1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS LÍVIA DE CARVALHO BORGES DA EUROPA PARA A AMÉRICA. A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA, OS ANTECESSORES DO BARÃO E OS INTERESSES DA CAFEICULTURA (1889-1912). FRANCA 2012 2 LÍVIA DE CARVALHO BORGES DA EUROPA PARA A AMÉRICA. A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA, OS ANTECESSORES DO BARÃO E OS INTERESSES DA CAFEICULTURA (1889-1912). Tese apresentada a Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do título de doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura Política. Orientadora: Prof.a Dr.a Suzeley Kalil Mathias. FRANCA 2012 3 Borges, Lívia de Carvalho. Da Europa para a América. A política externa brasileira, os antecessores do barão e os interesses da cafeicultura (1889-1912) / Lívia de Carvalho Borges. –Franca : [s.n.], 2012 179 f. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Suzeley Kalil Mathias 1. Cafeicultura – Brasil. 2. Café – História econômica. 3. Brasil – História – República. 4. Politica externa. 5. Diplomacia – Histó- ria – Brasil. I. Título. CDD – 981.55 4 LÍVIA DE CARVALHO BORGES DA EUROPA PARA A AMÉRICA. A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA, OS ANTECESSORES DO BARÃO E OS INTERESSES DA CAFEICULTURA (1889-1912). Tese apresentada a Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do título de doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura Política. BANCA EXAMINADORA Presidente___________________________________________________ 1ºExaminador________________________________________________ 2ºExaminador________________________________________________ 3ºExaminador________________________________________________ 4ºExaminador________________________________________________ Franca, _____ de____________________de 2012 5 AGRADECIMENTOS A presente tese é fruto de um longo período de pesquisa realizado numa espécie de “parceria” de trabalho estabelecida com pessoas e instituições (funcionários acadêmicos, bibliotecários, orientadora, professores, amigos e órgãos fomentadores da pesquisa), que ao nos auxiliarem de alguma maneira em diferentes momentos de sua elaboração e desenvolvimento, possibilitaram-nos a sua concretização nos moldes em que agora a apresentamos. Mencioná-las, portanto, no espaço comumente reservado à manifestação pública de nosso reconhecimento àqueles que nos foram úteis no período de desenvolvimento da tese, não nos parece tarefa difícil, sendo, pelo contrário, muito agradável e alentadora ao coração. Nesse sentido reconhecemos que o esforço empreendido pela Professora Dr.a Suzeley Kalil Mathias, foi de vital importância não apenas por seu papel de orientadora competente, generosa e atenta, mas, sobretudo, pela maneira habilidosa com que sempre soube aliar tais atributos na orientação do trabalho, transformando as reuniões realizadas no percurso de seu desenvolvimento num espaço de interlocução importante, cujas contribuições a nós repassadas vão muito além das indicações de pesquisa das quais nos servimos para a elaboração do presente trabalho. Descortinando-nos horizontes novos de atuação em diferentes sentidos, no âmbito da própria pesquisa e mesmo no da profissão, ofereceu-nos sempre contribuições importantes que nos levam a lembra-la agora como colaboradora decisiva para a consolidação da tese que ora se apresenta. De igual maneira reconhecemos que ao lado do seu esforço e atuação, contribuiu conosco também, embora de modo indireto, os professores Samuel Alves Soares e Teresa Maria Malatian, o primeiro pelas contribuições em torno da temática da política externa brasileira, oferecidas em disciplina ministrada no Programa de Pós Graduação da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (da UNESP/Franca) e também pela leitura atenta da dissertação que elaboramos anteriormente, e, a segunda por haver nos orientado nos períodos que antecederam a elaboração da atual pesquisa, isto é, na graduação e no mestrado, que nos ofereceram toda a bagagem de conhecimentos acerca das atribuições de um pesquisador e à qual, aliás, sempre recorremos no desenvolvimento do trabalho. A par dessas contribuições, reconhecemos ainda a colaboração oferecida pelos professores Eduardo Mei e Márcia Pereira da Silva, pela leitura atenta e pelas discussões feitas acerca do 6 trabalho durante o Exame Geral de Qualificação, que se tornaram essenciais ao seu bom desenvolvimento e à sua concretização nos termos em que se encontra, bem como agradecemos às professoras e amigas Érica Winand e Maria Cecília de Oliveira Adão, pelo acolhimento, gentileza e incentivo que sempre nos dispensaram ao longo de todo o período de que nos utilizamos para o desenvolvimento e concretização do curso de doutorado em História. Aos funcionários do Programa de Pós Graduação em História e também da biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (da UNESP – Franca), agradecemos, de igual maneira, pelo apoio prestado em todas as questões referentes ao bom andamento da vida acadêmica e pelo respaldo dado na localização de livros e documentos atinentes à pesquisa, bem como agradecemos aos funcionários do Arquivo do Estado de São Paulo e do Arquivo Histórico do Itamaraty, pelo apoio prestado no atendimento, na localização e na consulta a documentos indispensáveis à concretização do trabalho, razões pelas quais externamos nosso reconhecimento. Somando-se ao aporte conceitual e metodológico, técnico e institucional, que nos foi oferecido pelas pessoas e instituições anteriormente lembradas, concedeu-nos também particular contribuição a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – com a concessão de bolsa de fomento à pesquisa durante o transcurso do doutorado, que não apenas permitiu-nos leva-lo a efeito mediante o cumprimento da rotina acadêmica, mas também o desenvolvimento da pesquisa e a conclusão definitiva da tese que ora apresentamos ao departamento de história da presente instituição de ensino. Resultando, portanto, de um longo trabalho de pesquisa realizado numa espécie de “parceria” estabelecida com pessoas e instituições, a presente tese tornou-se possível graças também a outras tantas “parcerias” (de ordem afetiva, emocional, familiar) sem as quais não disporíamos do estímulo e incentivo à persistência e determinação nessa longa e nem sempre fácil jornada chamada Pós Graduação, pelo que concluímos agradecendo carinhosamente àqueles (pais, irmãos queridos e amigos caros) que foram sempre inspiração e força num percurso que começou muito antes da elaboração da presente tese de doutorado e que se estenderá para além dela. 7 RESUMO O presente trabalho teve por objetivos analisar os principais vetores da política externa brasileira, a atuação de seus formuladores e os interesses da cafeicultura no período que vai de 1889 a 1912, com a finalidade precípua de verificar em que medida a inflexão observada nos assuntos internacionais nesse período refletiu os interesses da elite cafeeira e o de outros grupos presentes no cenário nacional. A escolha desse objeto de estudo deveu-se não apenas à proeminência que a transição da política externa brasileira (do eixo britânico para o norte-americano) alcançou na passagem da Monarquia para a República e à predominância que os oligarcas do café tiveram sobre os demais membros das frações hegemônicas no período considerado, mas também à verificação da escassez de estudos voltados para a análise das relações existentes entre interesses de grupos hegemônicos e diretrizes de política externa. Tendo como balizas cronológicas os anos que vão da implantação da República ao encerramento da gestão de Rio Branco à frente do Ministério das Relações Exteriores – marcos de uma maior aproximação com a América e de consolidação dessa diretriz – a relevância desse objeto justificou-se na medida em que permitiu a elaboração de uma reflexão mais acurada acerca da relação existente entre mudanças de regimes políticos, visualização de suas bases sociais e os assuntos de política exterior. Palavras-chave: Monarquia. República. Política Externa. Diplomacia. Cafeicultura. 8 ABSTRACT The present work aims to analyze the main vectors of Brazilian foreign policy, the performance of its formulators and the interests of the coffee plantations in the period that goes from 1889 to 1912, with the main purpose to verify to what extent the inflection observed in international affairs during this period reflected the interests of coffee elite and other groups present on the national scene. The choice of this object of study was due not only to the prominence that the Brazilian foreign policy transition (from the British to the North-American axis) reached in the transition from Monarchy to Republic and to the predominance which the coffee oligarchs have had on the other members of the hegemonic fractions in the period considered, but also the verification of the scarcity of studies focused on the analysis of existing relations between hegemonic groups interests and foreign policy guidelines. Having as chronological bases the years ranging from the establishment of the Republic to the closure of the Rio Branco management running the Ministry of Foreign Affairs - marks of greater rapprochement with America and consolidation of this guideline - the relevance of this object was justified to the extent that allowed the development of a more accurate reflection on the relationship between changes of political regimes, preview of their social bases, and foreign policy issues. Keywords: Monarchy. Republic. Foreign Policy. Diplomacy. Coffee Plantation. 9 RÉSUMÉE Le présent travail vise à analyser les principaux vecteurs de la politique étrangère brésilienne, la performance de ses fabricants et l'intérêt des plantations de café dans la période de 1889 à 1912, avec l'objectif principal de vérifier dans quelle mesure la flexion chez des affaires internationales au cours de cette période a réfléchi les intérêts de l'élite des producteurs et des autres groupes présents sur le monde international. Le choix de cet objet d'étude est du non seulement à l'importance que la transition de la politique étrangère brésilienne (Britannique pour l'axe américain) a atteint dans la transition de la Monarchie à la République et à la prédominance que les oligarques de café ont eu sur les autres membres des fractions hégémoniques dans la période considérée, mais aussi à la vérification de la rareté des études tournées sur l'analyse des relations existantes entre les intérêts de groupes hégémoniques et les lignes directrices de la politique étrangère. Ayant comme année chronologique les balises allant de la mise en place de la République à la fermeture de la gestion de Rio Branco devant le ministère des affaires étrangères - marque de grand rapprochement avec l'Amérique et de la consolidation de cette ligne directrice - la pertinence de cet objet s’est justifiée dans la mesure où il a permis le développement d'une réflexion plus précise sur la relation entre les changements de régimes politiques, aperçu de ses bases et les questions de politique sociale. Mots clés : Monarchie. République. Politique étrangère. Diplomatie. Production de café. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................10 CAPÍTULO 1 DE FRENTE PARA A EUROPA E DE COSTAS PARA A AMÉRICA. A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DURANTE A MONARQUIA 1.1.Os antecedentes históricos da política externa brasileira..................................................22 1.2.Independência, Soberania e Política Externa. O Primeiro Reinado..................................33 1.3.Da submissão à afirmação. A política externa brasileira no Segundo Reinado...............43 CAPÍTULO 2 DA EUROPA PARA A AMÉRICA. AS ALTERAÇÕES NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NA PASSAGEM DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA 2.1.O Brasil na passagem da hegemonia britânica para a norte-americana...........................56 2.2.A transição republicana e a política externa brasileira......................................................64 2.3.A consolidação da política externa republicana. A Atuação de Rio Branco.....................79 CAPÍTULO 3 A ASCENSÃO DOS CAFEICULTORES E SUA INSERÇÃO NA POLÍTICA INTERNA BRASILEIRA 3.1.A expansão da cafeicultura e a ascensão de novas elites políticas......................................93 3.2.A construção da hegemonia paulista..................................................................................105 3.3.Auge e declínio da hegemonia cafeicultora........................................................................113 CAPÍTULO 4 OS FORMULADORES DE POLÍTICA EXTERNA. OS ANTECESSORES DO BARÃO DO RIO BRANCO E OS INTERESSES DA CAFEICULTURA 4.1.A Política interna e os interesses dos grupos hegemônicos...............................................130 4.2.Os interesses dos grupos hegemônicos na política externa brasileira..............................143 4.3.As relações entre política externa e política interna na primeira década republicana..155 CONCLUSÃO...........................................................................................................................169 REFERÊNCIAS.......................................................................................................................174 11 INTRODUÇÃO As últimas décadas do século XIX representaram para o Brasil um período importante para sua história, em que alterações de relevo no plano interno tiveram ensejo tanto no campo político quanto no social, com a abolição da escravatura, a laicização do Estado e a emergência do republicanismo, culminando na mais significativa transformação política vivenciada pelo país desde sua emancipação em face da tutela portuguesa – a transição da Monarquia para a República, que, ao suplantar o regime no qual se estruturara o Império, acabou por integrá-lo à tendência predominante no continente americano, tal era à época a diretriz republicana1. Realizada ao findar dos anos 1800, a adoção de um novo regime político em detrimento daquele que dera corpo e consistência ao Império brasileiro por quase sete décadas consecutivas, tornou-se um fato duplamente importante para o país, primeiro por haver afetado diretamente o plano doméstico, com a implantação de novas diretrizes governamentais e com a emergência de novos grupos sociais às altas esferas do poder2; depois por haver repercutido diretamente na condução dos assuntos internacionais, permitindo o deslocamento do eixo de nossas relações exteriores da Europa para a América, e de um modo especial, da Inglaterra para os Estados Unidos. 3 No primeiro aspecto, pode-se dizer que a República franqueou terreno aos grupos políticos originários da expansão cafeeira do final do século XIX, que, oriundos das férteis e ricas províncias mineiras e paulistas, exerceram atuação diferenciada nos assuntos internos, a ponto de seus interesses serem freqüentemente confundidos com os interesses da Nação.4. Elementos expressivos na cadeia produtiva do café, em que atuavam não só como grandes cultivadores e exportadores do produto chefe da economia nacional, mas também como banqueiros e 1 PENNA, L. República brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 2 NEVES, M. S. Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX. In: FERREIRA, J. e DELGADO, L. A. (Org.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 3 BUENO, C., A República e sua política exterior (1889-1902). São Paulo: UNESP, 1995. 4 A leitura que se fazia à época da sociedade brasileira como sendo uma sociedade simples, dividida entre os grandes produtores e os demais membros sociais (antigos escravos, profissionais liberais e imigrantes) introduzia a noção de que os interesses essências do país eram em verdade os interesses dos grandes produtores, estabelecendo, portanto, a identificação citada. Para maiores informações ver: CERVO, A. L. Inserção Internacional. Formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. 12 empresários do setor de finanças e de transportes, estes novos representantes políticos dispunham de força bastante para atuarem de forma hegemônica e, por isso mesmo, autônoma.5 No segundo aspecto, pode-se aventar que as mudanças domésticas tocaram diretamente na condução dos assuntos internacionais, na medida em que estes passaram a dedicar especial atenção às relações encetadas com os países continentais, fossem eles os vizinhos do Sul, dos quais o Brasil permanecera distanciado durante a maior parte do regime monárquico por conta do clima de prevenções e de reservas que pairava de lado a lado no terreno das relações internacionais, ou o gigante do Norte, com o qual pretendiam desde então estreitar relações. Delineada timidamente ao final do Império, essa tendência, posteriormente conhecida como americanismo foi, assim, a tônica do momento nesse sentido, ganhando novas conotações no transcurso da primeira década republicana.6 Revertendo tendências seculares na condução da política brasileira, tanto em seu plano interno (o regime monárquico) quanto em seu plano externo (o europeísmo), estruturadas gradativamente desde a emancipação da tutela portuguesa, a inflexão observada na passagem da Monarquia para a República constituiu-se num diferencial importante em relação a outros momentos da história nacional, uma vez que no período em questão as mudanças políticas verificadas no âmbito doméstico significaram imediata alteração na condução dos assuntos internacionais, colocando a transição republicana como um momento ímpar, no qual se pôde verificar de um modo um tanto quanto mais claro as interações existentes entre as duas esferas do político, ou seja, a interior e a exterior. 7 Destacando-se como período especialmente relevante para os estudiosos do crescente campo que constitui a história das relações internacionais do Brasil, por ensejar reflexões em torno das conexões existentes entre mudanças de regime político e condução da política externa, foi que esse momento de transição, isto é, a passagem da Monarquia para a República, tornou-se foco de análise do presente trabalho, que pretendeu dela se ocupar com vistas a analisar mais 5 PERISSINOTO, R. M. Classes dominantes e hegemonia na República Velha. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994. 6 BUENO, C. Política externa da Primeira República: os anos de apogeu (1902-1918) São Paulo: Paz e Terra, 2003. 7 Avaliadas por alguns estudiosos como esferas distintas do jogo político, a política interna e a política externa são consideradas nesse trabalho como sendo faces específicas de um mesmo processo, numa linha em que ambas se influenciariam reciprocamente. Em outras palavras, considera-se as ações internas como chave explicativa para o delineamento da postura internacional de um Estado tanto quanto considera-se a dinâmica internacional como fator explicativo para a tomada de posições no interior do mesmo. De acordo com MILZA, P. Política interna e política externa. In: REMOND, R.(Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. 13 detidamente as interações existentes entre diretrizes de política externa e interesses de grupos hegemônicos (no caso os dos cafeicultores) entre os anos 1889 e 1912, que marcam a busca de um relacionamento diferenciado para com os países continentais, especialmente com os Estados Unidos, e a consolidação dessa diretriz.8 Relativamente novo no rol dos estudos referentes às relações internacionais, o tema da transição política e suas implicações na condução da política externa vem aos poucos ganhando terreno junto aos pesquisadores da área, motivando estudos sobre diferentes períodos e acerca das relações do Brasil com diferentes Estados, conformando, por isso mesmo, um terreno a ser ainda devidamente explorado com vistas a preencher lacunas e responder questões atinentes às especificidades da história do país. Desse modo, pode-se dizer que, embora já se tenha esboçado um novo campo de estudos, no qual este trabalho se insere, na historiografia brasileira esta é ainda uma temática pouco trabalhada. 9 No âmbito dos estudos nacionais destacamos o trabalho conjunto de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno História da política exterior do Brasil, 10, que constitui a mais completa síntese das relações internacionais do Brasil, abarcando um longo período da experiência brasileira desde a Independência à atualidade, bem como os trabalhos do segundo, acerca da experiência republicana – A República e sua política exterior (1889-1902)11 e Política externa da Primeira República: os anos de apogeu (1902-1918),12, que são de longe os estudos mais expressivos sobre o tema, tanto pelo embasamento teórico e aprofundamento na abordagem quanto pela amplitude das fontes consultadas. Ancorados numa farta documentação de caráter histórico – diplomático analisada na perspectiva fornecida pela escola francesa de relações internacionais, que preceitua sejam considerados a multiplicidade dos fatores causais das relações entre os Estados13, bem como 8 Do ponto de vista da política interna o período em questão refere-se à consolidação do predomínio econômico e da hegemonia política dos cafeicultores, bem como ao período que abarcou a primeira grande crise que acometeu o setor durante a Primeira República, ao passo que do ponto de vista da política externa os anos 1889-1912 referem-se ao delineamento de uma nova tendência de relações internacionais, mais voltada para o continente americano, e de consolidação dessa diretriz, o que justifica nossa escolha nesse sentido, já que este é um período inovador tanto em um quanto em outro aspecto. 9 CERVO, A. L. Inserção Internacional. Formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 34. 10 BUENO, C.; CERVO, A. L. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992. 11 BUENO, C., A República e sua política exterior (1889-1902). São Paulo: UNESP, 1995. 12 BUENO, C. Política externa da Primeira República: os anos de apogeu (1902-1918) São Paulo: Paz e Terra, 2003. 13 RENOUVIN, P.; DUROSELLE, J. B., Introdução à História das Relações Internacionais. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. 14 numa ampla bibliografia de apoio especializada na área e em grande parte constituída de teses de doutorado e dissertações de mestrado, as obras acima elencadas tem servido de base para a elaboração de outros estudos, de caráter mais específico como o papel dos intelectuais na política externa brasileira, impulsionando, assim, o crescimento do campo de estudos anteriormente citado. No tocante à temática aqui trabalhada ambos os autores são concordes em afirmar que na passagem do Império para a República as alterações observadas na política externa brasileira no sentido de redirecioná-la para o continente americano refletiram de alguma forma as concepções dos grupos que ascenderam ao poder, razão pela qual estes passaram a servir-se do Estado para atender as demandas de sua classe. Utilizando-se da estrutura de poder instaurada internamente com a mudança de regime, conduziram o processo decisório no campo da política externa com vistas a fomentarem o crescimento do grupo, a partir do que teria sido estabelecida a “diplomacia da agroexportação”, conceito cunhado por Clodoaldo Bueno. 14 Constituindo uma inovação no conjunto dos trabalhos sobre o período, essa abordagem parece-nos haver se fixado nas demais que se fizeram sobre o mesmo, consolidando a ideia de que a política externa brasileira durante o regime republicano teria atendido em sua totalidade às demandas da agricultura, sobretudo, da indústria açucareira e da economia cafeicultora, conforme aparecem em dois outros trabalhos que tem como móvel o relacionamento do Brasil com os vizinhos continentais, tais são os trabalhos de Kátia Geraib Baggio – “A “Outra América”. A América Latina na visão dos intelectuais brasileiros”, 15 e o de José Luís Werneck da Silva e Williams Gonçalves – Relações Exteriores do Brasil I (1808-1930). A politica externa do sistema agroexportador. 16 Constituindo exceções no conjunto de estudos historiográficos que até então se fizeram sobre a política externa brasileira, esses trabalhos se fizeram seguir por outros que, embora não se ocupando especificamente dos grupos políticos que ascenderam ao poder com a implantação da República, cuidaram de analisar as alterações que se apresentaram na política externa brasileira no período considerado (no sentido de aderir ao americanismo em detrimento do europeísmo monárquico) sob outra ótica, a ótica das diferenças e depois semelhanças existentes na estrutura 14 BUENO, C., A República e sua política exterior (1889-1902). São Paulo: UNESP, 1995. 15 BÁGGIO, K. G., A “Outra América”. A América Latina na visão dos intelectuais brasileiros das primeiras décadas republicanas. São Paulo: Depto. de História, FFLCH, USP, 1998, 224 p. (Tese de Doutorado). 16 SILVA, J. L. W. Relações Exteriores do Brasil I (1808-1930): a política externa do sistema agroexportador. Petrópolis, R.J.: Vozes, 2009. 15 política adotada pelo Brasil e pelos países vizinhos, primeiro quando aquele conduzia-se sob os auspícios da Monarquia, depois quando passou a dirigir-se sob a égide republicana. Nessa linha merece destaque, o livro do diplomata Luis Cláudio Villafañe dos Santos – O Brasil entre a Europa e a América: o Império e o interamericanismo (do Congresso do Panamá à conferência de Washington),17, no qual aborda a questão das posições imperiais frente às iniciativas de integração continental encetadas por Bolívar e pelos Estados Unidos, explicando-as em função das diferenças substanciais na natureza da legitimação do Estado brasileiro e na de seus vizinhos. Embora sua abordagem se ocupe muito mais da política externa brasileira durante o regime monárquico, seu trabalho constitui-se num estudo inovador por conta de sua abordagem, aclarando de algum modo o entendimento acerca da inflexão observada na postura internacional do Brasil durante a República. Ainda nessa temática, cabe-nos destacar o estudo feito pelo historiador norte-americano Steven C. Topik – Comércio e Canhoneiras: Brasil e Estados Unidos na Era dos Impérios (1889- 1897), 18, no qual analisa as especificidades das relações entre os dois maiores países continentais durante o regime republicano, portanto, avaliando também as mudanças nas diretrizes de política externa do Brasil republicano, explicando-as numa dupla vertente, de um lado pela perspectiva norte-americana e de outro pela perspectiva brasileira, sempre levando em conta o caráter econômico e também político predominante nas iniciativas levadas a efeito de lado a lado. Elaborados por historiadores ou por estudiosos ligados à Diplomacia e ao campo da Ciência Política, os estudos referentes ao período elencado como baliza cronológica da presente pesquisa, isto é, os anos 1889-1912, não obstante as peculiaridades na forma de abordar suas temáticas, tem sido conduzidos no sentido de considera-lo como um momento inovador, marco inaugural de uma nova tendência política, que, em consonância com a ordem vigente no plano internacional propriamente americano, isto é, a ordem republicana, propiciaria ao país transitar do polo de poder europeu, estruturado na hegemonia britânica, para o polo americano, então centrado na preponderância norte-americana. Fortemente influenciados pela abordagem historiográfica vigente até os anos 1980, que considerava os anos anteriores à Revolução de Trinta como uma sucessão pura e simples de 17 SANTOS, L. C. V. O Brasil entre a América e a Europa: O Império e o interamericanismo (do Congresso do Panamá à conferência de Washington). São Paulo: Ed. UNESP, 2004. 18 TOPIK, S. C. Comércio e canhoneiras: Brasil e Estados Unidos na Era dos Impérios (1889-97). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 16 oligarquias no poder, tal era o revezamento das oligarquias mineiras e paulistas, esses estudos acabaram por fazer uma leitura linear e simplificada do período (posto que distanciada das dificuldades inerentes ao exercício da hegemonia por parte dos grupos mais expressivos no cenário político dos anos 1889 – 1930) na qual a adoção de novas diretrizes de política externa, voltadas mais para o contexto continental que para o contexto europeu, foi vista como um reflexo dos interesses dos grupos hegemônicos ligados à exportação de produtos agrários, sobretudo, o dos cafeicultores. 19 Explicadas por conceitos como “ornamentalidade” e “instrumentalidade”, cunhados pelos estudiosos da área com a finalidade de caracterizar o período anterior à Revolução de Trinta, em que se buscou uma aproximação maior com os países continentais, as alterações dos anos seguintes à implantação da República foram também explicadas pela busca da ampliação do prestígio nacional, que, na concepção dos mesmos, tornou-se o principal vetor da política externa dificultando, assim, a compreensão do período, não obstante os méritos incontestáveis dos trabalhos referentes ao tema em virtude do seu pioneirismo e da sua abordagem, bem como da utilização de um conjunto significativo de fontes de pesquisa. Seguindo o percurso revisionista aberto pela historiografia referente à chamada política do Café com Leite da Primeira República, iniciado nos anos 1980, que a trabalhou como um período de “difícil hegemonia” dado a existência de conflitos inúmeros entre as oligarquias vigentes, posto que fortemente marcado pela instabilidade e pela inexistência de regras longevas entre os diferentes estados da Nação,20, o presente trabalho pretende analisar a transição da Monarquia para a República com a finalidade precípua de verificar em que medida a inflexão observada nos assuntos de política externa refletiu os interesses dos grupos hegemônicos ligados à cafeicultura, que longe de conformarem grupos coesos, apresentavam-se como uma classe dividida entre aqueles que detinham o Grande Capital Cafeeiro e os que se ocupavam única e exclusivamente da produção, tal era a Lavoura.21 Para tanto, levando-se em conta o papel singular que São Paulo exerceu na economia brasileira e na política federal entre os anos 1889-1930,22, em razão das opções diferenciadas que se lhe apresentaram no período, é que o presente trabalho elencou como foco de sua análise os 19 SANTOS, N. B. História das Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação sobre a área. In: História, São Paulo, v.24, n.1, p.11-39, 2005.p. 27 20 MENDONÇA, S. R. O Ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: HUCITEC, 1997. 21 PERISSINOTO, R. M. Classes dominantes e hegemonia na República Velha. Campinas: UNICAMP, 1994. 22 LOVE, J. A locomotiva. São Paulo na federação brasileira (1889-1937). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. 17 interesses dos grupos políticos provenientes dessa região, considerando-se as dificuldades enfrentadas para o exercício de sua hegemonia e a dinâmica de poder delicada, disso decorrente. Definido em função da problemática adotada, tal seja a análise das conexões existentes entre diretrizes de política externa e interesses de grupo, esse recorte possibilitou-nos aclarar a complexa dinâmica político-social que permeou a condução da política interna e externa brasileira no período estudado. Considerando-se as diferenças substanciais inerentes aos membros do próprio grupo político-social constitutivo da classe cafeicultora,23, ao qual o presente trabalho se referiu, a hipótese fundamental que direcionou a condução da análise e da pesquisa consistiu em observar que, longe de ver seus interesses atendidos em sua totalidade, a elite oligárquica ligada ao café nem sempre se viu representada totalmente por seus principais representantes no poder, que algumas vezes adotaram posições contrárias às dos membros do próprio grupo, divergindo vez que outra e negociando quando necessário suas próprias posições, o que colocou abaixo a idéia de que seus interesses teriam sido os únicos a serem hegemonicamente contemplados pelos governos da época. Nesse caso, embora se tenha concordado com a concepção vigente na historiografia acerca do tema, de que à época retratada na pesquisa a política externa brasileira tenha sido colocada a serviço dos interesses dos grupos hegemônicos que então assumiram a condução do jogo político no Brasil republicano,24, considerou-se, diferentemente dos demais autores que trabalharam o tema, que o exercício da hegemonia cafeicultora não foi um processo linear e que nem sempre os interesses do grupo puderam ser totalmente atendidos por seus representantes no governo federal, já que os reais interesses da Nação não se limitavam às demandas desses produtores, embora fosse essa a idéia vigente. 25 A consideração da dinâmica conflitiva existente, no período, no interior dos grupos hegemônicos e no interior do próprio grupo dos cafeicultores no processo de atendimento de seus interesses e também no de implantação de seus principais projetos, resultou na apresentação de São Paulo como um estado fortemente vinculado às altas esferas do poder, porém com sérios conflitos entre seus membros mais expressivos, bem como na relativização da abordagem de que 23 PERISSINOTO, R. M. Classes dominantes e hegemonia na República Velha. Campinas: UNICAMP, 1994. 24 CERVO, A. L. Inserção Internacional. Formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 34. 25 FAUSTO, B. “Expansão do café e política cafeeira”. In: FAUSTO, B. (dir.) História da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1975, t.3, v.1, p.193-248. 18 com a República a política externa teria se firmado como um harmonioso instrumento para o atendimento de metas e expectativas dos condutores do processo decisório em relações internacionais, isto é, dos oligarcas do café. A escolha desse objeto de estudo justificou-se, na medida em que permitiu esclarecer e minudenciar os direcionamentos da política externa brasileira ao final do século XIX e início do XX, tanto no que diz respeito às relações do Brasil republicano com os países continentais, quanto no que se refere à contribuição dos grupos políticos (ligados ou não à elite cafeeira) para que as alterações no conjunto das relações internacionais do Brasil se verificassem. A justificativa para sua escolha também se assentou no fato de que esse estudo permitiu averiguar a maneira pela qual a política interna e a política externa interagiram no período considerado. Para que o trabalho se realizasse arrolou-se como fontes da pesquisa um corpus documental que nos permitisse apreender não apenas a movimentação das duas esferas do político, a interna e a externa, mas também nos possibilitasse o mapeamento dos interesses dos grupos analisados e sua repercussão nos assuntos de política externa, do que resultou a escolha de um conjunto de documentos de caráter histórico e diplomático, que abarcou os Anais do Senado e da Câmara dos Deputados, os Relatórios dos Ministérios da Fazenda, da Agricultura e das Relações Exteriores, bem como o jornal “Correio Paulistano”, importante periódico paulista propagador dos ideais republicanos e também das questões pertinentes ao cultivo e comércio do café. 26 Uma vez que a temática central do trabalho passou pela análise das conexões existentes entre mudança de regime político e alteração na diretriz de política externa de um Estado, no caso o Brasil, considerou-se necessária a escolha de um aporte conceitual e metodológico que levasse em conta não somente os aspectos externos inerentes ao cenário internacional, como condicionantes das relações internacionais brasileiras, mas também a própria dinâmica interna do país, do que resultou a utilização das contribuições oferecidas pela escola francesa de relações 26 As fontes aqui referidas podem ser consultadas no Arquivo Histórico do Estado de São Paulo, para o caso do jornal Correio Paulistano, no Arquivo Histórico do Itamaraty, no caso dos Relatórios do Ministério das Relações Exteriores, na página da Câmara na Internet (www.camara.gov.br) no caso dos Anais da Câmara, na página do Senado Federal (www.senado.gov.br) no caso dos Anais do Senado e no seguinte endereço eletrônico (http.//brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html) para o caso dos Relatórios do Ministério da Fazenda e dos Relatórios do Ministério da Agricultura. Com exceção do Correio Paulistano que foi consultado até o ano de 1908 (em virtude da realização da primeira política de valorização do café) todas as demais fontes foram analisadas até o ano de 1912. 19 internacionais27 e também das reflexões desenvolvidas por Celso Lafer em torno do conceito de “identidade internacional.”28 No primeiro aspecto, a proposta de adoção de uma abordagem multicausal, em detrimento de uma explicação monocausal acerca das relações internacionais, permitiu-nos levar em conta tanto os aspectos econômicos e políticos que teriam pesado nas diretrizes de política externa, quanto os fatores culturais e sociais que as teriam determinado no período estudado. Já no segundo aspecto a utilização do conceito acima referido possibilitou-nos trabalhar a questão da continuidade e da mudança na política exterior, na medida em que considerou questões como o legado histórico, o contexto de vizinhança, a inserção internacional assimétrica e a questão do desenvolvimento como vetores de política externa. A combinação dessas duas metodologias pareceu-nos, portanto, fundamental à análise do caso brasileiro dada a sua especificidade, também por se considerar que as mudanças de política exterior verificaram-se não apenas em função de questões ligadas à mudança de governo e de regime, mas também em virtude de outros fatores vinculados ao perfil agrário do país e ao modelo de inserção internacional adotado. Nessa linha, diferentes aspectos da experiência brasileira foram considerados em nossa análise, tais quais as questões de sua identidade cultural, 27“Para compreender a ação diplomática, é preciso procurar penetrar as influências que lhe orientam o curso. As condições geográficas, os movimentos demográficos, os interesses econômicos e financeiros, os traços de mentalidade coletiva, as grandes correntes sentimentais, essas as forças profundas que formaram o quadro das relações entre os grupos humanos e, em grande parte, lhes determinaram o caráter. O homem de Estado, nas suas decisões ou nos seus projetos, não pode negligenciá-las; sofre-lhes a influência e é obrigado a constatar os limites que elas impõem a sua ação. Todavia, quando ele possui, quer dons intelectuais, quer uma firmeza de caráter, quer um temperamento que o levam a transpor aqueles limites, pode tentar modificar o jogo de semelhantes forças e utilizá-las para seus próprios fins. Está em condições, por via da política econômica, de melhorar o aproveitamento dos recursos naturais, tenta agir sobre as condições demográficas; esforça-se, pela imprensa e pela escola, no sentido de orientar as tendências da mentalidade coletiva; não hesita, às vezes, em tomar iniciativas que provocam, na opinião pública, um ímpeto de paixão. Estudar as relações internacionais sem levar em alta linha de conta concepções pessoais, métodos, relações sentimentais do homem de Estado, é negligenciar um fator importante, às vezes essencial.”. In: RENOUVIN, P.; DUROSELLE, J. B., Introdução à História das Relações Internacionais. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. 28 “Este ponto de vista pode ter, como é, o caso do Brasil, uma dimensão de continuidade, explicável em função do impacto de certos fatores de persistência da inserção do país na vida internacional. Tais fatores de persistência estão ligados ao que Renouvin e Duroselle qualificam de “forças profundas”, que oferecem indispensáveis elementos para explicar, de forma mais abrangente, iniciativas, gestos e decisões governamentais. No caso brasileiro, entre estes fatores cabe destacar o dado geográfico da América do Sul; a escala continental; o relacionamento com os muitos países vizinhos; a unidade linguística; a menor proximidade, desde a Independência em 1822, dos focos de tensão presentes no cenário internacional; o tema da estratificação mundial e o desafio do desenvolvimento. Estes fatores de persistência contribuem para explicar traços importantes da identidade internacional do Brasil, ou seja, o conjunto de circunstâncias e predicados que diferenciam a sua visão e os seus interesses, como ator no sistema mundial, dos que caracterizam os demais países.” In: LAFER, C. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 20. 20 de sua identidade nacional e as características de sua política interna, conforme propõe Amado Luiz Cervo. Identidade nacional, identidade cultural, capacidade de estabelecer consensos internos, grau de racionalidade na gerência das políticas de Estado, existência ou não de projeto nacional, jogo interno conflitivo ou cooperativo dos grupos e das forças sociais, autonomia decisória ou subserviência do homem de Estado, conformismo diante de condicionamentos externos ou vontade nacional são algumas variáveis a serem manipuladas nesse estudo. 29 Para que essa pesquisa fosse levada a efeito de modo a atingir seus objetivos essenciais, foi necessário estruturar o trabalho em quatro capítulos específicos, mediante os quais as principais temáticas ligadas ao objeto de estudo da presente tese pudessem ser analisadas. Nessa linha a análise das relações entre mudanças de regimes políticos e interesses de grupos hegemônicos, conduziu-nos à necessidade de primeiramente caracterizar os antecedentes históricos da política externa brasileira no período colonial para melhor caracterizá-la no transcurso do Império e na passagem deste para a República, após o que cuidou-se de analisar as peculiaridades da política interna no período em questão com vistas a verificar as relações entre mudanças internas e alterações nas diretrizes externas. Assim, no primeiro capítulo – De frente para a Europa e de costas para a América. A política externa brasileira durante a Monarquia, ocupamo-nos de um modo geral da estruturação das relações do país com o plano exterior, enfocando inicialmente as características do período colonial e dos elementos históricos que antecederam a formação da política externa durante o mesmo, como as relações entre Portugal e Inglaterra, que iriam posteriormente fundamentar a estruturação da tradição europeísta que daria o tom da política externa brasileira no decorrer do regime monárquico, bem como de sua estruturação e consolidação no período subsequente ao 7 de setembro de 1822. 30 Conseqüentemente, no segundo capítulo da tese – Da Europa para a América. As alterações na política externa brasileira na passagem da Monarquia para a República, cuidamos 29 CERVO, A. L. Inserção Internacional. Formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 36,37. 30 Dada a estruturação do trabalho, optou-se por conduzir a análise da política externa brasileira em torno de dois eixos explicativos – o da simetria e o da assimetria – isto é, no eixo das relações brasileiras com países que apresentam diferenciais significativos de poder e no das relações do Brasil com países que apresentam categorias de poder semelhantes. De acordo com: RICUPERO, R. O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 anos de uma relação triangular. In: ALBUQUERQUE, J. A. G. (Org.). Crescimento, modernização e política externa. São Paulo: Cultura Editores, 1996. 21 inicialmente de apresentar as mudanças imediatas por que passaram as diretrizes de política externa com a implantação do novo regime, caracterizando inicialmente seu deslocamento do polo de poder europeu para o polo de poder norte-americano, e posteriormente o delineamento de sua principal vertente – o americanismo em detrimento do europeísmo imperial, que foi um traço da República nascente no que diz respeito ao amplo terreno das relações internacionais. No que diz respeito à análise da política interna, no terceiro capítulo – A ascensão dos cafeicultores e sua inserção na política interna brasileira, tratamos essencialmente de caracterizar o avanço da cafeicultura e o processo de formação de novas elites políticas e econômicas ainda no decorrer do Império para depois analisarmos a ascensão e consolidação desses novos grupos sociais no cenário político republicano, do que decorreu uma análise acerca de sua atuação na política doméstica, destacando o conjunto de seus interesses, sua interferência na condução do país e também seu empenho para a concretização dos objetivos atinentes ao seu grupo social. 31 Já no quarto capítulo – Os formuladores de política externa, os antecessores do Barão do Rio Branco e os interesses da cafeicultura, voltamo-nos para uma análise mais detalhada em torno da repercussão que os interesses dos grupos hegemônicos (no caso o dos cafeicultores) tiveram tanto na política interna quanto na política externa brasileira e também para a análise do papel que os formuladores e os condutores desta última desempenharam no tocante ao atendimento das demandas dos grupos sociais predominantes, após o que passou-se a uma análise das relações existentes entre a esfera interior e a esfera exterior de poder. 31 Razão pela qual, entende-se por elite política o grupo de pessoas que tenham desempenhado funções formais na estrutura de poder do Brasil Império e na República, isto é, no executivo ou no legislativo, bem como os demais grupos sociais que tenham também interferido na condução da política brasileira no período em questão. Para maiores detalhes ver: CARVALHO, J. M. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 22 CAPÍTULO 1. DE FRENTE PARA A EUROPA E DE COSTAS PARA A AMÉRICA. A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DURANTE A MONARQUIA. Como as árvores, antes de florirem e darem fruto, tem as ideias longo período de silencioso e obscuro germinar.(CALÓGERAS, 1989, V.1, p.35). A América-Hispânica – vista a partir dos olhares brasileiros – é uma “outra” América, ainda que façamos parte deste todo complexo e contraditório denominado América Latina. Historicamente, nosso país se aproximou muito mais da Europa e dos Estados Unidos do que dos seus vizinhos. Além disso, as relações do Brasil com os países hispano-americanos foram caracterizadas, em vários momentos, por desconfianças mútuas. (BÁGGIO, 1998, p.10) 23 1.1. Os antecedentes históricos da política externa brasileira Ao refletir sobre as singularidades do Império Brasileiro na passagem do século XIX para o XX, o historiador e diplomata pernambucano Manoel de Oliveira Lima (1867-1928), considerou: De começo o Império tinha contado com a simpatia britânica porque a cisão do Reino Unido favorecia os interesses comerciais ingleses, e da Inglaterra se importou o constitucionalismo como sistema de governo; mas a tendência de aproximação política foi mais pronunciada para o lado da América do Norte. Das repúblicas neo-espanholas distanciavam o Brasil antipatias peninsulares herdadas e transplantadas e prevenções filiadas na sua natureza imperial que parecia prenunciar absorções e emulações (...) as duas grandes uniões do novo mundo, a americana e a brasileira, entenderam-se sempre perfeitamente e não houve melhor agente dessa “entente cordiale” do que D. Pedro II. 32 Longe de exaltarem apenas a cordialidade das relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, as reflexões do destacado historiador do Império deixaram à mostra as principais vertentes da política externa brasileira, desde sua constituição no período subsequente à Independência até a queda da Monarquia, quando o Brasil deslocaria o eixo de suas relações exteriores da Europa para a América, prioritariamente da Inglaterra para os Estados Unidos. Gerada historicamente nos anos precedentes à emancipação e consolidada ao longo do século XIX, tanto em função das características do nascente Estado brasileiro, quanto em função da dinâmica do cenário internacional da época, a política externa imperial teve por características essenciais o alinhamento inicial com a Europa, mormente com a Inglaterra, o distanciamento relativo da América Hispânica e a paulatina aproximação com a América do Norte. 33 Das principais vertentes que conformaram a política externa brasileira durante o regime monárquico pode-se dizer que duas delas – o alinhamento com o Velho Mundo e a atitude reservada em relação aos vizinhos – originaram-se no período colonial, quando se consolidavam as bases sociais, culturais e institucionais do Brasil. Conquanto não se possa falar na existência de política externa, e sim de relações exteriores, para o Brasil colonial, em virtude da total ausência dos elementos essenciais ao seu desenvolvimento, dentre eles, a existência de um Estado 32 LIMA, M. O. O império Brasileiro (1821-1889). Belo Horizonte: Itatiaia, p.154. Apud. MAGNOLI, D. O corpo da pátria. Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Ed. UNESP; Moderna, 1997, p.204. Aspas do autor. 33 CERVO, A. L. A conquista e o exercício da soberania (1822-1889). In: BUENO, C.; CERVO, A. L. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.p.13-134. 24 Soberano habilitado a impor sua vontade aos demais Estados presentes no cenário internacional, a longevidade desse período serviria de pano-de-fundo para o delineamento das relações primordiais do país com o exterior.34 Desde que passara a integrar as possessões portuguesas no além-mar, ainda no século XVI, e a despertar os interesses europeus, o Brasil aproximou-se da esfera de influência do Velho Mundo, num contexto em que a Europa assistia à constituição da Sociedade dos Estados Soberanos e em que estes amadureciam o modo de praticar as relações internacionais, inicialmente no próprio espaço continental, posteriormente no plano externo. Erguida pelo Congresso de Vestfália, de 1648, esta Sociedade alicerçava-se na defesa das múltiplas independências e na contraposição à emergência de um poder hegemônico central, como tinha sido a dinastia dos Habsburgos, consolidando um todo sistêmico que, embora funcionasse com dificuldades, caracterizaria as relações entre os Estados europeus até o início do século XIX. 35 Desse período de “experimentação”, no qual as relações internacionais dos Estados europeus conformavam, por assim dizer, um movimento pendular, isto é, dentro e fora do continente, resultou não só a expansão mercantilista do século XVI, na qual Portugal foi pioneiro, mas também a conquista da América e a transformação da Europa em clientela asiática. A expansão mercantilista dos anos 1500, mais do que possibilitar a constituição de Impérios extra- continentais, ensejou o estabelecimento de regras e conceitos da experiência europeia, que seriam gradativamente repassados ao restante do mundo. O delineamento de novas rotas, consequente dos mecanismos de expansão, funcionaria como a primeira etapa do encontro europeu com as demais regiões mundiais, encontro esse que se tornaria efetivo somente no século XIX, quando o sistema internacional originado lentamente desde Vestfália, dominaria outras regiões ditando as regras do jogo político. 36 34 ALMEIDA, P. R. Introdução ao estudo das relações internacionais do Brasil. In: ALMEIDA, P. R. Relações internacionais e a política externa do Brasil. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2004. P.19-50. 35 De acordo com as reflexões de Heddley Bull, um sistema internacional, ou sistema de estados, se constitui quando dois ou mais estados têm suficiente contato entre si, com suficiente impacto recíproco nas suas decisões, de tal forma que se conduzam, pelo menos até certo ponto, como partes de um todo, ao passo que a sociedade de estados, ou sociedade internacional, se constitui quando um grupo de estados partilha valores, instituições e interesses comuns. In: BULL, H. A Sociedade Anárquica. Brasília: Editora da UNB, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, p.15 a 19. 36 CERVO, A. L. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). In: SARAIVA, J. F. S. História das relações internacionais contemporâneas. Da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2008, p.41-75. 25 No processo de expansão europeia, o pioneirismo de Portugal transformou o Brasil em uma das mais importantes colônias da Coroa lusitana, em virtude das características do edifício da colonização. Passados os primeiros anos de contatos inexpressivos e de economia de escambo (1500-1530), Portugal iniciou as tentativas de ocupação das terras brasileiras em princípio experimentando um modelo privado (Capitanias Hereditárias), posteriormente um modelo estatal (Governo Geral), para por fim adotar um modelo híbrido, já que os primeiros haviam falhado. Dos esforços dos anos 1530-1548, resultaram a constituição de uma economia de produção, sustentada na exploração do trabalho escravo, inicialmente do indígena, depois do africano, bem como de uma sociedade hierarquizada, composta por um reduzido número de cidadãos livres e pequenos produtores em contraposição ao grande número de indivíduos escravizados. 37 Assentado no Pacto Colonial, aqui entendido como o “estabelecimento de vínculos incontornáveis entre as diversas colônias e a metrópole, pelos quais todo e qualquer comércio externo tinha como centro regulador as alfândegas de Lisboa”, 38 o domínio português na América limitou as possibilidades de atuação da colônia brasileira, inviabilizando o estabelecimento de relações internacionais autônomas, bem como de uma diplomacia independente. As limitações impostas pela Metrópole à Colônia possibilitavam tão somente o estabelecimento de relações exteriores, que lentamente delineariam o que viria a ser a política externa do Brasil independente, bem como os contornos básicos de seu território, organização social administração política e estrutura econômica.39 Desse modo, conduzidas no eixo Metrópole-Colônia, as relações coloniais com o plano externo limitavam-se ao desempenho de funções específicas do comércio português, concentrando-se, sobretudo, no abastecimento metropolitano com produtos coloniais e na recepção de produtos provenientes de Portugal, movimentando, assim, a economia lusitana que se alimentava muito mais no Império que na produção interna, o que contribuía para alçar o Brasil à 37 WEHLING, A. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 38 ALMEIDA, P. R. Formação da diplomacia econômica do Brasil: as relações econômicas internacionais do império. São Paulo: Editora SENAC; Brasília: FUNAG. 2001. p.66. 39 Amado Luiz Cervo considera que, embora correspondam a aspectos importantes da convivência entre os povos, os conceitos de diplomacia, política exterior e relações internacionais, comportam graus de abrangência diferentes. Nessa linha, enquanto a primeira pode ser entendida como a ação externa dos governos, expressa em objetivos, valores e padrões de conduta vinculados a uma agenda de compromissos pelos quais se pretende realizar determinados interesses, a segunda corresponderia ao elemento fornecedor do conteúdo da diplomacia a partir de uma perspectiva interna quer seja regional, nacional ou universal. Na perspectiva do autor, as relações internacionais compreenderiam um fenômeno muito mais amplo, na medida em que abarcariam tanto a diplomacia e o governo com sua política, quanto a sociedade com suas forças. In: CERVO, A. L. Inserção internacional. Formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008.p. 8-12 26 destacada posição no rol dos interesses reais, permitindo-nos dizer que do século XVI ao XIX, este figurou como a Jóia Cara da Coroa Lusitana. Assim guiadas, as relações brasileiras com o plano externo, consolidaram os vínculos do Brasil com a Europa, bem como seu afastamento em relação às colônias hispano-americanas.40 Se de um lado, o tardio descobrimento das minas brasileiras de ouro e de prata, tão expressivas nos domínios espanhóis, retardou o processo de ocupação do território brasileiro, de outro levou os portugueses, a “iniciarem o avanço pelo hinterland da América do sul, rompendo a linha de demarcação que o Tratado de Tordesilhas estabelecera”, 41 não só gerando conflitos diversos, ora de natureza econômica, ora de natureza geopolítica, que seriam posteriormente absorvidos pelo Brasil imperial, mas também uma dicotomia na postura da Metrópole que sempre iria priorizar as relações coloniais com as regiões que conformavam a Bacia Platina, em detrimento das regiões que constituíam a Bacia Amazônica.42 Destituído dos elementos que pudessem transformá-lo em sujeito das Relações Internacionais, em virtude dos sólidos vínculos de dependência que o prendiam à Metrópole, o Brasil, não obstante tivesse se engrandecido no conceito lusitano por conta das questões comerciais, permaneceria até à abertura dos Portos, em 1808, em estrito isolamento político, econômico e social para com o plano exterior, relacionando-se com as demais regiões do cenário mundial mediante a atuação metropolitana. Colocado nesses termos, o edifício do sistema colonial sustentou-se inconteste até o século XVIII, quando o surgimento das doutrinas econômicas liberais, a emergência do Iluminismo, bem como a elaboração de um pensamento crítico em relação ao mercantilismo e ao escravismo, juntamente com o declínio da economia açucareira e mineira, não só questionariam seus principais fundamentos, mas também acabariam por minar sua força e resistência. Prenunciando mais do que mudanças ideológicas, alterações concretas na forma de exploração das áreas periféricas pelo núcleo do capitalismo, esse período de declínio do antigo sistema colonial corresponderia à emergência da Inglaterra como potência marítima no cenário mundial, que procuraria erguer um novo Império, que pudesse em tudo e por tudo suplantar as 40 CERVO, A. L. De vice-reino à parte do Reino Unido, 1808-1821. In: CERVO, A.L.; MAGALHÃES, J.C. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.62- 95. 41 BANDEIRA, M. O Expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: Editora da UNB, 1998.p. 21 42 MAGNOLI, D.O corpo da pátria. Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Ed. UNESP; Moderna, 1997.p.136. 27 velhas construções ibéricas e à sombra do qual Portugal se conduziria nos anos finais do período colonial. Com efeito, no âmbito das relações metropolitanas, os anos 1700 corresponderam ao período do estabelecimento de vínculos econômicos e diplomáticos entre as Coroas britânica e portuguesa, corporificados na assinatura do Tratado de Methuen, de 1703, que selou a dependência econômica que se estabeleceria entre as duas Coroas, na medida em que transformaria Lisboa em um entreposto comercial em benefício dos interesses ingleses.43 Conduzindo-se à sombra da Coroa britânica, que não só lhe assegurava a navegação no Atlântico, mas também a soberania sobre o Brasil, Portugal, não obstante as crises desencadeadas no período, manteve o controle de sua colônia retirando dela proveito até o início do século XIX. 44 Importa, contudo, notar que a aliança britânico-portuguesa fizera do Brasil região destacada nas estratégias comerciais empreendidas tanto no Atlântico Sul, quanto nas demais possessões lusitanas, na medida em que a crescente demanda de produtos coloniais por parte dos países europeus, especialmente da Inglaterra, que já não contava mais com as colônias americanas, fazia não só crescer a importância da Metrópole como fornecedora de produtos tropicais, mas também a de sua colônia nesse sentido, resultando na aproximação brasileira à área de influência britânica. 45 A vinculação portuguesa e brasileira aos interesses britânicos, se por um lado respaldava as iniciativas da Coroa Lusitana, por outro a sujeitava aos riscos de conflitos frequentes entre as potências ocidentais pelas disputas de poder, pois tendo como avalista de seus interesses a principal potência da época – a Inglaterra –, Portugal adquiria, por associação inevitável, destaque nas disputas pela hegemonia dos mares, que, desde o final do século XVIII, havia transformado o Atlântico em palco de competições crescentes entre Inglaterra e França. Nessa linha, os opositores ao domínio britânico dos mares, acabavam por fazer oposição a Portugal, pela tradicional aliança entre as duas Coroas, criando impedimentos à concretização de seus próprios interesses, como evidenciou o apoio francês às pretensões espanholas na região platina. 43 ALMEIDA, P. R. Formação da diplomacia econômica do Brasil: as relações econômicas internacionais do império. São Paulo: Editora SENAC; Brasília: FUNAG. 2001. 44 MAGNOLI, D. O corpo da pátria. Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Ed. UNESP; Moderna, 1997. 45 CERVO, A. L. De vice-reino a parte do Reino Unido, 1808-1821. In: CERVO, A. L. ; MAGALHÃES, J.C. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.62-95. 28 No precário equilíbrio alcançado entre as potências da época, Portugal e Brasil viam-se, assim, periodicamente desafiados pelas repercussões dos conflitos e das disputas de poder, do qual o movimento revolucionário francês seria uma de suas principais expressões. 46 Refletindo a conflituada dinâmica da política internacional no período, a Revolução Francesa acarretaria, com efeito, mudanças estruturais importantes tanto no cenário internacional do final do século XVIII e início do XIX, quanto na estrutura em que se sustentava o Brasil colônia, conformando uma dupla dinâmica em que, de um lado observar-se-ia a constituição de um sistema internacional global e de outro a dissolução lenta dos vínculos entre Portugal e Brasil, que passariam das antigas relações entre Metrópole e Colônia, para as modernas relações bilaterais entre Estados independentes. 47 Ponto de inflexão importante nas relações internacionais europeias, a ascensão de Napoleão Bonaparte no processo revolucionário francês, fizera o pêndulo das relações internacionais europeias deslocar-se da defesa das múltiplas independências para o ponto alto da hegemonia, já que, contrariando as regras do jogo político, dera início à construção do Império francês às expensas dos demais Estados europeus. 48 A imposição da hegemonia francesa ao restante do continente alcançou também Portugal, repercutindo significativamente na própria vida colonial do Brasil, posto que em face do bloqueio continental e das crescentes pressões francesas pelo rompimento das relações britânico-portuguesas, a Corte Lusitana transferiu-se para o Brasil sob os auspícios da “Rainha dos Mares”. Mais do que decisão fortuita tomada no calor dos acontecimentos que se desenrolavam no plano internacional, a transposição da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, representou a concretização de um projeto antigo, comumente lembrado em momentos difíceis da história portuguesa e que reservaria ao Brasil papel diferenciado no período que se lhe seguiria. Condicionada à salvação do próprio Império português comportava, assim, o arrojado propósito de construção de um Estado moderno na América do Sul, que pudesse não só assegurar a 46 WEHLING, A. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 47 CERVO, A. L. De vice-reino a parte do Reino Unido, 1808-1821. In: CERVO, A. L. ; MAGALHÃES, J.C. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.62-95. 48 CERVO, A. L. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). In: SARAIVA, J.F. S. História das relações internacionais contemporâneas. Da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2008, p.41-75. 29 sobrevivência da própria Coroa, mas também compensar os reveses impostos pela ocupação napoleônica. 49 Delineado num período de instabilidade política sem precedente na história portuguesa, o projeto de construção de um novo Império materializou-se logo de início na adoção de medidas e implementação de mudanças tendentes a alterar tanto quanto possível o panorama colonial. Nessa linha, não apenas instituições políticas, militares, judiciárias e administrativas foram implantadas com seus conselhos e instâncias supremas, mas também instituições culturais, como escolas régias, colégios, biblioteca, imprensa, entre outras mais, que, no campo dos assuntos internacionais propriamente dito, significariam o pontapé inicial para a constituição da diplomacia econômica brasileira. 50 Verificadas em diferentes domínios, as alterações do período estenderam-se também aos meandros da economia e da política externa, mormente no que dizia respeito ao estabelecimento de relações comerciais com nações europeias e ao delineamento de uma política intervencionista em áreas fronteiriças que integravam os domínios franceses ou espanhóis, tais quais, Caiena e a Banda Oriental do Uruguai. No primeiro caso, pode-se dizer que a abertura dos portos brasileiros às Nações amigas, bem como a assinatura dos tratados comerciais de 1810, significaram a formalização das relações britânico-brasileiras que até então eram mediadas pela Coroa. Estabelecidas nos termos da política liberal que passava a informar as relações internacionais das potências europeias, resultaram na transferência da situação de dependência lusitana para o Brasil, que passou à condição de virtual protetorado britânico. Não seria demasiado pensar assim se considerarmos que os tratados da época acarretaram, mais do que benefícios compartilhados, prejuízos unilaterais, na medida em que se assentando num modelo de reciprocidade fictícia beneficiaram apenas os países europeus em prejuízo da própria economia brasileira. 51 Objetivando não só encerrar o ciclo de isolamento em que a Colônia havia vivido até então, mas também transformá-la no palco em que se constituiria a nova monarquia portuguesa, as medidas reais atravancariam o desenvolvimento das forças produtivas do país, aumentando por outro lado os seculares conflitos nas regiões fronteiriças entre os domínios português e espanhol. A necessidade de consolidação do Império Lusitano no Atlântico, bem como a preocupação em 49 MAGNOLI, D. O corpo da pátria. Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Ed. UNESP; Moderna, 1997. 50 ALMEIDA, P. R. Formação da diplomacia econômica do Brasil: as relações econômicas internacionais do império. São Paulo: Editora SENAC; Brasília: FUNAG. 2001 51 WEHLING, A. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 30 se compensar as perdas sofridas faziam, assim, a Coroa Lusitana realizar intervenções no cenário regional objetivando anexações e ampliações dos domínios portugueses das quais deu conta a primeira intervenção na Cisplatina. Nesse sentido, pode-se dizer que os interesses da Corte no Rio de Janeiro começavam a se desprender de Lisboa para se voltarem mais detidamente para o Brasil. As perspectivas da política exterior da Corte no Rio de Janeiro modificaram-se com relação à política exterior de Lisboa. Esta fora eliminada como pólo de pressão, emergindo uma política voltada, agora, para o Brasil. Pretendia-se, contudo, dar alguma compensação à má sorte de Portugal. Os objetivos eram, primeiro, o de construir nova e moderna metrópole na América e, segundo, garantir a integridade e independência do território de Portugal. Por essa brecha, precisamente, imiscuiu-se o interesse britânico que deitou a perder a estratégia de crescimento econômico brasileiro 52 Realizada nos termos da política de poder europeia do início do século XIX, isto é, nos termos da política liberal com que as potências da época procuravam assegurar seus interesses, tais mudanças culminaram na liberação da Colônia de seu antigo status político. 53 A criação de comarcas e a nomeação de respectivos juízes, bem como a proliferação de vilas e cidades e a concessão de autonomia para certas capitanias impulsionaram seu desenvolvimento a ponto de o Brasil construir-se, embora lentamente, como Estado Soberano. A aclimatação do arcabouço institucional do Estado português às condições econômicas e sociais brasileiras, bem como sua elevação à condição de Vice-Reino expressava-se, assim, na constituição de um aparelho burocrático e militar capaz de defender seus interesses, bem como de dar conta da dinâmica dos novos tempos. 54 Positiva para o Brasil, a permanência da Corte revelou-se, contudo, prejudicial a Portugal que desde as ocupações francesa e inglesa vivia um período de retração econômica e descontentamento político. A conjugação desses fatores pesava negativamente sobre a Nação portuguesa, acabando por dividir as opiniões no seio da própria Corte, situando de um lado os que lhe partilhavam das decisões e de outro os que se lhe opunham. Expressando os contrastes existentes entre as partes constitutivas do próprio Reino, as divergências do período quanto ao 52 CERVO, A. L. De vice-reino a parte do Reino Unido, 1808-1821. In: CERVO, A.L.; MAGALHÃES, J.C. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.75 53 CERVO, A. L. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). In: SARAIVA, J. F. S. História das relações internacionais contemporâneas. Da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2008, p.41-75. 54 WEHLING, A. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 31 papel que o Brasil deveria desempenhar na história portuguesa, ganhariam novas conotações acentuando-se tanto mais quando com o apoio das principais potências da época D. João VI elevaria o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves, num contexto em que a derrota napoleônica impunha mudanças significativas no cenário internacional. Formalizada pela realização do Congresso de Viena de 1815, a derrota napoleônica, mais do que possibilitar o restabelecimento dos Impérios que as pretensões expansionistas francesas haviam destruído, ensejou a reformulação do antigo Sistema de Estados, que passou desde então a ser administrado pelo chamado Concerto Europeu – um centro hegemônico de controle político, no qual a Inglaterra, secundada pela França, pela Áustria e Prússia e também pela Rússia, exerceriam coletivamente o poder.55 Essa nova estrutura de poder conformada pelas hegemonias coletivas das principais potências europeias, serviria de pano-de-fundo para o delineamento de uma economia mundial calcada no liberalismo econômico e também para a legitimação das pretensões lusitanas em relação ao Brasil. Na necessidade de construir novos eixos de relacionamento, que não somente o inglês, e de ampliar as redes de alianças com as congêneres europeias, Portugal procuraria respaldo no Concerto Europeu para finalizar, pelo menos no aspecto formal, a situação de Colônia na qual o Brasil havia permanecido por largo período.56 Realizada com o apoio do Concerto Europeu, a elevação do Brasil à posição diferenciada no conjunto das possessões portuguesas, se por um lado conferiu maior autonomia ao Brasil reconhecendo-o formalmente como Estado Soberano, por outro acirrou as disputas e os embates que desde algum tempo já se verificavam no seio da própria Corte. Desagradados em suas pretensões os portugueses passaram a exigir, mediante o desenvolvimento de conspirações e movimentos revolucionários de cunho liberal, o regresso do Rei, então verificado em julho de 1821. O retorno do Rei a Portugal, longe de finalizar as divergências existentes no seio da própria Corte, aumentou-as ainda mais, posto que as Cortes Revolucionárias Lusitanas não apenas lhe cassaram os poderes, bem como estabeleceram medidas legais que objetivavam em tudo e por tudo atrofiar a relativa autonomia alcançada pelo Brasil durante os anos 1808-1821. 57 55 CERVO, A. L. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). In: SARAIVA, J. F. S. História das relações internacionais contemporâneas. Da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2008, p.41-75. 56 MAGNOLI, D. O corpo da pátria. Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Ed. UNESP; Moderna, 1997.p.185 57 WEHLING, A. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 32 Pelas deliberações da Constituição Portuguesa ficava o Brasil remetido a posição inferior à que ele passara a desfrutar, devendo ser governado, na ausência de D. João VI, por uma regência coletiva, composta de cinco membros e três secretários nomeados pelo Rei, cujos limitados poderes não lhe facultavam apresentar nomes para os bispados ou prover altos cargos judiciários, militares ou diplomáticos, tampouco fazer tratados, declarar guerra ou fazer a paz. Estas medidas inviabilizavam a autonomia do governo brasileiro desfazendo a unidade política do país e ao mesmo tempo conformando um jogo de forças no qual a fissura no centro do poder do Reino Unido, desdobrar-se-ia no rompimento político entre as partes que o constituíam. As imposições políticas das Cortes de Lisboa sem sequer considerar as reais condições em que o país se achava representavam, por certo, erro de cálculo estratégico, que teria como resultado direto o rompimento formal entre Portugal e Brasil, na medida em que as repercussões das iniciativas portuguesas no Brasil fariam de algum modo emergir, mais do que o sentimento de revolta, o de nacionalidade, gerando posturas contrárias tomadas de comum acordo por D. Pedro I e por José Bonifácio. Funcionando como verdadeiro contrapeso político às deliberações de Lisboa, a postura brasileira de não cumprir as imposições que chegavam ao país resultaram na criação de novos decretos e de instrumentos próprios de governo, bem como na proclamação da Independência aos 07 de setembro de 1822. 58 Verificado inicialmente no plano político jurídico o rompimento entre brasileiros e portugueses não foi aceito de modo pacífico. Pelo contrário, gerou reações dos segundos, mormente no que dizia respeito ao estabelecimento de planos militares de reconquista, que remeteriam o movimento da independência a um outro aspecto – o militar .59 Ancorados nas tentativas de separação do norte do país, em virtude da destacada posição que o general Madeira ocupava na Bahia e na hesitação das lideranças provinciais do norte e nordeste em aderir ao movimento de independência comandado pelo Rio de Janeiro, desencadearam a guerra de independência, então configurada como ponto alto do rompimento entre Portugal e Brasil. O país que durante muito tempo se sujeitara às imposições lusitanas voltava-se, assim, para sua antiga Metrópole recusando-se a abrir mão das concessões alcançadas sob os auspícios de D. João VI, bem como se levantando em defesa de seus próprios interesses, dentre eles o de 58 CERVO, A. L. De vice-reino a parte do Reino Unido, 1808-1821. In: CERVO, A.L.; MAGALHÃES, J.C. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.62- 95. 59 CERVO, A. L. A conquista e o exercício da soberania (1822-1889). In: BUENO, C.; CERVO, A. L. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.p.13-134. 33 despontar no cenário internacional como um novo ator político, o que efetivamente ocorreria quando os conflitos militares se encerrassem no plano interno e quando a diplomacia imperial obtivesse o reconhecimento da independência no plano externo. A acirrada defesa de seus interesses não só afastaria definitivamente a ingerência portuguesa nos assuntos nacionais, mas também resultaria na consolidação da soberania, na união das províncias, na substituição da administração colonial pela brasileira e no confisco de propriedades portuguesas, nutrindo o embrião do governo nacional e respaldando o trabalho da Assembleia Constituinte e Legislativa. O rompimento dos últimos vínculos entre Portugal e Brasil, tornou o diálogo entre ambos, difícil, quase impossível, não só pela ausência de relações formais entre eles, mas também pelos ressentimentos mútuos que passaram a pairar de lado a lado. Desde então, as dificuldades de entendimento entre ambos em reconhecer a independência, acabariam por remetê-los à mediação britânica. 60 Predominante na hierarquia do Sistema Internacional Europeu, em virtude de um conjunto de significativos fatores, dentre os quais poderíamos contar sua condição de potência econômica e naval insulada e um tanto quanto distante dos conflitos que periodicamente acometiam os demais Estados, a Inglaterra se aproveitaria da ocasião para fazer valer seus próprios interesses, servindo-se da falta de visão dos negociadores brasileiros e portugueses para auferir lucros econômicos e efetivar a dominação política. A imposição da chamada Pax Britânica, aqui entendida como uma influência difusa e singular voltada para a abertura de mercados internos e para promoção de políticas econômicas liberais que pudessem impulsionar sua própria economia,61 permaneceria incontestável até o final do século, quando a ascensão do Império Alemão no continente europeu viria, no plano interno, promover modificações importantes na hierarquia de poder das potências predominantes no sistema internacional, ao passo que no plano externo, a emergência dos Estados Unidos como novo polo de poder, viria funcionar como efetivo papel de contrapeso à influência britânica no continente americano. 62 60 CERVO, A. L. As primeiras missões de lado a lado e o reconhecimento da independência. In: CERVO, A. L.; MAGALHÃES, J.C. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.62-95. 61 WIGHT, M. A política do poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília; Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais. São Paulo. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002. (Clássicos IPRI, 7). 62 DÖPCKE, W. Apogeu e colapso do sistema internacional europeu (1871-1918). In: SARAIVA, J. F. S. História das relações internacionais contemporâneas. Da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2008. 34 Mediante a atuação britânica o processo de independência chegava, assim, a sua etapa final – a diplomática, na esteira da qual as diretrizes constitutivas da política externa brasileira, esboçadas gradativamente ao longo do período colonial, tais quais o alinhamento com a Europa e a reservada atitude em relação aos vizinhos hispano-americanos, seriam, então, consolidadas, caracterizando, assim, a vida do Brasil independente, como bem tinha notado Manuel de Oliveira Lima. 63 1.2. Independência, Soberania e Política Externa. O Primeiro Reinado. Período de mudanças significativas no cenário mundial, o século XIX caracterizou-se não apenas pelo delineamento de um sistema internacional essencialmente europeu, em cujo cerne a economia industrial e o mercado mundial se consolidavam, mas também pela quebra dos monopólios coloniais e o consequente enfraquecimento das antigas potências ibéricas. Aspecto importante do processo de expansão do sistema internacional europeu, a independência dos países americanos se por um lado correspondeu à autonomia das antigas colônias ibéricas e ao consequente momento de integração da América Latina à economia capitalista, por outro significou a transformação do continente em campo de disputas internacionais.64 Percebidas inicialmente como regiões profundamente dependentes das deliberações metropolitanas, as Nações que emergiam do processo emancipador latino-americano, passavam a ser vistas pelos países membros do Concerto Europeu como áreas potencialmente destinadas a fazerem parte da área de influência europeia determinando, assim, a adoção de medidas, por parte deste, tendentes a assegurar a inserção da América Latina ao Sistema Internacional Europeu. Nessa linha, pode-se dizer que aquela se submeteu à influência europeia mediante a assinatura de tratados comerciais de cunho liberal que seriam de algum modo prejudiciais ao seu próprio desenvolvimento. Num contexto em que os Estados-membros do Concerto Europeu agiam com vistas a atender seus próprios objetivos, os Estados menores, destituídos de elementos com que 63 CERVO, A. L. De vice-reino a parte do Reino Unido, 1808-1821. In: CERVO, A. L. ; MAGALHÃES, J.C. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.62-95. 64 CERVO, A. L. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). In: História das relações internacionais contemporâneas. Da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2008, p.41-75. 35 fazer valer seus próprios interesses, deles se aproximavam submetendo-se à sua influência praticamente sem barganhas. Com o Brasil não seria diferente. No bojo das mudanças do período a emancipação brasileira da tutela portuguesa teria por característica essencial a aproximação com a Europa, ao tempo em que o Brasil despontaria no cenário internacional como um ator político interessado em assegurar para si um “lugar ao sol” no cenário mundial da época, não sendo de admirar tal fato se considerarmos que no processo das relações internacionais os Estados em desenvolvimento geralmente priorizam seu relacionamento com os países centrais no sistema capitalista, mormente com a potência hegemônica.65 Realizada no seio da reestruturação do Sistema Internacional Europeu do pós Congresso de Viena, a independência brasileira não foi decisão fortuita, abruptamente encetada pelas elites políticas, mas sim o ponto alto de um processo que, começado, de certa forma, em 1808, abarcou tanto causas remotas, quanto imediatas, tais quais a dissolução paulatina do antigo sistema colonial, a eclosão de movimentos revolucionários e a emergência dos ideais liberais, que em seu término assumiria, conforme se viu, um caráter multidimensional verificado no âmbito político, militar e diplomático. 66 Prenunciada no início do século, quando a transposição da Corte Lusitana para o Rio de Janeiro introduzira mudanças concretas na vida colonial, completou-se no início dos anos 1820, por conta do acirramento das posições entre portugueses e brasileiros, que conferiu ao movimento da independência uma dupla dinâmica, na qual as contribuições para a emancipação vieram de lado a lado. Consumada aos 07 de setembro de 1822, no rol das batalhas legislativas entre Portugal e Brasil, a independência brasileira pautou-se pelo conservadorismo, com a manutenção da unidade nacional e do antigo projeto português de constituição de “um império aristocrático e escravista nos trópicos” 67 Contrariamente ao que acontecia nas colônias hispano-americanas, que se fragmentavam em inúmeras repúblicas, o Brasil se achava de algum modo mais amadurecido como Estado, possuindo, por assim dizer, um aparelho burocrático e militar capaz de defender e mesmo de impor tanto interna quanto externamente a vontade social de suas classes dominantes e 65 CERVO, A. L. A conquista e o exercício da soberania (1822-1889). In: BUENO, C.; CERVO, A. L. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.p.13-134. 66 CERVO, A. L. As primeiras missões de lado a lado e o reconhecimento da independência. In: CERVO, A.L.; MAGALHÃES, J.C. Depois das caravelas: as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. p.62-95. 67 MAGNOLI, D. O corpo da pátria. Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Ed. UNESP; Moderna, 1997. 36 apresentando a mesma contextura institucional lusitana, a saber, “o dogma da soberania una e indivisível, a hierarquia, as leis civis, os métodos administrativos, o estilo político, o instrumental bélico e diplomático, com a experiência internacional e o vezo de potência”. 68 O notável traço de continuidade em relação a Portugal não apenas distinguia a independência brasileira da emancipação das colônias hispano-americanas, mas também singularizava o processo de construção de uma identidade internacional, que se contrapunha às demais identidades dos países latino-americanos, assentando-se na integridade territorial e na estabilidade da Monarquia.69 Não obstante, pode-se dizer que a independência do Brasil não resultou de imediato na conquista da soberania pelos brasileiros. Esta seria construída, mediante a adoção de diretrizes de política interna e de política externa que pudessem de algum modo respaldá-la.70 Internamente, a soberania nacional efetivar-se-ia com a contenção dos movimentos revolucionários que eclodiram em território nacional, com a manutenção da integridade territorial e a consolidação das instituições monárquicas, ao passo que externamente concretizar-se-ia com a obtenção do reconhecimento da independência por parte das principais potências da época, mediante o delineamento do que Amado Luiz Cervo chamou com muita propriedade de “diplomacia do reconhecimento”. 71 Delineada nos primeiros tempos do Brasil independente, a partir das negociações entre Portugal e Brasil, que resultaram na assinatura do Tratado de Paz e Aliança, de 29 de agosto de 1825, a “diplomacia do reconhecimento” consistiu na oferta, por parte do governo brasileiro, aos países europeus e aos Estados Unidos, de favores comerciais e vantagens econômicas em troca da obtenção do reconhecimento do Império, com que este pretendia não só concretizar o processo de emancipação, mas também garantir margem de manobra para si mesmo num cenário 68 BANDEIRA, M. O Expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: Editora da UNB, 1998. 69 LAFER, C. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.32-33. 70 De acordo com as reflexões de Heddley Bull, “O ponto de partida das relações internacionais é a existência de estados, comunidades políticas independentes, cada uma das quais possui um governo e afirma a sua soberania com relação a uma parte da superfície terrestre e a um segmento da população humana. De um lado, os estados têm, com relação a esse território e a essa população, o que poderíamos chamar de “soberania interna”, ou seja, a supremacia sobre as demais autoridades dentro daquele território e com respeito a essa população, de outro, detém o que se poderia chamar “soberania externa”, que consiste não na supremacia, mas na independência com respeito às autoridades externas.” In: BULL, H. A Sociedade Anárquica. Brasília: Editora da UNB, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, p.13. 71 CERVO, A. L. A conquista e o exercício da soberania (1822-1889). In: BUENO, C.; CERVO, A. L. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.p.13-134. 37 pesadamente marcado pelas competições capitalistas. Realizada mediante a adoção de políticas econômico-liberais e praticamente sem barganhas, inaugurou o chamado “sistema de tratados”72, com que o governo brasileiro sujeitou os interesses da nação às potências estrangeiras acarretando prejuízos ao seu próprio desenvolvimento, ao mesmo tempo engendrando um esquema de inserção dependente do qual dificilmente lograria sair. Definido pelos países membros do Concerto Europeu, o modelo de relações internacionais vigente no período pautava-se pela abertura dos mercados periféricos aos manufaturados europeus, sem uma contrapartida que pudesse beneficiar os primeiros. A diferenciação das funções desempenhadas pelo centro e pela periferia do capitalismo, mais do que gerar uma relação de complementaridade no âmbito da divisão internacional do trabalho atravancava o desenvolvimento dos países periféricos, servindo de pano-de-fundo para a inserção brasileira ao sistema internacional da época. Favorecida por uma limitada leitura do interesse nacional voltada ao atendimento dos interesses dos grupos hegemônicos, tais quais plantadores e exportadores dos produtos primários como o açúcar e o café, a inserção brasileira ao sistema capitalista não teria, desse modo, o resultado esperado. 73 Limitado pelas estipulações dos tratados da época à condição de fornecedor de produtos primários, o Brasil despontaria no cenário internacional do século XIX como um ator político pouco afirmativo, muito mais preocupado em atender aos interesses externos que aos próprios interesses, situação essa que só seria modificada em meados do século, quando em virtude da oposição política desenvolvida pelo Parlamento, bem como de mudanças institucionais significativas, o “sistema de tratados” seria destruído possibilitando ao Brasil conduzir-se, no tocante às relações internacionais, em termos diferentes daqueles adotados ao longo do Primeiro Reinado. 74 Assim alcançada, a Soberania brasileira fez-se acompanhar da elaboração de uma identidade internacional específica, posto que distinta das engendradas pelos demais Estados presentes no cenário continental, na qual o Brasil se colocava como um legítimo herdeiro da cultura europeia, portanto como uma Monarquia essencialmente vinculada ao Concerto Europeu. 72 No roteiro do tratado estabelecido entre Brasil e Portugal, o Império contemplou também a França, a Inglaterra, a Áustria, a Prússia, as Cidades Hanseáticas, os Estados Unidos, a Dinamarca, os Países Baixos e a Bélgica, equalizando mediante decisões parlamentares as tarifas de importação nos moldes da política liberal. 73 CERVO, A. L. Inserção internacional. Formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008.p.69. 74 CERVO, A. L. A conquista e o exercício da soberania (1822-1889). In: BUENO, C.; CERVO, A. L. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.p.13-134. 38 Nessa linha, a redefinição, no plano continental, do legado lusitano, isto é, da especificidade linguística, cultural e sociológica que haviam caracterizado historicamente Portugal, legitimava a ideia de que ser brasileiro era antes de tudo ser “não hispânico”. 75 O estabelecimento de distinções entre o Império e seus vizinhos, então vistos como regiões turbulentas, pouco propícias à garantia das liberdades públicas e hostis ao Brasil como nação e Monarquia, deixava à mostra o caráter eurocêntrico do olhar brasileiro. 76 A América-Hispânica – vista a partir dos olhares brasileiros – é uma “outra” América, ainda que façamos parte deste todo complexo e contraditório denominado América Latina. Historicamente, nosso país se aproximou muito mais da Europa e dos Estados Unidos do que dos seus vizinhos. Além disso, as relações do Brasil com os países hispano-americanos foram caracterizadas, em vários momentos, por desconfianças mútuas. 77 Sobrevivendo, assim, não só no regime político que conformava o Estado Brasileiro, mas também nas percepções do “outro”, que colocavam em melhor conta as nações europeias e os Estados Unidos, então percebidos como símbolos de conduta e civilização, o legado europeu seria determinante para o delineamento da política externa brasileira, pesando consideravelmente no tipo de relacionamento que o Brasil independente manteria com os países continentais e não continentais. Com efeito, desempenhando papel primordial na construção da soberania nacional, mormente no que dizia respeito à obtenção do reconhecimento do Império como ator político independente destinado a figurar entre os demais atores presentes no cenário mundial, a política externa brasileira priorizaria as relações com a Europa em detrimento das relações com a América, não obstante tivesse em princípio oscilado entre o eixo europeu e o americano. 78 75 LAFER, C. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.32-33. 76 MAGNOLI, D. O corpo da pátria. Imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Ed. UNESP; Moderna, 1997. 77 BÁGGIO, K.G. A “Outra“ América: a América Latina na visão dos intelectuais brasileiros das primeiras décadas republicanas. São Paulo: Depto. de História, FFLCH, USP, 1998, 224p. (Tese de Doutorado).p.10 78 No presente trabalho, a análise da política externa brasileira será conduzida em torno de dois eixos explicativos – o da simetria e o da assimetria – isto é, no eixo das relações brasileiras com países que apresentam diferenciais significativos de poder e no das relações do Brasil com países que apresentam categorias de poder semelhantes. Proposto por Rubens Ricupero, esse modelo analítico parece-nos particularmente interessante para pensar ora as relações do Brasil com a Europa e com a América Latina, ora as relações brasileiras com os Estados Unidos e o restante do continente. Para maiores detalhes ver RICUPERO, R. O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 anos de uma relação triangular. In: ALBUQUERQUE, J. A. G. (Org.). Crescimento, modernização e política externa. São Paulo: Cultura Editores, 1996. 39 A necessidade de defender sua própria independência, bem como de assegurar o reconhecimento da soberania imperial, levou o Brasil a olhar tanto para os países europeus quanto para os países americanos, com os quais procurou não só estabelecer relações bilaterais, mas também desenvolver uma política de cooperação e entendimento. Ao tempo em que procurava assegurar para si mesmo a obtenção de seu reconhecimento, o Império brasileiro dirigia-se também à Argentina, Santa Fé, Entre Rios, Paraguai, Chile e Estados Unidos, enviando as Missões Correia da Câmara e Silvestre Rebelo, com a proposta de elaboração de uma aliança ofensiva e defensiva contra os planos de reconquista europeus, que, no entanto, não alcançou os resultados esperados em virtude da recusa dos demais países em se unir ao Brasil. 79 Concebidas a partir de necessidades imediatas, as iniciativas brasileiras de “integração” com os países continentais, refletiam de algum modo movimentos semelhantes que agitavam, então, a vida política e em menor escala as relações interamericanas, dos quais o bolivarianismo e o monroísmo foram as principais expressões. Ideário prático e preciso, assentado, assim como os demais, no sentimento de unidade continental e na consciência do compartilhamento de instituições liberais, o americanismo brasileiro, não frutificou, permanecendo num segundo plano até meados do século XIX, quando a reação parlamentar ao sistema de vinculações europeias do “sistema de tratados” viria retomá-lo. O fracasso do americanismo do período subsequente à independência limitaria a ação brasileira no âmbito regional à administração das pendências herdadas do período colonial, bem como ao desenvolvimento de políticas próprias para as bacias platina e amazônica. 80 Assim inaugurada, a política externa brasileira consolidou tendências seculares, cujos antecedentes históricos remontavam aos anos precedentes à emancipação – de um lado a especial importância conferida às relações bilaterais com os países europeus, de outro, a manutenção do clima de prevenções e de reservas mútuas para com os países hispano-americanos. Frutos não só da herança portuguesa e da identificação política em torno do regime político adotado por brasileiros e por europeus tal era o regime monárquico, mas também das características do próprio Estado n