cotidiano, muitas vezes imperceptível a um olhar desatento, propiciaram as condições para minha formação. Em especial, às funcionárias da Seção Técnica de Pós-Graduação pelo empenho, eficiência e gentileza de sempre. Aos colegas de trabalho: Mário, Michele, João e Marcelo, pela paciência e parceira durante o período de realização desta pesquisa. Ao Grupo de Pesquisa “Marxismo, Estado, Política e Relações Internacionais” pelos instigantes debates. Aos professores e colegas estudantes que durante essa pesquisa me propiciaram, das maneiras mais variadas, imprescindíveis estímulos intelectuais. Ao Prof. Dr. Valério Arcary, um dos membros da banca do Exame Geral de Qualificação, que contribuiu sabiamente com sua vasta experiência para concretização desta dissertação. Aos membros da banca de defesa: Prof. Dr. Aruã Silva de Lima, que partilhou conosco seus conhecimentos, contribuindo para esta dissertação; ao Prof. Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos, que engrandeceu o debate acerca do tema. Ao orientador, Prof. Dr. Leandro de Oliveira Galastri, meu agradecimento especial pelo acolhimento, respeito, dedicação, paciência e generosidade em dividir comigo sua experiência e me apoiar nas escolhas que fiz para o rumo desta pesquisa. Aos meus pais, Orlindo e Maria José, a minha tia, Josefa, a minha irmã, Andréia, e ao meu cunhado, Pavel, pelo carinho e apoio de sempre. Ao Dom pelas alegrias e por manter meu pé sempre aquecido embaixo da escrivaninha. http://dgp.cnpq.br/dgp/faces/consulta/consulta_parametrizada.jsf 7 Agradeço especialmente a minha companheira, Ana Paula Rodrigues, parceira e cumplice em todos os momentos, a mais sagaz interlocutora, a mais feroz crítica, a mais incansável incentivadora, a mais atenta leitora, a mais paciente revisora ortográfica, a pessoa sem a qual todo o processo de criação e desenvolvimento desse trabalho se tornaria angustiantemente solitário. Meu muito obrigado! 8 “A vida é bela, que as gerações futuras a limpem de todo o mal, de toda opressão, de toda violência e possam gozá-la plenamente.” (Leon Trotsky) 9 RESUMO A presente pesquisa trata-se de um estudo sobre a estratégia revolucionaria da classe operária a partir das polêmicas e convergências entre duas personalidades que representaram as tendências revolucionarias da classe operária espanhola: Leon Trotsky e Andreu Nin. Ambos os teóricos e dirigentes políticos marxistas, tinham em comum a luta pela revolução socialista e a oposição à burocratização da URSS. O primeiro se transformando em líder da Quarta Internacional, e o segundo em líder do POUM. Palavras-chave: Revolução Espanhola. Partido Operário de Unificação Marxista. Quarta Internacional. Leon Trotsky. Andreu Nin. 10 ABSTRACT This research is a study on the revolutionary strategy of the working class from the controversies and convergences between two personalities who represented the revolutionary tendencies of the Spanish working class: Leon Trotsky and Andreu Nin. These Marxist theorists and political leaders had in common the struggle for the socialist revolution and the opposition to the bureaucratization of the USSR. The first became the leader of the Fourth International, and the second the leader of the POUM. Keywords: Spanish Revolution. Workers Party of Marxist Unification. Fourth International. Leon Trotsky. Andreu Nin. 11 LISTA DE ABREVEATURAS E SIGLAS (em ordem alfabética) AIT: Associação Internacional do Trabalho. Também conhecida como I Internacional. Fundada em 1864 por Marx e Engels. BOC: Bloco Operário e Camponês. Organização de massas da FCC-B. Foi uma das duas organizações que se fundiram para formar o POUM. CCMA: Comitê Central de Milícias Antifascistas. Organização operária que unificava em um mesmo organismo dirigente os diversos comitês que surgiram na Espanha após o início da guerra civil. CEDA: Confederação Espanhola das Direitas Autônomas. Coletivo que unificava as organizações e instituições de direita, de diversas matrizes ideológicas, durante a II República. CGT: Confederação Geral do Trabalho (Confédération Générale du Travail). Central Sindical Francesa, fundada em 1895, que serviu de inspiração para a formação da CNT. CNT: Confederação Nacional do Trabalho. Fundada em 1910, foi a Central Sindical com maior influencia na Catalunha, ideologicamente abrigava duas correntes majoritárias: o anarquismo e o sindicalismo revolucionário. FAI: Federação Anarquista Ibérica. Coletivo anarquista que dirigiu a CNT nos momentos agudos da revolução. FCC-B: Federação Comunista Catalã-Balear. Organização comunista da Catalunha, foi expulsa do PCE por ser considerada “separatista”. IC: Internacional Comunista. Partido internacional operário, fundado em 1919, pelo Partido Bolchevique russo após a Revolução de Outubro. Após a morte de Lenin, começa a se burocratizar conjuntamente com a URSS. 12 ICE: Esquerda Comunista Espanhola. Novo nome da OCE, adotado depois da sua III Conferência, em 1932. Foi uma das duas organizações que se fundiram para formar o POUM. ISR: Internacional Sindical Vermelha. Agrupação sindical vinculada a IC. JAP: Juventud Acción Popular. Grupo de extrema direita espanhol, liderado por Ramón Serrano Suñer, cunhado de Franco. JONS: Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista. Uma das organizações fascista espanhola. NEP: Nova Política Econômica. Plano Econômico idealizado por Lênin em 1921, para restabelecer parcialmente o comercio privado na Rússia. OCE: Oposição Comunista Espanhola. Primeira organização espanhola ligada a Oposição Internacional. OEI: Oposição de Esquerda Internacional. Fração da IC fundada em 1930, liderada por Leon Trotsky. PCE: Partido Comunista da Espanha. Chamado também de Partido Oficial, foi o partido ligado a IC. PCF: Partido Comunista Francês. Organização da IC na França. POUM: Partido Operário de Unificação Marxista. Partido comunista não stalinista, fundado em 1935 pela fusão de duas organizações: a ICE e o BOC. PSOE: Partido Socialista Operário Espanhol. Fundado em 1879 por Pablo Iglesias, foi a organização espanhola da II Internacional. SI: Secretariado Internacional. Grupo dirigente da Oposição de Esquerda. UGT: União Geral dos Trabalhadores. Primeira Central Sindical espanhola, fundada em 1888, foi historicamente dirigida pelo PSOE. 13 URSS: União das Republicas Socialistas Soviéticas. Criada em 1922, reunia a Rússia e republicas próximas que adotaram o modelo soviético. 14 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................................................................16 1 ELEMENTOS HISTÓRICOS: A REVOLUÇÃO ESPANHOLA ...........................................................................22 1.1 Introdução Histórica 22 1.2 Anarquistas e Socialistas 25 1.3 Comunistas 29 1.3.1 A classe operária espanhola e a Revolução Russa ............................................................................32 1.3.2 Formação do Partido Comunista na Espanha ...................................................................................34 1.4 As tarefas da Revolução Espanhola 44 1.4.1 A Questão Agrária ..........................................................................................................................44 1.4.2 A industrialização ...........................................................................................................................46 1.4.3 A Igreja ...........................................................................................................................................46 1.4.4 O exército .......................................................................................................................................48 1.4.5 A Unidade Nacional e a Questão Colonial ........................................................................................49 1.5 Breve história da Revolução Espanhola 50 2 TROTSKY E NIN: AS DIVERGÊNCIAS E SEU SIGNIFICADO ..........................................................................62 2.1 Apontamentos Preliminares 62 2.1.1 Andreu Nin e a Oposição de Esquerda .............................................................................................62 2.1.2 O proletariado e Revolução Democrática: Breves apontamentos sobre a Teoria da Revolução Permanente no contexto espanhol ...............................................................................................................64 2.2 A Correspondência entre Trotsky e Nin 68 2.2.1 O caso Rosmer-Molinier ..................................................................................................................68 2.2.2 Como construir a Oposição de Esquerda na Espanha. ......................................................................74 2.3 A ruptura entre Leon Trotsky e Andreu Nin. 86 2.3.1 A III Conferência Nacional da OCE ...................................................................................................86 2.3.2 A III Internacional está morta! .........................................................................................................92 2.3.3 Duas faces de uma mesma moeda: Centrismo e Sectarismo ............................................................94 2.3.4 POUM: A Ruptura entre Leon Trotsky e Andreu Nin .........................................................................97 3 TROTSKY E NIN: AS DIVERGÊNCIAS POSTAS EM PRÁTICA ..................................................................... 101 3.1 Frente Popular 101 3.2 Duplo Poder e Órgãos de Poder 116 CONCLUSÃO.................................................................................................................................................. 127 15 Bibliografia Citada ........................................................................................................................................ 135 Bibliografia Consultada ................................................................................................................................. 140 Filmes ........................................................................................................................................................... 143 16 INTRODUÇÃO Os estudos sobre a Revolução Espanhola só começaram a ser produzidos quantitativamente a partir do final da ditadura de Franco, na década de 70 do século XX. Mais de 40 anos se passaram desde então, e muitos pesquisas foram produzidas, entretanto, no Brasil esse tema continua pouco explorado, são raras as obras que abordam esse assunto, tanto de pesquisas brasileiras, quanto traduções estrangeiras. Para compreendermos a importância histórica da revolução espanhola são necessários alguns apontamentos sobre os acontecimentos mundiais. Durante as três primeiras décadas do século XX, vários fenômenos sociais e políticos de grande magnitude foram observados: uma guerra envolvendo todas as principais potências mundiais (I Guerra Mundial), uma revolução proletária vitoriosa (Rússia), uma contra revolução fascista (Itália), uma crise econômica de proporções globais (crise de 1929), além de diversas crises, guerras e conflitos sociais de menor intensidade. Desde a perspectiva do movimento operário, o início do século XX também marcou grandes acontecimentos. A II Internacional, fundada por Friedrich Engels se tornou um verdadeiro partido mundial, com forte representação partidária nos principais países do mundo, e um poderoso aparato internacional. Entretanto, a política nacionalista dos seus principais partidos frente à ascensão da I guerra demonstrou sua falência enquanto organização para a revolução proletária mundial (SAGRA, 2005). Em 1917, os trabalhadores russos realizaram a maior revolução proletária da história (Revolução Russa ou Revolução de Outubro), sob a liderança de Lênin e Trotsky, e construíram o primeiro Estado Operário do mundo. Essa realização, de consequências históricas inigualáveis até então, foi um farol luminoso para os operários do mundo todo. Da Revolução Russa nasceu o novo partido operário mundial: a III Internacional. Durante a década de 1920, a URSS passou por profundas mudanças políticas. Devastada pela Guerra Mundial e subsequente guerra civil, a situação econômica era crítica, a fome era uma realidade, a indústria funcionava em escala menor do que antes da guerra, o desemprego gerou a emigração da cidade para o campo, grande parte da geração operária que construiu a revolução em 1917 havia tombado em batalha, a realidade apresentava um desafio nunca antes proposto a um partido operário: edificar o primeiro Estado operário do mundo em um país atrasado e devastado. 17 A resposta do partido de Lênin à crítica situação econômica e social russa foi a Nova Política Econômica (NEP)1. A NEP foi um recuo da revolução, uma concessão ao modo de produção e troca capitalista, necessária para recuperação imediata da economia russa. A NEP cumpriu seu papel, estabilizando em curto prazo a economia, entretanto, produziu também o fortalecimento de setores sociais não proletários, e o desenvolvimento da burocracia. Na segunda metade de 1921, Lênin é afastado do seu trabalho cotidiano no Estado e no partido devido a sua situação de saúde. Durante o período de enfermidade de Lênin, Stalin passa a concentrar cada vez mais poder, fato notado pelo próprio Lênin: “O camarada Stalin, tendo chegado ao Secretariado Geral, tem concentrado em suas mãos um poder enorme, e não estou seguro que sempre irá utilizá-lo com suficiente prudência” (LENIN, 2006, n.p.). Em 1923, a URSS atravessava sua primeira grande crise econômica pós-NEP, a crise das tesouras, caracterizada pela queda dos preços da produção agrícola e a ascensão dos preços dos produtos manufaturados, conjuntamente, a redução dos salários e o descenso dos empregos provocaram diversas greves, e uma considerável tensão social. Em que se pesem as divergências preexistentes, a solução para a crise foi o catalisador da divisão dos comunistas. Nesse ano, a partir do documento que ficou conhecido como “plataforma dos 46”2, nasceu a Oposição de Esquerda, que se opunha a política do grupo dirigente da URSS, a Troika3. No plano econômico a oposição propunha medidas para acelerar a industrialização da URSS, e no plano político exigiam medidas de combate à burocratização, e a democratização do partido comunista. Esse conflito encontraria seu desfecho no XIII Congresso do Partido Comunista Russo, que apesar de aprovar formal e parcialmente algumas questões levantadas pela oposição, como a necessidade de maior democratização do partido, condenou a Oposição de Esquerda, definindo-a como fruto de um desvio pequeno burguês. Dois elementos se destacam no período que antecedeu o congresso, o primeiro é a entrada massiva de novos membros no partido por meio de um programa chamado “recrutamento Lênin”, pelo qual aproximadamente 200.000 novos membros foram recrutados, 1 Nova Política Econômica (NEP): Instaurada em 1921 visava reestabelecer parcialmente o comercio privado na Rússia, como forma de amenizar os problemas de abastecimento gerados por uma economia destruída pela I guerra mundial, e posteriormente pela guerra civil. 2 Documento político e programático encaminhado a direção do Partido Comunista Russo, foi assinado por 46 destacadas personalidades do partido. Trotsky não assinou esse documento, mas havia encaminhado anteriormente uma carta ao Comitê Central do Partido Comunista Russo com o mesmo espírito. 3 A Troika foi o triunvirato formado por Zinoviev, Kamenev e Stalin. Em grande medida ela foi formada para disputar a sucessão de Lênin, e bloquear a ascensão de Trotsky, que era visto como sucessor natural. 18 com os métodos de seleção da Troika e alheios às experiências anteriores do partido (LIZ, 2005). Esse novo montante correspondia a quase metade dos 485.000 membros totais do partido existentes no congresso anterior (STALIN, 1954). O segundo diz respeito aos métodos burocráticos utilizados pela Troika durante o conflito, em substituição à discussão política, tais como as calunias pessoais, as ameaças, e as demissões4, conforme nos relata Liz. Fazem-se assembleias do partido em Moscou (11 de dezembro) e Petrogrado (dia 15) onde os argumentos de Trotski e os 46 tomam impulso. Ainda continuam a sair artigos no Pravda, mas seu diretor é demitido por escrever, no dia 16 de dezembro, que ‘a calúnia e as acusações infundadas se tornaram as armas de discussão de inúmeros camaradas’. Efetivamente, no dia anterior, Stalin acusou Trotski de "menchevique infiltrado" no partido. Estava-se começando a utilizar, pela Troika e seu corifeus, a mentira e o insulto como métodos políticos. (LIZ, 2005, p.81, tradução nossa) A Troika derrotou a Oposição de Esquerda, posteriormente Stalin se sobressaiu aos demais membros do triunvirato, apoiado em membros menos destacados do comitê central do partido. Zinoviev e Kamenev recorreram à oposição, e com ela formaram a Oposição Unificada. A Oposição Unificada também foi derrotada, Zinoviev e Kamenev renegaram sua política em troca do perdão de Stalin, mas, foram julgados e executados anos mais tarde. Trotsky, por sua vez foi exilado em Alma-Ata. Os líderes mais prestigiados da oposição foram designados a cargos em lugares longínquos e pouco importantes, que alguns historiadores consideram um exílio disfarçado, os membros menos conhecidos foram encarcerados. A Oposição de Esquerda havia sido fortemente golpeada, estava desorganizada e dispersa. Ainda que Oposição de Esquerda contasse com diversos apoiadores e simpatizantes estrangeiros, que sua luta política com a burocracia soviética interferisse – direta e indiretamente – no movimento comunista mundial, e que houvesse travado algumas batalhas no campo internacional, como a política para a revolução chinesa, por exemplo, ela foi, durante a década de 1920, fundamentalmente russa. Durante esse período, a Oposição de Esquerda esperava corrigir os rumos que o movimento comunista havia adotado no seio do único Estado operário da época, mas, a partir da década de 1930, o conflito se expandiu para as outras seções nacionais do movimento comunista mundial. 4 Cabe destacar que os métodos burocráticos de conflito político eram estranhos à tradição bolchevique e, para Trotsky, o burocratismo nesse momento era maior do que no período de guerra (LIZ,2005). Entretanto, tais discussões ainda eram possíveis na imprensa do partido, alguns anos mais tarde o burocratismo atingiria graus muito maiores. 19 Em 1929, de seu exílio em Prinkipo (Turquia), Trotsky escreveu a diversos grupos contrários à política de Stalin, na tentativa de encontrar uma base comum para um reagrupamento internacional da oposição. Nessas cartas, ele pediu a cada grupo para expressassem pormenorizadamente suas opiniões sobre três questões, que considerava fundamentais: 1) a situação da URSS; 2) a revolução chinesa; 3) o comitê anglo-russo (PAGÈS, 1977). Em abril de 1930, foi fundada a Oposição de Esquerda Internacional, que se reivindicava parte da Internacional Comunista, e lutava para reformá-la, ou mais exatamente, para regenerá-la, retornando ao espírito do seu terceiro e quarto congresso (SAGRA, 2005). Paralelamente, em 1929, os EUA vivenciavam a maior crise de sua história, que teve ressonância na economia mundial, esse acontecimento de proporções históricas abriu a década de 1930, que terminou com outro momento emblemático na história da humanidade: a eclosão da II Guerra Mundial. No período histórico entre esses dois eventos marcantes na história do século XX, outros acometimentos de grande importância se desenvolveram: O fascismo se instabilizava na Itália, e ganhava força na Áustria e na Alemanha. A URSS se burocratizava cada vez mais profundamente, e durante a década de 1930, a casta burocrática passou a eliminar fisicamente os remanescentes da vanguarda da classe operária russa que havia feito à revolução, através dos processos de Moscou. Em 1933 Hitler subia ao poder na Alemanha, e a Oposição de Esquerda abandonaria a perspectiva de reforma da IC, e começaria a se preparar para fundar uma nova Internacional. Durante toda essa conturbada década a Espanha viveu um período revolucionário, com ressonâncias para o desenvolvimento de toda conjuntura mundial posterior. As paixões que envolveram a vanguarda do proletariado mundial ao redor da Espanha são muito difundias, entretanto a história do processo espanhol e principalmente sua análise política ainda permite grande margem a pesquisa, principalmente no Brasil. Marx afirmou que a consciência do homem é determinada pelo modo de produção, ou seja, pela forma em que ele organiza o trabalho, e que um período revolucionário é um momento histórico que se apresenta quanto às forças produtivas entram em choque com as fronteiras do modo de produção. Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um dado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que lhes determina o ser; ao contrario, seu ser social 20 determina sua consciência [...] Em um certo estado de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou o que não é mais que a expressão jurídica disso, com as relações de propriedade no seio das quais se haviam movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas relações transformam-se em seus entraves. Abre-se então uma época de revolução social [...] (MARX, 2008, p.47) Não há dúvidas de que o período revolucionário é consequência de contradições estruturais de um determinado modo de produção. O capitalismo internacionalizou a economia mundial, mas os distintos Estados se desenvolvem com ritmo desigual, quando um período revolucionário se abre em um país economicamente atrasado, esse processo não pode se desenvolver da mesma maneira que nas revoluções burguesas clássicas, no caso espanhol, a revolução precisava resolver as questões democráticas que seus vizinhos Inglaterra e França já haviam resolvido há muito tempo, esse atraso constitui uma grande diferença, a Espanha era uma monarquia, entretanto, sua economia possuía um caráter combinado, coexistiam os rudimentares métodos de produção feudais, principalmente no meio rural, com avançados modo de produção capitalista, principalmente a indústria leve da Catalunha e a indústria extrativa no País Basco, socialmente a alta burguesia possuía profundos laços com a nobreza e, ao mesmo tempo, a classe operária já era um fator social relevante. A revolução democrática na Espanha não seria levada a cabo a não ser pela hegemonia da classe trabalhadora, a burguesia buscava limitar a revolução ao seu caráter político. Não obtiveram sucesso, com isso a maior parte da burguesia espanhola se voltou para a alternativa fascista, que englobava também as classes privilegiadas pré-capitalistas. Por outro lado, a classe operária se uniu a burguesia republicana ou, mais precisamente, a seus representantes políticos, construindo a Frente Popular. A história da revolução espanhola foi muitas vezes contada através da perspectiva dicotômica entre a Frente Popular e o fascismo. Esse trabalho não busca seguir esse caminho, nosso objeto de estudo é a revolução espanhola, mas desde a perspectiva da classe trabalhadora, ou mais precisamente, da vanguarda revolucionaria da classe trabalhadora. A importância dos acontecimentos espanhóis ultrapassam muito os testes bélicos e conflitos diplomáticos que antecederam a II Guerra Mundial, desde a perspectiva do movimento operário, a Espanha foi à chance histórica de criar um novo polo de atração revolucionário oposto à burocracia stalinista, e resgatar o caráter revolucionário do marxismo para milhões de jovens trabalhadores em todo o mundo, antes das burguesias dos principais países capitalistas levassem o mundo a uma nova guerra mundial. Nesse contexto, a Espanha se tornou o centro da luta de classes mundial a partir de 1936. 21 O objetivo de pesquisa sobre o qual esse trabalho busca jogar luz é a estratégia revolucionaria da classe trabalhadora na Revolução Espanhola. O Partido Operário de Unificação Marxista (POUM) é retratado muitas vezes como um partido de orientação trotskista, nesse trabalho pretendemos resgatar o debate entre Leon Trotsky5 e Andreu Nin6, principal líder do POUM durante os processos revolucionários de 1936/37, com o objetivo de verificar se as diferenças entre esses dois dirigentes comunistas adquirem um caráter qualitativo, ou seja, se existiam duas estratégias distintas no campo do marxismo revolucionário. 5 Lev Davidovitch Bronstein (1879 – 1940), conhecido pelo pseudônimo de Leon Trotsky, destacado membro do Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Russos, presidente do Soviet de Representantes Operários em 1905, presidente do Soviet de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado e do Comitê Militar Revolucionário em 1917, um dos principais lideres bolcheviques durante da revolução de outubro, fundador e membro do Politburo do Partido Comunista da União Soviética, Comissário do Povo para Relações Exteriores em 1918, Comissário do Povo para Assuntos Militares e Navais 1018 a 1925, fundador do Exercito Vermelho, principal líder da Oposição de Esquerda, chefiou os opositores contra a burocratização da União Soviética, exilado em 1929, fundador e principal liderança da Quarta Internacional. 6 Andreu Nin i Pérez (1892 – 1937), secretário do Comité Nacional da CNT 1919, delegado da CNT para o terceiro congresso da III Internacional Comunista, Membro do Secretariado da Internacional Sindical Vermelha, fundador e líder da Oposição Comunista Espanhola (OCE), e posteriormente Esquerda Comunista da Espanha (ICE), membro do Secretariado Internacional da Oposição de Esquerda, fundar e líder do POUM, Ministro da Justiça da Catalunha 1936. 22 1 ELEMENTOS HISTÓRICOS: A REVOLUÇÃO ESPANHOLA 1.1. Introdução Histórica No início do século XX, a Espanha era um país atrasado, com grande parte do solo cultivável improdutivo, com métodos de cultivo arcaicos, alta concentração da propriedade fundiária, e baixa industrialização, concentrada majoritariamente na Catalunha e no País Basco. Nessas condições, na balança comercial espanhola as importações superavam as exportações. Soma-se a esse quadro: 1) a existência de um amplo setor parasitário, alocado principalmente no exército, que exigia do Estado meios para manter seus privilégios; 2) uma educação rudimentar, dominada pela igreja, e acessível apenas a uma ínfima parte da sociedade; e, finalmente 3) um grave problema de unidade nacional, que não foi totalmente resolvido nos séculos anteriores. O atraso espanhol possui causas particulares. A Espanha viveu outrora um período de grande florescimento, ela foi a primeira grande potência mercantil. No final do século XV, as guerras de reconquista 7 se encerraram após a retomada de Granada – último território mulçumano na península – pelos exércitos de Fernando II de Aragão, e Isabel I de Castela, processo que culminou na unificação desses reinos no Reino de Espanha. No século XVI, durante o reinado de Carlos I, a Espanha passou por um momento de guerra civil – Guerra da Junta Santa8 , que Marx chamou de a única revolução séria na Espanha até o século XIX (MARX; ENGELS, 1978), na qual as cortes se opuseram as pretensões absolutistas do Rei Carlos I. O Rei, entretanto, venceu o conflito, apoiando-se no clero e na nobreza agrária, que estavam descontentes com suas baixas representatividades na corte. 7 Durante o século XX, o conceito de “reconquista” foi questionado por alguns estudiosos. A polêmica abrange a discussão antropológica sobre os povos que habitavam a península ibérica antes da ocupação mulçumana, sua distribuição geográfica e influência cultural (JIMÉNEZ, 2003), assim como a possível utilização política e ideológica do termo (SALOMA, 2011). Essa polêmica ultrapassa os limites desse trabalho. Para a finalidade que nos interessa, optamos pela utilização do termo mais usual, com o objetivo de nos referir aos conflitos na península ibérica ocorridos entre o século VIII e XV. 8 A Guerra da Junta Santa foi uma rebelião liderada pelos comuneros, representantes das cidades nas Cortes e nos Ayuntamientos (órgãos de representação que se desenvolveram no período das guerras de reconquista), formalmente a revolta ocorreu contra camarilha flamenga que ocupava os principais cargos da corte, mas essencialmente, foi uma “defesa das liberdades da Espanha medieval frente às ingerências do moderno absolutismo” (MARX; ENGELS, 1978, p.8-9, tradução nossa). 23 O papel centralizador do capital comercial, e a formação gradual da nação espanhola, foram as bases que fortaleceram a monarquia (TROTSKY, 2014). A exploração das colônias americanas, então recentemente descobertas, encheu os cofres da Coroa, e aumentou a força do Rei, o qual já expressava uma forte tendência à centralização absolutista. A Espanha se tornou a primeira grande potência mercantil, impondo sua hegemonia aos concorrentes europeus. Entretanto, as causas de seu apogeu foram também às causas de sua ruína. A exploração do minério americano ajudou a constituir uma nobreza acomodada. A monarquia absolutista se transformava em um freio para o desenvolvimento comercial das cidades, que pouco a pouco foram perdendo suas antigas posições de destaque no comércio mundial. Com isso, as grandes rotas comerciais passariam a se deslocar da península ibérica para outros países. Dessa forma, o desenvolvimento do comércio, e com ele, as novas formas de produção que se desenvolveram na Europa nos séculos seguintes, não se desenvolveram na Espanha. A partir de 1588, com a derrota da esquadra invencível – a poderosa marina espanhola – da grande Espanha do passado murchou como uma fruta madura, em um prolongado processo, que Marx chamou de “putrefação lenta e inglória” (MARX; ENGELS, 1978, p. 11, tradução nossa). A monarquia absolutista espanhola possuía mais traços em comum com o despotismo asiático, do que com o absolutismo europeu (MARX; ENGELS, 1978), enquanto na Europa a monarquia absolutista se desenvolveu apoiando-se nas cidades, contra as velhas castas feudais, na Espanha a força da monarquia absolutista vinha da impotência tanto das velhas castas feudais, quanto das cidades (TROTSKY, 2014). O atraso econômico da Espanha debilitou as tendências centralizadoras do capitalismo. A decadência das cidades, a estagnação do comércio externo e interno, e a baixa industrialização produziram uma interdependência das províncias, que não só dificultava a unificação política, administrativa e fiscal, mas também, fortaleceu os particularismos. O despotismo oriental só ataca a autonomia municipal quando esta se opõe a seus interesses diretos, mas permite de bom grado a sobrevivência dessas instituições enquanto o eximem do dever de fazer algo e lhe evitem a moléstia de exercer a administração com regularidade. (MARX; ENGELS, 1978, p.18, tradução nossa) No século XIX, a Espanha perdeu todas as suas colônias na América, a ampla maioria delas já nas primeiras décadas, com os movimentos de independência. Nos últimos anos do 24 século, o movimento de independência de Cuba se transforma em uma guerra entre Espanha e E.U.A. – Guerra Hispano-Americana – na qual a Espanha acaba derrotada. Privada das riquezas oriundas das colônias americanas, atrasada em todos os sentidos frente aos concorrentes europeus, sem recursos para satisfazer os apetites das classes dominantes, e com as tendências separatistas, o século XIX foi marcado por diversos levantes em solo espanhol. Marx se interessou pela história da Espanha na segunda metade desse século. Fascinado pelos processos revolucionários que se desenvolviam nesse país, chegou a afirmar que “não é exagero dizer que não há outra parte da Europa [...] que ofereça para o observador reflexivo um interesse tão profundo quanto a Espanha nesse momento” (MARX; ENGLES, 1978, p. 7, tradução nossa). No entanto, todos os levantes revolucionários espanhóis do século XIX fracassaram. A causa principal desse desfecho foi a impotência da burguesia para se colocar a frente da nação e realizar sua própria revolução, tal qual a fizeram outros países europeus. A monarquia sobrevivia porque era indispensável às classes dominantes espanholas, tanto à nobreza e o clero, quanto à burguesia. Não é inútil notar que em todos os levantes desse século, apenas uma pequena fração da burguesia apresentava um programa radical, propriamente burguês, e independente da monarquia (TROTSKY, 2014). No entanto, a monarquia espanhola sobrevivia vegetando na impotência dessas classes, e dependente de constantes pronunciamentos9. O exército foi, em diversos momentos, o pilar mais sólido de sustentação da sociedade espanhola, a única instituição capaz de manter a unidade nacional nos momentos de maior divisão entre as classes dominantes. Como vimos, o desenvolvimento espanhol se encontrava em um beco sem saída, os constantes levantes eram um indicador de que a monarquia esgotava suas últimas forças. Porém, concomitantemente as recorrentes derrotas desses levantes indicavam que a burguesia não era capaz de superar o impasse. Um novo elemento contribuía para alterar substancialmente a situação: A industrialização da Espanha, que começou massivamente no século XIX, sustentada pelos investimentos estrangeiros vindos da Inglaterra e da França. Com a industrialização surgia um novo agente histórico, com potencialidade para superar definitivamente o impasse político, social e econômico da Espanha: a classe operária. 9 Golpe de Estado militar. Na tradição política espanhola havia se tornado comum os “pronunciamentos” em situações de tensão social. 25 1.2. Anarquistas e Socialistas No século XIX, a jovem classe operária espanhola ainda se formava quando o movimento operário criava seu primeiro instrumento de organização mundial, a Associação Internacional dos Trabalhadores10 (AIT), também conhecida como I Internacional. Pode-se dizer que a AIT foi responsável pelo alicerce da organização do proletariado espanhol, que como ela, logo se dividiu entre libertários e socialistas, com inegável preponderância dos primeiros. Em 1848, a Europa foi o cenário de diversas revoluções (Primavera dos Povos), entretanto todas foram derrotadas, iniciando um período reacionário, de forte perseguição política, e de refluxo da classe operária mundial. Quando a AIT foi fundada, em 1864, esse período reacionário estava começando a definhar11, entretanto, as dificuldades organizacionais desse período reacionário ainda não haviam sido superadas. Assim, nos seus primeiros anos, a AIT foi ampla o suficiente para agregar diversas correntes do movimento operário, entretanto, na medida em que se desenvolvia e tomava forma, os antagonismos passaram a se mostrar cada vez mais evidentes (SAGRA, 2005). O principal embate se deu entre o Conselho Geral da AIT e o grupo de M. Bakunin, denominado Aliança da Democracia Socialista12. Bakunin acusava o Conselho Geral de ser autoritário, tanto por sua forma de organização, quanto por seu programa. Do ponto de vista organizacional, reivindicava a plena autonomia e independência das federações nacionais, restringindo o papel de qualquer congresso internacional a harmonizar as aspirações, as necessidades e as ideias do proletariado dos diferentes países; do ponto de vista programático, ele reivindicava a 10 A Associação Internacional dos Trabalhadores, ou I Internacional, foi a primeira organização internacional dos trabalhadores, fundada em 1864, em uma assembleia internacional sediada em Londres. Era dirigida por um Conselho Geral eleito em seus congressos e, desde sua fundação, esse conselho foi encabeçado por Karl Marx. A organização foi dissolvida em 1876. 11 A crise econômica de 1857, a guerra de independência da Itália (1859), e a guerra civil nos Estados Unidos (1861), são alguns dos acontecimentos que anunciam essa mudança na conjuntura mundial. 12 A Aliança da Democracia Socialista foi fundada por Mikhail Bakunin em 1868. Foi aceita na AIT com a condição de que se dissolvesse em suas seções. Formalmente essa exigência foi aceita pela Aliança, porem se transformaram em uma sociedade secreta dentro e fora da AIT. Foram acusados pelo Conselho Geral da AIT de constituir uma segunda organização internacional, que pretendia dividir a Associação entre “iniciados” e “profanos”, com a intenção de se apoderar dos organismos de direção sem que a maior parte dos membros da Associação nem mesmo soubessem de sua existência (SAGRA, 2005). 26 destruição imediata do Estado, se colocando contra a ditadura do proletariado (BAKUNIN. 1989). Diferentemente, Marx e Engels defendiam que o proletariado em sua luta pela emancipação necessitaria momentaneamente do Estado, como um órgão para reprimir as aspirações reacionárias da burguesia e para garantir a eliminação de todas as formas de exploração, portanto, esse Estado não seria outra coisa, senão a ditadura do proletariado. Na medida em que desaparecessem sua necessidade, ou seja, na medida em que se extinguissem as classes sociais, o Estado definharia até sua abolição completa (MARX, 2012). Em resposta à acusação feita pelos anarquistas, Engels afirmou: Por que é que os anti-autoritários não se limitam a erguer-se contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas concordam em que o Estado político e com ele a autoridade política desaparecerão como conseqüência da próxima revolução social, ou seja, que as funções públicas perderão o seu caráter político e se transformarão em simples funções administrativas protegendo os verdadeiros interesses sociais. Mas os anti-autoritários pedem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, antes mesmo que se tenham destruído as condições sociais que o fizeram nascer. Pedem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Já alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria durado um dia que fosse se não se servisse dessa autoridade do povo armado face aos burgueses? Não será verdade que, pelo contrário, devemos lamentar que não se tenha servido dela suficientemente? Assim, das duas uma: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e, nesse caso, só semeiam a confusão; ou, sabem-no, e, nesse caso, atraiçoam o movimento do proletariado. Tanto num caso como noutro, servem à reação. (Engels, 2005, n.p.) Para Marx, a questão da organização também estava intimamente ligada à questão programática. Ele acreditava que uma organização internacional dos trabalhadores deveria de fato constituir-se de modo orgânico, e não ser apenas um fórum de discussões, e concluía, por esses motivos, que essa organização internacional deveria possuir uma direção unificada, conforme afirma Sagra: Marx entendia a Internacional como um movimento que deveria atuar sob uma direção central unificada, ainda que as seções nacionais tivessem liberdade de formular sua própria política, enquanto Bakunin defendia que todos os movimentos deviam gozar de absoluta liberdade de ação, sem receber nenhuma instrução de nenhum núcleo central (SAGRA, 2005, p.17) Nessa época, a classe operária espanhola ainda engatinhava, pequena e pouco experiente, era fundamentalmente influenciada pelas ideias anarquistas da Aliança da 27 Democracia Socialista, e não chegou a exercer nenhum papel independente no levantamento de 1873. Nos momentos em que pode cumprir algum papel mais significativo limitou-se a servir como apoio da burguesia radical13 (MARX; ENGELS, 1978). F. Engels, secretário da AIT para a Espanha, analisando esse processo, afirmou que a Espanha era demasiadamente atrasada no campo industrial para uma emancipação imediata da classe trabalhadora. Porém, no processo revolucionário em curso abriria uma oportunidade para que os obstáculos para a emancipação fossem rapidamente superados, com a condição de que a classe operária espanhola interviesse de maneira ativa, aproveitando a ocasião (MARX; ENGELS, 1978), o que não aconteceu, segundo Engels, pela política dos anarquistas, que guiaram a classe operária para uma política dependente dos aliancistas – ala esquerda do republicanismo burguês, chegando à conclusão de que “os bakuninistas espanhóis nos deram um exemplo insuperável de como não deve ser feita uma revolução” (MARX; ENGELS, 1978, p. 253, tradução nossa). Após a dissolução da AIT, um pequeno núcleo de operários e intelectuais, liderados pelo tipógrafo Pablo Iglesias, fundou em 1879, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), reivindicando a tradição internacional de K. Marx e F. Engels14. O desenvolvimento inicial do PSOE se deu lentamente, e em 1888, quase dez anos após sua fundação, o Partido fundaria a União Geral do Trabalhadores (UGT), a primeira central sindical espanhola (HEYWOOD, 1993). No final da década de 1880, o movimento operário voltaria a construir uma nova organização mundial, a partir dos grupos e partidos que se constituíram em diversos países nessa década. Essa organização ficou conhecida como II Internacional15, e contou com a participação do PSOE. 13 Engels se refere à Primeira República Espanhola. Que teve início em fevereiro de 1873, quando o rei Amadeu I abdica e termina em dezembro de 1874, com um pronunciamiento que restauraria a monarquia. Engels qualifica essa breve república de “vergonhosa”, seu interesse se centra na análise da atuação dos anarquistas nesses acontecimentos: “Desta vergonhosa insurreição, só nos interessa aqui as façanhas, ainda mais vergonhosas, dos anarquistas de Bakunin, únicas que relatamos aqui com certo detalhe para prevenir com seu exemplo o mundo contemporâneo” (MARX; ENGELS, 1978. p. 234, tradução nossa). 14 Os fundadores do PSOE se reivindicavam adeptos das ideias de Marx, entretanto, diversos autores apontam a debilidade teórica desses pioneiros. Heywood os define como “marxistas descafeinados”, para ele a compreensão do marxismo durante os primeiros anos do PSOE era demasiadamente rígida, esquemática, distante da realidade sociopolítica espanhola e, a prática pouco se relacionava a teoria. A conclusão a que chega é a seguinte: “Em essência, os primeiros dirigentes do PSOE se consideravam marxistas, porém não entendiam a teoria marxista, nem como podiam aplica-la a Espanha de modo específico” (HEYWOOD, 1993, p.22, tradução nossa). 15 A II Internacional, ou Internacional Socialista, foi fundada em 1889, em Paris, durante as comemorações do centenário da Revolução Francesa. Foi dissolvida em 1916, devido a seus partidos estarem divididos em relação 28 Nesses primeiros anos do século XX, dois fenômenos ideológicos ganhavam corpo internamente na II Internacional, o revisionismo e o sectarismo. O revisionismo teve como principal característica o abandono do princípio da luta de classes, entendida aqui como movimento que tem como finalidade a tomada do poder pela classe operária, e a crescente valorização das reformas sociais como finalidade própria do movimento (reformismo), e consequentemente a extrema valorização do trabalho parlamentar; por sua vez, o sectarismo teve como principal característica a negação absoluta do trabalho parlamentar, disseminava que as reformas sociais eram prejudiciais ao movimento revolucionário, pois reaproximavam os trabalhadores do Estado burguês, e, portanto, os partidos socialistas não deveriam tomar parte nessas lutas parciais. Os marxistas se colocaram contra essas duas tendências, defendendo, contra os sectários, a necessidade dos socialistas tomarem parte nas lutas da classe trabalhadora, mesmo nas lutas parciais, assim como a participação no parlamento, desde que trabalhassem para benefício da classe operária no seu objetivo final; e, contra os revisionistas, os marxistas defenderam os princípios revolucionários estabelecidos por K. Marx, segundo o qual é impossível à emancipação do proletariado sob o julgo do capitalismo, e é impossível destruir o capitalismo com reformas sociais, portanto, toda participação nas lutas parciais, no parlamento e em outros espaços democráticos deve estar condicionada a um único objetivo: a tomada do poder pela classe operária. É verdade que os marxistas foram formalmente vitoriosos nesses embates, no entanto, não é menos verdadeiro que, durante esses anos, a ação proposta pelos revisionistas (reformismo, parlamentarismo, etc...) passou a ganhar espaço nos principais partidos da II Internacional, principalmente após 1914 (SAGRA, 2005). Na Espanha, a direção do PSOE sofria as influenciais no rumo que tomava a II Internacional, ainda que nenhum dos seus principais líderes nunca tenha assimilado totalmente as ideias revisionistas (HEYWOOD, 1993). O desenvolvimento posterior do PSOE, impactado por grandes acontecimentos, tanto espanhóis quanto mundiais, levaram a cisão da ala revolucionaria. Por sua vez, os anarquistas espanhóis, apesar de mais numerosos, permaneceram um longo tempo divididos, e só foram se reunificar solidamente no início do século XX, influenciados pelos sindicalistas revolucionários da CGT francesa. Fundaram, em 1910, a Confederação Nacional do Trabalho (CNT), que viria a ser a principal central sindical a I Guerra Mundial, e reunificada posteriormente em 1920, como uma alternativa reformista à recém-fundada Internacional Comunista, ou III Internacional. 29 espanhola e a mais importante organização do sindicalismo revolucionário no mundo (BROUÉ, 1973). O espírito combativo dessa central e os métodos de ação direta lhe renderam grande simpatia dos operários, diretamente proporcional à repressão de qual foi vítima. As formas muito flexíveis de sua organização, a sua fidelidade ao princípio da ação direta, a sua simpatia pela luta de classes respondem assaz bem às características do proletariado da Península, jovem, miserável, e pouco diferenciado, com a marca do campesinato pobre, sensível às ações “exemplares” de “minorias atuantes” que se esforçam por sacudir, ao mesmo tempo, o jugo da opressão e a sua própria apatia. É nesse sentido que se pode dizer que a CNT – a sua perenidade, o seu enraizamento, apesar de tantas transformações – é tipicamente espanhola, na medida em que a Espanha pouco mudou, em que as condições históricas que marcaram o seu nascimento permanecem, apenas modificadas pelos inícios da industrialização e da concentração capitalista. (BROUÉ 1992 p.26) Os anarquistas ocuparam lugar destacado em muitos conflitos nesses anos. No entanto, frente ao refluxo da classe operária, parte importante dos anarquistas passou a adotar métodos de banditismo e terrorismo, que tinham como finalidade substituir o movimento das massas trabalhadoras e camponesas por ações exemplares de poucos homens valentes, o que lhes rendeu a perseguição pelos pistoleiros dos sindicatos livres16, e posteriormente pelo governo ditatorial de Primo de Rivera. A repressão aos anarquistas foi tão intensa que Andreu Nin chegou a acreditar que o anarquismo havia sido uma experiência superada pela classe operária espanhola. Não obstante, ele ressurgiu com intensa força após a queda da ditadura. 1.3. Comunistas Como vimos anteriormente, a classe trabalhadora espanhola nasceu no século XIX, porém, nesse período, não desempenhava nenhum papel independente. Nesse sentido, é justo dizer que apenas no início do século XX a classe operária deu seus primeiros passos. Em 1909, os operários de Barcelona protagonizam uma grande greve e, em 1912, foram os ferroviários que mostraram a força do jovem proletariado. Diversas outras greves isoladas ocorreram na Espanha nos anos que antecederam a I Guerra Mundial, e diversas batalhas 16 Em 1919 o movimento operário espanhol vivencia uma intensa ascensão, e conseguem importantes vitórias. Em resposta a esse poderoso movimento, as classes patronais passam a se organizar para reagir, inicialmente com lock-out. No final de 1919 essa experiência de ação conjunta das classes patronais encontraria expressão na fundação da União dos Sindicatos Livres, organização que pagava e armava mercenários para assassinarem os dirigentes destacados do movimento operário. Esses assassinos eram chamados pistoleiros (PAGÈS, 2011). 30 heroicas foram travadas, mas até esse momento sempre de forma parcial e fragmentada (PAGÈS, 2011). A I Guerra Mundial possibilitou um salto no desenvolvimento espanhol, sua posição neutra no conflito bélico possibilitou às suas classes proprietárias grandes oportunidades de negócio, o mercado mundial se abriu para os produtos espanhóis, a industrialização cresceu de maneira acelerada, principalmente as indústrias de carvão e têxtil, as hidroelétricas e as ferrovias foram, então, construídas (TRORSKY, 2014). Porém, os altos lucros dessas classes contrastavam com a crescente miséria da população, e a partir do final do ano de 1916, essa contradição começou a se expressar em luta de classes17. A inflação, motivada pelas exportações, foi crescente desde o começo da guerra, atingindo, em 1917, duramente as classes populares. Segundo o Instituto de Reformas Sociales18, o custo de vida médio do país subiu 37,5% em relação a 1914 (ESCRIBANO, 1997). Paralelamente, se desenvolveu uma crise político-social, que colocava em choque com o Estado Monárquico distintas camadas sociais, cujos objetivos posteriores não eram convergentes, e inclusive, em determinados casos, pode se afirmar que eram mesmo antagônicos. Com efeito, a abordagem e o desenvolvimento da crise de 1917 representam, na história do século XX espanhol, e erupção operária e popular, que se desenvolveu com todo seu impulso no conjunto do Estado – a revolução de julho 1909 havia sido apenas um fenômeno barcelonês e, na melhor das hipóteses, catalão –, ao ponto de não apenas fez estremecer os alicerces da monarquia, mas também o próprio sistema de dominação social e econômica que a sustentava. É verdade que a crise de 1917 foi uma crise multiforme, que teve várias manifestações, que se foram desenvolvendo, primeiro como uma crise militar – com a constituição das Juntas de Defesa Militar –, depois como uma crise política – depois da Assembléia de Parlamentares que impulsionou a Lliga Regionalista – e, finalmente, como uma crise social, que estourou com a greve geral revolucionária do mês de agosto. Mas eles foram três movimentos consecutivos no tempo, sem ligação direta entre si e com objetivos claramente diferenciados. Porque se para os homens da Lhiga se tratava de tentar, agora pela última vez, a regeneração do país, aplicando a política reformista, o movimento operário que foi muito além e, a partir de agosto 1917, colocou a revolução como alternativa à reforma, como uma alternativa para realizar, de maneira definitiva, e desde posições revolucionárias, a modernização e democratização do Estado, que as classes dominantes se recusavam a realizar de maneira sistemática. (PAGÈS. 2011. p. 68-69, tradução nossa) 17 Referimo-nos à greve geral de vinte e quatro horas contra a carestia de vida, convocada conjuntamente por UGT e CNT, em 18 de dezembro de 1916 (CHINARRO, 2013). 18 Criado em 1903, durante o Governo Francisco Silvela, foi um órgão do Estado para estudo e informação sobre as relações entre trabalho e capital. Foi extinto em 1924, durante a Ditadura de Primo de Rivera. 31 A classe operária espanhola, que em 1917 entrava no cenário político de forma independente pela primeira vez em âmbito nacional, também possuía suas divisões quanto aos objetivos posteriores do movimento, que se expressavam de maneira mais acabada na posição de suas duas principais organizações sindicais, a União Geral dos Trabalhadores (UGT) e a Confederação Nacional do Trabalho (CNT). Republicanos e reformistas concordaram com o partido socialista na perspectiva de derrubar o regime político aproveitando a crise social e política generalizada. A greve geral era uma poderosa arma para este propósito, e respondia à intensa necessidade de ação e resposta do proletariado. A CNT avaliava desde uma perspectiva revolucionária, como o instrumento definitivo para derrubar o regime social. Para os líderes do PSOE-UGT poderia estar condicionada a uma mudança de regime político, desde a fórmula republicana ou, como exigência mínima, desde um governo de concentração com a participação socialista. (FORCADELL, 1978, p. 232, tradução nossa) Em 19 de julho de 1917 começa a greve entre os ferroviários de Valencia19. Desde o ano anterior, CNT e UGT negociavam a possibilidade de uma greve geral unificada20, no entanto, o impacto da greve dos ferroviários é tão poderoso que as centrais sindicais são obrigadas a adiantar seus planos e colocar em movimento a greve, que mesmo improvisada, paralisou as atividades na maior parte das grandes zonas industriais por quase uma semana (CHINARRO, 2013). 19 No dia 19 de julho, pela manhã, se reuniu a Assembleia de Parlamentares, com a participação do PSOE, que não se interessava, nesse momento, pelos métodos de luta de classes do proletariado. A tarde explodiu a greve dos ferroviários de Valéria, que paralisou aproximadamente 70% dos ferroviários e portuários. Ainda no mesmo dia, os ferroviários de Aragão se somaram ao movimento. No dia seguinte, o movimento se ampliou para o comercio e a indústria, se generalizando na cidade. As causas dessa greve ainda dividem historiadores, a hipótese mais aceita é a que aponta a responsabilidade a provocação do governo, que pretendia provocar a greve para enfraquecer uma futura greve geral, essa hipótese não está provada. O movimento foi reprimido no dia 23, o governo saiu vitorioso, mas nem a vitória, nem os operários mortos na repressão foram suficientes, era necessário dar o exemplo, e dezenas de ferroviários envolvidos na greve foram demitidos. No início de agosto, o sindicato de ferroviários de Madrid enviou um oficio ao governo exigindo a reincorporação dos demitidos políticos, e ameaçando iniciar a greve. O governo se nega a aceitar a exigência dos ferroviários. Os ferroviários marcam a greve para o dia 13 de agosto. Assim, os socialistas se encontraram diante do dilema, manter sua estratégia de negociação por cima e deixar os ferroviários a sua própria sorte, ou se juntar a eles. Não se hesitar, o PSOE escolheu a segunda opção. Assim começaria a greve geral (CHINARRO, 2013). 20 Referimo-nos ao Pacto de Zaragoza, assinado em 17 de julho de 1916, pela UGT – representada por Besteiro, Largo Caballero e Barrios, e CNT – representada por Salvador Seguí e Angel Pestaña, além do Centro Obrero de Zaragoza, que sediou a reunião (ESCRIBANO, 1997). 32 1.3.1 A classe operária espanhola e a Revolução Russa No final do ano de 1917, o movimento já havia sido derrotado, e o governo reprimia severamente os operários e suas organizações, quando surgiam na Espanha os primeiros relatos dos acontecimentos russos. A revolução russa causou grande impacto no movimento operário mundial. Por um lado, a vitória bolchevique foi prova irrefutável da possibilidade de superação revolucionária do capitalismo, por outro, contrariando a ideia hegemônica na social democracia da época, demonstrava que esse processo poderia começar em um país atrasado, que ainda não havia realizado sua revolução democrático-burguesa. A terra de Cervantes não foi exceção, ali os acontecimentos russos também causaram grande impacto, e as condições de polarização social potencializaram esse processo. Do ponto de vista das classes dominantes, os acontecimentos russos foram alarmantes, coube a Sofía Casanova, escritora, periodista e correspondente estrangeira do jornal ABC, o primeiro relato dos acontecimentos, às vésperas da revolução de outubro: O Palácio de Inverno foi entregue, e Lenin, com a guarnição e os proletários de São Petersburgo, manda e governa. Até agora, não há pogrom nem a batalha se generaliza [...] Mas os idiotas que me asseguraram que Bolcheviques eram covardes (o partido militar proletário) e que quatro tiros os fariam submeter, se iludiram [...] Os Bolcheviques chegaram às ruas com certeza de sua força e decididos a vencer ou morrer. Para eles, a paz é uma causa real, assim como a reforma agrária, e veremos que se não derrotarem os contingentes, muito grandes, que a eles vão se opor, não vão se render como vilões. (CASANOVA, 2010, n.p., tradução nossa) Esses relatos chegaram à Espanha com semanas de atraso. O Rei Alfonso III, assustado com o impacto dessas notícias e em plena repressão ao movimento operário, suspendeu as liberdades constitucionais, e expulsou da Espanha todo estrangeiro de origem russa. Do ponto de vista das classes subalternas o impacto foi ainda maior, a derrota da greve geral havia sido apenas momentânea. Pagès afirma que o ano de 1917 era o “ponto culminante de uma crise estrutural do Estado monárquico” (PAGÈS, 2017, p. 37, tradução nossa), abrindo um prolongado período de conflitos sociais agudos, que só se fechou com o pronunciamento que instaurou a ditadura militar de Primo de Rivera, em 1923. A classe operária espanhola, que recentemente havia despertado para a vida política, não poderia passar despercebida para os acontecimentos russos, que foi para eles uma fonte de entusiasmo, como nos narra Días del Moral: 33 Nas últimas semanas de 1917 chegou a Espanha a notícia do triunfo Bolchevique. As massas operárias desconheciam os detalhes do evento e também não sabiam com precisão a ideologia dos vencedores, porém a certeza de que em uma grande nação se havia derrubado o capitalismo e governavam os assalariados produziu em todos os setores operários um entusiasmo indescritível. (DÌAS DEL MORAL, 1967, p. 174, tradução nossa) O movimento operário espanhol estava fundamentalmente organizado entre a dicotomia de um socialismo reformista e um anarquismo combativo, muitas vezes ultraesquerdista. A vitória de Lênin, Trotsky e seus camaradas, atingiu ambas as tendências do movimento, pois resgatava o vigor revolucionário do marxismo aos olhos da vanguarda operária espanhola. A reação entre os partidários da CNT foi de grande entusiasmo. Aos seus olhos, os acontecimentos russos demonstravam a validade da sua perspectiva revolucionária para a Espanha. A primeira publicação no jornal Solidaridad Obrera nos fornece uma imagem dessa reação. ‘A Revolução Russa continua admiravelmente sua obra’, os bolcheviques representaram ‘a vontade do povo’ e sua decisão de distribuir a terra para aqueles que trabalharam ‘é todo um poema de liberdade, é a aurora da emancipação econômica, pelo qual os camponeses russos tanto suspiravam quando trabalharam para os Grandes Duques, e é uma decisão que, por si só, torna simpática a grandiosa Revolução Russa’(Solidaridad Obrera, 11/11/1917). (PAGÈS. 2017. p. 37 e 38, tradução nossa) Em flagrante contrate, as primeiras impressões do PSOE são de preocupação. Para compreendermos melhor essa posição é necessária uma breve contextualização histórica. A I Guerra Mundial colocou a prova o princípio de internacionalismo proletário. Os partidos socialdemocratas europeus, com raríssimas exceções, nos momentos decisivos, sucumbiram ao nacionalismo, decretando a morte da II Internacional21. Apesar da Espanha não ter se envolvido diretamente no conflito, a discussão não passou em branco pelas fileiras do PSOE. Internamente duas posições se destacaram: uma pacifista – dentre a qual se encontrava a juventude socialista de Madrid – que foi a única organização espanhola a participar do congresso de Zimmerwald, e seria a principal impulsionadora do Partido Comunista Español, como veremos adiante; e outra, que defendia 21 Com os principais partidos socialdemocratas apoiando sua própria burguesia no conflito bélico – que teve como marco simbólico o voto dos deputados socialistas para os créditos de guerra, qualquer possibilidade de organização internacional se tornou impossível. A II Internacional só retomaria seus trabalhos intensamente na década de 1920, como uma alternativa moderada à recém-criada III Internacional. Mesmo assim, nunca mais voltou a ter a força e o prestígio que possuía antes da grande guerra. (SAGRA, 2005) 34 o apoio aos Aliados – dentre as diversas personalidades que defenderam esse ponto de vista, se encontrava Andreu Nin, nessa época um jovem socialista. Essa segunda opinião, ainda que se desmembrasse em diferentes ramificações, defendia que a derrota dos aliados significaria um retrocesso civilizatório na Europa, impulsionado pelo imperialismo alemão. Dessa forma, podemos compreender melhor a primeira publicação sobre os acontecimentos russos no jornal El Socialista, visto que refletia a opinião dos grupos que tomaram partido na divisão bélica mundial em favor dos aliados. Em 10 de novembro, El Socialista publicou a primeira análise sobre a revolução russa, e em um artigo intitulado significativamente ‘Seria muito triste ...’ afirmou que ‘as notícias que recebemos da Rússia nos causam rancor. Acreditamos que sinceramente, e assim sempre dissemos, que a missão, neste momento, deste grande país era colocar toda a sua força na tarefa de esmagar o imperialismo germânico’ (PAGÈS. 2017. p. 38, tradução nossa) Nos anos seguintes, o impacto que a Revolução Russa causou na classe operária organizada da Espanha se transformaria em importantes debates, tanto no PSOE quanto na CNT, assentando as bases para a construção de um partido comunista espanhol. 1.3.2 Formação do Partido Comunista na Espanha Vimos, anteriormente, que as notícias oriundas da Rússia não foram imediatamente interessantes ao setor dirigente do PSOE. No entanto, isso não significa que não impactaram suas bases. Essa influência atingiu com tamanha magnitude o partido socialista que se tornou o ponto central de discussão interna nos anos seguintes. [...] O entusiasmo genuíno de um setor de militância socialista coexistiu, não obstante, com a relutância dos setores mais reformistas da direção. Ao mesmo tempo em que foi aprovada uma resolução de saudação à Revolução Russa, foi dado apoio a petição de alguns mencheviques russos para que a Segunda Internacional investigasse sua expulsão da Rússia. Essa dualidade política não pode ser mantida por muito tempo. No final desse mesmo ano, nasceu o jornal La Internacional – encabeçado por Núñez de Arenas, dirigente socialista - como porta-voz do ‘Comitê para a Terceira Internacional’ e, na Juventude Socialista de Madri, a admiração pelas ideias bolcheviques não parava de crescer. A fundação da IC, em março do ano seguinte, obrigou a liderança do PSOE a se posicionar em um dos dois campos. (AREAL, 2012, p.7, tradução nossa) 35 Após a fundação da Internacional Comunista 22 , o PSOE realizou um congresso extraordinário em dezembro de 1919. Apesar de prevalecer à posição da tendência que defendia manter filiado à II Internacional, a abrangência e influência dos bolchevique podem ser verificada tanto pelos números de votos – 14.010 votos a favor de se manter na II Internacional, contra 12.947 a favor da adesão à IC (AREAL, 2012) – quanto pelo caráter condicional e contraditório da resolução, que previa a permanência na II internacional “até que está celebre seu próximo Congresso, com o objetivo de lhe dar tempo para unificar-se com a Terceira” (PÈLAI, 2017, p.40, tradução nossa). Em janeiro de 1920, chegava à Espanha um delegado da IC, Michel Borodin, encarregado de propor no país a constituição de um partido comunista. Essa iniciativa foi incorporada com entusiasmo pela juventude, que passou a trabalhar incessantemente por esse objetivo. Poucos meses depois, em 15 de abril de 1920, o PSOE sofreu sua primeira cisão. A Juventude Socialista de Madrid, após aprovação em seu congresso, deixou o partido para fundar o Partido Comunista Español, reconhecido imediatamente pela IC, e dirigidos por jovens como Juan Andrade, Merino Garcia, Vicente Arroyo, Luis Portela, entre outros. No entanto, militantes como Daniel Anguiano, Pérez Solís, Virginia González, Mora e García Quejido, também partidários da adesão a IC, porém de uma geração mais velha, julgaram precipitada a ruptura dos jovens socialistas, pois acreditavam na possibilidade de guiar o PSOE, ou ao menos sua maioria, para as fileiras comunistas. Com efeito, quando o PSOE reuniu o segundo congresso extraordinário para tratar da questão internacional, em junho de 1920, eles estavam em maioria, e fizeram aprovar o ingresso do partido na IC23, porém contraditoriamente com a condição de que uma delegação24 fosse enviada à Moscou para verificar o que de fato acontecia no país dirigido pelo principal partido da organização, à qual o congresso acabava de aprovar a adesão (PAGÈS, 2017). 22 Internacional Comunista, ou III Internacional, foi fundada em Março de 1919 pelo Partido Comunista Russo, liderado por Lenin, devido à necessidade de organizar mundialmente os partidos operários, visto que, para seus fundadores a revolução socialista tinha um caráter mundial. Foi dissolvida por Stálin em 1943, como forma de tranquilizar a burguesia internacional e demonstrar que a URSS não se empenhava em realizar a revolução em outros países, teoricamente sua dissolução se baseava na teoria do socialismo em um só país, defendida por Stalin. (SAGRA, 2005) 23 Nessa votação, os partidários da adesão a IC obtiveram 8.269 votos, contra 5.016, e 1.615 abstenções (PÁGES, 2017, p.41). 24 Essa comissão foi composta por Fernando de los Ríos, hostil a adesão a IC, e Daniel Anguiano. 36 No mês seguinte, se reuniria o II congresso da IC, que aprovou um documento que continha 21 condições de adesão à Internacional Comunista25, que se transformou em ponto chave do debate no interior do PSOE. Assim, após dois congressos com resoluções indefinidas e contraditórias, o terceiro congresso extraordinário foi realizado em abril de 1921. Dessa vez, os partidários da IC se encontraram em minoria, e por 8.800 votos, contra 6.025, o congresso rechaçou às 21 condições (BROUÉ; TÉMINE, s/d, p.25). Na última seção desse congresso, os partidários da IC apresentaram uma declaração rompendo com o PSOE, e fundando o Partido Comunista Obrero Español. Se a ruptura dos jovens fundadores do Partido Comunista Español foi motivada principalmente pelo asco ao reformismo, predominante na social democracia, e pelo ímpeto revolucionário de uma juventude que buscava alcançar o brado revolucionário que emanava da Revolução Russa, os veteranos, fundadores do Partido Comunista Obrero Español, tampouco foram além dos jovens no que diz respeito à questão teórica. Sua cisão foi motivada pela negativa do PSOE em aceitar as 21 condições de adesão a Internacional Comunista, sem com isso, aprofundar as discussões sobre a conjuntura internacional do pós-guerra, e as consequentes estratégias e táticas necessárias ao movimento operário. No fundo, para os rupturistas espanhóis "a interpretação revolucionária do marxismo que a Internacional Comunista representava, era como a aparição diante dos seus olhos de um novo mundo", "mundo novo" assimilado muitas vezes de maneira intuitiva, reflexo de algumas paixões e de alguns anseios de emancipação que a social-democracia havia frustrado. (PÉLAI, 1997, p.13, tradução nossa) As profundas discussões teóricas, que antecederam as rupturas nos partidos social democratas nos principais países europeus, quase inexistiram na Espanha. A escassa tradição teórica do marxismo espanhol se limitava a “a divulgação dos trabalhos de Lafergue realizada pelos velhos socialistas” (ANDRADE apud PAGÈS, 1977, p. 11-12, tradução nossa), essa debilidade dificultava que as convergências e divergências fossem claramente pontuadas, de forma a estabelecer as bases para a unificação. Dessa forma, o comunismo espanhol nasceu dividido, sem que nenhuma das partes possuísse um acúmulo teórico capaz de definir claramente sua estratégia. Por meses, 25 Aprovadas em 1920, pelo II Congresso da Internacional Comunista, as 21 condições de adesão a IC tinham como objetivo popularizar entre as organizações operárias do mundo os pontos fundamentais do bolchevismo, além de filtrar as organizações que poderiam fazer parte dessa instituição, temendo a diluição do programa revolucionário nos pressupostos dos programas revisionistas que haviam levado a II Internacional a dissolução. 37 coexistiram na Espanha dois partidos comunistas, que em comum só possuíam sua adesão à IC. No mês de julho de 1921, ambas as organizações enviaram, separadamente, suas delegações ao III Congresso da Internacional Comunista. O Congresso julgou a situação inaceitável e interferiu em favor da unificação dos comunistas espanhóis, enviando à Espanha Antonio Graziadei, delegado responsável para mediar à fusão dos dois partidos, o que só aconteceria em 14 de novembro de 1921. Da fusão do Partido Comunista Español e do Partido Comunista Obrero Español, nasceu o Partido Comunista de España, com aproximadamente 6.500 membros26. No entanto, a unificação não eliminou as tensões. Ainda em dezembro de 1921, se desenvolveu uma violenta polêmica no Comitê Executivo do novo partido (PAGÈS, 1977). Não é possível entender a intensidade da polêmica apenas pelo seu motivo específico, a participação do partido nas eleições municipais do ano seguinte. Para entendê-la, faz-se necessário relembrar o conflito anterior, posto que, por trás dela se encontrava a convicção dos membros do Comitê Executivo oriundos do Partido Comunista Español27 de que os demais membros do comitê, que eram oriundos do Partido Comunista Obrero Español, estavam demasiadamente enraizados nas concepções parlamentaristas, reformistas e passivas do PSOE. Isso fica claro no manifesto apresentado por eles aos militantes do partido, após a derrota da sua posição. Portanto, se considerarmos a essência da polêmica, percebemos que ela nada mais foi do que a continuação das acusações anteriores (PAGÈS, 1977). Como consequências dos excessos os dirigentes oriundos do Partido Comunista Español foram expulsos do Comitê Executivo, e em março de 1922 o I Congresso do Partido Comunista de España os afastou de todos os seus cargos de responsabilidade por um ano, submetendo o caso ao julgamento da IC. Novamente a Internacional teve de intervir no partido espanhol, dessa vez o encarregado sendo Jules Humbert-Droz. Vimos que a fundação do partido comunista na Espanha foi marcada, desde o início, por constantes conflitos, oriundos das diferenças de duas gerações de socialistas na forma de entender, interpretar e atuar no mundo, ainda assim esses dois grupos tinham uma base de formação comum: a origem no PSOE e a doutrina marxista, ainda que relativamente débil se comparada aos seus vizinhos europeus. 26 “Graziadei os calculou em uns 6.500 militantes, repartidos entre os 2.000 oriundos do PCE e os 4.500 do PCOE” (PELAI, 2017, p.41, tradução nossa). 27 Eram eles: Eduardo Urgate, Emeterio Chicharro, Ángel Pumarega, e Juan Andrade (PELAI, 1977, p.14) 38 Nos anos seguintes, um terceiro grupo se somaria ao partido, oriundos de outra tradição: o sindicalismo revolucionário da CNT. Como todas as organizações do mesmo tipo, a CNT sofre profundamente o atrativo da Revolução Russa, testemunha do prestígio que a vitória bolchevique assume aos olhos dos revolucionários de todas as obediências. É que, na Espanha como alhures, os grupos anarquistas, anarco-sindicalistas, sindicalistas revolucionários, haviam crescido em oposição à prática de um marxismo reformista que tentava se adaptar ao quadro democrático e parlamentar particularmente medíocre aqui. A vitória do Outubro russo devolve ao marxismo o seu brilho revolucionário. (BROUE, 1992, p.26) Já vimos que as notícias da vitória bolchevique tiveram um impacto inicial mais favorável entre os membros da CNT, do que entre a direção do PSOE. Observador contemporâneo desse momento, o anarquista M. Buenacasa, afirmava que nessa época, o bolchevique russo era algo semelhante a um semideus, “portador da liberdade e da felicidade comum” (BUENACASA, 1928, p. 72, tradução nossa) no imaginário de muitos dos partidários cenetistas, imagem que nos permite verificar a profundidade desse impacto. A CNT esteve extremamente envolvida nos conflitos sociais que se desenvolviam na Espanha, principalmente na Catalunha, onde tinha grande hegemonia do movimento operário, assim “o tema da revolução russa aparecia e desaparecia da vida da confederação segundo a intensidade e o momento do conflito” (PAGÈS, 2017, p. 42, tradução nossa). Em 1919, explodiu na Catalunha a greve da empresa Canadiense, possivelmente o processo de luta de classes mais importante do período, que compreende desde a primeira greve geral em 1916, até a implantação da ditadura em 1923, isso por que ela foi a faísca que reascendeu o estopim da luta operária na Espanha, gerando uma nova greve geral, que “se assemelha a uma poderosa ascensão revolucionária” (BROUE, 1992, p.26). A greve na Canadiense havia obtido sucesso, expresso principalmente na conquista da demanda da jornada de 8 horas. O papel dirigente cumprido pela CNT nesse processo, lhe rendeu um amplo vigor, e sob o impacto desses acontecimentos e da criação da IC, foi celebrado em dezembro, no Teatro de la Comedia de Madrid, o congresso que aprovou a adesão provisória da CNT a IC28. 28 É nesse mesmo congresso que Andreu Nin, até então membro do PSOE, adere formalmente à CNT. Ainda que a relação entre Nin e a CNT possivelmente antecedesse esse congresso, e que nesse ponto existiam muitas interpretações entre os historiadores, fato é que, formalmente, a primeira declaração conhecida de Nin, enquanto cenetista, é nesse congresso. Cabe ressaltar, que, ainda que, as motivações que o levaram a CNT também não sejam consensuais, ao menos parcialmente se referem à Revolução Russa. Isso é claro no seu discurso de adesão, onde justifica o abandono do PSOE por sua recusa em aderir a III Internacional, referindo-se a decisão do congresso extraordinário de dezembro de 1919, que ocorria quase paralelamente ao congresso da CNT. 39 No entanto, a adesão da CNT à IC não foi unanime. Pagès afirma que somente uma minoria de sindicalistas defendeu fervorosamente a adesão (PAGÈS, 2017). Não obstante, ela foi aprovada, mas, em caráter provisional. Além disso, o congresso aprovou uma declaração de princípio, se afirmando defensor dos pressupostos levantados por Bakunin, e afirmando como horizonte estratégico o comunismo libertário. Pela primeira vez, desde sua fundação, a CNT se afirmava oficialmente anarquista. O congresso, enfim, elegeu uma delegação 29 encarregada de representá-lo e entregar sua adesão ao II Congresso da IC, mas somente Ángel Pestaña chegou à Rússia. Pestaña participou do II Congresso da Internacional, ele entrevistou os dirigentes mais importantes da revolução e, discordando das diretrizes que estava tomando o processo revolucionário russo, se deu conta da distância que separava a CNT do ideário dos bolcheviques. (PAGÈS, 2017, p. 42, tradução nossa) Na Espanha, se consolidava o grupo sindicalista-comunista, liderados por Andreu Nin e Joaquín Maurín, os quais passaram a publicar o jornal Lucha Social, e a ocupar cargos dirigentes na CNT. As posições teóricas desse grupo, ainda eram híbridas, cheias de pressupostos sindicalistas, e seria necessário muito tempo até que assimilassem os conceitos teóricos do marxismo. Ainda assim, em torno desse grupo se aglutinaram aqueles que mais fervorosamente defendiam a revolução russa. Paralelamente a esses acontecimentos, as classes possuidoras organizavam a repressão em Barcelona, por um lado nos Sindicatos Livres, por outro, por via institucional. Em setembro de 1919, o Conde de Salvatierra havia assumido o cargo de governador civil de Barcelona, e ao final desse ano se iniciava a repressão governamental. Resumidamente, podemos dizer que os pistoleiros dos Sindicatos Livres passaram a assediar sistematicamente as lideranças operárias mais conhecidas. Consequentemente, diversos membros da CNT adotaram métodos terroristas para reagir à situação, como resultado, o governo – na impossibilidade de identificar os autores dos atentados – passou a responsabilizar e encarcerar os dirigentes cenetistas. (PAGÈS, 2011) De maio a setembro de 1920, houve uma trégua na repressão governamental, com a mudança no governo central e a nomeação de Carles Bas para governador civil de Barcelona. Ainda que, o conflito entre os Sindicatos Livres e a CNT continuasse, durante esse período, diversos sindicalistas foram libertados. 29 A delegação da CNT era composta por: Ángel Pestaña, Eusebio Carbó, e Salvador Quemades. (PELAI, 2017, p.42) 40 Essa trégua, porém, não foi duradoura. A patronal não estava satisfeita, como nos ilustra a entrevista que, anos mais tarde, Andreu Nin concederia a Domène de Bellmunt. Nela ele relata o caso em que o governador Bas confessou a ele e a outros delegados da CNT, que recebeu uma comissão patronal, e lhes foi obrigado a responder: “Senhores, vocês se equivocaram, eu vim a Barcelona para agir como governador, não para agir como assassino” (NIN apud PAGÈS, 2011, p. 97, tradução nossa). No início de outubro, Carles Bas foi substituído pelo general Severiano Martínez, e a repressão voltou com uma intensidade ainda maior, a CNT foi colocada na ilegalidade, e dezenas de dirigentes sindicais foram presos. No final de 1920, Ángel Pestaña foi preso ao regressar do II Congresso da IC. O clima de repressão, as prisões e assassinatos constantes, fizeram com que a direção da CNT fosse constantemente modificada, e no início de 1921, Andreu Nin passou a ocupar o cargo de Secretário Geral da CNT. Nessas condições, em abril de 1921, se reuniu em Barcelona uma plenária da CNT destinada a discutir, entre outras coisas, a participação no congresso de fundação da Internacional Sindical Roja (ISR), impulsionada pela IC, e que aconteceria junto a seu III Congresso. A plenária deliberou pela participação e indicou uma delegação 30 para participar do congresso fundacional, ainda que, nesse momento, setores anarquistas trabalhassem para separar a CNT da IC31. A delegação espanhola chegou à Moscou em junho, depois de uma perigosa viagem clandestina. Essa delegação foi recebida com grande simpatia, pois representavam uma grande organização operária, diferentemente de muitas das outras delegações, que não possuíam influência significativa em seus países (SOLANO, 2006). Os delegados espanhóis participaram como observadores no III Congresso da IC, que como vimos anteriormente contava com duas delegações espanholas oficiais, uma do Partido Comunista Español e outra do Partido Comunista Obrero Español, situação que deixou Joaquín Maurín incomodado, e anos depois escreveria: 30 A delegação era composta de Andreu Nin, Joaquín Maurín, Hilario Arlandis e Jesús Ibáñez. (PAGÈS, 2011, p. 100) 31 A historiografia anarquista não deixou de questionar a legitimidade desse congresso, assim como acusar membros da CNT, e até em alguns momentos, a direção da CNT por serem “bolcheviques”, agentes de Moscou, principalmente por alguns ataques aos anarquistas publicados em jornais ligados a CNT. No entanto, as acusações não se sustentam, no que diz respeito à plenária ela seguia todas as formalidades exigidas pelos estatutos, e mais importante, estava de acordo com as decisões do último congresso; em relação a acusação de “bolcheviques”, é necessário destacar que muito poucos desses militantes acusados chegaram de fato a atuar no partido comunista, e mesmo os que o fizeram, como Andreu Nin e Joaquin Maurín, só assimilaram as ideias bolcheviques muito tempo depois, sendo portanto, mais plausível a hipótese de Pagès de que essas ações foram motivadas a partir de um ponto de vista teórico sindicalista, em resposta as consequências danosas que a tática da ação direta e do terrorismo, aos seus olhos, haviam causado para a causa dos trabalhadores (PAGÈS, 2011, p. 98- 99). 41 Os delegados da CNT, ao chegar em Moscou, tivemos que constatar que a CNT havia passado a ser um convidado de segunda fila. A primeira fila foi ocupada por um hipotético Partido Comunista, cujo líder era Merino Gracia [...] Nossa delegação fez todo o possível para evitar uma ruptura o madrugador Partido Comunista Español, mais conhecido em Moscou que na Espanha. Da mesma forma, tentou fazer os dirigentes russos compreenderem que o futuro do comunismo na Espanha ia intimamente ligado com a CNT. Devo reconhecer que Lenin e Trotsky, com quem trocamos impressões, compreendiam perfeitamente que em efeito era assim. Porem nem Lenin, nem Trotsky, se ocupavam da Espanha, que foi abandonada como uma província distante destinada a que fizessem juízo sobre ela revolucionários internacionalistas mais ou menos inéditos e inteligentes.” (MAURÍN, 2014, n.p., tradução nossa) Participaram também, de maneira muito ativa, do congresso fundacional da ISR. Dentre as posições da delegação espanhola nesse congresso, duas merecem destaque, sendo a primeira na discussão da relação que a ISR deveria manter frente à IC. Com exceção de Arlandis, todos os delegados espanhóis se colocaram a favor da colaboração estreita entre as duas organizações. A segunda se deu em torno da repressão que os anarquistas sofriam na Rússia, destacadamente o caso de Cronstadt. Ainda que a delegação espanhola tenha solicitado ao próprio Lenin a libertação dos anarquistas presos (SOLANO, 2006), manteve uma atitude conciliadora nessa discussão, e sua intervenção acabou por evitar que a proposta de que os sindicalistas se retirassem do congresso fosse levada adiante (PAGÈS, 2011). Os delegados espanhóis não estavam de acordo com a repressão aos anarquistas, mas entendiam sua necessidade face à situação que estava passando à Rússia revolucionária, como afirma o texto de Andreu Nin, publicado poucos meses depois, na revista Lucha Social. O Partido Comunista Russo é a única garantia da revolução, do mesmo modo que os jacobinos se viram obrigados a guilhotinar os hebertistas, procedendo o fato de que representavam uma tendência a esquerda, do mesmo modo que nós mesmos (na CNT) temos eliminado os que constituem um obstáculo para a realização dos objetivos que perseguimos, nossos camaradas russos se veem inevitavelmente obrigados a reprimir de uma maneira implacável qualquer tentativa que possa quebrar seu poder. Não é somente um direito, mas seu dever. A salvação da revolução é a razão suprema. (NIN apud PAGÈS, 2011, p. 105, tradução nossa) Na Espanha, a CNT passava por um combate polêmico, seu setor anarquista trabalhava incessantemente para romper relações com a IC, e consequentemente, a delegação de cenetistas para o congresso da ISR se transformou em um alvo. Em agosto de 1921, realizaram uma plenária regional em Madrid, onde reafirmaram os princípios libertários aprovados no Congresso de 1919, mas hesitaram em condenar a delegação, sem os ouvir (PAGÈS, 2011). 42 Os motivos das hostilidades anarquistas eram amplos, primeiro porque existia de fato uma diferença ideológica entre anarquistas e socialistas, como demonstramos anteriormente. Os anarquistas se negavam a reconhecer a necessidade da ditadura do proletariado, consequentemente se opunham ao que acontecia na Rússia revolucionária. Em segundo lugar havia a repressão do governo bolchevique contra os anarquistas que ameaçavam a revolução. E em terceiro lugar o sectarismo com que o jovem Partido Comunista atacava os sindicalistas da CNT. Por outro lado, a posição dos anarquistas não era unanime, como o demonstra o fato de que, em outubro, os cenetistas de Lleida convocaram uma nova plenária onde predominou a opinião de aproximação entre CNT e os bolcheviques. O conflito se resolveu na Conferência de Zaragoza, realizada em junho de 1922, onde prevaleceu o afastamento da CNT da IC, ainda que os partidários da aproximação denunciassem o fato formal de que a conferência não poderia passar por cima de uma decisão de instância superior (o Congresso de 1919). Concretamente a CNT se afastaria por definitivo da IC. (PAGÈS, 2011) Não obstante, os partidários da participação na IC passaram a se organizar internamente dentro da CNT, e conformaram os Comitês Sindicalistas Revolucionários, que segundo Pagès eram inspirados em grande medida nos pressupostos do francês Georges Sorel, e compunham a ISR, tendo como seu delegado nesse organismo Andreu Nin. Ainda demoraria para que passassem a assimilar o marxismo. Em 1923, o grupo catalão se recusara a entrar no PCE, de quem vinha se aproximando desde o início daquele ano, e somente em 1924, fundaram a Federacíon Comunista Catalano-Balear (FCC-B), quando se uniriam definitivamente ao PCE, já durante a ditadura de Primo de Rivera. (PAGÈS, 2011) O endurecimento dos confrontos sociais, que já assinalamos, avançou qualitativamente, e em 1923 o general Primo de Rivera instalou sua ditadura. O jovem PCE, que como vimos, teve sua curta trajetória marcada por constantes conflitos internos e há pouco havia conseguido uma frágil unidade, sofreu dura repressão. Dos aproximadamente 1.200 membros do partido em 1921, passou a contar com aproximadamente 500 em 1924, tendo seu Comitê Central e Executivo sido obrigado a partir para o exílio, apesar de verem os conflitos internos recomeçarem. (PAGÈS, 2011) Em 1924, a Federacíon Comunista Catalano-Balear adentrou o PCE. Barbara Areal, nota que se a fusão foi “um feito no terreno organizativo, não era assim no plano político” (AREAL, 2012, p.10, tradução nossa). De fato, desde sua entrada os membros do FCC-B 43 sustentavam importantes divergências com sua direção, a quem acusavam de responsável pela inoperância do partido, devido à sua passividade (DURGAN, 1996). Joaquín Maurín, líder incontestável desse grupo, relembra assim: No outono de 1924 surgiu uma crise no partido comunista. A tendência representada pelo grupo de La Batalla, que havia ingressado oficialmente a pouco tempo no partido, estava em desacordo com a política seguida pela direção do PC, que considerávamos pouco ativa. Nós entendíamos que era necessário combater a ditadura com energia, apelando mesmo a todos os procedimentos ilegais [...] A direção do PCE opinava que o partido era impotente e que não havia outra solução que adaptar-se à realidade, esperando que as coisas mudassem [...] Na plenária do partido celebrada em meados de novembro de 1924, o Comitê Executivo do PCE apresentou sua demissão, passando dessa forma a responsabilidade pela direção à federação catalã, quer dizer, a nós [...] Isso não durou mais que breves dias. Fizemos aparecer um jornal ilegal, Vanguardia. A repressão se acentuou. E em janeiro de 1925, nosso núcleo foi dizimado. Na prisão estávamos quarenta ou cinquenta camaradas presos. (MAURÍN, 2014, n.p., tradução nossa) Nesse momento, as coisas mudaram na Rússia, internamente as tendências revolucionárias perdiam força em favor das tendências burocráticas. Em junho e julho de 1924, o V Congresso da Internacional Comunista aprovava o decreto de bolchevização dos partidos nacionais. Não era coincidência que a IC aumentasse a centralização, ao passo que sérios conflitos se desenrolavam no partido mais importante da IC, tratava-se de começar a adaptar a IC aos interesses da burocracia soviética. Frente à nova situação da IC, o Comitê Executivo da Internacional nomeou uma comissão32 para deliberar sobre a crise do PCE, ficando decidido que José Bullejos assumiria a direção do partido. A indicação de Bullejos satisfez a burocracia que ascendia ao poder na Rússia, pois acreditavam acima de tudo na sua fidelidade, mas, o próprio negou essa relação e, mais tarde, propôs o nome de Andreu Nin para compor o Comitê Executivo do PCE, mas lhe fora negado, com a alegação que Nin teria simpatias trotskistas (BULLEJOS, 1972), o que já demonstrava relação entre as disputas internas russas e as seções nacionais, em virtude da política de bolchevização. A partir desse momento, no PCE prevaleceu um regime autoritário, onde Bullejos exercia todo poder com disciplina de ferro num regime interno ditatorial, e não tardou a se utilizar das expulsões em massa. Tudo se justificava pela situação ao qual estava submetido, 32 Integram essa comissão: Jules Humbert-Droz (secretario dos países latinos), Losovski e Andreu Nin (ISR), Semard (PC francês), A. Gramsci e Verti (PC italiano), Almanza (PC mexicano), Smeral (PC checo), Maslow (PC alemão), e Piatniski (PC argentino), além da delegação espanhola composta por Bullejos, Ibáñez e Gorkín. (PAGÈS, 2011, p. 143) 44 porém, sabemos hoje, que essa não foi a exceção, mas a regra nos partidos comunistas, após a política de bolchevização. Juan Andrade anos depois diria: Os estatutos da Internacional Comunista [...] estabelecem que em casos de períodos de ilegalidade as direções dos partidos podem proceder as nomeações de cargo de cima para baixo, compreende-se nesses casos a impossibilidade de reunir assembleias. Porém, o que revolucionariamente é justo, é usado pela burocracia, para fazer uma arma em benefício de seus interesses e intenções. (ANDRADE apud PAGÈS, 1977, p.20, tradução nossa) Seja como for, Bullejos dirigiu o partido até 1932, foi responsável por todo o período em que a Espanha esteve dominada pela ditadura de Primo de Rivera, assim como pelo primeiro período posterior, quando implementou na Espanha a política ultraesquerdista propagada pela IC, e quando a IC necessitou substituir radicalmente sua política precedente, Bullejos, como outros dirigentes no demais países, foi responsabilizado, sendo, neste caso, substituído por José Diaz. 1.4. As tarefas da Revolução Espanhola Todas as revoluções burguesas precedentes, para triunfarem, necessitaram responder alguns problemas fundamentais para romper às correntes que as prendiam à antiga sociedade. Na Espanha não foi diferente, a recém-nascida república burguesa tinha a sua frente cinco problemas fundamentais: 1.4.1 A Questão Agrária No início do século XX, a Espanha era um país atrasado e essencialmente agrário, 70% da população espanhola vivia no campo, sua produção correspondia à metade da renda nacional, e era responsável pela maior parte das exportações espanholas, assim como a maior parte dos impostos recolhidos. Entretanto, a tecnologia e os métodos agrícolas eram primitivos, o arado romano ainda era amplamente utilizado, motivo pelo qual, permaneciam incultos aproximadamente 30% da superfície cultivável, e a Espanha possuía a pior renda por hectare da Europa. A isso, soma-se a concentração da propriedade da terra, dois terços da terra espanhola era propriedade dos terratenientes (latifundiários) e médios proprietários, 50.000 fidalgos possuíam metade do solo cultivável, enquanto milhões de pequenos proprietários possuíam pequenas propriedades, que em média não chegam a 5 hectares por proprietário, do pior solo 45 espanhol (árido e arenoso). A única exceção eram os pomares da costa mediterrânea, onde a terra era boa, mas os lotes foram divididos em pequenas propriedades “do tamanho de um jardim” (MORROW, 2016, p.31, tradução nossa). Esses milhões de pequenos proprietários estavam divididos entre os que possuíam seus pequenos lotes de terra. Desses, somente os do norte do país conseguiam arrecadar o suficiente para uma vida mais ou menos digna, enquanto os do sul precisavam vender sua força de trabalho esporadicamente aos terratenientes para completar a renda familiar, ou produzir nas terras dos latifundiários. Estes arrendatários, que alugam sua parcela de terra, tendo que pagar aos terratenientes com parte da sua produção, estavam expostos a uma “tripla exploração do terratenientes, do agiota que financia a colheita, e do comerciante que a compra” (MORROW, 2016, p. 32, tradução nossa), e por fim, completavam o quadro social rural da Espanha, os milhões de trabalhadores rurais (jornaleros e braceros), particularmente numerosos no sul, que vendiam sua força de trabalho para as grandes propriedades, por salários miseráveis e só encontravam trabalho de noventa a cento e cinquenta dias por ano. A contradição social do campo espanhol pode ser verificada não apenas numericamente, mas também pelo intenso conflito social que percorreu séculos. A história da Espanha é cheia de levantes camponeses, semelhantes a pequenas guerrilhas, porém que sempre permaneceram isoladas (TROTSKY, 2014). Esses conflitos, com suas pequenas vitórias e grandes derrotas, determinaram ao longo dos séculos as diferenç