JULIANA ARAÚJO FERREIRA NOMEANDO O INOMINÁVEL: a evolução das contribuições teóricas de Frances Tustin acerca do funcionamento dinâmico autístico em crianças e adultos ASSIS 2014 JULIANA ARAÚJO FERREIRA NOMEANDO O INOMINÁVEL: a evolução das contribuições teóricas de Frances Tustin acerca do funcionamento dinâmico autístico em crianças e adultos Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Prof. Dr. Jorge Luís Ferreira Abrão ASSIS 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da FCHS – Franca - UNESP Ferreira, Juliana Araújo Nomeando o inominável: a evolução das contribuições teóricas de Frances Tustin acerca do funcionamento dinâmico autístico em crianças e adultos / Juliana Araújo Ferreira. – Assis: [s.n.], 2014 156 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Orientador: Jorge Luís Ferreira Abrão 1. Tustin, Frances. 2. Autismo. 3. Psicanálise – História. 4. Filo- sofia da mente. I. Título. CDD – 616.8982 A todos que buscam, incansavelmente, saber um pouco mais. Aos 81 anos, em uma casa de repouso e com câncer em estágio avançado, Tustin era questionada por amigos ao telefone se podiam visitá-la e o que era permitido levar. Ela poderia ter flores em seu quarto? Doces? Havia algo que ela precisasse? Algo que quisesse? Ao que ela sempre replicava: “Ah não, eu não quero coisas! Eu só quero pessoas! Tragam- me palavras! 1 ” (Contado por Judith Mitrani, psicanalista americana e amiga de Tustin até seus últimos dias) 1 Oh no, I don´t want things! I just want people! Bring me words! (MITRANI, 1997, p. xvi) AGRADECIMENTOS Correndo o desagradável risco de deixar alguém de fora... Ao meu pai que, embora já tenha partido para habitar outros mundos, deixou como sua maior e mais valiosa herança a educação dos filhos. Sem ele, nada disso teria sido possível. À minha família, por me atrapalhar tanto na redação desta dissertação. Minha mãe com a sua frase típica “larga isso um pouco, menina”, enquanto chamava para um churrasco e madrugadas de baralho, à Tia Lu com sua fofice e preocupação característica sempre me questionando se eu tinha ido à casa de fulano, ligado para cicrano, cuidado da vida cotidiana porque eram “mais importantes que ficar enfiada em casa escrevendo” e, por fim, infinitamente fundamental na minha vida, minha sobrinha tocando a campainha: “Tia Ju, é a Alice. Vim brincar na sua casa.” Eu jamais trocaria sua companhia por nada. Foram reciclagem, força e inspiração. Agradeço por terem me mantido no mundo dos humanos. Ao meu marido José Carlos, meu mais amado agradecimento. Seu apoio e companheirismo foram fundamentais no processo. Mesmo sem entender uma palavra do que estava sendo escrito, ouviu pacientemente minhas elocubrações, aguentou as idas para Assis e minhas ausências em diversas ocasiões. Ao meu orientador Jorge - que em nada se parece com o caricato (des)orientador ausente - minha profunda gratidão pela oportunidade, o voto de confiança, a orientação esclarecedora, as críticas enriquecedoras e o caminho ensinado até a Euro Pizza. Ao Prof. Dr. Manoel Antônio dos Santos, Prof. Dra. Helena Rinaldi Rosa e Prof. Dr. Walter José Martins Migliorini pelas gentis críticas e encorajamento. Suas sugestões criam raízes dentro de mim e germinam muito bem, obrigada. Aos meus companheiros de classe, dissertação, piada interna, cafés, rodízios de pizza, sessões de filmes horrorosos, hippo wings, intermináveis conversas, vergonha alheia, piadas infâmes no facebook, risadas desesperadas na reta final: Bárbara Sinibaldi, Tanya Cardoso (TMC), Fabiana Ribeiro, Adriana Oliveira, Ana Lúcia Volpato, Camila, Damaris, Bell, Ederson, Cizina, muito obrigada pela companhia. Sem vocês, essa trajetória - tão solitária às vezes! - teria sido bem mais difícil. Um agradecimento especial à Barbara Sinibaldi, que me abriu as portas de sua casa e me deu o conforto de uma boa amizade numa terra distante e desconhecida para mim. Por todas as vezes que me ajudou com os papéis, assinaturas, datas, com sua incansável boa vontade e pernocas para percorrer, encalorada, aquela Dom Antônio... muitíssimo obrigada, Barbs! Agradeço à Ana Lúcia Volpato, por partilhar comigo os perrengues das assinaturas e visitas intermináveis à secretaria da pós, com 7689275762,99 kilos de papel em mãos e as longas conversas telefônicas, com um merecido desabafo de ambas. À Tanya MC, pela agradabilíssima companhia no Congresso chiquérrimo, nas viagens, no bom humor, nas conversas no face em dias críticos, menina de ouro. Aos funcionários da secretaria da pós, pela constante gentileza. Um especial agradecimento ao Ricardo Francelino por sua altíssima resiliência a alunos atormentando. À minha grande amiga Daniele Palomo e às promoções das companhias telefônicas que permitiram o alívio das conversas amigas em momentos tão difíceis e diante da distância física que a vida, às vezes, exige. A Capes, sem a qual o trabalho teria se tornado inviável. Se fosse possível, eu agradeceria pessoalmente a Sra. Tustin pelas lições de vida e conduta. Essa senhora mereceria meu mais deselegante abraço de urso. A todos, minha mais honesta gratidão. FERREIRA, Juliana Araújo. Nomeando o inominável: a evolução das contribuições teóricas de Frances Tustin acerca do funcionamento dinâmico autístico em crianças e adultos. 2014. 156f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista – UNESP, 2014. RESUMO Frances Tustin foi uma reconhecida psicoterapeuta de crianças de orientação psicanalítica que, com sua efetividade terapêutica e concepções originais, ampliou e expandiu as teorias vigentes sobre o funcionamento autístico, influenciando terapeutas em seu trabalho clínico e acadêmico em diversas partes do mundo. Buscamos preencher uma lacuna na literatura sobre o tema no Brasil, que atualmente tem à disposição uma visão fragmentada da obra da autora, resultando em uma compreensão parcial e a-histórica de seu sistema conceitual. O objetivo deste trabalho consiste em compreender a evolução histórica da obra de Frances Tustin no contexto original em que foi produzida. Para tal, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, circunscrita no campo da historiografia psicanalítica, elaborada a partir de uma abordagem histórico-epistemológica. Essa consiste em um estudo dos principais conceitos de um autor, através da leitura e análise minuciosa de sua obra, levando-se em consideração diversos fatores de influência, tais como: o momento histórico e psicanalítico da época, a biografia do autor, sua experiência clínica, entre outros. O material de pesquisa foram os escritos completos de Frances Tustin. A partir de um processo de análise detalhada o trabalho foi dividido em três períodos principais: 1) Primeiros Escritos (1951-1972), onde foram apresentadas suas ideias iniciais como o conceito de autismo infantil normal e patológico, a depressão psicótica e os processos autisticos, o primeiro sistema classificatório e as primeiras considerações acerca da etiologia autística; 2) Elaborações (1973-1989), período em que a autora expande e apresenta vários conceitos originais sobre o funcionamento dinâmico desses estados como os objetos e formas autísticas, os terrores primitivos e as barreiras autistas em pacientes neuróticos e 3) Revisões (1990-1994), quando a autora faz importantes revisões em sua obra e abandona ideias como a da existência de um período de autismo normal no desenvolvimento da criança e do termo autismo psicogênico. Suas contribuições teóricas ultrapassam as origens junto às crianças autistas, em direção à compreensão e tratamento de pacientes adultos psicóticos, borderline e neuróticos. Seu trabalho possibilitou o contato e a troca de experiências com trabalhadores de diversas instituições, elucidando os aspectos afetivos envolvidos tanto no funcionamento dos pacientes quanto em sua relação com os cuidadores. A obra de Frances Tustin é amplamente conhecida e respeitada em diversos países do mundo e permanece atual em meio aos avanços das neurociências como uma contribuição complementar que possibilita uma maior compreensão acerca do funcionamento dinâmico dos estados mais regredidos da mente. Palavras-chave: Psicanálise, Frances Tustin, História da Psicanálise, Estados Primitivos da Mente, Autismo. FERREIRA. J. A. Naming the unnameable: the evolution of Frances Tustin theoretical contributions on the autistic dynamic functioning in children and adults. 2014. 156f. Dissertation (Master’s Degree in Psychology) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista – UNESP, 2014. ABSTRACT Frances Tustin was a renowned child psychotherapist psychoanalytically oriented that, with her original conceptions and therapeutic effectiveness, expanded the existing theories on autistic processes influencing therapists in their clinical and academic work in many places around the world. We aim to fill a gap in the literature on the subject in Brazil which, currently, presents a fragmented view of the author´s work, resulting in a partial and a- historical understanding of her conceptual system. The objective of this work is to understand the historical evolution of the work of Frances Tustin in the original context in which it was produced. To this end, we developed a qualitative research, circumscribed in the field of psychoanalytic historiography, drawn from a historical-epistemological approach. This consists in a study of the major concepts of an author by reading and painstaking analysis of his work, taking into consideration various factors of influence, such as: the historical and psychoanalytical period, the author's biography, his clinical experience, among others. The research material was the complete writings of Frances Tustin. From a detailed review process the work was divided into three main periods: 1) Early Writings (1951-1972), where her initial thoughts where presented as the concept of normal and pathological infantile autism, psychotic depression and autistic processes, the first classification system and the first considerations about autistic etiology; 2) Elaborations (1973-1989), period in which the author expands and presents several original concepts on the dynamic functioning of these states such as autistic objects and autistic shapes, primitive terrors and autistic barriers in neurotic patients and 3) Revisions (1990-1994), when the author makes important revisions in her work and abandons ideas such as the existence of a period of normal autism in the development of the child and the term psychogenic autism. Her theoretical corpus has not only assisted the attendance of autistic children, but also psychotic, borderline and neurotic adult patients. It enabled contact and exchange experiences with workers from various institutions, elucidating the affective aspects involved in the functioning of patients and the dynamics of their relationships with caregivers. The work of Frances Tustin is widely known and respected in many countries and remains modern among the significant neuroscience advances as a complementary contribution for a greater understanding on the psychodynamics of the most regressed states of mind. Keywords: Psychoanalysis; Frances Tustin; History of Psychoanalysis; Primitive States of Mind; Autism. SUMÁRIO Apresentação ......................................................................................................................... 11 1. FRANCES TUSTIN: UMA PROBLEMATIZAÇÃO DA OBRA NO CONTEXTO BRASILEIRO ................................................................................................ 13 1.1 Problema e justificativa ........................................................................................... 13 1.2 Objetivos .................................................................................................................. 16 1.2.1 Objetivo Geral ............................................................................................. 16 1.2.2 Objetivos Específicos .................................................................................. 16 1.3 Sobre o método ........................................................................................................ 16 1.3.1 As idiossincrasias psicanalíticas: breves considerações ......................... 16 1.3.2 Os pressupostos metodológicos deste estudo: a abordagem histórico- epistemológica ...................................................................................................... 19 1.3.3 Construindo a pesquisa ........................................................................... 20 2. O SURGIMENTO DO CONCEITO DE AUTISMO E SUAS REPERCUSSÕES NA PSICANÁLISE .............................................................................................................. 25 2.1 Um breve relato histórico sobre o conceito de autismo .......................................... 26 2.2 Autismo e psicanálise se encontram ....................................................................... 30 3. DAS EXPERIÊNCIAS PESSOAIS ÀS INFLUÊNCIAS TEÓRICAS: CONSTRUINDO UM PENSAMENTO ORIGINAL ........................................................ 33 3.1 Dados biográficos ............................................................................................ 33 3.2 As influências teóricas ..................................................................................... 45 4. PRIMEIROS ESCRITOS (1951-1972) .................................................................... 48 4.1 O conceito de Autismo Infantil Primário Normal e Patológico .............................. 49 4.2 O elemento significativo no desenvolvimento do autismo: a depressão psicótica .. 51 4.3 Processos autísticos: o sistema de encapsulamento ................................................. 65 4.4 O primeiro sistema classificatório ........................................................................... 73 4.4.1 Autismo Primário Anormal (APA) ............................................................. 74 4.4.2 Autismo Secundário Encapsulado (ASE).................................................... 75 4.4.3 Autismo Secundário Regressivo (ASR) ...................................................... 77 4.4.4. As diferenças entre os estados de APA, ASE e ASR ................................. 78 4.5 Primeiras considerações sobre a etiologia do funcionamento autístico .................. 80 5. ELABORAÇÕES (1973-1989) ................................................................................. 85 5.1 O novo sistema classificatório ................................................................................. 86 5.2 Objetos Autísticos .................................................................................................... 92 5.3 Formas Autísticas .................................................................................................. 104 5.4 Os Terrores Primitivos .......................................................................................... 116 5.4.1 Os terrores de Queda ................................................................................ 117 5.4.2 Os terrores de Derramamento e Dissolução ............................................. 120 5.4.3 A Mouthful of Sucklings ............................................................................ 125 5.5 Barreiras autistas em pacientes neuróticos ............................................................ 127 6. REVISÕES (1990-1994) ......................................................................................... 131 6.1 O abandono da ideia de autismo infantil primário ................................................ 131 6.2 Alterações no sistema classificatório .................................................................... 134 6.3 Etiologia dos estados autísticos: reconsiderações ................................................. 136 6.4 A mudança do termo “autismo psicogênico” ........................................................ 139 6.5 O autismo como função protetora contra o trauma ............................................... 140 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 144 REFERÊNCIAS GERAIS .................................................................................................. 147 REFERÊNCIAS ESPECÍFICAS: A OBRA DE FRANCES TUSTIN .......................... 153 11 Apresentação O presente trabalho surgiu como resultado de um duplo interesse: o estudo dos aspectos históricos da psicanálise com crianças e o interesse nas contribuições psicanalíticas relacionadas à compreensão e tratamento dos transtornos ligados aos estados primitivos da mente, ambos objeto de estudo do grupo de pesquisa coordenado pelo Prof. Dr. Jorge Luís Ferreira Abrão na Faculdade de Ciências e Letras de Assis. A obra de Frances Tustin foi, portanto, fonte de grande interesse, uma vez que a autora foi uma psicoterapeuta de crianças de orientação psicanalítica reconhecida por sua efetividade terapêutica junto a crianças autistas e psicóticas, além de prolífica autora e incansável pesquisadora dos estados primitivos da mente. Sua produção teórica ampliou as teorias vigentes sobre o tema e se expandiu por todo o mundo influenciando terapeutas em seu trabalho clínico e acadêmico. Sua contribuição acerca dos estados mais regredidos do funcionamento mental ampliaram as possibilidades clínicas não só com pacientes autistas e psicóticos, mas também borderline e neuróticos. Buscamos, através de uma abordagem metodológica histórica e epistemológica apresentar, à medida do possível, a obra de Frances Tustin de forma global, desde o início de sua produção teórica às formulações finais. Toda a pesquisa foi realizada com o material no idioma original em que foi produzido (inglês). Por essa razão, algumas considerações devem ser feitas. Os termos originais, assim como citações diretas que não foram traduzidos oficialmente para o português foram mantidos. No entanto, em muitas passagens, optamos pelas citações indiretas para propiciar maior fluência na leitura. As traduções feitas no Brasil foram apresentadas e mantidas na maior parte das vezes. As raras exceções em que se optou por utilizar outro termo foi quando a tradução não parecia muito adequada ao que a autora parecia se referir como, por exemplo, na tradução de “nasty prick”, traduzida oficialmente como “pica má” (TUSTIN, 1975). Apesar de também estar correta em termos de tradução, não pareceu representar por completo a vivência da criança que utilizou o termo. Utilizamos a tradução “picada ruim”, que pareceu mais condizente com as sensações de ser picado e perfurado que a criança apresentava no restante de seu material. Todos esses aspectos de tradução foram devidamente comentados no corpo do texto ou em notas de rodapé, quando necessário. A escolha da leitura no original foi feita para que não houvesse, no momento da leitura e análise, influência de outras traduções. Ao final da análise e diante da necessidade de 12 oferecer à literatura psicanalítica brasileira um texto complementar ao material já disponível, foi feita a leitura dos três livros já traduzidos para o português. O trabalho foi dividido em duas partes. Na Parte I foram apresentadas a problemática e justificativa para a realização deste trabalho, as delimitações, objetivos, metodologia utilizada, materiais, procedimentos e demais aspectos técnicos envolvidos na realização da pesquisa. A Parte II foi dividida nos seguintes capítulos: 1) Dados biográficos; 2) Primeiros Escritos (1951-1972); 3) Elaborações (1973-1989) e 4) Revisões (1990-1994). Tal divisão foi proposta com função meramente didática, a fim de sistematizar o material e proporcionar uma compreensão global do conjunto da obra de Frances Tustin. Foi baseada na natureza do conteúdo predominante, ou seja, o momento inicial das formulações seguido pelas elaborações, transformações e expansões decorrentes da experiência clínica e de supervisão e as revisões finais, pouco antes de sua morte, em 1994. 13 1 FRANCES TUSTIN: UMA PROBLEMATIZAÇÃO DA OBRA NO CONTEXTO BRASILEIRO 1.1 Problema e justificativa Ao se estudar a obra de Frances Tustin no Brasil, depara-se com, pelo menos, quatro problemas básicos: 1) a ausência de tradução de algumas obras de grande relevância para a compreensão global de seus conceitos-chave e das revisões que foram realizadas pela autora em seus últimos anos de vida; 2) os inevitáveis desvios semânticos que as traduções já realizadas apresentam em relação às suas formulações teóricas originais; 3) a falta de uma organização sistemática do conjunto de sua obra em português e 4) a dificuldade de acesso à obra. Segundo nosso entendimento, apesar da descontinuidade e pouca sistematização que caracteriza a introdução da obra de Frances Tustin no Brasil, seu trabalho assume grande relevância junto à psicanálise nacional, tendo em vista que, desde o início as concepções de autismo têm sido definidas por várias vertentes, em geral contraditórias e dogmáticas sobre a etiologia e tratamento. Tustin oferece ao autismo concepções originais e esclarecedoras no que se refere, principalmente, aos aspectos psicodinâmicos do transtorno, alterando significativamente o uso do conceito e as técnicas de manejo para tais condições e delimitando sua abordagem terapêutica aos casos que teriam origem predominantemente psicogênica 2 , além de ampliar sua aplicação aos pacientes borderline, neuróticos e os ditos “normais” e suas cápsulas autistas. Discutiremos detalhadamente cada um desses itens. No item um, ressaltamos a ausência de tradução de algumas de suas obras mais significativas. A maior parte de seu trabalho pode ser encontrada em artigos em inglês, francês, italiano e espanhol. Sua obra pode ser consultada no Brasil através da leitura de alguns de seus livros traduzidos para o português 3 e em artigos e livros publicados em diversos idiomas. No entanto, como apenas seus primeiros livros foram traduzidos e as publicações ulteriores que reviam sua obra não o 2 O conceito de autismo psicogênico sofre revisões nos últimos anos de sua produção teórica. Ver Capítulo “Revisões”, p. 131. 3 Apenas seus três primeiros livros sobre autismo foram traduzidos para o português: Autismo e Psicose Infantil (TUSTIN, 1975), Estados Autísticos em crianças (TUSTIN, 1984f) e Barreiras autistas em pacientes neuróticos (TUSTIN, 1990b). 14 foram, o estudo integral de sua obra se torna tarefa difícil para aqueles que não compreendem outras línguas, resultando em uma leitura parcial, com um viés a-histórico que, inevitavelmente, incorreria em erro de compreensão de seu sistema conceitual. No item dois, identificamos que outro problema enfrentado atualmente na leitura de seus livros são algumas divergências nas traduções em pontos importantes de seus conceitos. Embora não incorram em erro, as traduções podem alterar significativamente a compreensão do sentido a que se quer chegar. Não cabe aqui fazer críticas às traduções disponíveis, apenas apontar as dificuldades resultantes do processo de tradução. Associada à dificuldade em se traduzir psicanálise, apontamos para a dificuldade ainda maior em escrever sobre a condição autística e colocá-la em palavras inteligíveis ao homem simbólico. Frances Tustin reconheceu a dificuldade em encontrar significantes para um mundo assimbólico, pré-verbal e pré-imagético, assim como a dificuldade que encontraria o leitor ao se deparar com sua obra, especialmente aqueles que não estavam familiarizados com este tipo de criança gravemente perturbada. Por essa razão, recorreu a poesias e linguagem evocativas, com metáforas e analogias, para tentar transmitir algo que é da ordem do sensorial. Absteve-se de usar termos consagrados pela psicanálise, já que, ainda que se referissem a estágios primitivos do desenvolvimento da personalidade, eram posteriores ao momento evolutivo a que se refere a autora. O trabalho de tradução de sua obra enfrenta, portanto, uma dupla jornada: compreender o que queria dizer Frances Tustin ao se referir a determinados aspectos de um mundo dominado pelas sensações e procurar na língua portuguesa um equivalente razoável. No item três, fizemos referência à falta de uma organização sistemática de sua obra que permita uma visão de conjunto historicamente situada. Pretendemos, na presente pesquisa, preencher essa lacuna na literatura psicanalítica sobre o tema, possibilitando uma compreensão da origem dos conceitos-chave formulados por Tustin e os desdobramentos que sofreram ao longo do desenvolvimento da teoria e técnica. E finalmente, no item quatro, ressaltamos as dificuldades de acesso à produção teórica de Frances Tustin no Brasil. Enfrentam-se algumas dificuldades: os livros que não foram traduzidos e não estão disponíveis em várias bibliotecas no Brasil, devem ser comprados fora do país e pagos em moeda estrangeira (euro ou dólar). Os materiais que estão disponíveis no Brasil também devem ser comprados, caso o interessado não faça parte da Sociedade Brasileira de Psicanálise e, portanto, com acesso à Biblioteca Vírginia Leone Bicudo, o que dificulta consideravelmente o acesso a quem deseja se aprofundar na obra da autora. 15 O trabalho inovador de Frances Tustin possibilitou o contato e a troca de experiências com trabalhadores de diversas instituições, elucidando os aspectos afetivos envolvidos tanto no funcionamento dos pacientes quanto na dinâmica de suas relações com os cuidadores. As obras completas de Frances Tustin são amplamente conhecidas e respeitadas em diversos países do mundo e suas contribuições teórico-técnicas proporcionaram significativos desdobramentos depois de sua morte. Atualmente seu trabalho é inspiração e referência para vários pesquisadores e clínicos de todo o mundo e vários novos trabalhos são desenvolvidos embasados em seus estudos. Nas palavras de Grotstein “a pesquisa de Frances Tustin nos permite penetrar em um nível de significado além da cognição, além dos instintos, além das emoções, mesmo além da fantasia; ela nos dá uma visão das próprias raízes da percepção.” (GROTSTEIN, 1990, p. 15). Em face dessas considerações, salientamos a relevância de estudos que contribuam com inovações relativas aos estados primitivos da mente auxiliando, dessa forma, a produção local em seus desenvolvimentos acerca de severas patologias, o que justifica uma pesquisa que busque conhecer de forma global a obra da autora em questão e divulgá-la contribuindo, assim, ao avanço do conhecimento acerca dos mais variados e complexos transtornos. Dessa forma, é preciso ponderar que uma investigação conceitual dessa ordem pode prestar uma significativa contribuição ao campo psicanalítico, não porque pretenda estabelecer padronizações ou sistematizações estáticas, mas por possibilitar um contato inicial com uma vasta obra que não é sequer totalmente traduzida para o português e deve ser adquirida em moeda estrangeira, além de outros inconvenientes, como já foi devidamente explorado acima. Permite, ainda, favorecer a comunicação entre os estudiosos do assunto, além da possibilidade de ampliação do pensamento nessa área de estudo, através de pesquisas, tanto clínicas quanto acadêmicas, grupos de estudo, etc. Com base nesses argumentos, esta pesquisa se propõe a refazer o percurso da obra de Frances Tustin através de uma investigação de caráter histórico-epistemológico. Trata-se de um trabalho de natureza teórica, conceitual e que se enquadra nos pressupostos de pesquisa qualitativa, em que a subjetividade do pesquisador é parte constitutiva do processo de construção do conhecimento. A pesquisa qualitativa é, portanto, uma elaboração, um processo de interpretação de um problema específico que inevitavelmente sofre a interferência da pessoa do investigador (PARKER, 1996). 16 1.2 Objetivos Em decorrência dos fatores apresentados acima, os objetivos definidos para a realização desta pesquisa são os seguintes: 1.2.1 Objetivo Geral Compreender a evolução histórica da obra de Frances Tustin no idioma original em que foi produzida. 1.2.2 Objetivos Específicos - Esboçar a biografia da autora; - Contextualizar sua obra no momento histórico e cultural em que foi desenvolvida; - Contextualizar sua teoria no conjunto das teorias psicanalíticas e desenvolvimentistas que a influenciaram. 1.3 Sobre o método Passaremos, nesse momento, às discussões a respeito do método escolhido para que os objetivos propostos fossem atingidos. No entanto, antes que apresentemos a abordagem metodológica, buscamos situar o leitor em algumas das vicissitudes com que se depararam os escritos psicanalíticos e os diversos fatores determinantes na evolução, transformação, propagação e desdobramentos das ideias e conceitos em psicanálise ao longo dos seus mais de cem anos de existência. 1.3.1 As idiossincrasias psicanalíticas: breves considerações A psicanálise se caracteriza por uma série de peculiaridades que devem ser levadas em consideração ao se estudar seu vasto corpo teórico. Jorge Abrão (2004) aponta para as dificuldades em enquadrar a historiografia da psicanálise dentro dos moldes utilizados pela 17 historiografia da psicologia em geral, já que a teoria psicanalítica possui uma série de especificidades que devem ser levadas em consideração em uma investigação de natureza historiográfica, o que a torna um processo diferenciado. (ABRÃO, 2004). Um dos fatores de grande relevância em qualquer estudo de natureza teórica em psicanálise é a necessidade de conhecer e compreender a história pessoal dos autores e sua influência nas obras. Segundo Jorge Abrão (2004), [...] a matéria-prima, o substrato de experiências necessário para a constituição da teoria psicanalítica advém, em um primeiro momento, das vivências pessoais do psicanalista, sendo posteriormente complementado pela, não menos relevante, experiência clínica. Neste sentido, em psicanálise, mais do que em outras ciências, a história pessoal de seus criadores, como Freud e Melanie Klein, por exemplo, torna-se altamente relevante para compreendermos os desdobramentos das formulações por eles postuladas ao longo de suas trajetórias profissionais. (p.18) A natureza dos fenômenos clínicos com que se deparam os psicanalistas também deve ser considerada. Embora os princípios psicanalíticos sejam os mesmos na compreensão de um determinado fenômeno, esses podem variar dando margem a várias possibilidades teóricas. Jorge Abrão (2004) exemplifica esse fato tomando como exemplo a obra de Sigmund Freud e Melanie Klein: [...] cada psicanalista passa a abordar uma realidade clínica distinta que o conduz a um desvelamento de facetas diferentes do conteúdo inconsciente. Freud, através da investigação clínica de pacientes histéricas, pôde revelar ao mundo os meandros da sexualidade humana, seja em suas manifestações na infância ou nos sintomas histéricos; Melanie Klein, por sua vez, ao defrontar-se com a análise de crianças que sofriam de neurose obsessiva, foi impelida à descoberta dos impulsos agressivos presentes desde a tenra infância. (p. 19-20) Outro fator determinante para o adequado entendimento de determinada produção teórica são os aspectos culturais envolvidos em sua constituição. A despeito de certa tendência de muitos analistas se pretenderem a-históricos (MEZAN, 2002), a psicanálise não pode se posicionar como se estivesse isenta de influências externas: históricas e culturais. Deve-se ainda considerar os fatores que dizem respeito à difusão e dispersão psicanalítica a partir de sua origem em Freud e que podem ser bem explicitados nas palavras de Jorge Abrão (2004): 18 Uma [...] característica da psicanálise reside em um desenvolvimento teórico e técnico pouco linear que culminou no surgimento de diferentes escolas psicanalíticas a partir da matriz freudiana, conduzindo a divergências conceituais e à descrição de estados mentais distintos, designados por uma mesma nomenclatura, o que por vezes pode levar a equívocos na compreensão dos conteúdos veiculados nas teorias e a embates científicos e políticos marcados por antagonismos, afiliações e dissidências” (p.19). A partir da matriz vienense, a obra psicanalítica já sofreu inúmeras leituras e releituras. Assim como vários historiadores levaram conhecimentos imparciais e esclarecedores a uma vasta camada psi ao redor de mundo, tantos outros foram os responsáveis por desserviços significativos relacionados à obra do mestre da Psicanálise e seus seguidores (ROUDINESCO, 2000). Partindo, portanto, do marco zero freudiano, o que se encontra é uma diáspora que, no início, apresenta o pensamento psicanalítico a vários países, especialmente Estados Unidos, Inglaterra e, um pouco mais tarde, França. (ROUDINESCO, 2000). A expansão geográfica do pós-guerra apresentou, portanto, a psicanálise a várias culturas diferentes. Isso, evidentemente, foi responsável por profundas alterações tanto nos aspectos teóricos quanto técnicos. “O movimento psicanalítico conheceu uma história longa e tormentosa, criaram-se grupos de analistas em numerosos países, onde a diversidade dos fatores culturais não podia deixar de repercutir nas próprias concepções.” (LAPLANCHE E PONTALIS, 2004, p. IX). A inserção da psicanálise em um meio sociocultural pode e certamente irá alterá-la em muitos aspectos. Segundo Mezan (2002): Ela é uma prática, uma (ou várias) teorias e uma instituição (várias) que só existem imersas no socius, sujeita como quaisquer outras a suas determinações, e delimitada em seu espaço de manobra pelas mesmas condições que governam a emergência de saberes, técnicas e organizações no interior deste socius. Portanto, a ideia de integrar ou reintegrar a psicanálise numa rede de relações que lhe são simultaneamente interiores e exteriores nada tem de ilegítimo. O inconsciente não conhece a temporalidade, mas a disciplina que o toma por objeto sim: e temporalidade quer dizer aqui imersão na história, nos jogos do poder e do saber, na batalha das idéias e no embate das instituições. (p. 208). Outra característica inerente ao estudo da psicanálise apontada por Mezan (2002) é “o poder da transferência” (p.11), que pode levar a “paixões exacerbadas, de assimilação fragmentada e parcial dos conhecimentos específicos, e de crença fanática na veracidade das 19 proposições enunciadas pelo “mestre”, seja ele de que escola for” (p.15). De acordo com o autor, É bastante claro que os indivíduos empíricos que funcionam e que funcionaram no passado como veículo de transmissão dos conhecimentos e da prática da psicanálise não são professores como os de literatura ou de filosofia, pela simples e boa razão de que frequentemente são (e foram no passado) também os analistas e os supervisores da primeira geração de profissionais “nativos”. Nada mais natural que as concepções transmitidas por pessoas investidas deste prestígio, sejam acolhidas com um misto de respeito e de cumplicidade que torna muito difícil o exercício de um pensamento crítico, o qual ainda por cima, é dificultado pela inacessibilidade teórica e pelas hesitações da prática inevitáveis em quem começa a exercer a psicanálise. (MEZAN, 2002, p.11). Apresentamos algumas das peculiaridades que fazem da psicanálise um campo de estudo complexo, definido por uma série de variáveis. A seguir, apresentaremos o método escolhido para a realização desta pesquisa. 1.3.2 Os pressupostos metodológicos deste estudo: a abordagem histórico- epistemológica Um estudo histórico-epistemológico consiste em um estudo de natureza teórica que versa sobre a psicanálise e seus pressupostos. De acordo com Mezan (2002), “[...] o objeto da análise epistemológica não é o processo psíquico, mas o sistema de proposições e noções que visa dar contas desses processos” (p.55), ou seja, busca-se contextualizar a criação dos conceitos criados como forma de explicar determinados processos psíquicos e não os processos em si. Estudos dessa natureza buscam uma organização das principais ideias de um determinado autor (ou grupo de autores) ao longo dos anos em que se realizou a sua produção teórica, objetivando um duplo fim: 1) rastrear a gênese e evolução dos conceitos-chave de uma obra ou conjunto de obras afins desde sua concepção às formulações finais; 2) fazê-lo de forma contextualizada, considerando os mais variados fatores de influência como o momento histórico, cultural e psicanalítico, a biografia do autor, sua experiência clínica, a natureza do fenômeno estudado, entre outros. 20 Uma obra psicanalítica reconhecida por sua abordagem epistemológica é o Vocabulário de Psicanálise, de J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1982) que levou ‘perto de oito anos de trabalho, trabalho fecundo, decerto, mas também avassalador e por vezes fastidioso.’ (LAGACHE, 2004, p. VII) para ser finalizado. A obra centrou “suas pesquisas e suas reflexões nos escritos freudianos, recorrendo naturalmente aos primeiros textos psicanalíticos e ao Projeto para uma Psicologia Científica, de 1895 [...]. Sua finalidade foi e continua sendo a de preencher uma lacuna, satisfazer uma necessidade por nós sentida, por outros reconhecida e raramente negligenciada.” (LAGACHE, 2004, p.VII). Tornou-se referência nos estudos de psicanálise em todo o mundo, sendo utilizada como “instrumento de trabalho para os pesquisadores e para os estudantes de psicanálise, tal como para outros especialistas ou para curiosos.” (LAGACHE, VII, 2004). Petot (1979) salienta que “o conhecimento das origens e até mesmo das pré-noções iniciais de um pensamento puderam iluminar a estrutura da teoria pela qual ela se enuncia em um dado momento.” (p.XXII). No Vocabulário da Psicanálise, Laplanche e Pontalis (1982) falam a respeito da busca das origens dos conceitos e suas principais fases de evolução: Tal demanda das origens não tem, em nosso entender, um interesse de simples erudição: é impressionante ver os conceitos fundamentais esclarecerem-se, reencontrarem as suas arestas vivas, os seus contornos, as suas recíprocas articulações, quando os confrontamos de novo com as experiências que lhes deram origem, com os problemas que demarcaram e infletiram a sua evolução. (p. X) Isso posto, buscamos, com o presente trabalho, ampliar a difusão do pensamento psicanalítico a fim de que o estudo das teorias possa ser realizado de forma sistemática e – à medida do possível- imparcial e, desta forma, minimizar os efeitos de filiações passionais, leituras fragmentadas, distorções de tradução (assim como traduções parciais do conjunto da obra), entre outros fatores que, por décadas, obscureceram a compreensão de uma série de conceitos psicanalíticos fundamentais. 21 1.3.3 Construindo a pesquisa Tendo em vista os objetivos propostos e o método escolhido, apresentaremos os processos envolvidos na definição e compilação do material analisado e os procedimentos que foram necessários à sua efetivação. Fez-se necessário realizar, inicialmente, uma pesquisa bibliográfica para que toda a produção fosse rastreada no idioma original em que foi produzida. O mesmo procedimento foi realizado em relação aos materiais auxiliares e complementares como comunicações pessoais de psicanalistas brasileiros e estrangeiros que travaram contato direto ou indireto com a autora, traduções locais, obras de outros autores que fossem de reconhecida relevância por sua influência na obra estudada, biografias, transcrições de entrevista e qualquer outro material que pudesse ser elucidativo acerca do assunto. Da pesquisa bibliográfica resultou a seguinte compilação da obra de Frances Tustin: (1951). A Group of Juniors: A Study of Latency Children's Play (1958). Anorexia Nervosa in an adolescent girl. (1963). Two drawings occurring in the analysis of a latency child. (1966). A significant element in the development of autism. (1967a). Individual therapy in the clinic. (1967b). Psychotherapy with autistic children. (1969). Autistic processes. (1972). Autism and Childhood Psychosis. (1973). Therapeutic communication between psychotherapist and psychotic child. (1978). Psychotic elements in the neurotic disorders of children. (1980). Autistic objects. (1981a). Psychological birth and psychological catastrophe. (1981b). Autistic States in Children. 22 (1981c). A modern Pilgrim's Progress: reminiscences of analysis with Dr. Bion. (1981d). “I-ness”: the emergence of the self. (1983). Thoughts on autism with special reference to a paper by Melanie Klein. (1984a). Autistic shapes. (1984b). The autistic enclave. (1984c). Autism – aetiology and therapy. (1984d). Significant understandings in attempts to ameliorate autistic states. (1984e). The growth of understanding. (1985a). Autistic shapes and adult pathology. (1985b). The threat of dissolution. (1986). Autistic Barriers in Neurotic Patients (1987). The rhythm of safety. (1988a). The black hole – a significant element in autism. (1988b). Psychotherapy with children who cannot play. (1988c). "To be or not to be" – a study of autism. (1988d). A personal reminiscence. (1988e). What autism is and what autism is not. (1990). The Protective Shell in Children and Adults (1991). Revised understandings of psychogenic autism. (1992). Autistic States in Children. London: Routledge. Revised Edition. (1993). On psychogenic autism. (1994a). Autistic children who are assessed as not brain-damaged. (1994b). The perpetuation of an error. 23 (1994c). The perpetuation of an error. (1994d). Autistic Barriers in Neurotic Patients. London: Karnac. Revised Edition. (1995). Autism and Childhood Psychosis. 2nd edition. London: Karnac Books. Vídeos Five for Further Education Seminars (2 in London, 3 in Paris) Two lectures for California Institute of the Arts (1992) Hello Mrs Tustin. Interview for Hommage à Frances Tustin, Alès-en-Cevennes, France. A partir de então, seguiu-se uma etapa de localização e aquisição do material. Os livros Autism and Childhood Psychosis, Autistic States in Children, Autistic Barriers in Neurotic Patients, The Protective Shell in Children and Adults, Autistic States in Children – revised edition foram adquiridos no site da Amazon inglesa (www.amazon.co.uk). Os seguintes artigos foram comprados da Biblioteca Virgínia Leone Bicudo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com pedido feito online (www.sbpsp.org.br) e entrega via correio em formato impresso: “Psychological birth and psychological catastrophe", “A modern Pilgrim's Progress: reminiscences of analysis with Dr. Bion”, “’I-ness’: the emergence of the self”, “The rhythm of safety”, “Psychotherapy with children who cannot play”, “‘To be or not to be’ – a study of autism”, “Revised understandings of psychogenic autism”, “On psychogenic autism”, “The perpetuation of an error” e “Autistic children who are assessed as not brain-damaged”. Pelo site pep-web (www.pep-web.org) foram adquiridos os seguintes artigos em formato digital: “Autistic Objects”, “Autistic processes”, “Psychotic elements in the neurotic disorders of children”, “Thoughts on autism with special reference to a paper by Melanie Klein”, “Autistic shapes”, “The growth of understanding” e “The black hole – a significant element in autism”. O artigo “A significant element in the development of autism” foi adquirido na Wiley Online Library (http://onlinelibrary.wiley.com). Até a data final da redação desta dissertação não foi possível adquirir o livro A Group of Juniors: A Study of Latency Children's Play e os artigos: “Anorexia Nervosa in an adolescent girl”, “Two drawings occurring in the analysis of a latency child”, “Individual therapy in the clinic”, “Psychotherapy with autistic children”, “Therapeutic communication 24 between psychotherapist and psychotic child”, “The autistic enclave”, “Autism – aetiology and therapy”, “Significant understandings in attempts to ameliorate autistic states”, “Autistic shapes and adult pathology”, “The threat of dissolution”, “What autism is and what autism is not”, “A personal reminiscence” e os videos Five for Further Education Seminars (2 in London, 3 in Paris), Two lectures for California Institute of the Arts e Hello Mrs Tustin - Interview for Hommage à Frances Tustin, Alès-en-Cevennes, France. O passo seguinte foi iniciar a leitura do material. Foram feitas três leituras no total: uma primeira, rápida e descompromissada com o objetivo de estabelecer um primeiro contato com as informações contidas nos textos; uma segunda, quando foram feitas marcações no texto e uma terceira, minuciosa e detalhada. Seguiram-se os processos de análise, sistematização, tradução e escrita. Os trabalhos foram analisados em ordem cronológica e, ao final, elaboramos uma periodização da obra baseada em suas principais características que foram denominadas: Primeiros Escritos (1951-1972), Elaborações (1973-1989) e Revisões (1990-1994). Buscamos os embriões teóricos, a primeira vez que determinada ideia surgiu na obra, ainda que não consolidada como conceito oficial. Traçamos a evolução dessas ideias ao longo do tempo, procurando destacar as principais influências teóricas e avaliar se as principais contribuições, modificações e transformações na obra decorriam, primordialmente, da experiência clínica ou se era determinada por múltiplos fatores, como o contato com outros profissionais e acesso a teorias metapsicológicas de outros teóricos estudiosos do tema. Apresentaremos, a seguir, os resultados desse processo. 25 2 O SURGIMENTO DO CONCEITO DE AUTISMO E SUAS REPERCUSSÕES NA PSICANÁLISE Frances Tustin introduz seu último artigo, publicado em 1994 pouco antes de sua morte, com as seguintes palavras: The conventional psychiatric view, particularly in England and also in many parts of the United States, is that psychoanalytic therapy is not effective with autistic children and, indeed, that it is irresponsible, and even immoral, to raise parents’ hopes by offering it. The reasons for this view go back to the 1950s when some American psychoanalysts treated such newly diagnosed children with great enthusiasm, but to no avail. In addition, they blamed the mothers in a quite simplistic way. Their mistake was to treat the autistic children by a type of psychotherapy based on psychoanalytic findings from neurotic patients. We must be careful not to make this mistake again. After much experience of psychotherapy with autistic children and of the supervision of the therapy of other workers, I am, however, coming to the conclusion that such children, particularly the older ones, are well-nigh untreatable, because they put such strain upon the therapists. (TUSTIN, 1994b, p. 103, 104). Essa passagem demonstra claramente a posição que Tustin manteve por toda sua vida, a de um profundo respeito pelas famílias dessas crianças e a certeza de que se o terapeuta tiver a compreensão necessária do funcionamento desses pacientes (que difere da clínica de pacientes neuróticos) e se o tratamento for iniciado precocemente, algumas crianças podem ter resultados favoráveis. Tustin acentua o fato de que as crianças autistas são diferentes de qualquer outro paciente. “If we are to help these very difficult children, we need to evolve understandings that have arisen specifically from their pathology. From these, we can develop the type of care and interpretation that are appropriate to their particular needs.” (TUSTIN, 1994, p.104). Foi a esse tipo de cuidado e interpretação que Frances Tustin dedicou toda sua vida. Este trabalho é sobre isso. Apresentaremos, a partir de agora, a evolução de seu pensamento, desde os primeiros anos, ainda próximos à publicação do artigo de Kanner (1943) e, portanto, com muito pouco material disponível com que se apoiar, aos anos finais, próximo à sua morte, com ideias claras que foram o resultado de anos de experiência clínica, do trabalho em instituições e do contato com terapeutas de várias partes do mundo que se dedicavam à mesma tarefa. 26 Antes de nos aprofundarmos na produção teórica da autora, faremos um breve relato histórico sobre o conceito de autismo, já que é baseada no atendimento desse tipo de paciente que Tustin formulou a maior parte de seus conceitos. 2.1 Um breve relato histórico sobre o conceito de autismo Leo Kanner, médico austríaco que trabalhava na Universidade Johns Hopkins em Baltimore, Estados Unidos publicou, em 1943, seu primeiro artigo sobre autismo intitulado Autistic Disturbances of Affective Contact. O termo já havia sido utilizado por Eugène Bleuler, em 1911, em suas especificações das características diagnósticas da esquizofrenia. Bleuler usou o termo na época para se referir à qualidade da retirada que observou em pacientes esquizofrênicos que pareciam estar absortos exclusivamente em sua própria experiência interna (SPENSLEY, 1995). Essa descrição foi utilizada por Kanner (1943) para se referir a um grupo de onze crianças que observou e que, em sua maior parte, foi levada à sua instituição com a suposição de deficiência mental baseada em resultados baixos em testes psicométricos. (KANNER, 1943). Nesse emblemático artigo, Kanner descreve a síndrome que denominou Autismo Infantil Precoce e, a partir de então, o termo passou a ser associado a esse grupo diagnóstico específico. (KANNER, 1943). O artigo de Kanner (1943) instantaneamente estimulou grande interesse em se definir as fronteiras entre doença e deficiência mental, assim como abriu o debate sobre a natureza do autismo e sua etiologia. Antes da publicação do referido artigo, crianças e adultos autistas eram geralmente considerados pelas instituições como deficientes mentais. Não havia distinção dos outros pacientes que sofriam de uma ampla variedade de condições, mas que partilhavam uma característica proeminente e muito comum: o fracasso em desenvolver relacionamentos pessoais normais e aprender (SPENSLEY, 1995). Além do profundo isolamento emocional dessas crianças, Kanner percebeu ainda uma série de outras características que se repetiam como dificuldades na fala (algumas nem chegavam a desenvolvê-la e quando o faziam era de maneira bizarra, sem função de comunicação), falta de reação antecipatória na presença de seus cuidadores principais, não se acomodavam ao colo como as crianças em geral, não usavam o pronome “eu” para se referirem a si mesmas, tudo que não era provocado por elas mesmas pareciam ser experimentados como uma forte invasão, recusavam certos alimentos, tinham muita 27 dificuldade e possíveis crises de pânico diante de movimentos bruscos, barulhos intensos ou qualquer outra situação inesperada e pareciam constantemente buscar a mesmice e rotina. Não interagiam com os demais e às vezes utilizavam partes do corpo de outras pessoas como se fossem objetos. (KANNER, 1943). Depois de cuidadoso exame, Kanner concluiu que o potencial cognitivo dessas crianças estava sendo obscurecido por um transtorno afetivo e que o denominador comum era a incapacidade inata de se relacionar de forma normal com pessoas e situações desde o início de suas vidas. Nas palavras de Kanner (1943): We must, then, assume that these children have come into the world with innate inability to form the usual, biologically provided affective contact with people, just as other children come into the world with innate physical or intelectual handicaps. (p. 250) No entanto, apesar de considerar que o transtorno fosse inato, uma questão polêmica levantada por Kanner (1943) foi o papel dos pais na etiologia do autismo. Destacou que entre os denominadores comuns estavam o alto nível sociocultural e de inteligência, não somente entre os casais, mas também entre pais e filhos. Entretanto, nesse mesmo artigo, Kanner (1943) já questionava a natureza causal entre os aspectos familiares e a patologia da criança: The question arises whether or to what extent this fact has contributed to the condition of the children. The children´s aloneness from the beginning of life makes it difficult to attribute the whole picture exclusively to the type of the early parental relations with our patients. (p. 250). Nas duas décadas seguintes, as ideias de Kanner (1943) sobre a observação de uma frieza parental se associaram à imagem de uma “mãe-geladeira” defendida por psicanalistas americanos como Bruno Bettelheim (1967), que responsabilizou a frieza das mães como causa para o estabelecimento do autismo de seus filhos. Essas ideias “tiveram consequências dramáticas para pais e filhos que, por medidas terapêuticas, eram mantidos separados anos a fio (...)” (ROCHA, 1997, p.19). A credibilidade na abordagem psicanalítica foi bastante influenciada pelo trabalho de Bettelheim e muitos estudiosos do autismo, de diversas abordagens, ainda permanecem com uma ideia equivocada acerca da visão psicanalítica sobre o autismo, que de forma alguma se posiciona de maneira tão simplista acerca da etiologia da síndrome autista. Tustin ressentia o radicalismo entre organicistas e psicodinamistas. 28 Considerava ser difícil separar fatores orgânicos, metabólicos e psicogênicos, “tanto que me parece lamentável que psicodinamistas e organicistas devam estar em lados opostos.” (TUSTIN, 1981b, p.29). 4 Em 1968, Kanner reavalia sua posição e declara “que o autismo não é uma doença primariamente adquirida ou feita pelo homem [...] fazer os pais se sentirem culpados ou responsáveis pelo autismo de seu filho não é apenas errado, mas adiciona de modo cruel um insulto a um dano” (KANNER, 1968, p. 25 apud BRASIL, 2013). Em 1944, Hans Asperger, um pediatra austríaco com interesse em educação especial descreveu quatro casos de crianças com dificuldades em interagir socialmente. Sem conhecer a descrição de Kanner sobre Autismo Infantil Precoce publicado um ano antes, Asperger denominou a condição que descrevia de Psicopatia Autística, indicando um transtorno marcado por acentuado isolamento social (KLIN, 2003). Descartando as possibilidades de origem psicogênica, Asperger enfatizou a condição orgânica do transtorno. O trabalho de Asperger, originalmente publicado em alemão durante a Segunda Guerra Mundial (o que dificultou sua difusão), tornou-se conhecido apenas em 1981 em decorrência da tradução de seu artigo para a língua inglesa pela médica, mãe de autista e pesquisadora do assunto, Lorna Wing. Em seu artigo, Wing (1981) publica uma série de casos que apresentavam sintomas similares aos descritos por Asperger e cunha o termo Síndrome de Asperger para defini-los. Wing (1981) fez ainda uma importante contribuição ao dizer que tanto o Autismo Infantil Precoce de Kanner (1943) quanto a Psicopatia Autística de Asperger (1944) formavam uma tríade de sintomas em um continuum baseada na ausência ou limitação na interação social, no uso da linguagem verbal e/ou não verbal e nas atividades imaginativas. (WING, 1981). Esse artigo contribuiria para que a Síndrome de Asperger fosse incorporada à classificação psiquiátrica nos anos 1990 (BRASIL, 2013). Até meados da década de 70, a psicanálise teve grande influência sobre a psiquiatria. A partir de então, uma nova corrente teórica passa a tomar conta do cenário psiquiátrico mundial: a corrente cognitivista. Associado a esse fato, começam a existir fortes resistências tanto de familiares quanto de autistas que começam a rejeitar o título de psicose (comum até então para esse transtorno) e passam a exigir pesquisas e explicações de cunho orgânico e tratamentos baseados em alterações comportamentais (BRASIL, 2013). Do extremo que 4 Abordaremos esse assunto com detalhes no tópico “Primeiras considerações sobre a etiologia do funcionamento autístico”, na página 80 deste trabalho. 29 considerava ser o transtorno decorrente das relações afetivas no início da vida passou-se ao extremo de considerá-lo puramente orgânico. Os anos 1970 e 1980 também foram o período de surgimento e difusão de estratégias educacionais e comportamentais dirigidas às pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo, como o Treatment and Education of Autistic and Related Communications Handicapped Children (TEACCH), proposto por Eric Schopler, da Universidade da Carolina do Norte - EUA, e da Applied Behavioral Analysis (ABA), a partir dos trabalhos de Ivar Loovas na Universidade da Califórnia, EUA (BRASIL, 2013). A partir dos anos 1980, o autismo deixa de ser incluído entre as psicoses infantis e passa a ser considerado um Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID) junto à Síndrome de Asperger, o Transtorno Desintegrativo, a Síndrome de Rett e os quadros atípicos ou sem outra especificação. Na quinta versão do DSM (DSM-V), lançado em 2013, passa-se a utilizar a denominação Transtornos do Espectro do Autismo, localizados no grupo dos Transtornos do Neurodesenvolvimento (BRASIL, 2013). A natureza etiológica do autismo parece ser, portanto, o maior centro de controvérsias sobre o tema. As teorias parecem divergir acerca da natureza do déficit primário: se inato ou ambiental (BOSA, 2000). Embora seja amplamente aceito o fato de o espectro autista possuir fatores etiológicos multicausais, os conhecimentos se apresentam, de modo geral, fragmentados e não se obteve ainda uma conclusão definitiva. Além da Psicanálise - abordagem enfatizada nesta pesquisa - destacam-se a Teoria da Mente, Teorias Neuropsicológicas e Teoria da Coerência Central (BOSA, 2000). A Teoria da Mente sugere danos na capacidade de meta-representar, ou seja, na capacidade de atribuir estados mentais a outras pessoas e predizer o comportamento das mesmas. Para as Teorias Neuropsicológicas, o autismo seria o resultado de uma disfunção nas funções executivas, ou seja, na capacidade de processar informações ligadas a áreas específicas do cérebro. A Teoria da Coerência Central, também se baseia em um déficit no sistema de processamento de informações. No entanto, aponta para um comprometimento somente em funções executivas associadas à integração de um estímulo dentro de um contexto (BOSA, 2000). Essa recente teoria proposta por Uta Frith (1989), uma pesquisadora de Desenvolvimento Cognitivo no Institute of Cognitive Neuroscience da University College em Londres, aponta que além da ausência de uma teoria da mente, existe no autismo uma dificuldade em integrar partes de informações para formar um todo coerente – uma coerência central (FRITH, 1989). No entanto, essa teoria não se concentra somente nos déficits, mas também nas habilidades preservadas, que em muitos casos de autismo se mostram 30 significativamente superiores (FRITH, 1989). Por fim, a abordagem psicanalítica, que se dedica atualmente ao estudo dos aspectos psicodinâmicos envolvidos no desenvolvimento e manutenção do autismo. Na sequência, apresentaremos com mais detalhes o desenvolvimento histórico dos estudos sobre autismo dentro da abordagem psicanalítica. 2.2 Autismo e Psicanálise se encontram Depois da publicação do emblemático artigo de Kanner (1943), estudiosos das mais diversas abordagens teóricas se voltaram para os estudos de um novo fenômeno que seria, a partir de então, nomeado Autismo Infantil Precoce. O artigo instantaneamente estimulou grande interesse e as teorias psicanalíticas não passaram incólumes. Foram largamente influenciadas pelo artigo, que encontrou no momento psicanalítico da época um latente interesse pelas patologias mais severas do desenvolvimento emocional. A Inglaterra psicanalítica do pós-guerra caracterizava-se por um intenso desenvolvimento tanto na psicanálise com crianças quanto no incipiente, porém não menos intenso, interesse pelas psicoses. Três escolas teóricas já se definiam nesse momento e, a despeito dos conflitos e rivalidades, produziram uma grande e significativa quantidade de trabalhos. A escola kleiniana, interessada até então na psicanálise com crianças, expandia-se e alguns de seus membros, como Herbert Rosenfeld, Hanna Segal e Wilfred Bion passaram a se interessar pelo estudo das psicoses. Anna Freud (que durante a Segunda Guerra havia se mudado para Londres com sua família) e seu grupo concentraram suas pesquisas no estudo da normalidade e patologia da infância. Um terceiro grupo de Independentes ou Middle Group tinha como significativo representante Donald Winnicott, pediatra e psicanalista que fez grandes contribuições às teorias sobre o desenvolvimento emocional primitivo (GEISSMANN & GEISSMANN, 1998). Esse era o zeitgeist que recebeu o artigo de Leo Kanner em Londres. Frances Tustin não foi, portanto, a única que teve o interesse despertado pela descoberta de um novo e profundo tipo de patologia. Em Londres, na clínica Tavistock, Esther Bick já trabalhava há anos com crianças severamente perturbadas que via como esquizofrênicas. Embora sem conseguir definir claramente um diagnóstico, Melanie Klein havia antecipado a publicação de Kanner em treze anos, quando publicou o caso de Dick (KLEIN, 1930), hoje facilmente reconhecível como um caso de autismo. 31 Outros na Tavistock seguiram esse interesse, entre eles: Shirley Hoxter, John Bremner, Doreen Weddell e Isca Wittemberg que, ao longo do trabalho com crianças psicóticas, começaram a reconhecer características autísticas inerentes a distúrbios da infância primitiva. Esse trabalho foi mais tarde coordenado e editado por Donald Meltzer que o publicou em 1975, sob o título Explorations in Autism (MELTZER ET AL., 1975). Nos Estados Unidos, uma polêmica abordagem psicanalítica para o tratamento de crianças autistas estava sendo desenvolvida por Bruno Bettelheim na Escola Ortogênica para tratamento de crianças autistas e psicóticas, na Universidade de Chicago. Em Nova York, Margaret Mahler reuniu-se a vários pesquisadores e desenvolveu uma importante pesquisa sobre as psicoses infantis. Na França, destacam-se os trabalhos de André Green e Didier Houzel, que embora não tenham tratado diretamente crianças, desenvolveram importantes contribuições metapsicológicas acerca dos primórdios da vida psíquica (GEISSMANN & GEISSMANN, 1998). Ainda na França, algumas concepções foram desenvolvidas pelos psicanalistas de orientação lacaniana M.C. Laznik, casal Lefort, E. Laurent, Maleval, Sauvagnat, P. Bruno, C. Soler, G Crespin, dentre outros e se baseiam na relação do sujeito em articulação com a linguagem e o corpo. (BRASIL, 2013). Frances Tustin fez contato com autores das mais diversas abordagens não psicanalíticas, leu e citou autores de variadas escolas de psicanálise em sua obra, sempre com respeito e reconhecimento e com objetivo único de melhor entender seus pacientes e suas dificuldades. Dona de um ecletismo saudável e produtivo fez de sua produção final uma “colcha de retalhos de muitas cores, mas que não obstante tem harmonia, textura e qualidade” (GROTSTEIN, 1990, p.12). Preocupou-se, primordialmente, com o desenvolvimento de seus pacientes, abstendo-se de travar lutas políticas em sociedades de psicanálise ou afiliações exclusivistas a determinadas abordagens teóricas. A autora escreveu e publicou vários artigos sobre suas descobertas em periódicos de grande prestígio, realizou várias palestras e grupos de estudo na Grã-Bretanha e no exterior e recebeu estudantes de todo o mundo para supervisão de casos de crianças autistas. Foi uma incansável e prolífica autora, dotada de grande sensibilidade e criatividade. Apontou para a necessidade daqueles que cuidam de crianças psicóticas ou gravemente perturbadas de tentar entender o mundo pré-verbal e concreto em que vivem essas crianças. Suas teorias foram se delineando gradualmente, à medida que foi adquirindo experiência no tratamento analítico das crianças que atendia. Desenvolveu vários conceitos originais a partir de suas observações clínicas e preocupou-se constantemente em repensar suas proposições teóricas, fato que a levou a uma significativa revisão de sua obra, 32 complementando determinadas ideias, reformulando-as ou abandonando aquelas das quais não mais achava condizente com sua experiência. Suas contribuições ultrapassam as origens junto às crianças autistas e psicóticas e se expandem em direção à compreensão dos aspectos primitivos e tratamento de pacientes adultos psicóticos, borderline e neuróticos. 33 3 DAS EXPERIÊNCIAS PESSOAIS ÀS INFLUÊNCIAS TEÓRICAS: CONSTRUINDO UM PENSAMENTO ORIGINAL 3.1 Dados biográficos Frances Daisy Vickers nasceu em Darlington, norte da Inglaterra, em 15 de outubro de 1913, filha única de um casal religioso, devotado ao trabalho na Igreja da Inglaterra. Sua mãe foi treinada como uma diaconisa na prestigiada Chelsea College, em Londres e fora da família passou a ser chamada de Sister Minnie. No trabalho pastoral conheceu George Vickers, um jovem 14 anos mais jovem com quem acabaria se casando. George havia sido treinado na Church Army e se revelou um pregador bastante talentoso. Ambos partilhavam um grande interesse pela vida religiosa, mas discordavam intensamente sobre o que isso representava. Suas formas de entender os relacionamentos e lidar com as dúvidas e questionamentos que surgiam eram “diametricamente opostos.” (SPENSLEY, 1995, p.18). Ela era rígida e passiva, ele um radical e não-conformista. Frances nasceu pouco antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Para George houve pouco tempo de adaptação a seu bebê e à condição de ser pai, antes de partir para se tornar um capelão do exército. Frances tinha um ano quando seu pai partiu para França. Lá foi feito prisioneiro e não voltou a ver a filha até que essa completasse cinco anos. Frances viveu os primeiros cinco anos de sua vida próxima à sua mãe numa atmosfera de sufocante devoção aos ensinamentos religiosos. Era uma “good obedient little girl.” (SPENSLEY, 1995, p.18). A mãe se agarrou a seu bebê com a mesma devoção que se dedicava à igreja. O resultado não surpreendeu, “the little girl very early began to be filled with a sense of great responsability and importance but she also grew to believe that her mother´s need was so great that it seemed it was the daughter who was doing the parenting.” (SPENSLEY, 1995, p.19). Não seria fácil para George Vickers conseguir um espaço de novo nessa família “either as a father or as a husband, where mother and daughter had become so united and where there was also a wife who felt she was wedded as much to the church as to her husband.” (p.19). Em 1919, um George mudado, com novas ideias e questionando todas as suas crenças prévias e sua antiga forma de vida, retorna. A experiência de ter sido feito prisioneiro de guerra deixou marcas significativas em George. Desiludido com as atitudes da Igreja durante 34 a guerra, havia perdido a fé de outrora e pela qual sua esposa era ainda tão intensamente aderida. Como vários outros de sua geração, enredou-se em um estado de confusão e conflito pessoal como resultado da experiência crua e concreta dos tempos de guerra. A exposição repentina às mais primitivas condições de vida num campo de batalha desafiaram sua aceitação das crenças que fizeram parte de sua religião e treinamento. Tornou-se um pacifista e socialista e, ao deixar o Exército, levou a família para Sheffield, onde Frances começou sua vida escolar e seu pai iniciou seus estudos na Universidade para começar uma nova carreira como professor. Pelos próximos dez anos, Frances viveu em meio às turbulências e conflitos entre seus pais. Em completo contraste aos seus primeiros cinco anos de vida, imersos junto à sua mãe num clima de inquestionável devoção e obediência à Igreja, Frances agora via seu pai questionar e criticar tudo isso. George se interessava por autores e pensadores contemporâneos como Shaw, Freud e o educador progressista A.S. Neill, que eram considerados por sua mãe como imorais e do mal. A vida familiar havia se tornado difícil. “It was a struggle about allowing thinking and it was a conflict to which na intelligent daughter, caught in the middle, could not be imune.” (SPENSLEY, 1995, p. 20). A necessidade emocional de Frances de se separar da mãe fez com que estabelecesse um conluio com o criticismo de seu pai e passou a sentir desprezo pela simplicidade e ingenuidade da forma de pensar de sua mãe. A admiração que nutria pelo pai dificultou as possibilidades de abertura aos pontos de vista da mãe, que passou a considerar tolas e limitadas. (SPENSLEY, 1995). Ao final de sua formação, seu pai se interessou por escolas no campo e logo se tornou o diretor de uma, tendo Frances como aluna. Assim como o pai, ela adorava sua nova vida no campo. A mãe, diferente dos dois, preferia a vida cultural da cidade e não conseguiu se adaptar. Sister Minnie acreditava que deveria transmitir à filha todo o padrão de refinamento londrino que havia feito parte de sua própria criação. George, por sua vez, era um homem de Lincolnshire, ligado à pecuária e igualmente orgulhoso de suas origens. Apesar de ser uma criança séria, Frances era alegre, inteligente e amável. A vida era inquietante à época, não só devido às intensas controvérsias entre seus pais, mas também graças às sucessivas mudanças de cidade por causa da nova carreira do pai. “Her life must have been full of lost friendships but in retrospect Frances sees all these uprootings as having produced a certain adaptability in her.” (SPENSLEY, 1995, p.21). Aos 12 anos, ganhou uma bolsa de estudos para Sleaford High School e como viviam muito distante da estação de trem, frequentou a escola em regime de internato. Sempre amou 35 a escola e encontrou na atmosfera intelectual do local um bem-vindo alívio ao clima tenso com que convivia diariamente. Em 1926, aos 13 anos de idade, mudou-se novamente de escola, desta vez com acesso ao trem e pôde voltar a ser uma estudante regular. Transferiu-se para Grantham High School. Foi durante o período nessa escola e com os olhos voltados para a universidade de Oxford que sua mãe tomou a decisão de que deveriam deixar seu pai. Para Frances, “the separation came as a complete shock.” (SPENSLEY, 1995, p.22) porque era uma ruptura com tudo que mais adorava: o amor compartilhado com o pai pelo campo, sua escola e a esperança de realizações que poderiam advir de lá e, acima de tudo, o pai. (SPENSLEY, 1995). No período que se seguiu, ela silenciosamente suportou sua mãe. Frances ficou afastada de seu pai pelos próximos 15 anos e essa era uma separação dura demais para suportar, “denial was her mainstay” (SPENSLEY, 1995, p.22). Era vista e via a si mesma como uma personalidade confiante, alegre e equilibrada, mas o real impacto dessa experiência permaneceria encapsulada e oculto para ela, até sua análise com Bion, muitos anos depois (SPENSLEY, 1995). Acerca das possíveis consequências do trauma dessa separação súbita, Didier Houzel (1995) indaga: Quelles traces laissèrent en elle cette absence paternelle et l'éclatement si rapide de la cellule familiale? Sans doute n'en avait-elle aucun souvenir conscient, mais peut-être cette expérience la prépara-t-elle à comprendre la souffrance des très jeunes enfants confrontés à des bouleversements de leur univers psychique et relationnel, Cette séparation la rapprocha d'une mère dont le conformisme un peu rigide semblait masquer I'angoisse et la fragilité. (p.295). O resultado dessa decisão de separação do pai foi que ambas viajaram por toda a Inglaterra por um ano, vivendo com amigos e parentes antes que sua mãe, finalmente, decidisse retornar a Sheffield para trabalhar em uma igreja pequena e em condições muito precárias. A condição financeira de mãe e filha era extremamente ruim. A atmosfera intelectual do local era sufocada por uma religiosidade restrita, concreta e que beirava a superstição. Mas estavam de volta à cidade e Frances poderia retornar à escola. Sua bolsa de estudos foi transferida e ela pôde retomar sua educação em um colégio de formação de professores. Os novos planos haviam sido definidos: abriria mão da universidade para ser professora e economizar tempo e dinheiro. “I think that the canny Frances also saw in the teacher training a quicker route to professional and financial independence and freedom from the influence of her mother”. (SPENSLEY, 1995, p.22). 36 Em 1932, então com 19 anos, Frances Vickers entrou em Whitelands Church of England College, que ficaria marcada como uma das grandes influências em sua formação. A atmosfera pacífica do local proporcionou a Frances um porto seguro num momento crucial, depois do brusco episódio de separação de seu pai, “[...] and she still thinks of her stay there as a healing experience.” (SPENSLEY, 1995, p.23). Havia debates acerca das teorias contemporâneas relacionadas à educação, mas esses eram conduzidos num espírito de abertura e tolerância que foram uma revelação para Frances, “[...] a relief and a pleasure to one who had been torn between the relentless dialetics of her father thinking and the imprisoning rigidities of her mother´s beliefs.” (SPENSLEY, 1995, p. 23). Frances era uma estudante promissora que demonstrou, assim como seu pai, um talento natural para o ensino. Biologia era sua disciplina favorita, mas quando terminou seu treinamento optou por ensinar crianças no período de latência, de sete a nove anos. Depois da graduação, retornou a Sheffield para lecionar e para estar próxima de sua mãe, que estava com problemas de saúde. Tornou-se uma socialista e foi nas reuniões do Partido Trabalhista de Sheffield que conheceu seu primeiro marido, John Taylor, com quem se casou em 1938, pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Frances estava prestes a ver a história de seus pais se repetir diante de seus olhos e, agora, com a sua vida. Moraram um ano juntos antes que seu marido fosse convocado para a guerra e ficaram separados pelos próximos cinco anos. Sister Minnie morreu em 1942 e foi quando Frances se sentiu, finalmente, livre para seguir seu próprio caminho. (SPENSLEY, 1995). Com o marido no estrangeiro, deixou Sheffield e retornou ao sul para assumir um posto em uma escola progressista em Kent, de onde era possível viajar para Londres à noite para o curso de Desenvolvimento Infantil ministrado por Susan Isaacs na Universidade de Londres. Foi nessa época que se tornou um membro do Commonwealth, um grupo cristão liberal. Entre os membros desse grupo estava Arnold Tustin, aquele que mais tarde se tornaria seu segundo marido. Com o término da Segunda Guerra, seu marido retornou, mas ambos haviam seguido caminhos muitos diferentes nesse ínterim. Além disso, o desenvolvimento intelectual e profissional de Frances em Londres havia se tornado importante demais pra que ela desistisse e voltasse para Sheffield. A separação foi inevitável. Foi um período difícil para Frances, mas coincidiu com o ressurgimento em sua vida da tranquilizante influência de Whitelands, em 1946 e, apesar de estar em um momento agnóstico, tornou-se uma professora em educação nessa instituição. 37 Dois anos mais tarde, em 1948, casou-se com Arnold Tustin, o homem que seria seu companheiro pelos próximos 46 anos e por quem nutria profundo afeto e admiração (HOUZEL, 1995). Em seguida, após a nomeação do marido para a cadeira de Engenharia Elétrica na Universidade de Birmingham, a Sra. Tustin deixou Whitelands e passou a lecionar na Dudley Teacher´s Training College, próximo a Birmingham. Houzel relata que Tustin se referia frequentemente às longas conversas que tinha com Arnold, seu apoio e encorajamento para que publicasse suas ideias e defendesse suas concepções originais. Conta ainda que as várias confidências de Tustin o levam a crer que Arnold foi um suporte precioso para ajudar a encontrar, junto às crianças autistas, a atitude certa de atenção, escuta, receptividade, mas também consistência e firmeza. (HOUZEL, 1995). Nessa época, retomou o contato com seu pai. Isto aconteceu de forma bastante fortuita, quando viu uma carta dele no jornal The Times e lhe escreveu no endereço disponível na matéria. Descobriu que ele agora tinha uma nova parceira, Gladys, com quem Tustin manteve uma ótima relação. Desde então, estabeleceu um contato muito próximo com ambos até o fim de suas vidas. Em 1949, Tustin perdeu seu primeiro bebê por toxemia gravídica. No próximo ano, com o apoio de Arnold, transformou sua dor e frustração em empenho construtivo e iniciou sua formação como terapeuta de crianças na Clínica Tavistock, em Londres. Algum tempo antes de iniciar sua formação, seu interesse por grupos a haviam levado a uma conferência onde encontrou Dugmore Hunter, um psicanalista e psiquiatra consultor no departamento de adolescência da Tavistock. Ele lhe sugeriu que se inscrevesse para o treinamento em psicoterapia de crianças, recém-criado por Esther Bick a pedido de John Bowlby, diretor da clínica à época (RHODE, 1995). Seu interesse pela psicanálise já havia sido despertado durante o curso com Susan Isaacs no Instituto de Educação da Universidade de Londres. Então, em 1950, ingressou como parte do segundo grupo em formação, na companhia de Martha Harris, Dina Rosenbluth e Ivonne Haupt. Ivonne voltou para a África do Sul ao fim da formação, mas as outras duas se tornariam grandes amigas pelo resto de suas vidas. Frances tem memórias particularmente carinhosas de Martha Harris, Mattie como os mais próximos a chamavam, que a ajudou muito em seus tempos de formação. Sem muito dinheiro, Frances precisava de um local para passar a semana em Londres e Mattie generosamente lhe abriu as portas de sua casa. Tustin formou-se psicoterapeuta de crianças três anos depois, em 1953. Na Tavistock, encontrou como professores John Bolwby e Esther Bick. Bolwby, que foi quem a entrevistou para o preenchimento da vaga, era um pesquisador e psicanalista e 38 impressionou Frances por sua abordagem profunda e erudita à psicoterapia. Bick, por outro lado, causou uma impressão muito diferente. Frances foi, a princípio, tomada pela dúvida sobre o fervor de seu apoio às ideias de Melanie Klein, mas com o tempo, passou a apreciar e admirar a acuidade clínica da Sra. Bick e passou a tê-la como uma fonte de inspiração (SPENSLEY, 1995). Nas aulas que frequentou na Tavistock, como colega de classe de Tustin, Lygia Alcântara do Amaral conta acerca da [...] severidade de Mrs. Bick com os comentários de Frances, sempre crítica e calorosa em suas observações procedentes, graças à já grande experiência que tinha no trato com crianças, como professora de uma escola progressista e experimental, e, também, sempre espirituosa e bem humorada, quebrando a tensão que havia nas reuniões.” (LEITE NETTO, 1995, p.100). Bick priorizava o mundo interno de fantasias da criança, enquanto Bowlby estudava as evidências externas da qualidade do apego da criança ao seu cuidador. A controvérsia entre ambos resultou na saída de Esther Bick da Tavistock, embora tenha continuado a exercer sua influência no Child Psychotherapy Group como professora e supervisora externa. O método de observação de bebês de Bick teve um papel central na formação de psicoterapeutas de crianças na Tavistock e Frances sempre se sentiu particularmente em débito a esse aspecto de seu treinamento. A influência desse método pode ser percebida em toda a obra de Tustin que, em diversas ocasiões em seus textos, salientou a importância da observação para qualquer terapeuta que se disponha a trabalhar com crianças. Acerca da relação de Tustin com essas duas figuras, Houzel (1995) nos conta que Tustin, ao se referir a eles, davam-lhe a impressão [...] qu'elle avait retrouvé en eux les personnalités contrastées de ses parents. Elle décrivait Bowlby comme un esprit objectif, scientifique, ouvert à toutes sortes de courants de pensée. Il semble qu'il lui ait rappelé son père et ses années de complicité avec lui, le partage de ses goûts et de ses intérêts. Esther Bick, fidèle entre les fidèles de Melanie Klein, attachée a une stricte orthodoxie, semblait lui rappeler le conformisme un peu étriqué de sa mère. (p. 298). Foi Bick a responsável pela escolha de um analista para Tustin que, em 1950, não via nenhuma razão para fazer análise. Via a si mesma como uma mulher sensata e bem equilibrada. Pensava que seu interesse era em crianças, não nela mesma. Mas aceitou a análise como boa garota obediente que havia sido até então. Seria um inconveniente necessário que fazia parte de seu treinamento. (SPENSLEY, 1995). 39 Tustin escreveu sobre sua experiência analítica com Bion no artigo de 1981 “A Modern Pilgrim's Progress: Reminiscences of Personal Analysis with Dr. Bion” (TUSTIN, 1981). Nesse artigo, Tustin nos conta que Bion havia lhe sugerido que escrevesse um livro sobre sua experiência pessoal em psicanálise, mas a autora relata que não se sentia pronta para tal empreendimento. No entanto, quando o editor do Journal of Child Psychotherapy a abordou para que escrevesse um breve artigo sobre sua análise com Bion, lembrou-se do título que havia pensado para o livro: “A Modem Pilgrim's Progress”, inspirado em sua formação religiosa. Embora valorizasse esse aspecto de sua criação Tustin relata que, no momento da escrita do artigo em questão, concebe o termo de forma diferente. Para o peregrino moderno, o objetivo final não é o paraíso, mas o passo em direção ao desconhecido que Bion “so eloquently and disturbingly placed before us.” (TUSTIN, 1981, p.175). O objetivo desse artigo foi oferecer um vislumbre da peregrinação que embarcou sob os cuidados de Bion “which led into dark corners of the mind I never realised existed”. (TUSTIN, 1981, p.175). Antes de iniciar sua análise, Tustin não conhecia Bion, apesar de ele pertencer à Tavistock. No primeiro contato, teve uma péssima impressão de seu futuro analista. Relata que ao chegar ao seu consultório em Harley Street, ele a fez sentar, e começou a falar sobre psicanálise. Pensou que nunca tinha visto alguém que a desagradasse tanto. Em comunicação pessoal a Sheila Spensley disse I thought ‘This is terrible’. The great bushy eyebrows and those stem eyes. I wondered what I´d come to. It felt as if he just took me and flung me on the couch. I was really quite frightened by him, I think. There were a lot of silences which I always hated.” (SPENSLEY, 1995). Já na primeira semana de análise, relatou que suas ideias sobre ele foram se alterando e pensou “I've got something rare here” (TUSTIN, 1981, p.175). Tustin tinha consciência de que não queria análise porque se sentia muito equilibrada. Com o tempo, percebeu que estava ajustada a um nível superficial que encobria uma depressão profunda através de manobras autísticas protetoras que a tornavam impenetrável. (SPENSLEY, 1995). Foi provavelmente como resultado dessa análise que Tustin pôde se aproximar do funcionamento autístico tanto em si mesma quanto em seus pacientes, possibilitando formular suas concepções sobre esse nível primitivo de funcionamento mental. Tustin conta que Bion a ajudou a conhecer esse profundo tipo "black hole" de depressão e relata que havia experimentado todos os terrores elementares associados a ela, assim como o efeito curativo do conhecimento (TUSTIN, 1981). Concluiu que não era de se espantar que tenha escolhido o autismo como objeto de interesse. (TUSTIN, 1981). 40 Apesar de sua reação inicial diante da análise, Tustin permaneceria com Bion por quatorze anos, com duas interrupções: na primeira ocasião por doença e na segunda em decorrência da partida de Bion para os Estados Unidos. Ao olhar para trás, Tustin conclui que pela maior parte do tempo havia estado impenetrável, como Bion já havia lhe alertado, embora acreditasse que fosse uma das mais cooperativas pacientes dele. A autora relata que Bion a perturbava. As reações mudas, complacentes e seguras com as quais havia vivido até então foram abaladas. (TUSTIN, 1981c). Relata que a maior parte de sua vida havia estado “meio morta” 5 e tinha um forte desejo de permanecer daquele jeito porque a vida era mais fácil. Era querida e popular porque era fácil de se relacionar, nunca se comportando de maneira estranha ou difícil. (TUSTIN, 1981c). Sobre a influência de Bion, relata Dr. Bion aroused in me the courage to see things from a different perspective from the current and accepted ones, and also different from his. He provoked me to think for myself— to have a mind of my own. He did this by asking challenging questions and by making unexpected remarks rather than by imposing a rigid interpretive scheme on what I said and did. In so doing, he made me think about what was happening to me in my own terms. (However, I still have moments of regret for the peaceful times) (TUSTIN, 1981c, p. 175, 176). Apesar de tudo, “as I realise now with gratitude” (p.176), e embora tenha sido uma paciente impenetrável, “he did not give me up” (p.176). Conta que a generosidade e integridade de Bion, ficam evidentes no fato de que, em quatorze anos de atendimento, o analista nunca alterou o preço de suas sessões. (TUSTIN, 1981c). Bion foi, para Tustin, mais do que um analista. Foi como se a autora tivesse assimilado no divã uma série de ideias que se mesclariam à sua própria experiência clínica e germinariam em suas concepções futuras criativas e originais. Dr. Oliver Lyth escreveu para Tustin depois de ler seu artigo sobre objetos autísticos 6 e lhe disse […] when I read your paper there were all sorts of bells which kept ringing and saying, ‘Yes, that's the same thing that Bion is writing about’. It seems to me that quite apart from your conscious indebtedness to Bion, you have taken in much from the air in the consulting room […]” (TUSTIN, 1981c, p.177). 5 half dead (TUSTIN, 1981c, p.175). 6 Discutiremos esse assunto com mais detalhes no tópico sobre objetos autísticos, página 92. 41 Depois de vários anos, Tustin se conscientizou do privilégio que havia tido por ser analisada por Bion, mas, resignada, ressalta que “[…] privileges inexorably bring responsibilities. My desire for a quiet life has been disturbed by the books and papers bubbling up in my mind.” (p.177). A autora teve duas figuras fundamentais que a influenciaram a escrever, seus “agents- provocateurs” (TUSTIN, 1981c, p. 177): Bion, seu analista e Arnold, seu marido. “I have been stirred from mental laziness to think well. In my experience this is the first step to lucid writing.” (p. 177). Em seu artigo, Tustin relata que faz eco às palavras de Grotstein, que diz “Bion paradoxically seems to advise people not to read books but rather to write them” (TUSTIN, 1981c, p. 178, 179), conselho do qual Tustin, assim como Grotstein, torna-se uma “vítima” (p. 179). Sobre Arnold, diz “Arnold wrote three books while I was doing the training. I saw Arnold writing and then re-writing and re-writing; and I said to myself, ‘I could do that!’” (TUSTIN apud RHODE, 1995, p. 155). Sem dúvida, ela sucumbiu a essas influências e se tornou uma prolífica e original autora. Essa longa experiência analítica foi, no entanto, encerrada de forma brusca pela própria Tustin. Um dia ela decidiu, sozinha, colocar fim à sua análise, embora Bion não considerasse que fosse o momento de parar. Houzel relata que, em comunicação pessoal, Tustin lhe confidenciou que esse evento se apresentava como uma repetição da brusca ruptura entre seus pais. Depois desse fim abrupto da análise, Tustin passou a sofrer de um tipo de fobia de falar em público que, apesar de conseguir manter seus compromissos de professora à época, eram muito limitantes. (HOUZEL, 1995). Mais tarde, Tustin compreendeu que ela mesma havia estado assolada pelas angústias e terrores de tipo autístico. Descreveu sua primeira análise como o fator que havia derrubado a proteção que mascarava seus traumas primitivos e suas angústias mais profundas. […] after I had finished seeing him in analysis, and I felt turned upside down and inside out by the changes I had fended off from making whilst I was with him […] (TUSTIN, 1981c, p.176). Nessa época, não pôde retomar sua análise com Bion que já havia partido para os Estados Unidos. Então, empreende uma nova análise com Stanley Leigh que a ajuda a superar essa crise. (HOUZEL, 1995). Em 1952, Marion Putnam falou sobre autismo na Clínica Tavistock a convite de John Bowlby. O interesse sobre o assunto estava em alta e Marion foi convidada a falar sobre o trabalho que estava sendo desenvolvido no James Jackson Putnam Research and Treatment Center em Boston, Massachussets. Lá, uma unidade especial havia sido organizada para 42 estudar as necessidades de crianças autistas e suas famílias e Tustin se sentiu profundamente atraída pelo tema. Ao final de seu treinamento na Clínica Tavistock, uma oportunidade surgiu para Tustin, quando seu marido Arnold Tustin foi convidado, em 1954, a ficar um ano como professor visitante no Massachussets Institute of Technology (MIT) em Boston e, portanto, próximo ao James Jackson Putnam Center. Encorajada e recomendada por Bowlby, Tustin assumiu um cargo honorário no Centro. Como não era nem médica nem psicóloga, só foi permitida sua participação no projeto terapêutico graças à sua formação na Tavistock. Além dos cuidados com as crianças, havia também um esquema de cuidado aos pais e isso foi, para Tustin, um foco de grande interesse. Os profissionais do Centro cuidavam dessas crianças em suas próprias casas por um período, para que os pais pudessem ter algum descanso das responsabilidades e dificuldades de se cuidar de uma criança assim. Tustin agarrou essa oportunidade e passou o ano imersa na vida das crianças autistas e seus pais, experiência que foi a origem do profundo respeito que cultivou pelos pais dessas crianças ao longo de toda sua prática clínica e proporcionou à autora uma importante nova perspectiva. Tustin permaneceu convencida da importância desse tipo de suporte na casa dessas crianças por uma “sensible person who goes in and helps the parents to sort themselves out” (RHODE, 1995, p.156). Foi seu primeiro contato com esse tipo de criança, que no Centro chamavam de atípicas. Realizou uma pesquisa em seu tempo livre, que despertou seu interesse e curiosidade. Iniciou então, um processo que duraria toda uma vida de pesquisa destinada à compreensão e tratamento da criança autista. (SPENSLEY, 1995) O James Jackson Putnam Center trabalhava em um regime que combinava as ideias freudianas com métodos de modificação comportamental e tinha como objetivo treinar crianças autistas para que se comportassem de forma mais socialmente aceita. Na opinião de Tustin, tais técnicas não eram adequadas aos distúrbios dessas crianças, mas o centro era, apesar disso, um inovador e vigoroso local de trabalho, onde fez vários amigos (SPENSLEY, 1995). 43 Ao regressar à Inglaterra, iniciou uma parceria promissora que duraria anos com a Dra. Mildred Creak no Great Ormond Street Children's Hospital, psiquiatra considerada uma das maiores autoridades em psicoses infantis e reconhecida por sua habilidade em diagnósticos diferenciais. Costumava dizer a Tustin “I´m not a therapist, but I can send you the children who will get better” (RHODE, 1995, p.156). Associou-se também ao Dr. Sydney Klein, psiquiatra no West Middlesex Hospital. Além disso, participou de seminários de observação na Brunel University. (WINNICOTT STUDIES, 1989). Nesse período, participou do grupo de estudo sobre autism coordenado por Donald Meltzer e que tinha entre seus participantes John Bremner, Isca Wittenberg, Doreen Weddell e Shirley Hoxter. (RHODE, 1995). O trabalho desenvolvido por esse grupo culminou, em 1975, no livro Explorations in Autism (MELTZER ET AL., 1975). Nessa época, procurou trabalhar com crianças autistas utilizando a técnica kleiniana de psicanálise de crianças que tinha aprendido na Clínica Tavistock, em seu grupo de estudos com Meltzer, nas supervisões com Rosenfeld e no contato com Bion. No entanto, uma lacuna teórica considerável foi encontrada pelos terapeutas em face ao fenômeno do autismo. A criança autista, não responsiva, não cooperativa e incomunicável apresentou um problema teórico e técnico imediato. (SPENSLEY, 1995) e parecia muito além do alcance da teoria e técnica kleiniana, baseada nas relações objetais. A própria Klein, ao apresentar o caso de Dick em “A importância da formação de símbolos para o desenvolvimento do ego” e, portanto, antecipando em treze anos a publicação de Kanner sobre autismo, reconhece as dificuldades teóricas ao tentar estabelecer um diagnóstico para o caso e propõe que a criança sofria de uma “inibição no desenvolvimento e não uma regressão.” (KLEIN, 1930, p.262). Klein, entretanto, “lidou com crianças que se acreditava já tivessem estado ligadas às suas mães e, consequentemente, desenvolvido psicopatologia à medida que atacavam (ou acreditavam na fantasia que atacavam) aquelas ligações [...]” (GROTSTEIN, 1990, p. 13). Embora os pressupostos kleinianos tivessem moldado a forma de Tustin pensar e praticar a psicoterapia analítica, as deficiências teóricas para compreensão do autismo fizeram com que buscasse novas ideias em outros autores, como Winnicott e Mahler. Começou a escrever sobre os casos que atendia, incentivada por Bion, seu analista e Arnold, seu marido. Seu primeiro livro foi escrito em 1972 e foi a obra responsável por torná-la conhecida nos meios especializados em várias partes do mundo. Depois disso, vários psicanalistas passaram a procurá-la para supervisão de casos de crianças autistas e psicóticas (HOUZEL, 1995). O livro em questão era Autism and Childhood Psychosis (TUSTIN, 1972) escrito em um período crítico na vida da autora. Tanto sua vida pessoal quanto profissional passava por 44 intensa turbulência. Havia deixado para trás Londres, seu analista (Bion), o Tavistock Child Guidance Centre e o workshop que Donald Meltzer havia organizado para estudar autismo. Também teve que abandonar seus anos de fertilidade e o sonho de gerar filhos. Aos 42 anos de idade e após perder seu segundo bebê por toxemia gravídica, Frances Tustin carregava, nesse momento, a dor e o desapontamento de não conseguir dar à luz a uma criança saudável. “It was now imperative that she find fulfilment in an affirmation of her creativity. Her mind bubbling with ideas, she felt driven to find satisfaction and relief in the writing of this book.” (SPENSLEY, 1995, p. 30). Em todo o período de trabalho, foi altamente produtiva. Sua agenda era sempre cheia de atendimentos durante a semana e nos finais de semana, dividia-se entre a vida pessoal e a escrita. (RHODE, 1995). Pouco a pouco, sua saúde foi se tornando mais frágil e já não podia mais se deslocar ao estrangeiro, ao trabalho fora de sua cidade e teve que recusar uma série de convites para palestras, conferências, etc. Viveu seus últimos anos com Arnold em Amershan- on-the-hill, “um pueblo hermoso em la campiña inglesa. Desde su pequeña casita, típica de uma postal, Frances supervisa psicoanalistas de todas partes del mundo y mantiene correspondencia com los autores de nuevos trabajos y com sus discípulos. (DI TELLA, 1992, p. 202). Depois da morte de Arnold, em janeiro de 1994, “it was as though the world had stopped for her” (RHODE, 1995, p.163). Alguns meses depois, retomou algum interesse em voltar ao trabalho. Foi, no entanto, um período difícil, entrando e saindo de hospitais. Em agosto de 1994 foi diagnosticada com um câncer de apêndice (RHODE, 1995). Embora ficasse, por vezes, estressada com o que estava acontecendo com seu corpo e as consequentes limitações físicas em constraste à vivacidade de sua mente, Tustin dizia não ter medo da morte. “If there's not a lot of pain, I don't mind dying; it might be the right thing to do.” (RHODE, 1995, p.163). Faleceu em 11 de novembro de 1994, aos 81 anos e seu corpo foi cremado em uma cerimônia íntima no crematório de Amersham. Após sua morte, vários tributos foram prestados à autora, com edições especiais de periódicos e livros de autores que continuaram a desenvolver suas ideias em reconhecimento à sua inestimável contribuição acerca do funcionamento autista e as possibilidades de intervenção terapêutica. Entre eles, cabe citar a edição n