UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara- SP FABRÍCIO ZANTUT DIAGONEL VIOLÊNCIA EM TRÊS ATOS ÉTICA E ESTÉTICA EM TRÊS CONTOS LATINO-AMERICANOS ARARAQUARA-SP 2022 FABRICIO ZANTUT DIAGONEL VIOLÊNCIA EM TRÊS ATOS ÉTICA E ESTÉTICA EM TRÊS CONTOS LATINO-AMERICANOS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Relações intersemióticas Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silveira Campos ARARAQUARA - SP 2022 FABRICIO ZANTUT DIAGONEL VIOLÊNCIA EM TRÊS ATOS ÉTICA E ESTÉTICA EM TRÊS CONTOS LATINO-AMERICANOS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Relações intersemióticas Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silveira Campos Bolsa: Capes Data da defesa: 29/04/2022 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: __________________________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silveira Campos UNESP - Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan UNESP - Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara __________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Joyce Rodrigues Ferraz Infante UFSCar - Campus São Carlos Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Brasil. Código de Financiamento: 001. Primeiramente queria agradecer aos meus pais que não mediram esforços para me propiciar oportunidades de estudo e que também fizeram de tudo para que eu pudesse me dedicar exclusivamente aos meus sonhos e projetos. Sei que a caminhada só foi muito mais fácil e acessível graças aos esforços sem tamanho que ambos depreenderam. De muita importância também é o apoio de meus amigos, alguns aos quais considero minha segunda família, que sempre me propiciaram um espaço de acolhimento, escuta e carinho e que me possibilitaram aprender e ver um mundo que para mim parecia fora de alcance ou pouco importante. Se hoje consigo olhar para trás e ver muito aprendizado e um caminho de boas memórias, momentos e, retomando o percurso à frente, vislumbrar possibilidades de afeto no mundo, muito se deve a essas amizades. Tamanha importância também tem o apoio do meu orientador, Alexandre, nesses dois anos complicados que vivemos impostos pela pandemia e pelas políticas públicas que vem sucateando nossas esperanças. Agradeço muito pela paciência e compreensão em um momento tão complexo no qual nossas fragilidades são expostas e reforçadas pelo distanciamento imposto e necessário. Por fim, como uma espécie de apanhado de todos esses agradecimentos, gostaria de agradecer a todos que me auxiliaram a desenvolver a habilidade de escuta, de ouvir o próximo e entender minimamente o que ele sente, da sensibilização tão preciosa nos dias de hoje. Talvez seja isso que acredito quando penso no poder da linguagem, no poder da literatura: a possibilidade de escutarmos aqueles que, por mais próximos que possam estar, estejam muito distantes da realidade que deveríamos compartilhar. “Cantando amor, os poetas na noite Repensam a tarefa de pensar o mundo. E podeis crer que há muito mais vigor No lirismo aparente No amante Fazedor da palavra Do que na mão que esmaga.” (Hilda Hilst) “Mas eu acredito na escrita. Em nada mais, somente na escrita. O homem vive como um verme, mas escreve como se fosse para Deus. Houve um tempo em que se sabia desse segredo, hoje o esqueceram: o mundo é feito de cacos partidos, um caos escuro, sem nexo, sustentado apenas pela escrita.” (Imre Kertész) RESUMO A relação entre violência e arte não é algo restrito à contemporaneidade, entretanto o desdobramento das vanguardas do início do século XX levaram essa tensão a um limite da representatividade. O diálogo entre ética e estética é uma discussão pertinente aos nossos dias: vivemos em um mundo em que a ameaça reacionária se apodera dos aparatos midiáticos e comunicativos para construir uma massificada estética do mal-gosto. A proposta deste trabalho é pautada na análise de três contos contemporâneos nos quais podemos encontrar a tensão entre violência e arte. Os contos são “La pesada valija de Benavides” e “Cabezas contra el asfalto”, da escritora argentina Samanta Schweblin e “Crías”, da equatoriana Maria Fernanda Ampuero. O objetivo deste trabalho é procurar entender de qual maneira as autoras constroem sua narrativa ao redor da tensão entre arte e violência e quais os efeitos de sentido gerados por esta tensão quando ela é duplamente mediada: primeiro, pelo sujeito interno, personagem da narrativa que se depara com um objeto estético relacionado a violência e depois pelo próprio conto, objeto estético em si que media a significação entre o sujeito da enunciação e nós leitores. O percurso de leitura proposto inicia-se com discussões acerca de alguns conceitos e transformações da arte no período citado - do início da vanguarda até a oposição entre a cultura de massa e o desenvolvimento da arte contemporânea - para que depois seja possível aprofundar a pesquisa no da violência e suas diversas possibilidades de definições. Quanto a violência, busca-se compreender, para além de suas definições, de qual modo ela estrutura a sociedade em que vivemos, emaranhada em nossa vida social, profissional e em nossa formação psíquica. Findada essa primeira exposição, o próximo passo é a familiarização com a ferramenta de análise literária escolhida, a semiótica greimasiana. Conceitos como figurativização, tematização e isotopia, da semiótica discursiva e as reflexões de Greimas acerca das paixões em suas obras “Semiótica das paixões” e “Da imperfeição” são de muito valor para o desenvolvimento do trabalho. Palavras-chave:Literatura hispano-americana;violência; semiótica. ABSTRACT The relation between violence and art is not something relegated only to the contemporary, however the advent of the vanguards at the start of the 20th century has led this tension to the limits of representation. The dialog between ethics and aesthetics is a discussion very pertinent to our current moment: we live in a world where a reactionary menace takes hold of the media with the intent of building an aesthetic of deliberate bad taste. The proposition of this work is based on the analysis of three contemporary short stories in which we can find the tension between violence and art. The short stories being “La pesada valija de Benavides” and “Cabezas contra el asfalto”, by Argentinian writer Samanta Schweblin and “Crias”, by Ecuadorian writer Maria Fernanda Ampuero. The goal of this work is to try and make sense of the way in which the authors build their narratives around the tension between art and violence as well as the effects of meaning generated by this tension once it is doubly mediated: first by the internal subject, a character part of the narrative who comes face to face with an aesthetic object related to violence, and later by the short story in which they are contained, an aesthetic object in and of itself, which mediates the meaning between the subject and us readers. The reading path offered here starts with discussions around some concepts and transformations around art in the time period mentioned – from the beginning of the vanguards until the opposition between mass culture and the development of contemporary art – in order for us to better delve into the research regarding violence and its many diverse possibilities and definitions. In regards to violence, we try to understand, beyond definitions, in what way it structures the society in which we live, tied together in our social and professional lives, as well as our psychological formation. Once done with this first exposition, the next step is the familiarization with the tool of literary analysis chosen: the semiotics of A. L. Greimas. Concepts such as figuration, theming and isotopy, from discourse semiotics and the reflections of Greimas in regards to passion in his works “The Semiotics of Passion” and “De l’Imperfection” are of great help to the development of this work. Keywords: Latin-american literature; violence; semiotics. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 9 2. SOBRE ARTE E FOTOGRAFIA 12 2.1. A vanguarda e o kitsch 13 2.2. Guy Debord e a Sociedade do espetáculo 15 2.3. Estética da demarcação e arte contemporânea 17 2.4. Sob A Ótica Da Fotografia 18 2.4.1. Sobre tirar fotos 19 2.4.2. Disparando holofotes sobre a dor dos outros 21 3. VIOLÊNCIAS 24 3.1. Violência subjetiva e objetiva 24 3.2. Os três D’s de Byung Chul Han 27 3.3. O acontecimento e a violência 31 4. SEMIÓTICA: FIGURAS, TEMAS E PAIXÕES 34 4.1. Semiótica discursiva 34 4.2. Da ação para o sentir 44 5. UM CORPO EM UMAMALA: BENAVIDES NO NÚCLEO DO DISTÚRBIO 49 5.1. O Conto como pesadelo - espaço e tempo em “La pesada valija” 60 6. DA IRA À ARTE: ESTÉTICA DO MAL-GOSTO EM “CABEZAS CONTRA EL ASFALTO” 64 6.1. Estética do mau gosto 76 7. ESPAÇOS DE VIOLÊNCIA: IDENTIDADES NO CONTO “CRIAS”, DE MARIA FERNANDA AMPUERO 79 7.1. A boca: criação, destruição e segredo 85 7.2. A representação pictórica da violência: fotografias ampliadas 89 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS 90 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 94 h h h h h h h h h h h h h h h h h h h h h h h h h h 9 1. INTRODUÇÃO Não nos requer muita reflexão, notar o quão profundamente a violência está arraigada em nossa cultura. Basta olharmos ao nosso redor que nos depararemos com a abundância de filmes de super heróis que estreiam um após o outro, nos quais os heróis lutam contra supervilões e salvam a humanidade mais uma vez do “Mal maior”, os programas policiais que transformam o chocante em risório e banal e, em redes sociais, as fotos de animais disputando o mesmo espaço de propagandas comerciais e notícias sobre a última catástrofe ambiental que assolou diversas famílias. A violência é hiper-mediada e hipermidiática. A violência, e suas representações, datam das sociedades mais primevas, entretanto, se na antiguidade a violência possuía traços ritualísticos1, como a absorção do mana ou os sacrifícios feitos nas tribos totêmicas, hoje, já não nos parece possível atribuir tais características a ela. Porém, se há algo que perdura em nossa cultura acerca da violência é nossa percepção de que não podemos “conceber a ordem da lei senão sobre a base de um dado mais primordial, que se apresenta como um crime” 2(LACAN, 2016, p.366). É a transgressão que estabelece a lei, não o contrário. Transgredir também é característico da arte, como podemos verno início do século XX, durante o surgimento das vanguardas artísticas europeias, originou-se uma “tradição da ruptura” como bem observou Octavio Paz (1914-1988) em sua obra “Os filhos do barro”(1974) - na qual, a cada ruptura proposta por um movimento vanguardista, ao negar ou reler a tradição anterior, uma nova tradição é imposta, a qual deve ser novamente rompida, criando-se assim o paradoxo da tradição da ruptura. Com o avanço da reprodutibilidade técnica, da cultura de massa e da mercantilização da arte, há o surgimento de filmes, séries de tv, quadrinhos, jogos, todo um universo estético que se desenvolveu para além das artes acadêmicas e institucionalizadas.Um dos efeitos da massificação cultural é que muitos de nós temos em casa algum quadro ou objeto estético que embeleza o ambiente, que nos desperta algum sentimento ou que simplesmente nos atrai, o que desloca o lugar da arte dos salões e dos museus para a vida cotidiana. Desse modo, o artista precisa encontrar novos meios de transgressão, uma vez que o apelo estético já foi tão disseminado em nosso dia a dia, e uma alternativa se apresenta na interface da representação da violência. 1 Isso ficará mais claro quando entendermos o que o filósofo sul-coreano Byung Chul-Han denomina “Sociedade da decapitação”, mais a frente no texto. 2 Lacan, Jacques . O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação [1958-1959]. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. 10 Unindo esses dois pólos brevemente apresentados, da violência e da arte, propomos explorar a relação entre violência e arte, ética e estética, através de três contos latino-americanos. Queremos entender de que modo a arte se relaciona com a violência e como tal relação nos diz em que sociedade vivemos. Para isso, escolhemos dois contos da escritora argentina Samanta Schweblin (1978) e um conto da escritora equatoriana Maria Fernanda Ampuero (1976 -). Uma das características marcantes da obra da escritora argentina Samanta Schweblin é a exploração das relações humanas através da mediação da arte e da tecnologia. Vemos isto em seus dois romances, “Distância de resgate”(2014) e “Kentukis”(2018), em que, no primeiro, temos uma relação entre mãe e filho atravessada por agrotóxicos e, no segundo, a mediação da tecnologia no convívio humano, representada por meio de pelúcias controladas a distância, reconfigurando as distâncias e as noções de privacidade, controle e liberdade que acreditamos ter. Apesar de Kentukis ter, entre seus protagonistas, um artista plástico que se utiliza das pelúcias em suas instalações, é nos contos de seus primeiros livros, que encontramos a arte desempenhando o papel de interlocutor entre o homem e a sociedade. Os contos escolhidos para nossa análise são: La pesada valija de Benavides, presente em “El núcleo del disturbio”(2002) e Cabezas contra asfalto, de seu livro "Pájaros en la boca”(2008). No primeiro, Benavides assassina sua esposa, coloca-a em uma mala e a leva até seu psiquiatra para que ele o ajude com o que havia feito. O que se sucede na narrativa tem traços de surrealismo: Corrales, seu médico, fica estupefato com a mulher de Benavides na mala, encarando-a como uma obra-prima de arte contemporânea, um golpe de genialidade, e convida seu amigo Donorio, curador, para organizar sua exposição. A trama se desenvolve a partir da problemática da exposição, à qual Benavides se opõe, sem entender como alguém consegue ver seu crime como algo artístico. No conto Cabezas contra el asfalto, temos um homem que durante a infância e a adolescência se relacionava pouco com as pessoas, preferindo desenhar e pintar. Porém, nas poucas vezes que estabeleceu algum tipo de relação com os colegas de turma, essa se deu em momentos de extrema raiva, o que culminava em uma violência, em que ele golpeava a cabeça de seu colega contra o asfalto várias vezes. Para evitar repetir o fato, o protagonista investe todo seu desejo violento em telas, nas quais pintava a imagem da agressão que gostaria de cometer, obras que viraram sua marca artística, a cabeça de uma pessoa sendo esmagada contra o chão. Após este quadro, o protagonista ganha renome e passa a viver de suas pinturas, sob encomenda de pessoas que desejavam ver seus crânios esmagados. É desta maneira que leva a vida sozinho em um apartamento até que faz um acordo com um dentista 11 sul-coreano, que lhe pede um quadro. Sua raiva volta à pauta quando a arte que produz não satisfaz seu cliente, que teme que a violência retratada na obra se realize e tenta se esconder do artista. O nosso terceiro conto se encontra no livro “Pelea de gallos”(2018), estreia da equatoriana Maria Fernanda Ampuero (1976 -) como contista. Nesta obra, a autora traz à luz um tema de extrema importância dentro do contexto em que vivemos, a violência, sobretudo de gênero. Nos contos, protagonistas mulheres se encontram em situações de violência que as colocam diante de enfrentamentos e choques de realidade, que por vezes reconfigura, ou ao menos repercute em, sua formação identitária. Essa é a realidade do conto escolhido para o análise, intitulado Crías. Nele, uma mulher, anos depois de ter emigrado, retorna a sua casa com o intuito de reencontrar uma pessoa que marcou muito sua infância, o irmão de suas vizinhas gêmeas. Enquanto na casa dele, ela relembra seu passado no lugar, as relações familiares estremecidas e as violências que fizeram parte daquele momento, em especial o abuso sexual que sofreu desse rapaz. O objeto estético aparece no final do conto, e é através dele que a protagonista tem a sensação de definitivamente ter retornado para casa. Para nossa análise, faremos uma rápida viagem por algumas questões que a arte e os artistas enfrentaram ao longo do século XX, da vanguarda ao kitsch, do espetáculo à arte sem limites, para nos situar nas discussões propostas em nossas análises quanto à arte institucionalizada ao longo do capítulo 2, “Sobre arte e fotografia”. Logo depois, no capítulo 3, “Violências”, buscaremos compreender alguns conceitos de violência, da mais cotidiana até suas possibilidades históricas, sociais e psicológicas, para que possamos, durante as leituras, localizarmos sob qual prisma devemos olhar as interações presentes na obra -sejam elas entre os atores e os elementos da narrativa - narradores, personagens - ou da interface arte-violência. No capítulo 4, “Semiótica: figuras, temas e paixões”, nos debruçaremos em conceitos da semiótica greimasiana, sobretudo discursiva, e teceremos alguns comentários a respeito das paixões que nos auxiliará a abordar elementos narrativos e enunciativos das obras em questão, possibilitando entendermos quais sentidos são mobilizados ao propormos nosso caminho de leitura. Após nossa exposição teórica, dedicaremos um capítulo a cada conto para que possamos desenvolver suas análises e explorar suas particularidades na construção da relação arte e violência. Deste modo, iniciamos nosso percurso com algumas reflexões acerca da arte a partir do surgimento das vanguardas. 12 2. SOBRE ARTE E FOTOGRAFIA Nossa proposta, como apresentamos, é analisar os contos de Schweblin e Ampuero tendo como foco a relação entre arte e violência, uma investigação acerca da tensão entre ética e estética presente em cada obra. Para tal, parece-nos importante uma introdução que sustente as concepções de arte e de sua relação com a violência que procuraremos relacionar com nossa proposta de leitura. Outro fato que nos faz caminhar nesta direção é a importância das artes plásticas e da força da imagem para Samanta Schweblin. Em uma entrevista junto à escritora mexicana Valeria Luiselli3, Samanta conta que seu pai é artista plástico e que por conta dessa influência, a pintura é sua primeira arte, não a literatura. Sendo assim, podemos afirmar que, em suas obras, Schweblin utiliza como um de seus recursos narrativos a mediação da relação entre homem e sociedade através da arte. Então, faremos dois recortes para consolidarmos os conceitos e as ideias a respeito de arte com as quais iremos trabalhar. Primeiramente, , apresentaremos a tensão entre vanguarda e kitsch no subcapítulo “A vanguarda e o kitsch”, alta-cultura e cultura de massa através das reflexões de Guy Debord no subcapítulo “Guy Debord e a Sociedade do espetáculo” e o desenvolvimento do conceito de autonomia da arte durante o século XX no subcapítulo “Estética da demarcação e Arte contemporânea”, questões pertinentes às obras de Schweblin. Escolhemos essas temáticas pois, para nossa proposta de leitura, é importante possuirmos informações a respeito de como a arte, em sua busca por autonomia, buscou lidar com seus limites e também com o caráter econômico que se impôs em todas as frentes da nossa sociedade. Dessa maneira, optamos pela oposição vanguarda e kitsch como ponto de partida dessa busca da arte para depois acompanharmos os efeitos do capital sobre a arte através do espetáculo e o debate estética e ética nos movimentos pós-neo vanguardistas nos anos 60 do século passado. Na segunda, faremos uma aproximação do campo da fotografia e sua relação com o universo artístico e a crise de representação decorrente da sua invenção no subcapítulo “Sob a ótica da fotografia” - assunto importante para nossa leitura do conto de María Fernanda Ampuero. 3 Louisiana Channel. Samanta Schweblin & Valeria Luiselli Interview: Revelation of a Secret. Youtube, agosto, 2018. Disponível em . Acesso em: 03 jan. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=jJ05HiSg0ZQ https://www.youtube.com/watch?v=jJ05HiSg0ZQ 13 2.1. A vanguarda e o kitsch Para iniciarmos nossa discussão, voltaremos para meados do século XIX e início do século XX com o propósito de entender o desenvolvimento da estética artística que hoje nos circunda. Com a invenção da fotografia, a arte se viu, pela primeira vez, livre do uso das mãos. Como afirma Francisco Alambert, “a partir da mudança da estrutura física da arte surge um novo problema de autenticidade e novas relações de propriedade.” (ALAMBERT, 2007, p.410),mudança essa que vai nos apontar os dois caminhos desenvolvidos nesta seção: por um lado, temos a busca por uma linguagem própria da arte, descolada da ideia de representação realista que até então imperava, resultado da eficiência da fotografia em retratar o aqui e o agora, propiciando experimentações do próprio fazer artístico e de seus limites e culminando nas vanguardas ; por outro, a dessacralização da arte, a destruição de sua “aura” (ALAMBERT, p.410), torna sua semelhança com a mercadoria reprodutível completa, pois, “Sem aura, tudo pode ser ’possuído’ e massificado - até a política pode ser ritualizada” (ALAMBERT, p.410), ou seja, o processo de mercantilização da arte e da reprodutibilidade técnica ocasiona os fenômenos da cultura de massa e do kitsch. Em clássico ensaio publicado de 1939, intitulado “Vanguarda e kitsch”, o autor norte- americano Clement Greenberg (1909-1994) investiga como uma mesma tradição cultural pode produzir simultaneamente um poema de T.S. Eliot e uma canção de cabaré; uma pintura de Braque e uma capa do Saturday Evening Post.” (GREENBERG, 1939, p.27) e revela que, para além de uma discussão a respeito de estética, devemos trilhar um caminho que leva em consideração o contexto histórico e social da experiência estética. Greenberg inicia seu ensaio discorrendo sobre a cultura de vanguarda, uma organização social-estética que pretendia questionar e revisar a arte academicista. Para ele, a vanguarda surge junto ao pensamento da crítica histórica, o qual consiste em examinar profundamente as raízes da conjuntura na qual se vive, buscando as causas e os efeitos do desenvolvimento da sociedade com base em dados históricos. As vanguardas têm como principais características o movimento de ruptura e superação da arte que a precede - a estética da ruptura - sempre com um olhar crítico quanto aos esforços e aos procedimentos em busca do estatuto autônomo da arte. É, como indica o autor, compreensível entender o porquê de a cultura de vanguarda ter surgido no momento em que o pensamento revolucionário científico explode na Europa, uma vez que o valor crítico é de extrema valia naquele período histórico. Voltado a si, distante do público, o artista de vanguarda busca manter “a cultura em movimento em meio à violência e à confusão ideológica” (GREENBERG, p.29), dando assim origem à "arte pela arte” e à "poesia pura”. Nos deteremos mais detalhadamente nos impactos 14 da vanguarda na arte contemporânea mais adiante em nosso texto, mas é importante fixarmos a noção de que, a partir do momento em que o artista produz sua arte para outro artista, elevando-a a graus de abstração e de códigos muito restritos, seu principal consumidor, a elite burguesa, se vê distante desta arte e necessitada de uma cultura que a abrigue e fomente. Desta maneira, “onde há uma vanguarda, em geral também encontramos uma retaguarda” (GREENBERG, p.32), o que nos faz chegar ao kitsch. A noção do kitsch vem de dois termos do sul da Alemanha: kitschen, que significa “atravancar e, em particular, fazer móveis novos com velhos” (MOLES, 1972, p.10) e verkitschen que quer dizer “trapacear, receptar, vender alguma coisa em lugar do que havia sido combinado” (MOLES, 1972, p.10). A associação com o termo verkitschen exprime um valor pejorativo, uma “negação do autêntico” (MOLES, 1972, p.10). Se pensarmos no kitsch como estética, temos uma arte que busca, através de revisitação e cópia de estruturas já fixas e consagradas da cultura, emular as sensações da apreciação estética, sem colocar, entretanto, sua construção ou suas formas em um senso crítico analista: o que importa para o artista kitsch é o tema e as sensações causadas espontâneamente ao consumidor da obra, sem que sejam necessárias reflexões sobre a arte ou os valores simbólicos que ela possa propor. Em sua obra “Apocalípticos e Integrados” (1984), ao comentar sobre o kitsch no capítulo “Estructura del mal gosto”, Umberto Eco (1932-2016) o define como: Aquello que se nos aparece como algo consumido; que llega a las masas o al público medio porque ha sido consumido; y que se consume (y, en consecuencia, se depaupera) precisamente porque el uso a que ha estado sometido por un gran número de consumidores ha acelerado e intensificado su desgaste.4 (ECO,1984, p.118) Pode parecer clara a fórmula para uma obra de intenções kitsch: lugares-comuns, imagens de grande impacto e apelo emocional, contudo, como Greenberg já havia indicado em seu ensaio, o kitsch não é um fenômeno puramente estético, e sim histórico-social - e por que não, ideológico. “O kitsch é o epítome de tudo o que há de espúrio na vida de nossos tempos. O kitsch finge não exigir nada de seus consumidores além de seu dinheiro - nem mesmo seu tempo.” (GREENBERG,1939, p.33). O kitsch, hoje, já está enraizado em nossa cultura, não é mais um antagonista, ou uma retaguarda, da vanguarda, mas sim um fenômeno que “constitui um dos tipos de relação que o ser mantém com as coisas, uma maneira de ser muito mais que um objeto, ou mesmo, um estilo” (MOLES, 1972, p11). O que está em xeque é nossa relação com o outro, a relação que estabelecemos com o modo de produção e consumo em que estamos inseridos. Esqueçamos os produtos duráveis, que passam por 4 “Aquilo que nos aparece como algo consumido, que chega às massas o ao público médio porque foi consumido; e que se consome (e, em consequência, se empobrece) precisamente porque o uso ao qual estava submetido por um grande número de consumidores acelerou e intensificou seu desgaste” (Nossa tradução) 15 gerações e carregam histórias familiares consigo, hoje, em busca da aura perdida pela arte no século XIX, consumimos o que há de mais “aqui e agora” disponível no mercado, em uma espécie de perseguição à eternidade, ao tempo que não foi nem será, ao momento-agora. Trocamos a ideia de criação, do trabalho manual em conjunto com o intelectual, da criatividade e do individual pela noção de produção em cadeia para as massas, sem crivo crítico e sem face. De maneira alguma os procedimentos kitsch do início do século XX, da ascensão final burguesa, desapareceram em nossos tempos. O trabalho ideológico da retomada conservadora que assola o mundo neste último decênio carrega em si muito do popularesco5, pintado com cores vintage, escorados em grandes pilastras gregas com seus símbolos máximos em poses de imperador romano. Para trazer mais cores ao lado socioeconômico do kitsch, o aproximaremos de um conceito-chave para o filósofo francês Guy Debord (1931-1994): a sociedade do espetáculo. 2.2. Guy Debord e a Sociedade do espetáculo Guy Debord afirma no seu livro "Sociedade do espetáculo" (1967) que "o que aparece é bom, o que é bom aparece.” (DEBORD, 2013, posição 59.5), apresentando um resumo do que é o "espetáculo moderno". Para o teórico marxista, o espetáculo sempre existiu como uma relação entre pessoas, poder e sociedade. No passado, o espetáculo era considerado sagrado, um produto que mostrava o que as sociedades não podiam proporcionar, “não significava senão o reconhecimento comum de um prolongamento imaginário para a pobreza da atividade social real, ainda largamente ressentida como uma condição unitária” (DEBORD, posição 67.3). No entanto, o espetáculo moderno é dessacralizado, expondo à sociedade o que realmente é: um poder a parte, em desenvolvimento, baseado no aumento da produtividade, criando regras para si mesmo como um deus-faccioso. A vida na sociedade do espetáculo é apresentada como um acúmulo de espetáculos, representações do que um dia foi vivido e emulações de experiências, não como a experiência da vivência em si. Em "Comments on the Society of the Spectacle" (1988), Debord expõe as características dessas sociedades: The society whose modernization has reached the stage of the integrated spectacle is characterized by the combined effect of five principal features: incessant technological renewal; integration of state and economy; generalized secrecy, 5Não queremos causar confusão com o termo popular, no caso cultura popular, pois essa sim é uma expressão autêntica de um povo ou cultura. 16 unanswerable lies; an eternal present. (Debord, 1988, p. 7)6 O início destes espetáculos modernos é marcado pela Segunda Guerra Mundial, pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, pela polarização mundial entre o capitalismo e o socialismo e pelo desenvolvimento massivo da tecnologia durante toda a Guerra Fria. Uma das principais características do espetáculo é a alienação, a qual transforma as pessoas em espectadores que, quanto mais contemplam, menos vivem, o que as faz perder o domínio do tempo, uma vez que “o espetáculo, como organização social presente da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo.” (Debord, 2013, posição 192.8). Como crítico da sociedade do espetáculo, Debord afirma que os espetáculos destruíram a arte e a cultura como nós as entendemos desde cedo, agora elas são apenas mercadorias: A cultura tornada integralmente mercadoria deve tornar-se também a mercadoria vedete da sociedade espetacular. Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançados desta tendência, calculou que o complexo processo de produção, distribuição e consumo dos conhecimentos, açambarca já anualmente 29% do produto nacional nos Estados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar na segunda metade deste século o papel motor no desenvolvimento da economia, como o automóvel o foi na sua primeira metade, e os caminhos-de-ferro na segunda metade do século precedente. (Debord., 2013, posição 221.6) A sociedade do espetáculo é uma organização social em que “se dominam os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente. Ela nada mais é que a economia desenvolvendo-se por si mesma.” (ALAMBERT, 2007, p.411). O espetáculo subjuga o humano porque a economia já o fez, ele é um reflexo da objetivação de seus produtores. Walter Benjamin, em uma reflexão tardia sobre seu conceito de alegoria, ao analisar a obra de Baudelaire, antevê o que acabaria por se tornar a sociedade do espetáculo: “A depreciação do mundo das coisas na alegoria é sobrepujada dentro desse próprio mundo pela mercadoria” (BENJAMIN, 1994, p.138). O domínio da cultura pela economia - ousaremos dizer, a tomada da ideologia kitsch de todos os aspectos da vida humana - é, para Debord, o último estágio de dominação do capitalismo. Tudo está sob suas forças e a seu serviço. Como nos afirma o autor, onde quer que o espetáculo tenha seu domínio, as únicas forças organizadas são aquelas que querem o espetáculo (Debord, 1988). A banalização da violência, tema trabalhado por Schweblin e Ampuero em suas obras, carrega muito desse espetáculo: um ritual sem valor, exposto a tudo e a todos até o desgaste, em programas de televisão, filmes e séries, convencendo-nos a integrar a violência como estruturante de nossa sociedade e, pouco a pouco, amortecendo os possíveis impactos que suas imagens de violência poderiam nos 6 A sociedade na qual a modernização alcançou o estágio do espetáculo integrado é caracterizada pelo efeito combinado de cinco principais características: Renovação tecnológica incessante; integração do Estado e da economia; sigilo generalizado; mentiras incontestáveis; um presente eterno. (Tradução nossa) 17 causar. 2.3. Estética da demarcação e arte contemporânea Expomos anteriormente as características da arte como mercadoria e do fenômeno do kitsch. Nesta seção, abordaremos com mais detalhes os desdobramentos da cultura de vanguarda; para isso, tomaremos como guia o historiador de arte chileno Rodrigo Zúñiga e sua obra "Estética de la demarcación: Ensayo sobre el Arte en los límites del Arte” (2012). Neste ensaio, Zúñiga ao apresentar sua problemática adverte que, mais do que um problema de ordem estética, trata de uma questão de ordem ética: em um momento pós- dessublimação da arte ocasionada por Marcel Duchamp (1887-1968) e seu ready-made, como estabelecer limites para a arte, conceituá-la e defini-la, uma vez que o artista, autoridade soberana hoje, “en nombre del Arte”, acredita que “cualquier cosa” puede eventualmente ser expuesta como obra de arte.” (ZUÑIGA,2012, p.7). Para desenvolver sua tese, o autor toma duas obras da década de 1960 de artistas sul-americanos, “La familia obrera” (1968) do argentino Oscar Bony e “Árvore de dinheiro” (1969) do brasileiro Cildo Meireles, como pilares para começar a pensar em uma estética da demarcação dos limites da arte. Na obra de Bony, um operário argentino e sua família - esposa e filho - foram expostos em um palanque, sentados, por toda a duração da exposição Experiencias 86, com uma placa ao seu lado que explicava que Luis, o operário, estava recebendo o dobro do seu ordenado diário para sentar-se e se expor durante o dia todo. Para Zúñiga, a obra de Bony é essencial para sua estética da demarcação por nos mostrar, de forma crítica, a diferença entre ruptura, prática vanguardista, e mero exibicionismo, na qual o artista expõe “qualquer coisa” em nome da arte com o intuito de “ressacralizá-la” ou “ressublimá-la” apenas pelo ato da exposição, ou seja, a arte pela arte (ZÚÑIGA, Ano, p. 35). A obra de Meireles consiste em um pedestal no qual o artista expõe várias notas de cruzeiro amarradas por um elástico. O pedestal, peça importante na composição, pois “ressacraliza” aquilo que está sendo exposto, traz uma placa avisando que a obra está à venda por meio do título “100 notas de 1 cruzeiro = 2000 reais”. Para Zúñiga, Meireles aponta a “fetichização milagrosa” da obra de arte; o autor afirma que “Sólo un fetiche milagroso operando en nombre del Arte puede acelerar la incontinencia del valor tal como aquí sucede, 18 poniendo en evidencia sus excesos, sus “momentos de éxtasis” y su desmesura irracional”7 (ZÚÑIGA, p.71). Com essas duas obras, Zúñiga tenta contrapor a arte sem limites que é praticada e exposta durante as últimas décadas, produzida unicamente para o deleite de seu autor, dentro de uma estética que clama por um imperativo correlato ao do super-eu: “Goze!”. Esta arte, na qual o gozo do artista está em romper qualquer limite pelo puro prazer da exposição, acaba por produzir obras abjetas e de extrema violência. Exemplos não nos faltam, como o caso do artista costarriquenho Guillermo Vargas, conhecido como Habacuc, acusado de abandonar um cachorro à inanição em uma galeria em Manágua ou ainda do alemão Gregor Schneider, que planejava expor um doente terminal para que morresse em público. Em suma, a autocrítica e o questionamento do valor estético e mercadológico da arte são, para Zúñiga, aspectos importantes para pensarmos em novas definições e delimitações da arte na contemporaneidade, sobretudo quanto às representações da violência e a dimensão ética existente na arte. Com a conclusão da nossa primeira abordagem quanto às questões do desenvolvimento da arte ao longo do século XX, é chegado o momento de refletirmos sobre o surgimento e consolidação da fotografia como objeto de representação da realidade - e mais especificamente, da violência. 2.4. Sob A Ótica Da Fotografia Para continuarmos a consolidação das ideias com as quais trabalharemos em nossas análises, agora iremos nos debruçar sobre algumas noções sobre fotografia, arte e violência, tomando como norte os livros “Diante da dor dos outros” (2003) e “Sobre fotografia” (2004), da ensaísta e crítica cultural norte-americana Susan Sontag (1933-2004). A primeira publicação do livro “Sobre fotografia” data de 1977 e reúne sete ensaios que rondam a temática do impacto da fotografia na sociedade e cultura ocidental. Logo nas primeiras páginas do primeiro ensaio intitulado “Na Caverna de Platão” encontramos a seguinte afirmação que é de total importância para este trabalho: o ato de “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento - e, portanto, ao poder” (SONTAG, 2004, p;14). 7 “Somente um fetiche milagroso, operando em nome da Arte pode acelerar a incontinência de valor tal como aqui acontece, pondo em evidência seus excessos, seus “momentos de êxtase" e seu “descomedimento irracional” .“ (tradução nossa) 19 Interessa-nos o modo que Sontag vê o ato de fotografar como predatório e intrusivo - um jogo de poder - pois é com essa visão que pretendemos desenvolver nossa análise do conto “Crías” de María Fernanda Ampuero. Há um jogo de palavras quanto ao ato de fotografar possível tanto em português quanto em inglês que ilustra bem como “existe algo predatório no ato de tirar uma foto. Fotografar pessoas é violá-las ao vê-las como elas nunca se veem, ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter; transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente possuídos” (SONTAG, 2004, p.25). Este jogo consiste nos termos, em português, “tirar foto” e “disparar a máquina” ou “disparar a câmera”, no qual o primeiro verbo , tirar, pode ter um valor de apropriação, de tomada a força, enquanto o segundo, disparar, nos remete ao universo bélico, do uso de armas, da violência; em inglês podemos traçar paralelos entre as expressões “take a picture”, no qual to take estaria mais próximo da rede de significados de tirar, e “shoot a photo”, em que o verbo to shoot é, assim como disparar, muito utilizado como atirar, disparar, armas de fogo - como na clássica canção de Bob Marley “I shot the sheriff” (1975). Para Sontag, a câmera é uma “sublimação” da arma, o que torna a fotografia uma espécie de assassinato sublimado, adequado a uma época triste e amedrontada, executado por um “assassino” fotógrafo que “saqueia e também preserva, denuncia e consagra”. (p.79). Em vista de seguirmos nossa discussão sobre fotografia, dividiremos nosso texto em dois caminhos: primeiro, pensando nas significações do tirar, discutiremos sobre algumas peculiaridades do início do universo da fotografia, seus interesses e suas relações de poder, para então buscar compreender qual é o impacto das imagens de sofrimento e violência disparadas sobre nós dia após dia. 2.4.1. Sobre tirar fotos A década de 30 do século XIX foi testemunha do primeiro processo fotográfico patenteado8, o daguerreótipo. Cercado de mistério e interesse, o ato de fotografar é, neste momento, extremamente restrito e complexo, o maquinário era pesado e caro, e pouquíssimas pessoas sabiam como manejá-lo de maneira apropriada. Sua primeira utilização, seu primeiro impacto social, foi retratar pessoas que pagavam para serem fotografadas. Esses retratos figuravam nos jornais quase como espectros, pequenos rostos no meio de notícias e novelas - da mesma maneira que a fotografia era um luxo disponível para poucas pessoas, o jornal nesta 8 Patenteado por Louis Jacques Mandé Daguerre (1787 -1851 ) em 1835 20 época também o era9. Foi com o desenvolvimento das técnicas de captura de imagem e revelação que o universo da foto começou a ser expandido e a causar algumas controvérsias10 e novos dinamismos. Para exemplificar, em poucas décadas após a invenção da fotografia, o trabalho do retratista, importante para ilustrar os jornais, se tornou obsoleto, e os retratistas, mais reconhecidos por suas habilidades técnicas do que pelo gênio artístico, tornaram-se fotógrafos de muita perspicácia, auxiliando, assim, a propagação deste novo universo. Com o início da popularização da fotografia e a invenção de câmeras mais facilmente manuseáveis, alcançou-se enfim a classe média, e um sem-par de curiosos passaram a investir seu tempo e seus recursos nesse campo e iniciaram seus percursos fotográficos explorando o que até então era inóspito para eles - a pobreza. Como afirma Susan Sontag no ensaio “Objetos de melancolia”(2004): a fotografia sempre foi fascinada pelas posições sociais mais elevadas e mais baixas. Os documentaristas (que não se confundem com aduladores munidos de câmeras) preferem estas últimas. Durante mais de um século, os fotógrafos rondaram os oprimidos à espreita de cenas de violência - com uma consciência impressionantemente boa. A miséria social inspirou, nos bem situados, a ânsia de tirar fotos, a mais delicada de todas as atividades predatórias, a fim de documentar uma realidade oculta, ou, antes, uma realidade oculta para eles. (p.69) A classe social é o mistério mais profundo para os burgueses que portavam uma câmera, do glamour dos ricos e dos poderosos à degradação dos pobres e dos párias. Não é de se surpreender que durante o século XIX vários burgueses da classe média viajavam para cidades interioranas ou países considerados exóticos – como para o hemisfério sul e a Ásia - em busca da melhor foto, retratando pessoas em estado de pobreza, ruas desertas e construções decrépitas que remetiam a ruínas de tempos perdidos. “O fotógrafo é uma versão armada do solitário caminhante que perscruta, persegue, percorre o inferno urbano [...]que descobre a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos” . (SONTAG, 2004, p.70). Também é nesta efervescência de experimentações fotográficas que a possibilidade da fotografia ser considerada uma bela-arte ganha força, pois vai além do aspecto documental tanto dos retratos de artistas e da massificação dos retratos familiares como também de presenciar e registrar guerras, acidentes e tragédias que ocorreram . Inicialmente a fotografia gera uma crise no conceito de representação, de mimesis, no mundo da arte, o que leva artistas. críticos e estetas a questionar qual o papel das artes, a sua função, os seus limites e a sua linguagem, assim, instigando artistas e críticos de meados do século XIX a reformularem 9 Benjamin, Walter. “Uma breve história da fotografia” (1931) 10 Uma das principais místicas acerca da fotografia era quanto ao risco de ela tirar a essência, o espírito ou as camadas do ser fotografado. Aliás, Balzac temia ser fotografado pois acreditava que todo corpo era feito de uma “série de imagens fantasmáticas sobrepostas numa infinidade de camadas” (Qm? Ano?p.175), e o único modo com o qual o daguerreótipo operaria seria retirando e capturando uma dessas imagens. 21 suas ideias e impulsionando o surgimento da modernidade e, posteriormente, das vanguardas artísticas. Desde sua invenção, a fotografia é de extrema importância para documentar a história da humanidade -E, ainda, em dois séculos de existência, não faltaram guerras, massacres ou desastres para serem clicados, o que nos fez ver os rostos de soldados e civis, ainda que eles permaneçam anônimos, os rastros de campos de batalha e a vida dos participantes dos combates fora de seus postos de guerra. Discutiremos mais detalhadamente em nossa próxima seção a representação da violência, quando trataremos da íntima relação entre imagem e sofrimento da qual nossa cultura é permeada. Deste modo, sedimentamos um primeiro olhar a respeito da fotografia que propomos abordar, focando no impacto inicial dessa nova invenção no universo das artes, da compreensão da nossa sociedade e da construção da história. 2.4.2. Disparando holofotes sobre a dor dos outros Não é de hoje, a atração que cenas de violência e sofrimento causam ao ser humano. A história da arte nos demonstra o quão próximo da morte nós nos debruçamos em virtude dos mais variados motivos. As explicações são das mais variadas também, pois talvez o maior mistério da vida seja seu fim.. O antropólogo brasileiro José Carlos Rodrigues tem, entre suas áreas de pesquisa, um olhar atencioso para as representações sociais do corpo e da morte. Em nossa leitura de sua obra “O corpo na história” (1999) nos parece interessante ressaltar que quanto mais avançamos na história do Ocidente, mais os tabus sobre o corpo se desenvolveram, e a morte, que já foi pública, passou a se tornar privada, reservada primeiro ao leito de morte no quarto de suas casas e depois ao silêncio eterno da jazida, e não sendo mais pautada pela espera para que juntos, coletivamente, levantemo-nos de nossas covas para continuar nossa vida na corte celeste (RODRIGUES, 1999, p.126). Entretanto, ao contrário do que seria esperado, esse movimento só reforça o fascínio burguês pela violência e pela morte; então, quando a técnica da câmera fria é desenvolvida, seu produto, a fotografia, também não fica aquém do desejo humano de captar e capturar o sofrimento e a morte. Retomando Sontag: Desde quando as câmeras foram inventadas, em 1839, a fotografia flertou com a morte. Como uma imagem produzida por uma câmera é, literalmente, um vestígio de algo trazido para diante da lente, as fotos superavam qualquer pintura como lembrança do passado desaparecido e dos entes queridos que se foram. (p.24) 22 Em seu livro “Diante da dor dos outros” (2003), Susan Sontag reflete sobre o impacto das imagens da violência e do sofrimento em nossas vidas, traçando a evolução dessa iconografia que “tem uma longa linhagem” e, na qual, os sofrimentos “mais comumente considerados dignos de serem representados” são os “frutos da ira, divina ou humana” (p.37), desde Francisco de Goya (1746-1812) até fotografias do atentado ao World Trade Center em 2011. Em uma época em que somos bombardeados com imagens, vivemos cercados de simulacros e virtualidades e já nos é difícil dizer o que é real ou não. Não é raro nos confrontarmos com situações perigosas ou violentas e retratarmos o episódio como se “parecesse um filme”, como se fosse “coisa de cinema” - a realidade já não nos comporta integralmente, é preciso a mediação da imagem, sua força, para signficarmos o que experenciamos. Só desta maneira conseguimos apreender nossa vivência, pois “o enorme estômago da modernidade digeriu a realidade e cuspiu essa papa, em forma de imagens” (SONTAG, 2003, p.91). É comum que, ao depararmos com o objeto real, seja ele uma obra de arte, uma catástrofe ou uma beleza natural, tenhamos uma reação amena, apática ou surpresa perante a ele. O fato é que a imagem tende a subtrair, a negar, nossa primeira experiência com a coisa em si, fazendo com que nós nos perturbemos mais com uma fotografia. Uma possível explicação é que “a câmera traz o espectador para perto, para demasiado perto... a “nitidez terrível” das imagens fornece informação desnecessária e indecente." (Sontag, 2003, p.55). Talvez, a chave para entender a força da imagem perante ao “real” seja a palavra espectador e sua posição dentro da sociedade do espetáculo, ao qual já nos referimos anteriormente. O que nos importa é o espetáculo, que o evento que nos chama a atenção pareça interessante e tenha impacto imediato e midiático - é através do espetáculo que se manipula o impacto das imagens, da fotografia, na nossa sociedade. As imagens de guerra, que um dia serviram de denúncia e de resistência ao militarismo e ao imperialismo, podem, “no estado de ânimo político atual” serem “até estimulantes” (Sontag, 2004, p.35), basta que sejam vendidas como tal. Esse espetáculo é orquestrado através de um encontro de dois fatores, o interesse lascivo por imagens de violência - todas as imagens que exibem a violação de um corpo atraente são, em certa medida, pornográficas. Mas imagens do repugnante também podem seduzir” (SONTAG, 2003, p.80) - e a escalada ascendente “da violência e do sadismo aceitáveis na cultura de massa” (SONTAG, 2003, p.84). Jogos, quadrinhos, cinema, esportes: a cultura da brutalidade e a imagística da violência são diariamente introjetadas no nosso 23 convívio, nos convidando para assistir cenas como as de lutas marciais, nas quais golpes devastadores são repetidos inúmeras vezes, frame por frame, em enquadramentos do estrago causado no rosto adversário, em uma noite considerada um bom programa entre amigos. A centralidade do nosso debate não é sobre uma moralidade conservadora que deve ser adotada, mas sim sobre o funcionamento da espetacularização da violência em nossa sociedade e os impactos profundos dessa mecânica na maneira com que nos relacionamos. 24 3. VIOLÊNCIAS Estabelecida a base da nossa análise quanto às temáticas de arte e fotografia. ,nesta seção, iremos nos aprofundar nas discussões sobre violência - ou melhor, violências. É vasta a possibilidade de caracterização e definição da violência, podemos perpassar por definições que se baseiam num aspecto subjetivo de sua imposição, como violência física ou psicológica, até questões de ordem social e estrutural, como as definições de Slavoj Zizek (2014), acerca das violências subjetivas e objetivas, presentes no primeiro subcapítulo, e as definições de Byung-Chul Han (2019), sobre sociedade da decapitação, da deformação e do desempenho, as quais desenvolveremos na seção “Os três D’s de Byung Chul Han”. Por fim, trataremos de uma abordagem específica de Zizek do conceito de acontecimento e sua importância para nossas análises em “O acontecimento e a violência.” Nosso intuito com tais conceitualizações é compreender as noções econômicas e ideológicas que estão na base da violência cotidiana e de que modo a violência é utilizada pelas instituições para normatizar e configurar a sociedade em que vivemos. 3.1. Violência subjetiva e objetiva Nosso primeiro passo é conceituar basicamente o termo violência. Em seu livro “Palavras-chave” (2007), Raymond Williams (1921-1988) nos expõe sete definições de violência, o que nos indica a complexidade de categorização deste termo. Para ou autor, as definições mais simples são “ataque físico” ou “uso de força física” (WILLIAMS,2007,p.406), geralmente atribuídas a usos não-autorizados, como os feitos por terroristas, ladrões ou assassinos, e por vezes à violência policial e à restrição de liberdade e a atos correlatos. O ataque físico se categoriza por ser subjetivo, de um indivíduo ao outro, já o uso de força física pode ser atribuído a um terceiro, como no caso da violência cometida por um soldado sob a demanda de um Estado em guerra. Um terceiro sentido, para Williams, é a violência como exibição do ato violento, e não o ato em si, por exemplo, a “violência na televisão”. Entretanto, Williams aponta que a confusão se constrói quando tentamos distinguir violência como ameaça de violência como atitude desgovernada, uma vez que valores emocionais entram em cena. Essa dificuldade se dá, pois atrelada ao sentido de ameaça ou atitude desgovernada está o sentido de uso de força física, o que não é necessário em exemplos de violência do Estado ou violência estudantil, como o autor cita. Os outros 25 sentidos são de fervor ou paixão, o que nos remetem novamente aos sentidos de força e, por último, um sentido de violação, de tirar algo de seu lugar, raptá-lo. Para compreendermos então como podemos melhor categorizar a violência nos limites que Williams nos apresenta do conceito - a violência do Estado e a violência estudantil - recorreremos ao filósofo esloveno Slavoj Zizek (1949 - ) e suas reflexões sobre o tema. Nós já apresentamos a ideia de violência subjetiva, que é aquela em que podemos distinguir o agente da violação e também sua vítima e é “exercida por agentes sociais, indivíduos maléficos, aparelhos repressivos disciplinados e multidões fanáticas” (ZIZEK, 2014, p.25), sendo também a mais visível e a que exerce fascínio sobre nós. A adição que Zizek nos traz para esse debate é que a violência subjetiva é a contraparte, a outra face da moeda, da violência objetiva, a modalidade de violência sistêmica, subterrânea e estrutural, da qual trataremos agora. O filósofo parte de como o Capital se manifesta na “realidade” e no “Real”11, ou seja, no tecido social. Esse é composto pelos indivíduos e suas interações e suas implicações no processo produtivo, representando a realidade; enquanto é a inexorável abstração do capital, de suas flutuações e de suas especulações, que determinam de qual maneira as interações irão ocorrer no tecido social - este é o conceito do Real desenvolvido na psicanálise . É o abismo irredutível entre essas duas percepções que propiciam o cenário em que podemos viver em uma comunidade sem acesso a serviços prioritários como saúde, saneamento básico e educação e mesmo assim, se tivermos acessos aos relatórios do desempenho financeiro dessa mesma comunidade, encontraremos índices que a caracterizam como financeiramente sólida: através desses dados começamos a notar que é necessário que exista uma violência sistêmica, quase imperceptível, para garantir o funcionamento capitalista a partir da sua lógica abstrata, que configura um grau zero de violência - a realidade como ela nos é apresentada e sentida - e qualquer ato de resistência, denúncia e revolta se encaixa como a face sempre aparente da moeda: a violência subjetiva. Tomemos como exemplo uma manifestação popular em via pública, na qual alguns manifestantes depredam um monumento histórico, incendiando-o com a justificativa de que a estátua representa valores e ideais fascistas. Um caso claro de violência subjetiva. A repressão policial, as inúmeras câmeras que cobrem o evento e bombardearam as redes sociais e os programas televisivos, a exaustiva repetição dos rostos cobertos dos manifestantes com a intenção de revelar suas identidades, toda essa espetacularização acerca do ocorrido gera fascínio e comoção por parte da população, provocando debates calorosos sobre as ações dos 11 Muitos dos termos que utilizaremos até o fim do nosso tópico sobre violência são provenientes da psicanálise freudiana e lacaniana, importantes base para a abordagem de Zizek a respeito da violência. 26 manifestantes: são vândalos, bandidos ou têm razão?. Uma cortina de fumaça se cria sobre a violência subjetiva, da qual ainda não saímos neste nível de discussão, criando o abismo que assegura a tranquilidade da violência objetiva, sistêmica, afinal, por qual motivo mesmo essas pessoas estavam se manifestando? Quais suas pautas e reinvindicações? Quais as violências que elas sofrem cotidianamente para que a realidade seja da maneira que nos é apresentada, em um aparente grau-zero de violência? - essas são perguntas que deveríamos fazer, segundo Zizek. Um dos exemplos mais emblemáticos para Zizek é o caso dos “comunistas liberais”, bilionários filantrópicos como George Soros, Bill Gates, Jeff Bezos e Elon Musk, que dedicam parte de suas fortunas para obras sociais e projetos humanitários. Por trás das grandes doações e do encorajamento e do incentivo ao desenvolvimento de novas tecnologias, o que existe é uma fortuna gerada pela exploração desumana e insaciável que é própria do capitalismo. A ideia do comunismo liberal é conciliar políticas de bem-estar social sem questionar ou promover mudanças radicais na estrutura política e econômica, em uma espécie de amortecimento dos efeitos devastadores do capitalismo. Entretanto, essa ideia possui uma verdade mais profunda do que a benevolência ou o altruísmo de seus representantes - ainda que possa existir verdadeiramente, essa devolução de capital é um mecanismo para que a roda do sistema não pare de girar. Não há limite para a acumulação no capitalismo e, apesar do neoliberalismo pregar a infinitude dos recursos naturais, sabemos que catástrofes naturais e calamidades de saúde mundial - como a pandemia de Covid-19 iniciada em 2020 - irão ser cada vez mais frequentes, e essas atitudes filantrópicas, no final, são medidas paliativas para frear o esgotamento total do sistema e seu colapso; nesse sentido, não é surpreendente o investimento massivo em exploração espacial e a busca por colonizar novos planetas. Retomando nossa explicação sobre violência objetiva a partir do exemplo do comunismo liberal, é a exploração desenfreada que cria situações de pobreza e fome extrema, xenofobia, racismo e antissemitismo. Esses discursos oprimem e violam os direitos básicos humanos de grande parte da população mundial, criando assim, como dissemos, o grau zero de violência, o status quo da realidade social, o qual suscita em seus indivíduos mais afetados a ira e a revolta por sua situação, conforme afirma Zizek: É por isso que o delicado comunista liberal - assustado, preocupado, oposto à violência - e o fundamentalista cego que explode de ira são os dois lados da mesma moeda. Embora combatam a violência subjetiva, os comunistas liberais são eles próprios agentes da violência estrutural que cria as condições das explosões de violência subjetiva. Os mesmos filantropos que dão milhões de dólares para combater a Aids ou promover a educação arruinaram a vida de milhares de pessoas através da especulação financeira e criaram 27 assim as condições para a emergência da mesma intolerância que pretendem combater...Não devemos ter ilusão alguma: os comunistas liberais são hoje o inimigo com que se defronta qualquer tipo de luta progressista. (ZIZEK, 2014 , p. 42). Finalizamos aqui, nossa abordagem sincrônica da violência. Seguiremos, então, para uma investigação diacrônica da evolução da relação entre sociedade e violência, nos guiando pela obra “Topologia da violência” (2019), do filósofo sul coreano Byung-Chul Han (1959- ). 3.2. Os três D’s de Byung Chul Han Para Han, podemos distinguir três momentos da sociedade humana a partir de transformações ocorridas nas manifestações da violência - momentos estes que podem ser denominados sociedade da decapitação, sociedade da deformação e sociedade do desempenho. Han (2019) afirma que o percurso da violência durante a história é de introjeção, de fora para dentro, de uma violência negativa para uma positiva, no qual nosso cárcere deixa de ser o dever e passa a ser nossa própria liberdade e passamos a exercer o papel de vítima e carrasco ao mesmo tempo - a violência positiva nos impõe uma sociedade “onde somos presidiários e vigias ao mesmo tempo.” (HAN,2019, p.183). Para seguirmos o percurso descrito pelo autor, partiremos da sociedade da decapitação, na qual a violência imposta era o assassinato, o extermínio e a guerra. O autor nos mostra que o que estava em voga para as civilizações arcaicas e da Antiguidade, quanto à violência, era a tentativa de afastar-se da morte e dominá- la através da imposição ao outro, em um exercício de poder em que “mais violência significava mais poder.” (HAN, 2019, p.37). Como o povos nativos das Ilhas Marquesas, na Polinésia, nos demonstram por meio do conceito de mana, uma “substância misteriosa de poder que saltava do morto ao vencedor12” (HAN, 2019, p.38), ou seja, a relação entre poder e violência estava intimamente ligada, e a moralidade com que julgamos ou denotamos a violência não existia ainda para aquelas sociedades - matar era questão de sobrevivência, matava-se para não morrer, e, quanto mais se matava, mais mana se acumulava, o que simbolizava poder sobre a morte. 12 “Admitia-se que um guerreiro continha em seu corpo o mana de todos que ele havia matado [...] A cada morte que ele conseguisse apreender crescia igualmente o mana de sua lança [...] Para incorporar imediatamente esse mana ele tinha de comer a carne dessa pessoa; e para fixar em si esse incremento de poder numa batalha [...] ele trazia amarrado ao corpo, como parte de seu arsenal de guerra, algum despojo físico do inimigo derrotado.” (HANDY, 1927, p.31 apud HAN,2019, p.38) 28 Desde o início das civilizações podemos rastrear uma ideia de acúmulo de poder que inibe ou afasta o fim derradeiro. Esse acúmulo perdura até hoje, pois possuir dinheiro, em nossa sociedade, é possuir poder, ser invulnerável e ser imortal (HAN,2019 ). Antes, se acumulava sangue e partes dos corpos dos guerreiros vencidos em batalha, agora, se acumula capital. A violência generalizada da sociedade da decapitação gerou uma onda de vingança na qual a arbitrariedade era imperativa, de maneira que as vítimas da vingança poderiam ou não ter relação com o primeiro sujeito aniquilado. Para conter essa espiral de destruição, foi necessária a hierarquização do poder, causando a perda da legitimidade da violência da força bruta, tanto no cenário político quanto no social (HAN, 2019, p.19), o que culminou na Idade Moderna, em que encenações homicidas em espaços públicos transformaram-se em execuções reservadas a locais que não eram permitidos ao acesso geral. Desse modo, calcado nas teorias psicanalíticas de Freud, Han nos mostra a mudança topológica da violência, da sociedade da decapitação para a da deformação, isto é, o deslocamento do público para o privado, do externo para o interno, o que na sociedade também introjeta a violência para dentro do eu, levando as “tensões destrutivas” a serem suportadas internamente, “em vez de descarregadas para fora” (HAN, 2019, p.22). É nessa época também que os mecanismos de poder percebem que a coerção é, em muitos casos, mais produtiva que a brutalidade.O mecanismo do supereu, instância que reprime e violenta o eu e seus desejos, é obra de recalques e repressões acumuladas para o desenvolvimento da nossa sociedade, em que o Tanatos, a pulsão de morte, é sublimada em função do Eros e do sentido de comunidade portanto, quanto mais uma pessoa “refreia sua agressão contra eles (outras pessoas), mais rigorosa e coercitiva se torna sua consciência moral.” (FREUD, 1992, p.309 apud HAN, 2019, p.23). Passamos, então, de uma sociedade na qual a violência não estabelece valores morais, sendo explicitamente e pornograficamente deliberada, incentivada e endereçada ao outro, à uma sociedade do dever, da coerção, na qual o ser vive sob jugos e definições impostos, deformando-se e sendo deformado para caber dentro de tais imposições. Um exemplo clássico dessa sociedade neurótica é a histeria que acometia as mulheres, um resultado de imposições severas e intransigentes quanto a como deveriam se portar e a quais funções deveriam corresponder, oprimindo-as e violentando-as com tamanha severidade que sua própria estrutura psíquica sucumbia à introjeção da contraviolência aplicada. Acompanhamos, juntos a Byung-Chul Han, o percurso da topologia da violência através das sociedades arcaicas até a era moderna, sem nunca deixar de nos localizarmos dentro do registro das violências negativas, ou seja, “que se desdobram em relações de tensão 29 bipolares: ego e alter, dentro e fora, amigo e inimigo” (HAN, 2019, p.8). Na sociedade do desempenho, a sociedade pós-moderna, encontramos a violência da positividade, “oriunda da “spamização” da linguagem, da supercomunicação, da superinformação, da massa de linguagem, de comunicação e de informação” (HAN,2019, p.9). O sujeito, aos poucos, se desvincula de rituais e de ordens semânticas e simbólicas que o aprisionam ou que o delimitam, em direção à uma sociedade em que “a orgia da libertação, a desregulamentação, a supressão de limites e a desritualização” (HAN, 2019, p.185) demolem a negatividade, levando-o a um extremo de positividade. O sujeito livre crê ser dono do próprio destino e se autorregulamenta e autorrealiza, abandonando a deformação para abraçar o desempenho. Já não há mais tensões entre ego e alter, elimina-se o outro, o de fora, e forma-se uma adiposidade que une e iguala a todos: é o ponto máximo da internalização da violência, que, se já não era projetada externamente quando deformidade, agora, enquanto desempenho, nem a imposição externa existe mais. A coerção de ser o mais eficiente, comunicativo, consumidor e transparente possível é perpetrada pelo próprio sujeito que a recebe. Para Han, depressão e burnout são resultados dessa violência intrapsíquica da sociedade do desempenho e demonstram que “o burnout do sujeito de desempenho é um presságio patológico da iminente implosão do sistema.” (HAN, 2019, p.192). É importante dizer que a existência da violência positiva não exclui a possibilidade de suas formas negativas e que Han aponta transformações quanto à violência sistêmica, ou seja, a relação entre a estrutura da sociedade e a violência, e não quanto à violência subjetiva, de um sujeito a outro, ou objetiva, de corporações ou pessoas que objetivam o lucro sem ter o mínimo apreço pelo bem-estar social. Outra abordagem, por meio da qual podemos explorar o conceito de violência positiva dentro do nosso contexto contemporâneo, é a ideia de que o neoliberalismo gerencia o sofrimento psíquico para sua implementação e manutenção, impondo-nos a uma cultura da depressão. Para explicarmos melhor tal ideia, nos utilizaremos do ensaio do psicanalista brasileiro Christian Dunker (1966 - ) intitulado “A hipótese depressiva”, presente no livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” (2020), organizado por Christian Dunker, Vladimir Saflate e Nelson da Silva Junior. Nesse ensaio, Dunker investiga de que maneira o termo depressão é inserido no século XX, o seu desenvolvimento enquanto diagnóstico e a narrativa até seu ápice como normalopatia - termo cunhado por Dunker para descrever o comportamento do sujeito depressivo na chamada “cultura da depressão”. A normalopatia seria um excesso de adaptabilidade do ser em seu meio, na qual esse se anulando completamente como um distinto, negando suas potencialidades, resignando-se a 30 um papel de normalidade, uma vez que o depressivo não é bem-visto em uma sociedade nas quais são valorizadas doses hiperbólicas felicidade e produtividade. O termo depressão recebe uma nova dimensão de sentido e tensão com a crise mundial de 1929. Nos discursos dos políticos norte-americanos, o termo é colocado como oposto à mania, ao desenvolvimento, à antecipação do futuro e à prosperidade. A depressão, antes associada à melancolia, ganha contornos econômicos liberais e traços pouco constitutivos para uma descrição precisa e embasada enquanto diagnóstico. O avanço da psiquiatria e o surgimento das ciências neurológicas ocasionam uma disputa de narrativas com a psicanálise, ocasionando uma cisão na discussão sobre a etiologia dos sintomas - a crescente centralidade da fisiologia e de aspectos cognitivos do lado da psiquiatria e o desejo, a narrativa, o trauma e o simbólico, aspectos ligados ao inconsciente, pelo lado psicanalítico - colocando de lado cada vez mais o confronto, extremamente importante para a psicanálise. Proveniente da diluição do conflito pós-guerra fria, em que já não há mais oposição de formas de ver e pensar o mundo, o esvaziamento do conflito na origem da neurose, na qual havia a disputa de narrativas e fragmentos de memória a serem preenchidos e resgatados, há agora uma individualização de sintomas, tratados separadamente, em narrativas individuais. Para Dunker, essa nova narrativa de sofrimento individualiza o fracasso, na forma de culpa, sem interiorizá-lo na forma de conflitos. Com isso, ela consegue isolar completamente a dimensão política, das determinações objetivas que atacam nossas formas de vida, redimensionando trabalho, linguagem e desejo, do sofrimento psíquico...Nela, a autoavaliação, auto-observação, o juízo comparativo e a apreciação de si mesma (a experiência depressiva) ocupa longas extensões de tempo e rapta grande parte da energia psíquica do indivíduo. (Dunker, p.190, 2020). Como afirma Han, a mudança paradigmática da sociedade da deformação para a sociedade do desempenho está concentrada na introjeção da violência externa para uma relação dupla de capataz-serviçal interna. A razão dessa mudança é o avanço das ideias neoliberais. Sobre isso, Dunker demonstra, em alguns tópicos (2020, p.183), como a transição ocorreu. Escolhemos, para complementar e solidificar o que apresentamos, três tópicos: a) A diluição do conflito dentro da narrativa da Guerra Fria (tópico já citado anteriormente). A oposição entre modos de ver o mundo e valores e entendimentos sobre a propriedade dos meios de produção é pasteurizada em uma avaliação que visa um valor comum, a saber, o desenvolvimento. b) A transposição do conflito entre empregadores e trabalhadores para uma “forma de trabalhar organizada por projetos, contratos provisórios ou de extensão limitada” (DUNKER, 2021, p.183), o que acaba por estabelecer uma cultura de atualização permanente, mudança permanente, flexionando o modo de contar-se a grande narrativa da vida, que já não pode 31 mais ser vista como uma longa história ascensional, mas sim através de pequenas e numerosas narrativas curtas. c) A mudança na forma em que nos relacionamos com o desejo, trespassada e emaranhada ao consumo, ao qual deixamos de nos comprometer a grandes sacrifícios e esperas para um deleite futuro e assumimos a jouissance instantânea e enfadonha do consumismo, no qual já não nos prendemos a objetos ou instituições que significam ou simbolizam um desejo permanente ou de satisfação oriunda de uma pacto sacrificial, mas sim giramos em um looping interminável de insatisfação, gozo e obsolência que nos afasta gradativamente das grandes construções sociais em uma retórica do hoje e da instantaneidade. A busca de um ideal comum - o desenvolvimento - a destruição das grandes narrativas e a consequente fragmentação da vida em pequenas histórias isoladas, sem grandes conflitos com as instituições que regulam e sistematizam nosso mundo, dão ao homem a equivocada noção de total liberdade e controle de si, na qual a excelência e eterna atualização são os ideais inerentes a nossa existência e que, através das teias do consumismo, devemos viver e aproveitar o hoje sem desenvolver grandes afetos ou fixar os pés demasiado tempo em um local é a tônica da sociedade do desempenho. A choque - aqui sim - conflituoso entre a jouissance instantânea contra a perpetuidade da reciclagem e da renovação das quais somos cobrados nos viola de maneira a deixarem-nos apáticos, inibidos, reféns de uma gramática depressiva e do controle total do neoliberalismo. 3.3. O acontecimento e a violência Por fim, faremos uma pequena digressão quanto ao tema proposto do capítulo para explorarmos um conceito que será importante para o desenvolvimento de nossas análises - o conceito do acontecimento. Traremos a discussão para o capítulo da violência pois acreditamos que a partir da ideia de acontecimento podemos também pensar nas subjetivações e significações que a violência pode gerar. Zizek aborda o conceito de acontecimento no seu livro chamado “Acontecimento: uma viagem filosófica através do conceito” (2017), no qual ele propõe investigar o tema através de três linhas de pensamento diferentes: a teologia, a filosofia e a psicanálise. Antes de mergulhar em cada uma dessas linhas, entretanto, Zizek propõe uma explicação geral para o conceito de acontecimento: “algo chocante, fora do normal, que parece acontecer subitamente e que interrompe o fluxo natural das coisas; algo que surge aparentemente a partir do nada, sem causas discerníveis, uma manifestação destituída de algo sólido como alicerce.” (ZIZEK, 32 2017, p.6). Algo que é do nosso interesse registrar é a lógica de funcionamento do acontecimento. Como Zizek mostra, o acontecimento parece irromper abruptamente, sem qualquer causa aparente. Porém uma das principais características do acontecimento - e o que o difere, por exemplo, de um ato performativo - é que ele estrutura o presente e reestrutura o passado, expondo à luz o que sempre esteve ali, mas nunca foi visto. É uma relação circular que o acontecimento estabelece com o tempo. Zizek, para exemplificar a ideia circular do efeito acontecimental, fala do amor, para ele, nós não nos apaixonamos por uma pessoa por motivos precisos (seus lábios, sua voz, seu sorriso), mas é por já estarmos apaixonados que esses atributos nos atraem - o efeito age retroativamente, determinando as causas e as razões a partir do que já aconteceu. Outro exemplo que podemos trazer para corroborar a ideia de Zizek são as manifestações que aconteceram em junho de 2013 por todo o Brasil. As manifestações, que ocorreram sobretudo nas capitais do país, eclodiram, inicialmente, por conta do aumento abusivo das taxas do serviço de transporte público no Brasil. Com a repercussão midiática, novas datas e manifestações foram aflorando pelas cidades do interior. Logo, o teor das reivindicações foi mudando, se acumulando a várias outras pautas, como o gasto público com a Copa do Mundo de futebol que ocorreria em 2014, a violência policial entre tantas outras. Essas manifestações podem ser consideradas como um acontecimento, pois as pautas reivindicadas posteriormente ao seu início já se encontravam presentes na sociedade, entretanto não mobilizaram suficientemente as pessoas para que se manifestassem, ao mesmo tempo, quando olhamos para esse período como um fato histórico, atribuímos causas e razões que não se encontravam na gênese do ato. Em outras palavras, Zizek nos diz que o acontecimento é um ato de reversão abrupta de uma temporalidade que passa de “um “ainda não” para o “sempre-já”.” (ZIZEK, 2017, p.97), ou seja, há a transformação, através do acontecimento, dos fatores que não aparentavam estar ali em causas e motivos que sempre ali estiveram. Podemos denotar esse momento como um acontecimento a partir de uma outra perspectiva, a do acontecimento simbólico. Não nos aprofundaremos em cada definição que Zizek apresenta, mas a experiência psicanalítica do ato nos parece interessante para nossa análise. O primeiro passo que Zizek dá neste percurso é explicitar brevemente quais são as três dimensões fundamentais que um ser humano habita a partir das teorias lacanianas: o imaginário, o simbólico e o real. A dimensão do imaginário, diz Zizek, é “nossa experiência vivida direta da realidade, mas também de nossos sonhos e pesadelo - é o domínio do aparente, de como as coisas se parecem para nós.” (ZIZEK, 2017, p.80). Já a dimensão do simbólico é o que Lacan chama de “grande Outro”, “o outro invisível que estrutura nossas experiências de realidade” (ZIZEK, 2017, p.80), que nos faz ver e sentir o que vemos e 33 sentimos da maneira que vemos e sentimos - e também o que não vemos e não sentimos da maneira que não vemos e não sentimos. É onde estabelecemos e investimos significações e valores, sempre em tensão com a complexa rede de regras e significados pré-determinados. O real é o “impossível”, algo que não pode nem ser diretamente vivenciado ou simbolizado, “como um encontro traumático de extrema violência que desestabiliza inteiramente nosso universo de significado” (ZIZEK, 2017, p.80). Dessa maneira, o real só pode ser apreendido e discernido através de vestígios, efeitos e consequências e, estando para além da linguagem, podemos enunciá-lo apenas através de metáforas ou metonímias. Nos deteremos à dimensão simbólica e ao seu acontecimento para demonstrarmos de qual outra maneira podemos interpretar os eventos de junho de 2013. O acontecimento simbólico é aquele em que há a uma emergência de um novo significante-mestre ZIZEK, 2017, p.91), ou seja, é aquele momento “em que o significante - uma forma física que representa um significado - entra no significado, no que ele significa, quando o significante se tornar parte do objeto que designa.” (ZIZEK, 2017, p. 91). O movimento de junho de 2013 agrupou várias pessoas de ideologias políticas diferentes frentes a um significante-mestre, que podemos nomear de "progresso”. Cada pessoa receberá um significado diferente, a depender de sua posição social e grupo político, porém o pacto social, “a unidade que esse significante vai impor não será, não obstante, simplesmente ilusório” (ZIZEK, 2017, p.91), ele vai estabelecer sua própria realidade social. O perigo, como vimos se desenvolver na história recente do país, é a usurpação deste significante-mestre por grupos de extrema-direita e reacionários, que viram neste acontecimento aflorar ideias e crenças que pareciam esquecidas ou superadas. De alguma maneira a guinada "à direita" da política brasileira se constrói nesse feito simbólico - com a elevação de um novo significante-mestre, esses grupos se inscreveram e escreveram o discurso com sua própria linguagem, fazendo com que os debates ocorressem, mesmo que contrários a suas ideias e suas práticas, dentro de seu próprio território. Como vimos, a própria lógica irrompante do acontecimento é violenta, uma vez que é de modo abrupto que ele se dá, suspendo o acontecimento no tempo, reestruturando passado e futuro. A usurpação do significado-mestre também, no exemplo que desenvolvemos nesta seção, pode ser violenta ao manter o status quo, servir para manutenção do grau zero de violência próprio do sistema capitalista. Entretanto, há outros modos do acontecimento estar relacionado com a violência: Veremos no terceiro conto analisado, “Crías”, de María Fernanda Ampuero, de que modo uma ação violenta fica suspensa temporalmente e ressoa seus significados para o passado e para o presente da enunciação. 34 4. SEMIÓTICA: FIGURAS, TEMAS E PAIXÕES Até agora nos debruçamos em conceitos e questões que dizem respeito às temáticas e às figuras que as autoras com as quais trabalharemos utilizam para suas composições narrativas. Falta-nos, então, apresentar qual será nossa abordagem quanto à construção da narrativa e de seus significados, qual a perspectiva e linha de análise base que conciliaremos com os assuntos até agora apresentados. A semiótica de linha francesa é a nossa escolha para investigar as diferentes significações e os efeitos de sentido que a mediação das obras de arte e dos objetos estéticos dentro dos contos de Schweblin e Ampuero. Um dos principais motivos que nos levam por esse caminho é o entendimento de que a semiótica de Algirdas Julius Greimas (1917-1992 ) não se trata “somente de um projeto científico, na acepção estrita do termo, mas também de um tipo de mirada marcada por um duplo compromisso, ao mesmo tempo estético e ético.” (LOPES, 2003, p.65 ). Nosso recorte das teorias semióticas abrange as discussões de Denis Bertrand (1949-) sobre a semiótica literária em seu livro “Caminhos da Semiótica literária” (2003), sobretudo quanto aos conceitos de figurativização e tematização, e as reflexões sobre a semiótica das paixões nos trabalhos “Da imperfeição” (2002), de A.J. Greimas, e “Semiótica das paixões” (1993), de Greimas e Jacques Fontanille (1948- ). 4.1. Semiótica discursiva Iniciamos nosso percurso buscando esclarecer que o objeto da semiótica é o sentido, ou, como afirma Jean-Claude Coquet , “o objeto da semiótica é explicitar as estruturas significantes que modelam o discurso social e o discurso individual” (COQUET apud BERTRAND, 2003, p.13). Temos então que a proposta da semiótica é desenvolver conceitos que demonstrem as condições de apreensão e produção de sentido em uma determinada enunciação. O conceito de enunciação é central para os estudos semióticos pois é através do ato da enunciação que é criado o espaço de comunicação necessário para as significações. A enunciação é tanto o ato de enunciar, a passagem da langue saussuriana para a parole - ou seja, um ato extralinguístico - como o produto desse ato, no qual podemos encontrar os sujeitos da enunciação (quem enuncia, o enunciador, e a quem se enuncia, o enunciatário) e o que se enuncia (o enunciado) – ou seja, um ato linguístico. Em termos semióticos, a enunciação é “uma instância que possibilita a passagem entre a competência e a performance 35 (linguísticas); entre as estruturas semióticas virtuais… e a estruturas realizadas sob a forma de discurso.” (COURTÉS & GREIMAS,1979, p.146). Um dos primeiros modelos estruturais apresentados por Greimas para a apreensão do sentido é um percurso global “que simula a “geração” do sentido, desde as estruturas profundas até as estruturas da superfície, e por fim sua operacionalização pelo “filtro que é a instância da enunciação” (BERTRAND, 2003.p.17). Discorreremos um pouco sobre esse percurso pautando-nos no modelo apresentado por José Luiz Fiorin (1942- ) na obra “Elementos de análise do discurso” (2018) - importante contribuição para a introdução da semiótica nos estudos brasileiros sobre a linguagem. O percurso é uma sucessão de três patamares, cada um é suscetível de ser descrito adequadamente, o que mostra como se produz e apreende o sentido, em um processo que vai do mais simples para o mais complexo. Cada patamar possui seu componente sintático e seu componente semântico e se divide em: nível fundamental (ou profundo), narrativo e discursivo. No nível fundamental, o componente semântico se configura pela disposição de dois termos-elementares, como o exemplo clássico /morte/ x /vida/, que estão na base da produção textual. Esse par de termos precisa fazer parte do mesmo campo semântico, em uma relação de contrariedade. O exemplo que Fiorin usa é dos termos /masculinidade/ x /feminilidade/, que se contrastam com sentido contrários, contudo, como assinala Fiorin, não têm seu valor semântico fundamentando na negatividade: a masculinidade não é a falta de feminilidade, é um termo que possui significado próprio. Já o componente sintático articula esses valores mínimos de significação em duas operações, podendo afirmar o valor do termo x ou negá-lo. No nível narrativo, a “sintaxe trata das relações entre sujeito e objeto, um simulacro da ação do homem no mundo” (TERRA, 2016, p.203), constituindo narrativas mínimas, que são aquelas que possuem um estado inicial, uma transformação e um estado final. Há dois tipos de narrativas elementares: os enunciados de fazer e os enunciados de estado. Os enunciados de estado são aqueles que estabelecem relações de injunção (conjunção ou disjunção) entre sujeito e objeto, como nos exemplos “Carlos é alto”, no qual o sujeito Carlos está em conjunção com o objeto altura, e “Carlos não é alto”, no qual o sujeito Carlos está em disjunção com o objeto altura, revelado pela negação entre ser e alto. Já os enunciados de fazer são aqueles em que se opera a passagem de um estado de conjunção para um de disjunção ou vice-versa. Conforme Ernani Terra (2016) afirma, “os enunciados de estado situam-se no tempo e no espaço; os de fazer, por corresponderem a transformações de estado, 36 devem ser interpretados como passagem de um lugar para outro ou de um tempo para outro.”(p.204). Os textos não são narrativas mínimas, mas sim encadeamentos destas, organizando-se estruturalmente entre vários enunciados de estado e enunciados de fazer, estabelecendo uma narrativa complexa. Essa narrativa complexa é estabelecida em uma sequência canônica: a manipulação, a competência, a performance e a sanção. (FIORIN, 2018, p.29). Na fase de manipulação, um sujeito age sobre o outro a fim de levá-lo a querer ou aceitar fazer algo - o destinador-manipulador imbui o sujeito de um saber-fazer ou poder- fazer, transformando-o em destinatário. Há inúmeros modos de manipulação, contudo, nos centraremos nos quatro mais clássicos: se o manipulador impele o destinatário à ação através do saber, isso se dá pela sedução, quando o juízo é positivo quanto à competência do destinatário, ou pela a provocação, quando o juízo é negativo; as manipulações pelo poder são a tentação, quando há uma recompensa prometida pelo destinador, e a intimidação, quando a manipulação é feita através de ameaças. A fase da competência é decorrente da manipulação do destinador-manipulador: é o momento da transformação do destinatário que, através do conhecimento adquirido passa a ser um sujeito do fazer. A performance é a fase que se dá a transformação central da narrativa (mudança de um estado para o outro). É neste momento da narrativa que o sujeito entra em conjunção ou disjunção com o objeto que foi o motivo da manipulação. Por fim, temos a sanção, momento da narrativa no qual ocorre a constatação de se a performance foi realizada ou não e, por consequência, o reconhecimento do sujeito que operou a transformação. É nesse momento também, que as recompensas e os castigos são distribuídos. Um rei que promete aos súditos um pequeno feudo caso algum deles derrote o dragão que está na torre do castelo é uma manipulação por tentação. O herói que aceita este encargo e busca ajuda de um mago do reino, que o imbui de um artefato antigo e poderoso, o possibilitando de vencer o dragão, é a fase da competência. O embate com o dragão é a performance, e a sanção se dá quando o herói retorna até o trono do rei, é reconhecido como o salvador do reino e recebe, como prometido, a posse das terras. Os enunciados nem sempre serão construídos através da sequência canônica, cada narrativa possui seu encadeamento próprio de elementos, porém a sequência nos dá um norte para o seu entendimento. Nestes últimos dois parágrafos, tratamos da sintaxe do nível narrativo. Falaremos, então, do componente semântico. Tomemos como ponto de partida que “a semântica do nível narrativo ocupa-se dos valores inscritos nos objetos.” (FIORIN, 2018, p.36). Em uma narrativa aparecem dois tipos de objetos: objetos modais e objetos de valor. Os objetos 37 modais são o querer, o dever, o saber e o poder fazer, isto é, aqueles elementos necessários para realizar a performance principal. Já os objetos de valor são aqueles que entram em conjunção ou disjunção na performance principal. Contudo, Fiorin nos lembra que o valor do objeto no nível narrativo não é idêntico ao objeto concreto manifestado no nível discursivo do percurso: “O valor do nível narrativo é o significado que tem um objeto concreto para o sujeito que entra em conjunção com ele” (2018. p.37). Retomando nosso exemplo, o artefato mágico que o mago oferece ao herói é o objeto concreto, porém seu significado como objeto modal é de /poder vencer/; já o feudo, oferecido ao herói pelo rei, pode ter algumas significações diferentes como objeto de valor, a depender de outras minúcias da narrativa, das quais não dispomos - ele pode ter um valor de /poder/, /status/ ou /refúgio/. Por fim, temos o nível discursivo, no qual, as formas abstratas dos níveis anteriores são “revestidos de termos que lhe dão concretude.”(p.41). Relembrando mais uma vez nosso enunciado, é nesse nível que a conjunção com o /poder/ e a disjunção com a /vida/ são transformados em nosso herói reclamando seu feudo e na morte do dragão, respectivamente. O componente semântico deste nível é responsável pela transformação do percurso narrativo em percursos temáticos e figurativos, constituindo as isotopias - entraremos em mais detalhes ao decorrer do texto. Quanto à sintaxe, “ela trata das relações entre enunciação e discurso e das relações entre enunciador e enunciatário, especialmente dos recursos argumentativos de que se vale o primeiro para levar o segundo a um crer e a um fazer.” (TERRA, 2016, p. 206). Podemos distinguir dois aspectos da sintaxe do discurso, as projeções da instância da enunciação e do enunciado e as relações entre enunciador e enunciatário através da argumentação (FIORIN, 2018, p.57). Ao enunciarmos, instauramos um eu-aqui-agora, projetando para fora da enunciação seus atores bem como sua localização espaço-temporal. Existem dois mecanismos básicos nessa operação: a debreagem e a embreagem. Para elucidarmos como funcionam tais mecanismos, utilizaremos estes dois enunciados: a) Eu estou aqui na caverna do dragão, esperando que amanheça e que os perigos da noite se acalmem. b) O herói esperou pacientemente que o céu se iluminasse, distante de tudo aquilo que um dia ele chamou de lar. No primeiro enunciado, estão projetados uma pessoa (eu), um tempo (agora) e um lugar (aqui), enquanto no segundo, estão projetados uma pessoa (o herói), um tempo (não agora) e um lugar (não aqui). Esses três elementos são definidos de acordo com a instância de narração: 38 no segundo enunciado, o herói assume o papel de ele, aquele que não fala e também aquele a quem não se fala - enunciador e enunciatário - e o tempo e o espaço diferem daqueles da instância narrativa - são respectivamente então e alhures, um tempo que não é agora e um local que não é aqui. Entretanto, em ambos os casos houve a projeção dos três elementos do enunciado, o que chamamos de debreagem: quando há a projeção é do eu-aqui-agora ocorre a debreagem enunciativa, já quando falamos do ele-alhures-então, temos a debreagem enunciva. Há três tipos de debreagem enunciativa e três tipos de debreagem enunciva: actancial, referente às pessoas da enunciação, temporal, referente ao tempo, e espacial, referente ao espaço. Não nos aprofundaremos nos pormenores de cada aspecto, uma vez que nosso intuito é buscar uma compreensão geral do percurso gerativo do sentido. Existem casos em que é suspensa a oposição entre pessoa, lugar ou tempo, mecanismo chamado de embreagem. Assim, quando a mãe diz ao filho: “A mamãe está muito orgulhosa de você”, suspende-se a oposição entre eu e ele com a utilização de uma terceira pessoa no lugar da primeira. Ou, ainda, quando dizemos: “Em 14 de março de 1883 morre Karl Marx”, suspendemos a oposição entre então e agora, ao trocarmos o verbo no pretérito perfeito para o presente do indicativo. A embreagem é utilizada para criar efeitos de sentido, tais como um efeito de objetividade, como no caso da embreagem actancial, e um de proximidade ao fato ocorrido, com a utilização da embreagem temporal. Por fim, falaremos dos mecanismos argumentativos entre enunciador e enunciatário na sintaxe discursiva. Temos que a “finalidade última da comunicação não é informar, mas persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado.” (FIORIN, 2018, p.75). Sendo assim, estabelecemos um jogo de persuasão sempre que realizamos um ato de comunicação. Nesse jogo, utilizamos de procedimentos argumentativos para levarmos o enunciatário a tomar como verdadeiro, como válido, o sentido que produzimos. Há vários artifícios argumentativos possíveis, entretanto, seguindo a nossa proposta junto a Fiorin, trataremos de dois muito comuns: a ilustração e as figuras de pensamento. A ilustração é o procedimento no qual o narrador enuncia uma afirmação geral e dá vários exemplos para argumentar a favor de sua afirmação. É um dos procedimentos padrões em textos como o que estamos aqui desenvolvendo, no qual, através de alguns casos particulares, buscamos comprovar a relevância e a validade geral do que estamos enunciando. As figuras de pensamento são de difícil sistematização, uma vez que algumas delas são formadas pela conjunção de outras, como Fiorin apresenta por meio de uma antítese 39 formada por duas hipérboles13. Entretanto, as figuras de pensamento são bastante familiares a nós, pois na escola aprendemos várias delas sob o nome de figuras de linguagem ou figuras de retórica, tais como a antítese, a hipérbole, a ironia e a reticência. Essas figuras são construídas através da relação entre enunciado e enunciação, a ironia acontece, por exemplo, quando afirmamos algo no enunciado, contudo negamos na enunciação. Para concluirmos a exposição do percurso gerativo, destacamos que ele possui apenas caráter operacional, possibilitando ao analista “descobrir as invariantes que regem o discurso e que cada nível funciona como uma complementação do sentido do nível que o antecede “(TERRA. 2016, p.206). Tomando o quadro14 que Fiorin (2018 ) produz em seu livro, o percurso é sistematizado assim: Componente Sintático Componente Semântico Estruturas semionarativas Nível profundo (Fundamental) Sintaxe fundamental Semântica fundamental Nível de superfície (Narrativo) Sintaxe narrativa Semântica narrativa Estruturas discursivas Sintaxe discursiva Discursivização (Actorialização, temporalização, espacialização) Semântica discursiva Tematização Figurativização Findado nossa exposição do percurso gerativo de sentido, passaremos a um ponto importante para o desenvolvimento futuro de nossas análises: os conceitos de figurativização e tematização - que são essenciais para o estudo da literatura. Como vimos, ambos os processos fazem parte do componente semântico do nível discursivo, nível no qual revestimos as abstrações dos níveis mais profundos fazendo “surgir aos olhos do leitor a “aparência” do mundo sensível.” (BERTRAND, 2003, p.21). A literatura é um discurso figurativo: ele representa uma relação imediata, uma correspondência, entre as figuras semânticas presentes na enunciação e as do mundo, as quais o leitor “experimenta sem cessar em sua experiência sensível.” (BERTRAND,2003, p.29). É, como afirma Bertrand, a mimesis. O conceito de 13 “Agora sobre as nuvens os subiam/as ondas de Netuno furibundo,/agora ver parecer que desciam/ as íntimas entranhas do Profundo.” p.77 14 Fonte: Fiorin, 2018. 40 figurativização foi tomado da teoria estética, na qual ele é oposto à arte “não-figurativa”, “abstrata”. Na semiótica não se trata, entretanto, de uma oposição radical, mas sim de diferenças graduais que vão do abstrato ao concreto. Fiorin (2018, ano, p.91) nos diz que a figura é o termo que remete a algo que possui um correspondente perceptível no mundo natural, e por serum termo que remete ao mundo natural, a figura não está presa a representar o mundo natural como realmente existe, mas também um mundo natural produzido. Veremos em breve que Bertrand trata a figurativização como relação entre duas semióticas, problematizando a noção de referencial da semântica. Já os temas são investimentos semânticos, representando conceitos de natureza conceitual, sem remeterem-se ao mundo natural. Textos acadêmicos, jornalísticos e o discurso científico são exemplos de enunciados predominantemente temáticos - predominante sim, mas é importante dizer que tanto o texto figurativo não é um mero simulacro de realidade, possuindo tematizações, como figurativizações são importantes para um encadeamento persuasivo de textos científicos. Um interessante resumo acerca da natureza das figuras e dos temas nos é dado por Fiorin “Aqueles (os discursos figurativos) são feitos para simular o mundo; estes (os discursos temáticos), para explicá-los.” (p.91). Quando pensamos a figurativização como relação entre duas semióticas, entramos em um diálogo com a fenomenologia. Ver não é apenas identificar ou discernir os objetos, mas apreender suas relações a fim de construir suas significações. Dessa maneira, constitui-se um “universo significante, ou seja, uma semiótica.” (BERTRAND,2003, p.159). O mundo visível pode ser considerado como uma linguagem biplana, que comporta um plano de expressão e um plano de conteúdo. A percepção integra a causa e a consequência, coorganiza a realidade ao passo que a significa e a apreende - segundo a fórmula do semioticista italiano P. Fabbri, “não referimos o real: proferimo-lo” (FABBRI apud BERTRAND, 2003, p.161). A figurativização ocorre então na interação entre a semiótica do mundo natural e a semiótica das manifestações discursivas das línguas naturais. Sendo assim, já não há sentido pensar em referente real ou referente fictício, mas sim no contrato de veridicção que é interno ao discurso. Antes de adentrarmos aos detalhes do contrato de veridicção, abordaremos um conceito muito importante para compreensão desse contrato, que é a estrutura sêmica. A unidade básica do significado na manifestação discursiva (o semema) é constituída através de arranjos de figuras semânticas elementares, os semas. O sema é a unidade mínima da significação e é estruturalmente uma unidade diferencial, ou seja, é constituído por relações estruturais que, por sua vez, são construídas por oposições elementares, tais como alto/baixo, vida/morte, ou graduais, como frio/morno/quente. Considerando o lexema cadeira, 41 que possuí várias possibilidades de sememas (de jantar, de praia), temos que existe um conjunto de traços comuns a todas essas possibilidades – aos quais chamamos núcleo sêmico - que, somados a semas variáveis, a depender do contexto, possibilitam a variedade de sememas; por exemplo, o sema /flexível/ não faria parte dos semas de uma cadeira encontrada em uma sala de jantar, entretanto é possível que esse seja um atributo de uma cadeira de praia, em contrapartida o sema /luxo/ não é um traço comum a cadeira de praia. Alguns efeitos de sentido são obtidos quando o enunciador manifesta em seu discurso sememas nos quais alguns semas não são associados rotineiramente a eles. O exemplo que Bertrand traz em seu livro é o de um slogan feminista dos anos 70 que dizia: “49% das mulheres são homens.” (BERTRAND, 2003, p.167). Em sua análise, Bertrand mostra que o estranhamento causado pelo slogan é motivado por uma “adição sêmica” ao termo mulher, na qual, se atribui o sema /espécie/ a mulher, o qual é característico do termo homem, deslocando-se o papel marcado do primeiro termo que é o sema /sexualidade/, mas é esse primeiro termo que deveria ser o termo designativo para a espécie, uma vez que demograficamente as mulheres são maioria. Ainda sobre os semas, podemos falar sobre densidade sêmica. Do mesmo modo que caracterizamos tematização e figurativização como uma oposição gradativa, do abstrato à figura, dentro da própria figurativização temos também um “percurso gradativo” que vai também de uma abstração a uma iconicidade, sendo a quantidade de traços sêmicos, a densidade sêmica, o que define a figura como abstrata ou como um ícone. Por ora, definiremos que o ícone ocorre quando “os traços que o formante reúne forem suficientes para “permitir sua interpretação como representante de um objeto do mundo natural”. (BERTRAND, 2003, p.210). Agora podemos retomar nossa exposição acerca do quadrado semiótico, uma vez que ele “situa-se em estreita continuidade com a análise sêmica.” (BERTRAND, 2003, p.171). Bertrand afirma que Greimas, ao propor o quadrado de veridicção, propunha inicialmente explicar as vicissitudes da circulação dos saberes no interior da narrativa, tais como os segredos, os mistérios, os mal-entendidos e as mentiras. Esse quadrado, chamado “quadrado semiótico”, na teoria greimasiana, se apresenta revestido dos valores de ser e parecer e de suas negações. Sendo assim, se há coincidência entre ser e parecer, temos o valor de “verdade”; a coincidência entre não-ser e parecer nos dá o valor de “mentira”; o valor de “falsidade” corresponde a coincidência entre não-ser e não parecer; por fim, a relação entre não-parecer e ser equivale ao valor de “segredo”. É nesse sentido de possibilidades de saberes dentro de uma narrativa que agora apoia-se a verossimilhança e não mais, como já vimos, em referenciais do mundo natural. Entretanto,