UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DOCÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA EDUCAÇÃO MORAL NO ENSINO MÉDIO: POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO EM UMA ESCOLA DE ENSINO INTEGRAL JOÃO GABRIEL JEZIORNY MIRANDA BAURU 2018 JOÃO GABRIEL JEZIORNY MIRANDA EDUCAÇÃO MORAL NO ENSINO MÉDIO: POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO EM UMA ESCOLA DE ENSINO INTEGRAL Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Faculdade de Ciências, Campus de Bauru – Programa de Pós- graduação em Docência para a Educação Básica, sob orientação da Profª. Drª. Rita Melissa Lepre. BAURU 2018 À minha filha AGRADECIMENTOS Sou grato a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, fizeram parte da minha vida durante meu curso de mestrado. Agradeço à minha orientadora pelo aprendizado, pela atenção, paciência e bom humor que me dispensou. À minha namorada que me acompanhou durante todo o percurso me ajudando, dando apoio e suporte afetivo. À minha família pelo encorajamento e motivação e aos meus amigos pelos momentos de discussão e descontração. Aos professores que aceitaram participar da banca de qualificação e defesa pelas sugestões que facilitaram a finalização do trabalho. Ao Programa de Pós-Graduação em Docência para a Educação Básica e aos professores das disciplinas que cursei pela oportunidade de estudar e aprender. Aos colegas com quem cursei as disciplinas e aos participantes do Grupo de Estudos e Pesquisas em Desenvolvimento Moral e Educação (GEPEDEME) pela troca de ideias e contribuições. À minha companheira de eletiva, professora Luciana Mara Marqueti, pelo auxílio na aplicação das avaliações e atividades da intervenção, aos demais colegas professores, gestores e funcionários da escola em que trabalho pelo compartilhamento do dia a dia e principalmente aos meus alunos. RESUMO O presente trabalho tem como problema a seguinte questão colocada originalmente pelo filósofo Sócrates: é possível ensinar a virtude, ou, é possível formar os indivíduos eticamente? Diante dessa questão e da necessidade, no contexto brasileiro, de fazer avançar uma sociedade democrática, realizamos um estudo qualitativo, do tipo Pesquisa-ação, com o objetivo de analisar o desenvolvimento moral de adolescentes estudantes do Ensino Médio a partir de uma intervenção baseada no referencial teórico conhecido como Educação Moral, inspirada na psicologia de Piaget, Kohlberg, nos trabalhos de Puig e fundamentada na filosofia de Sócrates e Kant. Participaram da intervenção 34 estudantes de uma unidade escolar da rede pública paulista integrante do Programa de Ensino Integral, que consistiu na aplicação de uma avaliação do raciocínio moral composta por questões abertas baseadas na adaptação do Dilema de Heinz. Tal avaliação foi aplicada antes e depois da realização de um conjunto de três atividades para promoção de educação moral, são elas: compreensão crítica, clarificação de valores e discussão de dilemas morais. O tratamento e análise dos dados da intervenção foram realizados a partir do referencial do Discurso do Sujeito Coletivo e as avaliações foram analisadas tendo como referência os níveis e estágios do raciocínio moral categorizados por Kohlberg. Como principais resultados destaca-se a redução do número de jovens nos níveis pré-convencional e o aumento no nível pós-convencional assim como um avanço nos estágios de desenvolvimento moral dos alunos em comparação com os resultados da primeira avaliação. Tais resultados demonstram a eficácia de atividades elaboradas com o objetivo de promover o desenvolvimento moral e indicam a necessidade e importância do desenvolvimento dessas atividades em sala de aula pelas diversas disciplinas. Assim sendo, como produto pedagógico decorrente da presente pesquisa, oferecemos um guia para professores abordando procedimentos e atividades dirigidas ao desenvolvimento moral de jovens estudantes do Ensino Médio. Palavras-chave: Educação moral. Ensino médio. Desenvolvimento do raciocínio moral. ABSTRACT The present work has as its problem the following question posed originally by the philosopher Socrates: is it possible to teach virtue, or, is it possible to form individuals ethically? In view of this issue and the need, in the Brazilian context, to advance a democratic society, we carried out a qualitative study, of the type Action Research, with the objective of analyzing the moral development of high school students adolescents from an intervention based on theoretical referential known as Moral Education, inspired by the psychology of Piaget, Kohlberg, the works of Puig and grounded in the philosophy of Socrates and Kant. Participated in the intervention 34 students from a school unit of the São Paulo public network, part of the Integral Teaching Program, which consisted in the application of an evaluation of moral reasoning composed of open questions based on the adaptation of the Heinz Dilemma. This evaluation was applied before and after the realization of a set of three activities to promote moral education, are: critical understanding, clarification of values and discussion of moral dilemmas. The treatment and analysis of the data of the intervention were done from the reference of the Discourse of the Collective Subject and the evaluations were analyzed having as reference the levels and stages of the moral reasoning categorized by Kohlberg. The main results are the reduction in the number of students at preconventional level and the increase at the postconventional level as well as an improvement in the students' moral development stages compared to the results of the first evaluation. These results demonstrate the effectiveness of activities designed to promote moral development and indicate the necessity and importance of the development of these activities in the classroom by the various disciplines. Therefore, as a pedagogical product resulting from the present research, we offer a guide for teachers addressing procedures and activities aimed at the moral development of young high school students. Keywords: Moral education. High school. Development of moral reasoning. LISTA DE QUADROS, TABELAS E GRÁFICOS Quadro 1 - Níveis e estágios do desenvolvimento moral segundo Kohlberg.............................................................................. 59 Tabela 1 - Dados, níveis e estágios de desenvolvimento moral dos participantes pré intervenção................................................ 65 Gráfico 1 - Gênero dos participantes...................................................... 66 Gráfico 2 - Idade dos estudantes........................................................... 67 Gráfico 3 - Ano escolar dos estudantes................................................. 67 Gráfico 4 - Religião dos estudantes....................................................... 68 Tabela 2 - Níveis e estágios de Desenvolvimento moral pré-teste dos estudantes............................................................................ 69 Quadro 2 - Ideias-chave e DSC das respostas a pergunta: O que você entende por racismo?........................................................... 72 Quadro 3 - Respostas a pergunta: Você se considera uma pessoa racista? Quantifique de 0 a 4, sendo 0 nada racista e 4 muito racista......................................................................... 73 Quadro 4 - Respostas a pergunta: Você já fez e já sofreu alguma “brincadeira” racista? E DSC da pergunta: Quais foram as motivações?.......................................................................... 74 Quadro 5 - Categorias e DSC sobre as percepções sobre o tema discutido................................................................................ 81 Quadro 6 - Perguntas e respostas do Jogo de Entrevistas do Grupo I............................................................................................. 87 Quadro 7 - Perguntas e respostas do Jogo de Entrevistas do Grupo II............................................................................................. 89 Quadro 8 - Ideias centrais e DSC sobre a questão: Deve a ciência ter ao direito de manipular células tronco embrionárias visando a cura de doenças? Por quê?....................................................................................... 97 Quadro 9 - Ideias centrais e DSC sobre a questão: Você é a favor da pena de morte? Por quê?....................................................................................... 98 Quadro 10 - Ideias centrais e DSC sobre a questão: Você acha legítimo o procedimento de fertilização in vitro? Deve a mulher ter o direito de fazer fertilização in vitro? Por quê?..................................................................................... 100 Quadro 11 Ideias centrais e DSC sobre a questão: Você concorda com o uso da pílula do dia seguinte? Por quê?........................................................................................ 101 Quadro 12 Ideias centrais e DSC sobre a questão: Você é a favor ou contra o aborto? Por quê?...................................................................................... 103 Tabela 3 - Níveis e estágios de desenvolvimento moral pós-teste dos estudantes............................................................................. 102 Gráfico 5 - Níveis de desenvolvimento moral pré e pós-teste................ 103 Gráfico 6 - Estágios de desenvolvimento moral pré e pós-teste............. 104 Gráfico 7 - Gênero dos participantes que apresentaram avanços........... 105 Gráfico 8 – Idade dos participantes que apresentaram avanços.............. 105 Gráfico 9 – Religião dos participantes que apresentaram avanços.......... 105 Gráfico 10 Série escolar e gênero dos participantes que apresentaram avanços.................................................................................. 105 SUMÁRIO Resumo 7 Abstract 8 Lista de Quadros, Tabelas e Gráficos 9 INTRODUÇÃO 12 1 – FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO MORAL A PARTIR DE SÓCRATES E KANT 17 1.1. Nosce te ipsum! A (im)possibilidade do ensino da virtude em Sócrates 17 1.2 - Sapere Aude! Esclarecimento e autonomia em Immanuel Kant 25 2 – A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO MORAL SEGUNDO O COGNITIVISMO EVOLUTIVO 31 2.1 O juízo moral na criança segundo Jean Piaget 31 2.2 Teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg 33 3 – A EDUCAÇÃO MORAL EM PIAGET, KOHLBERG E PUIG 41 3.1 Os procedimentos da educação moral segundo Jean Piaget 41 3.2 O método de discussão de dilemas morais na educação moral de Lawrence Kohlberg 43 3.3 As finalidades da educação moral segundo Josep Maria Puig 45 4 – METODOLOGIA 49 5 – INTERVENÇÃO, ANÁLISE DOS DADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 60 6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS 113 7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 127 APÊNDICES 131 12 INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende retomar a primeira questão da história do pensamento ocidental a problematizar sobre a relação entre educação e moralidade e a questionar a possibilidade do ensino e da aprendizagem da ética. Tal questão fora colocada inicialmente por Sócrates ao sofista Protágoras: é possível ensinar a virtude ou, é possível educar os indivíduos eticamente, ou seja, com o conhecimento que o habilita a conviver em sociedade e a promover o bem comum? Seria possível uma educação para a moralidade?1 Tal questão atravessou os séculos, inspirou propostas e modelos pedagógicos e culminou, no século XX, na criação de um campo de estudos, iniciado pelo sociólogo Émile Durkheim (2008), conhecido como Educação Moral. Segundo os estudos de Buxarrais (1997), Puig (1998b), Menin (2002) e Lepre (2016) é possível identificar três paradigmas ou modelos distintos de educação moral. O modelo mais tradicional é o de educação moral baseada em valores absolutos e posturas doutrinárias nos quais predomina uma visão de mundo fundamentada em valores e normas de conduta que não devem ser questionadas, discutidas ou mudadas. Tal visão de mundo é imposta por um poder autoritário através de dogmas e verdades prontas e acabadas com o objetivo de regular todos os aspectos da vida social e pessoal dos indivíduos utilizando-se principalmente da coação. Assim sendo, não é uma pretensão desse modelo formar indivíduos pensantes capazes de fazer escolhas, tomar decisões, se posicionar, dialogar, mas sim reproduzir uma ordem social pré-concebida. Um segundo paradigma, em contraposição ao modelo tradicional propõe um modelo de educação moral baseada em uma concepção relativista de valores, partindo do princípio que o acordo e o consenso em termos de valores são uma mera casualidade, não existiria uma hierarquia de valores pois valorar baseia-se na tomada de decisões em função de critérios subjetivos. Assim sendo, não é possível saber qual a melhor forma de agir em determinada situação pois a tomada de decisão depende das características de cada pessoa, são sempre individuais e 1 Cabe salientar que não faz parte do escopo do presente trabalho discutir as problemáticas envolvendo a conceituação de moral e ética à luz das três áreas envolvidas presente pesquisa, quais sejam: a Filosofia, a Psicologia e a Educação. Partiremos da concepção de moral entendida e vinculada a dimensão das regras, princípios e valores, ou seja, da dimensão da existência humana coletiva que lança mão e depende de valores, regras e leis criadas socioculturalmente para submeter os indivíduos a uma concepção de dever e de bem comum e a concepção de ética entendida como predisposição ou atitude de questionamento, reflexão e debate sobre questões morais, ou seja, sobre questões que envolvam valores, princípios e leis sociais. 13 nunca coletivas. Segundo Menin (2002) trata-se de um laissez-faire, no sentido liberal, em termos de valores, ou seja, professores e alunos podem ter posições diferentes sobre o que é correto, bom, justo; a escola não teria um código moral ou de valores declarado e a adoção de valores passa a ser uma questão individual. Predomina aí a ideia de que tudo pode ser relativizado e que não há, obrigatoriamente, posicionamentos mais corretos do que outros. Nesse modelo predomina o desenvolvimento da moralidade ocorre de forma assistemática e acidental. Assim sendo, um posicionamento relativista pode permitir um vale-tudo na educação em que valores e contravalores podem coexistir e nem sempre serem fruto de reflexão ou de sua clara adoção. O terceiro modelo ou paradigma em educação moral baseia-se no desenvolvimento ou construção racional e autônoma de valores e está fundamentada na ideia de que o domínio progressivo das formas de pensamento é um valor desejável em si mesmo pois conduz cada vez mais para juízos otimizados e valiosos. Posto isto, tal modelo considera a educação moral como um processo de desenvolvimento fundamentado no estímulo do pensamento sobre questões morais e conflitos de valor com o propósito de fomentar a autonomia, a racionalidade e o diálogo como formas de construir princípios e normas. A partir da apresentação desses modelos, podemos afirmar que a necessidade de uma Educação Básica capaz promover, entre outros, educação moral, formação ética e em valores, educação democrática capaz de formar cidadãos autônomos é um imperativo na contemporaneidade, tanto para o contexto político-social brasileiro, quanto para a urgente necessidade de se fazer a humanidade avançar no que tange a consciência moral. O reconhecimento do papel da educação moral, na problemática aqui apresentada, se reflete nas políticas educacionais brasileiras formalizadas em documentos como a Lei Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), cuja principal finalidade e meta é “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Art. 2º), além de proporcionar “o aprimoramento como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (Art. 35°) (BRASIL, 2012). Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) é objetivo da educação básica formar indivíduos que compreendam “a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia a dia, 14 atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito” (BRASIL, 1999). Assim sendo, passa a ser uma responsabilidade e preocupação da Educação Básica – em uma sociedade que passa pela implantação de um regime democrático assim como de uma cultura de direitos humanos – o desenvolvimento de dinâmicas de ensino e aprendizagem, que não privilegiem tão somente a formação intelectual e técnica como forma de contato com o mundo e acesso as informações e saberes mas, que também estejam voltados para a formação ético-moral dos alunos, com ênfase nos direitos humanos, com vistas para a formação de cidadãos éticos, autônomos e críticos. Dito isso, o objetivo desse trabalho foi analisar o desenvolvimento moral de adolescentes estudantes do Ensino Médio a partir de uma intervenção baseada nos postulados do terceiro paradigma da educação moral, inspirada, neste trabalho, na Psicologia Moral de Piaget (1994) e Kohlberg (1982), nas pesquisas e propostas de Puig (1998) e fundamentada na filosofia moral de Sócrates e Kant. Desta forma, foi realizado um estudo qualitativo hermenêutico sobre os efeitos de uma intervenção pedagógica composta por atividades cujo objetivo foi o desenvolvimento da moralidade baseada nas noções de justiça, ética, democracia e direitos humanos. Nossa intenção foi realizar uma pesquisa que desse ensejo, não para uma resposta absoluta, mas para a retomada de discussões que levem em consideração a dimensão da moralidade na Educação, não como doutrina, dogma ou forma de adestramento, mas como prática reflexiva e questionadora da dimensão dos relacionamentos humanos mediados por princípios e valores; assim como aplicar atividades e dinâmicas capazes de promover desenvolvimento moral e avaliá-las. Este estudo envolveu um grupo de 34 estudantes das três séries do Ensino Médio que escolheram cursar a disciplina eletiva Curta Pensar, uma disciplina da parte diversificada do Programa de Ensino Integral. A eletiva tinha dois objetivos principais: o primeiro promover dinâmicas que motivassem o autoconhecimento dos estudantes sobre os próprios valores, princípios e crenças morais, a reflexão e discussão sobre a aplicação desses valores e princípios em situações hipotéticas e reais; o segundo avaliar os efeitos dessas dinâmicas no desenvolvimento do raciocínio moral dos participantes. Para realizar tais objetivos aplicamos uma avaliação do raciocínio moral baseada na adaptação do Dilema de Heinz proposto por Lawrence Kolhberg antes e 15 depois da realização de três atividades específicas da área de estudos da moralidade conhecida como Educação Moral, são elas: compreensão crítica, clarificação de valores e discussão de dilemas morais. A avaliação do raciocínio moral foi analisada à luz da Teoria do Desenvolvimento Moral de Kohlberg. A realização desse trabalho se apresenta em duas partes: primeira parte, um estudo teórico e problematizador sobre a possibilidade de uma educação capaz de promover formação moral, autoconhecimento e autonomia a partir das contribuições de Sócrates, Kant, Piaget, Kohlberg e Puig; e, na segunda parte, a apresentação dos procedimentos experimentais e dos resultados da intervenção realizada. Sendo assim, segue a apresentação da estrutura formal deste trabalho. O primeiro capítulo expõe uma fundamentação filosófica para a educação moral. Inicialmente é discutido a possibilidade do ensino da virtude tal como apresentado no diálogo Protágoras (1965) e apresentado os principais elementos do método pedagógico de Sócrates. Em seguida são abordados os conceitos de esclarecimento e autonomia segundo a filosofia de Immanuel Kant. Tais conceitos foram analisados a partir de duas obras: o Opúsculo Kantiano Resposta à pergunta: Que é esclarecimento? (1985) e Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1972) que servem de base para a teoria psicológica a ser abordada no capítulo seguinte. No segundo capítulo é apresentado o Cognitivismo Evolutivo presente na Psicologia do Desenvolvimento Moral desenvolvida por Piaget em sua obra O juízo Moral na Criança (1994) e na Teoria do Desenvolvimento Moral de Kohlberg (1992). O terceiro capítulo explicita a aplicação pedagógica da Psicologia do Desenvolvimento Moral manifestada através dos métodos da educação moral. Assim sendo, são apresentados os procedimentos da educação moral segundo Piaget, o método de discussão de dilemas morais na educação moral de Kohlberg e as finalidades da educação moral segundo Puig. O quarto capítulo versa sobre o método de pesquisa empregado, seus participantes, o local de coleta de dados, o tipo de pesquisa realizada, os instrumentos de coleta de dados, os procedimentos de pesquisa e de análise dos dados. O quinto capítulo trata da intervenção realizada, são apresentadas as características das atividades realizadas, os objetivos, os procedimentos e os conteúdos utilizados; dos resultados de pesquisa a partir dos dados coletados; da 16 análise dos dados a partir do referencial teórico utilizado e da discussão dos resultados. No último capítulo são apresentadas as considerações finais acerca do trabalho proposto e realizado a partir dos referenciais teóricos utilizados assim como um conjunto de reflexões baseadas nas experiências do pesquisador em sala de aula acerca das possibilidades da formação ética e filosófica. 17 1 – FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO MORAL A PARTIR DE SÓCRATES E KANT A preocupação com o ensino e a aprendizagem da moral são muito anteriores ao surgimento da Pedagogia e da Psicologia enquanto ciências particulares. Alguns filósofos ao longo da história do pensamento ocidental se detiveram em questões diretamente ligadas tanto ao questionamento sobre a possibilidade quanto a fundamentação da moral e de seu ensino. O primeiro a lançar a questão ao debate público foi Sócrates, no século IV a. C., no diálogo platônico Protágoras (1965), que no embate com o sofista, que dá nome a obra, procura demonstrar que o método tradicional de ensino da virtude via socialização não se mostrava nem totalmente eficiente e nem totalmente fundamentado. Outro filósofo que retoma, de certo modo, a questão na modernidade é Immanuel Kant que com sua filosofia moral lança as bases para o desenvolvimento de várias áreas de investigação, entre elas a Psicologia da Moralidade. Procuraremos nesse capítulo apresentar a tese socrática da impossibilidade do ensino da virtude via o método sofístico e os conceitos fundamentais desenvolvidos por Kant em sua filosofia moral assim como sua concepção de esclarecimento e autonomia. 1.1. Nosce te ipsum! A (im)possibilidade do ensino da virtude em Sócrates No Protágoras (1965), surge pela primeira vez na história do pensamento o questionamento sobre a possibilidade do ensino e aprendizagem do que podemos chamar de virtude, ou seja, Sócrates coloca um problema fundamental da educação e se propõe a discutir se a virtude ou aretê, entendida como excelência da conduta moral, é suscetível de ser ensinada. Mais especificamente, no contexto deste diálogo, o problema colocado por Sócrates é se a virtude é ensinável como pretende a pedagogia sofística, em particular a de Protágoras. A obra consiste na narração do encontro entre Sócrates e Protágoras, considerado o homem mais sábio da época, motivado pelo jovem Hipócrates, filho de família ilustre e aspirante à vida política, que procura o filósofo para ajudá-lo a ser admitido como aluno de Protágoras. Diante da euforia e da exaltação do jovem, Sócrates passa a questionar o jovem sobre os motivos de tanta emoção; o jovem responde que é devido à ciência que Protágoras possui e que guarda só para si. Sócrates, ironicamente, diz ao jovem que procure lhe persuadir e lhe ofereça dinheiro que certamente o sofista o tornaria igualmente sábio. A isso o jovem responde: “Por Zeus e todos os deuses, que isso 18 seria o de menos. Eu não pouparia nem o meu dinheiro nem o dos meus amigos! Bem, é justamente por isso que eu vim te ver. É preciso que lhes fale sobre mim [...]” (PLATÃO, 1965, p. 38). Hipócrates busca o sofista a fim de receber não uma formação técnico-profissional mas uma educação geral, digna de um homem livre, a qual, ele acredita, o colocará em melhor condição para uma carreira política bem sucedida. Mas antes de levá-lo ao encontro de Protágoras, Sócrates manifesta sua suspeita em relação à educação sofística e, ao questionar a atitude do jovem, descobre que Hipócrates não sabe em que consiste o ensino dos sofistas, não sabe sobre o que os sofistas tornam as pessoas hábeis a falar, não sabe, enfim, se a educação sofística é algo bom ou algo mau para a alma. A desconfiança de Sócrates a respeito da educação dos sofistas se deve principalmente ao princípio e a missão autodeclarada da filosofia socrática: o cuidado da alma. Nada deveria ser mais estimado que a alma: Não tenho outra ocupação senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos de vosso corpo e de vossos bens do que da perfeição de vossas almas, e a de vos dizer que a virtude não provém da riqueza, mas sim que é virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública, quer na privada. (PLATÃO, 1972, p 21.) Para Sócrates os ensinamentos vendidos pelos sofistas deveriam ser examinados pois se comparados a alimentos para alma, estes podem ser tanto proveitosos quanto danosos; tal desconfiança estava baseada na visão negativa sobre os sofistas e seus ensinamentos taxados de carentes de princípios e meramente instrumentais ou técnicos. Com esse intuito, o objetivo do filósofo, nesse diálogo, é indagar acerca da natureza e finalidade da educação sofística. Nesse ínterim, ao se encontrar com Protágoras, orgulhoso por se assumir sofista e por educar os homens, a primeira pergunta feita foi sobre que vantagens obtêm aqueles que se submetem ao seu modelo pedagógico. Protágoras responde que a maior vantagem para aqueles que convivem com ele e aprendem seus ensinos é o de se tornar melhor a cada dia, “e assim cada um dos seus dias será marcado por um progresso em direção ao melhor” (PLATÃO, 1965, p.51). Insatisfeito com a resposta, Sócrates aborda a questão de outra forma, e pergunta: se frequentando as aulas de um pintor ou de um músico, um aprendiz progride em pintura ou em música, frequentando as aulas de Protágoras em quê um indivíduo progrediria? Diante disso Protágoras declara: “O objetivo do meu ensino é 19 a prudência para cada um na administração de sua casa, e quanto aos negócios da cidade, o talento de os conduzir com perfeição pelos atos e pelas palavras”. (PLATÂO, 1965, p.52) Sócrates então compreende que Protágoras ensina sobre a arte política com objetivo de formar bons cidadãos, Protágoras ensinava como obter sucesso na vida; e esse ensinamento, conforme apontado por Sócrates, é referido como sendo uma arte ou técnica (tekhnê) (JAEGER, 1999, p.629). Porém, se a ciência de Protágoras é uma tekhnê, é uma arte de uma ordem diversa das demais. Distintamente das artes profissionais, cuja transmissão dos conteúdos está atestada por uma tradição estabelecida, a arte de Protágoras e seu objeto, a aretê, têm a ensinabilidade colocada em questão, pois o termo tekhnê aplicado à virtude e ao seu suposto ensino parece implicar um paradoxo. Se, por um lado, a virtude e o suposto ensino da virtude é comparável às outras artes enquanto atividades conscientemente desenvolvidas para obtenção de certos fins, por outro lado, é posto em dúvida se a virtude pode ser realmente ensinada. Sócrates nesse momento expressa sua descrença na possibilidade da ensinabilidade ou de uma formação ético-política: - É esta, certamente, uma bela ciência, se tu a possuis realmente; porque quero dizer-te as coisas que penso. Quanto a mim, Protágoras, não acreditava que a política pudesse ser ensinada; mas por outro lado, não posso pôr em dúvida sua afirmação. Donde me veio esta convicção que a política não pode ser ensinada, e que o homem é incapaz de obter a ciência transmitida por outro homem, é preciso que eu te explique. (PLATÃO, 1965, p.52) O filósofo está convicto que a política não pode ser ensinada e que o homem não pode obter a ciência transmitida por outro homem e apresenta sua argumentação. Em primeiro lugar, Sócrates chama a atenção ao fato de que os atenienses, que são homens sábios nas assembleias, não ouvem qualquer um quando o assunto é a edificação ou a fabricação de navios, mas apenas os técnicos das respectivas áreas, da mesma forma para tudo o mais que se considera passível de ser aprendido e ensinado, ou seja, todos os assuntos dependentes das artes profissionais. Contudo, em se tratando da administração da cidade eles ouvem qualquer um, não importa a profissão nem a posição social; não são reprovados os que se põem a dar conselhos sem para isso terem recebido lições ou terem tido mestres; isso porque não se considera que a política seja ensinável. Em outras palavras, uma vez que todos possuem a habilidade para a administração pública, 20 essa não deve constituir-se em uma tekhnê ou especialidade transmissível, ao contrário das artes profissionais. Em segundo lugar, Sócrates argumenta que os melhores e mais sábios cidadãos, Péricles por exemplo, de fato, não transmitiram sua aretê a seus filhos nem tentaram ensinar alguma coisa nesse domínio, e que pessoas, embora muito boas, nunca fizeram bom outro indivíduo. Ou seja, embora exímios no exercício da virtude, alguns homens não transferem a outrem as qualidades que os destacam. Conclusão: a aretê parece não ser suscetível de ensino. Sócrates, então, pede que Protágoras, baseado no seu grande conhecimento fundado sobre seus aprendizados adquiridos pela experiência, estudo e próprias descobertas, demonstre mais claramente como que a virtude pode ser, efetivamente, ensinável. A resposta de Protágoras aos contrapontos colocados por Sócrates é dada com um longo e eloquente discurso. O sofista, com a anuência daqueles que o ouviam, lança mão de duas estratégias para defender sua tese: primeiro relata um mito e depois apresenta um discurso argumentativo. O mito, conhecido como mito de Prometeu e Epimeteu, narra a origem de todos os seres animais, mas especificamente do ser humano e da sociedade. Após terem criado todas as espécies animais do interior da terra a partir da mistura dos elementos naturais, os deuses deram aos irmãos Prometeu e Epimeteu a responsabilidade de distribuírem, convenientemente, entre as espécies, dons e poderes que permitissem a cada uma delas a sobrevivência. Na divisão do trabalho, Epimeteu se incumbiu de distribuir os dons e Prometeu ficou responsável por inspecionar a distribuição realizada. Epimeteu dotou as distintas espécies animais das mais diversas capacidades com o objetivo de assegurar-lhes a salvação e impedir que se extinguissem mutuamente. Ao esgotar todos os recursos, visando o equilíbrio entre as espécies, percebeu que deixara uma espécie desprovida dos meios para sua conservação, a espécie humana. “Nesse estado embaraçoso, apareceu Prometeu para inspecionar o trabalho. Este viu todas as outras raças harmoniosamente equipadas, e o homem nu, sem calçado, sem coberta, sem armas” (PLATÃO, 1965, p.56) Sem saber o que fazer em reparação à falha do irmão, Prometeu rouba e dá de presente aos seres humanos as habilidades técnicas de Hefesto e Atenas, e ao mesmo tempo, o fogo, porém, a técnica política possuída por Zeus, esta Prometeu não conseguiu roubar. Com as técnicas o ser humano conseguiu produzir artes necessárias à vida e Prometeu, acusado de roubo, foi severamente punido. 21 Todavia, o saber técnico mostrou-se insuficiente para que o homem vivesse bem e em sociedade, permanecendo à mercê das feras em uma vida solitária. Por isso, Zeus, não querendo ver exterminada a espécie humana, envia por Hermes dois outros dons: o pudor e a justiça a fim de que as cidades fossem regidas pela harmonia e por laços de amizade. Diferentemente da distribuição das outras técnicas, na qual a posse de certa arte por um beneficia a muitos, a justiça e o pudor foram distribuídos de modo igual entre todos os humanos sob pena de não haver cidade. Disse Zeus para Hermes: “Além disso, estabelecerás em meu nome esta lei: que todo aquele que for incapaz de participar do pudor e da justiça seja eliminado, como uma peste, da cidade.” (PLATÃO, 1965, p. 58). Assim sendo, na justiça e no pudor se fundamenta a virtude política e porque são igualmente partilhados, todos têm o mesmo direito e são, em princípio, capazes de participar e decidir sobre assuntos referentes a política. Para Protágoras, ainda que a virtude seja a coisa mais bem distribuída, ela não está no ser humano por natureza, nem se desenvolve sozinha, por isso a virtude é algo que pode ser ensinado e em que se progride por aplicação. São utilizados dois argumentos para defender essa tese. Defeitos humanos devidos à natureza ou ao acaso, como a feiura e a debilidade, são toleráveis; ao passo que, quem age contrário às virtudes recaem reprovações e castigos. Assim sendo a aplicação de castigo com o objetivo de que o punido não aja contrário a virtude e para que outros não façam o mesmo, é um indicativo que a virtude é ensinável. Por conseguinte, para Protágoras, a virtude política seria um tipo de habilidade que pode ser ensinada, adquirida e desenvolvida. Todavia, o ensino da virtude não segue os mesmos padrões do ensino das demais técnicas. Seu aprendizado começa na infância e perdura por toda a vida. A criança recebe da ama, da mãe, do pedagogo e do próprio pai o aprendizado da linguagem e as noções sobre os valores que deve prezar e quais comportamentos é preciso apresentar. Na escola, as crianças e jovens aprendem os bons costumes e encontra na tradição dos grandes poetas exemplos de heróis e conselhos úteis a serem seguidos e imitados. Através das atividades como a música e a ginástica, modela a alma e o corpo, pois com uma alma harmoniosa se torna mais competente no falar e com um corpo vigoroso tem agilidade e prontidão para agir. E finalmente, ao sair da escola, a cidade os força a aprender as leis. Destarte, as próprias leis desempenham o papel de educadoras na medida em que fixam o paradigma de conduta e obrigam aqueles que dirigem e aqueles que obedecem a conformarem-se 22 a ela sob o risco de, se a transgredirem, sofrerem uma sanção ou punição operada pela justiça em reparação de contas. Deste modo, na cidade, afirma o sofista, todos estão envolvidos na educação dos outros. Por isso não é de espantar que de bons pais possam sair filhos maus. Sobressair-se em virtude é, como no caso das outras artes, uma questão de dote pessoal. O fato é que, todo mundo possui em algum grau a virtude e pode ser considerado professor de virtude, havendo aqueles, como Protágoras, mais talentosos em fazer os outros progredir na aretê. Fica claro que a noção de aretê em foco tem a ver com condicionamento social. Entendida nesses termos, Sócrates não duvida que a virtude seja ensinável, tanto que se diz convencido pelas palavras de Protágoras. Mas em contraste com a concepção de virtude como a realização de ações aceitáveis e louvadas pela sociedade, resultado da prática e do hábito irrefletido, Sócrates guarda uma concepção intelectualista, na qual a virtude implica um entendimento racional do dever (SILVA, 2009, p. 92). Para introduzir sua própria concepção de virtude como conhecimento, Sócrates ataca o discurso de Protágoras chamando a atenção para a questão da unidade das virtudes. Protágoras mencionara diferentes nomes – justiça, piedade, sensatez – referindo-se às virtudes, mas também tratou todas elas como se fossem uma única coisa. Daí Sócrates perguntar: “a virtude é um único todo, no qual a justiça, a sabedoria e a santidade seriam partes, ou essas virtudes que acabo de enumerar, nada mais seriam que nomes diferentes de um único e mesmo todo?” (PLATÃO, 1965, p. 69). Sem se dar conta da complexidade da questão e, ao contrário, considerando- a fácil, Protágoras responde que a virtude é uma unidade formada por partes. O problema passa a ser, então, definir a relação entre as partes da virtude e a virtude una. Sócrates questiona: Dizias que Zeus tinha enviado aos homens a justiça e o pudor, e depois o repetistes muitas vezes. Deixaste entendido que a justiça, a sabedoria, a santidade e tudo o mais formam um todo, chamado como um único nome “a virtude”. [...] São elas partes de um mesmo todo como a boca, o nariz, os olhos, os ouvidos, são partes do rosto, ou são como pepitas de ouro que não diferem umas das outras e cada uma do todo a não ser pelo tamanho ou pela pequenez?” [...] Os indivíduos, tem na distribuição uma ou outra destas partes da virtude, ou será que quem possui uma delas possui todas ao mesmo tempo? (PLATÃO, 1965, p.68). 23 Para defender a tese da identidade da virtude com o conhecimento, Sócrates procurará demonstrar que as virtudes se assimilam umas às outras. O modelo da relação entre o rosto e suas partes foi o adotado para exemplificar a relação das partes das virtudes e a virtude. Segundo esse modelo, defendido por Protágoras, cada parte da virtude tem uma propriedade e cada virtude diferencia-se de outra por si mesma e por sua propriedade, sendo distintos entre si, por exemplo, a ciência, a justiça, a coragem, a sabedoria e a santidade. Sócrates propõe, então, um exame sobre a natureza própria de cada uma delas e escolhendo alguns pares de virtudes, procura demonstrar a identidade entre a justiça e a piedade, a sabedoria e a sensatez, a justiça e a sensatez, e entre a coragem e a sabedoria. Resumidamente, os argumentos utilizados para demonstrar a identidade entre as virtudes são os seguintes: o primeiro argumento ocupa-se da justiça e da piedade. Se a justiça for alguma coisa e a piedade for alguma coisa, a justiça há de ser justa e a piedade piedosa; mas se for verdade que nenhuma virtude é como outra, então a justiça será ímpia e a piedade injusta. Isso é considerado impossível; portanto, a justiça é o mesmo que a piedade ou algo muito parecido, e vice-versa. O segundo argumento tenta mostrar a identidade entre a sabedoria e a sensatez. Parte-se da premissa que a insensatez é o contrário da sabedoria. Ora, como o contrário da sensatez é a insensatez, e como, por indução, ficou estabelecido que cada contrário só possui um contrário correspondente, a sabedoria é o mesmo que a sensatez. O terceiro argumento, mais breve, trata da relação entre a justiça e a sensatez, cometer um ato injusto sensatamente seria agir por uma boa deliberação, vale dizer, atuar bem ao agir mal. Sem mais, isso parece absurdo aos interlocutores. A essa altura da discussão o sentido de unidade das virtudes que neles parece predominar é aquele da inseparabilidade, isto é, a pessoa que apresenta uma virtude apresentará todas. Depois dessas interrupções, volta-se a tratar do problema da unidade das virtudes, considerando agora a relação entre a coragem e a sabedoria. Recalcitrante em admitir a unidade das virtudes, Protágoras emenda sua primeira resposta. Aceita que as cinco virtudes citadas são todas partes da virtude e que, se bem quatro delas sejam bastante similares umas às outras, a coragem é muito diferente das demais: “Saberás que falo a verdade pelo seguinte: acharás um grande número de pessoas extremamente injustas, ímpias, dissolutas, ignorantes, porém peculiarmente muito corajosas” (PLATÃO, 1965, p.72). Sócrates submete, então, a exame a suposta verdade de Protágoras. O quarto argumento é mais complexo que os anteriores, por 24 isso não iremos penetrar nos detalhes tão explorados pelos intérpretes. Sócrates começa perguntando se os corajosos são audaciosos; Protágoras não só concorda como descreve o audacioso: quem enfrenta perigos que assustam a maioria das pessoas. A segunda premissa posta é a confirmação de que a virtude é de todo bela, ou seja, boa e benéfica em sua totalidade. Como atesta a experiência, as pessoas que conhecem certas atividades são audaciosas naquilo que sabem; porém, há quem seja audacioso em coisas que não sabe, agindo insensatamente; esse tipo, obviamente não é corajoso. Os audaciosos por ignorância não são corajosos, mas loucos; os mais sábios são os mais audaciosos e, por isso, os mais corajosos; segundo esse raciocínio a sabedoria seria a coragem. Embora Protágoras faça objeção, Sócrates parece satisfazer-se com a prova da identidade da coragem com a sabedoria. E mais adiante, no argumento final em favor da unidade das virtudes, define claramente a coragem como sendo a sabedoria das coisas temíveis e não temíveis; poderíamos dizer, a sabedoria do que se deve ou não fazer ou evitar. Nesse sentido, o contrário da coragem não seria simplesmente a covardia, mas a ignorância. Que a sabedoria e o conhecimento sejam as qualidades indispensáveis para a vida virtuosa e feliz, é o que mostra Sócrates defendendo seu intelectualismo ético. E o diálogo termina com um intrigante paradoxo: Sócrates que não acreditava que a virtude fosse ensinável, afirma ser ela conhecimento; ora, não há forma melhor de indicar a ensinabilidade da virtude. Protágoras, por sua vez, sustentou que a virtude era ensinável, mas recusa-se a aceitar que ela seja um saber. Para Sócrates, ser virtuoso não é uma questão de possuir hábitos adquiridos via socialização. No diálogo Protágoras, Sócrates se opõe à concepção sofística de educação moral como o simples aprendizado dos costumes e regras sociais que permitem a adequação do indivíduo à cidade e seu sucesso na vida particular e pública. O filósofo procura apontar para uma concepção de educação moral que vai além daquela da opinião comum, pois ser virtuoso é uma questão de sabedoria, uma vez que a virtude é conhecimento, conhecimento que abarca todas as virtudes singulares. No diálogo, Sócrates não define que conhecimento é esse mas sua preocupação com o cuidado da alma no início da história e sua crítica a pedagogia sofística aponta para sua concepção de cuidado da alma a partir do conhecimento de si mesmo. Para o filósofo, a alma é a sede da consciência e do caráter que na vida cotidiana é uma realidade interior que se manifesta através de palavras e de 25 ações, podendo ter conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade e por isso deveria ser o objeto de principal preocupação. A partir de tal concepção de alma se torna compreensível a tese socrática de que a virtude é conhecimento, um conhecimento que não tem nada a ver com opiniões infundada. O conhecimento que Sócrates identifica à aretê é a episteme (ciência) e não doxa (opinião). Tal episteme, que não pode ser ensinada porque não se reduz a uma técnica ou uma ciência sobre as coisas, é o conhecimento de si mesmo, o autoconhecimento pronunciado através do mote da filosofia socrática “Nosce te ipsum!”, “Conhece-te a ti mesmo!”, a autoconsciência despertada e mantida em vigília. Em suma, virtuoso é o ser humano autoconstruído a partir de seu próprio centro e que age de acordo com as exigências de sua alma-consciência. (PLATÃO, 1972, p. 43). 1.2 - Sapere Aude! Esclarecimento e autonomia em Kant Para Kant, o esclarecimento [Aufklärung] é a saída do ser humano de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do próprio entendimento sem estar submetido a direção de outrem. Nesta perspectiva, o indivíduo é o único responsável ou culpado dessa menoridade pois a causa desta não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de coragem de servir-se de si mesmo e do próprio entendimento. A partir dessa constatação, Kant elege como lema do esclarecimento o mote: “Sapere aude!”, “Ouse saber!” Ou seja, tenha a coragem de fazer uso de teu próprio entendimento. É, inicialmente, por um desenvolvimento do saber e, pela utilização de seu discernimento que o homem pode libertar-se das pessoas que pensam por ele, seus tutores, e sair de sua menoridade. Segundo o filósofo, as duas principais causas da permanência do indivíduo na menoridade são a preguiça e a covardia, pois é cômodo e bom ficar na menoridade. Se, por exemplo, “tenho um livro que faz às vezes meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo”. (KANT, 1995, p. 100). Por conseguinte, é difícil para um ser humano sair dessa condição, pois está habituado a permanecer nesse estado de tutoria e submissão. “Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora incapaz de utilizar seu próprio entendimento.” (KANT, 1995, p. 102). Para Kant quem, em meio à sociedade, quisesse dar esse salto para 26 sair da menoridade sentir-se-ia certamente inseguro, porque não está habituado com este movimento livre. Entretanto, ainda que difícil, segundo Kant, é possível que um público se esclareça a si mesmo. Isso ocorre só quando “lhe for dada a liberdade” (KANT, 1995, p. 102), pois, sempre, nas grandes massas, além dos tutores, alguns indivíduos têm a capacidade de pensamento próprio e, ao terem saído de sua menoridade, espalharão ao seu redor a capacidade que cada ser possui de pensar por si mesmo. O esclarecimento acontece progressivamente, mediante o uso do entendimento. Dito de outro modo, o ser humano está em constante busca de esclarecimento, porém ele tem inclinações que não o deixam sair desse estado. Por meio da razão e da vontade, o ser humano tem a possibilidade de superar os enlaces e as amarras da menoridade e, de maneira progressiva, emancipar-se, atingir o estado de maioridade Kant inicia sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes abordando o conceito de boa vontade e indicando que a boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em um grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações. (KANT, 1973, p. 204). Ela não é boa pelo sucesso da ação, mas pelo modo de determinação da vontade que surge da própria razão humana. A boa vontade é o princípio do querer. O querer, segundo o filósofo é a capacidade humana de dar-se a lei de forma racional; tal princípio subjetivo é denominado “máxima da ação” e está acima de todas as inclinações. Assim sendo, o querer é o exercício de nossa capacidade para dar a nós mesmos princípios racionais, o querer bem é a atividade segundo a qual adotamos princípios normativos (ou máximas) que são moralmente corretos para a conduta. Destarte, a boa vontade é boa em si mesma pois não necessita de uma ação para ser considerada boa já que seu princípio é dado pela razão. Esse princípio dado pela razão é o princípio da ação moral. Ao se analisar a moralidade de uma ação não se deve olhar os fins alcançados por tal ação, mas, antes, para o princípio que a motivou. Assim, toda ação que tiver como princípio racional a boa vontade constituir-se-á numa ação moral. 27 Para Kant, tudo na natureza age segundo leis, porém, somente um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação de leis, isto é, segundo princípios, ou, apenas ele tem uma vontade. Essa vontade que desdobra princípios em ações faz isso por intermédio da razão, por isso a vontade não é outra coisa senão a razão prática. A razão, portanto, entendida como faculdade prática, produz uma vontade não apenas boa enquanto é mediação para outra finalidade, mas uma vontade boa em si mesma. Assim, a boa vontade se manifesta na medida em que for determinada pela razão, e em assim sendo, manifesta aquilo que ela tem em si, o conceito de dever definido como necessidade de uma ação por respeito a lei. (KANT, 1973, p. 206) A partir disso, Kant descreve três tipos de ação, a saber: contrárias ao dever, praticadas por motivos egoístas; conforme ao dever, são ações legais, mas não morais, porque são praticadas por outras inclinações; por dever, fundamentada na boa vontade, é o único tipo de ação considerado moral. Assim, apenas as ações realizadas por dever merecem respeito e estima. Agir por dever é o agir que constitui uma ação moral. Toda ação que não possui como motivo o dever vai contra a boa vontade. Segundo Kant: Uma ação praticada por dever tem seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende, portanto, da realidade do objeto da ação, mas somente no princípio do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar, foi praticada. (KANT, 1973, p. 208, grifo do autor). Esse princípio do dever, de acordo com Kant, não deve ser buscado na natureza do homem, nem nas circunstâncias em que ele é colocado no mundo, mas exclusivamente, nos conceitos da razão pura, isto é, a priori, pois ele não pode ser abstraído de nenhum conceito empírico. Portanto, é a razão por si mesma e, independentemente de todos os fenômenos, que ordena o que deve acontecer. Kant defende que a moral não advém de princípios empíricos, mas de princípios da razão, ou seja, não é possível falar em lei moral em não sendo a priori. Então, se a razão é capaz de determinar infalivelmente a vontade, para Kant, “a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom” (KANT, 1973, p. 217), a vontade é, então, a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios. A representação de um princípio objetivo, capaz de determinar a vontade, Kant chamou de mandamento da razão e a fórmula do mandamento, chamou imperativo. Nas palavras do filósofo, “A representação de um 28 princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se mandamento (da razão) e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo.” (KANT, 1973, p.218) Há dois tipos de imperativos: os hipotéticos e o categórico. Os primeiros “representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer”. O segundo “seria aquele que representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”. No caso de uma ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico. (KANT, 1973, p. 219). Enquanto os imperativos hipotéticos sempre buscam um meio para chegar a um determinando fim, pelo contrário, o categórico, por sua vez, age sem a interação desse meio. Segundo Nodari (2009), enquanto os imperativos hipotéticos relacionam-se com a escolha dos meios para alcançar qualquer outra coisa que se quer como fim, eles não ordenam a ação de maneira absoluta, mas tão-somente como meio para uma finalidade. O categórico, por sua vez, não se baseia em qualquer outro interesse senão o interesse moral de agir à luz dos princípios da razão por dever de acordo com um determinado comportamento racional. Assim, o imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. Afirma, por conseguinte, Kant: “O imperativo categórico, que declara a ação como objetivamente necessária por si, independente de qualquer intenção, quer dizer sem qualquer outra finalidade, vale como princípio apodíctico (prático).” (KANT, 1973, p. 219). Em sendo assim, o imperativo categórico não se relaciona com a matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio do qual ela mesma deriva, o que a ação tem de essencialmente bom reside na disposição seja qual for o resultado. Esse, para Kant, em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, é o imperativo da moralidade. A partir disso, Kant procura esclarecer a fórmula central do imperativo categórico, partindo do princípio que o imperativo categórico é o querer que a máxima da ação se torne uma lei universal. Desse princípio geral são desdobradas três outras formulações. A primeira é: “Age apenas segundo uma lei máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. (KANT, 1973, p. 223). Para que a ação se torne moral, deve-se transformar a máxima da ação em lei universal. Para Kant, 29 este é o cânone pelo qual julgamos moralmente em geral. Para tanto, convém lembrar que a máxima é descrita por Kant como sendo o princípio subjetivo, enquanto o princípio objetivo é a lei prática. A lei é o princípio objetivo, válido para todo o ser racional, princípio segundo o qual ele deve agir. Kant entende que desse imperativo categórico pode derivar, como do seu princípio, todo dever. A segunda formulação do imperativo categórico expressa por Kant é: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 1973, p.229). Ainda que o ser humano, diferentemente das coisas que possuem valor, possua dignidade e exista como fim em si (KANT, 1973, p. 231), uma pergunta torna-se central a essa altura, a fim de que seja possível tratar do conceito autonomia. Como é que o imperativo pode vir a se tornar uma lei universal? De acordo com Kant, o ser humano possui uma vontade. Entretanto, essa vontade, muitas vezes, pode ser direcionada e até encoberta pelas inclinações sensíveis. Por isso, a vontade deve ser determinada pela razão, já que “a vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis” (KANT, 1973, p. 229). Portanto, somente a razão - enquanto capaz de autodeterminar o princípio objetivo da ação - pode fazer da vontade a legisladora universal, isto é, pode fazer o imperativo valer como universal. Agora, essa vontade “não está, pois, simplesmente submetida à lei, mas sim submetida de tal maneira que tem de ser considerada também como legisladora ela mesma”. (KANT, 1973, p. 231). A terceira formulação do imperativo categórico é a da autonomia da vontade e se expressa da seguinte maneira: “Age de tal modo que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma e ao mesmo tempo como legisladora universal.” (KANT, 1973, p. 233). Em se sabendo que todo ser racional possui uma vontade como legisladora universal e considerando que todo sujeito racional é capaz de legislação universal, toma lugar de destaque outro conceito fundamental, qual seja: o conceito de reino dos fins, sendo esse, para Kant, a ligação dos sujeitos racionais. (KANT, 1973, p. 233). A razão relaciona, então, todas as máximas da vontade a todas as outras vontades, não com a intenção de alcançar alguma vantagem, mas em virtude da dignidade do ser racional, que não obedece a outra lei senão a que ele mesmo dá a si mesmo. Kant (1973, p. 234) frisa: A moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino 30 dos fins. Portanto a moralidade e a humanidade, enquanto capazes de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade. O fundamento dessa dignidade está no próprio ser humano como ser racional. Numa palavra: isso se constitui na própria autonomia, já que a autonomia é o “fundamento da dignidade humana e de toda natureza racional”. (KANT, 1973, p. 238). Com isso Kant fundamenta o ponto de vista da moralidade, que, em última instância, implica a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio das máximas do sujeito da ação. (KANT, 1973, p. 237). A autonomia da vontade é o princípio supremo da moralidade. (KANT, 1973, p. 238). Autonomia da vontade é aquela propriedade da razão que é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza, ou seja, é a priori). “O princípio da autonomia é, portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, o querer mesmo, como lei universal.” (KANT, 1973, p. 238). Em vista disso, Kant faz a ligação entre o princípio da autonomia e o imperativo categórico da seguinte forma: pela simples análise dos conceitos da moralidade pode-se mostrar muito bem que o citado princípio da autonomia é o único princípio da moral. Pois desta maneira se descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico, e que este imperativo não manda nem mais nem menos do que precisamente esta autonomia. (KANT, 1973, p. 238). Nesse sentido, aprender a ser autônomo significa aprender a deixar-se, progressivamente, guiar pela lei moral. É a capacidade e a coragem de o próprio sujeito sair de sua menoridade e alcançar a maioridade, sendo isso possível, sobretudo, por meio da educação, uma vez que ser emancipado, ou seja, alcançar a maioridade, é um processo lento, árduo e constante, do início ao fim da vida de cada um que quer ser, de fato, autônomo. 31 2 – A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO MORAL SEGUNDO O COGNITIVISMO EVOLUTIVO Neste capítulo apresentaremos o aporte teórico de nosso trabalho de pesquisa que se convencionou chamar de Psicologia Moral. Segundo La Taille (2006, p.09), a Psicologia Moral é “a ciência preocupada em desvendar por que processos mentais uma pessoa chega a intimamente legitimar, ou não, regras, princípios, e valores morais”. Dito de outra forma é a área que se dedica ao estudo dos processos psicológicos (intelectuais e afetivos), subjacentes aos juízos e ações morais. Dentre as possibilidades teóricas da Psicologia Moral abordaremos, nessa investigação, as propostas de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. 2.1 O juízo moral na criança segundo Piaget Na obra O juízo moral na criança de 1932 Piaget se dedica a investigação da gênese da moralidade, mais especificamente sobre como a consciência chega a respeitar as regras a partir do ponto de vista da criança e deixa claro que não será analisada a moralidade infantil a partir de seus comportamentos e sentimentos morais vividos na família, na escola e em grupo, mas que o objetivo é estudar a gênese do juízo moral ou seja a dimensão racional dos juízos morais infantis. Assim sendo, Piaget se aproxima da filosofia de Immanuel Kant ao focar suas investigações não na gênese das virtudes e das ideias de felicidade, temperança ou prudência, mas em questões centrais da ética kantiana como a autonomia da razão, o respeito a lei e a ideia de justiça. Em seus estudos sobre epistemologia genética, Piaget (1990) define as características próprias da estrutura do pensamento a partir das interações e formas de conduta e propõe estágios de desenvolvimento cognitivo, são eles: sensório- motor (0-2 anos), pré-operatório (2-6 anos), operatório-concreto (6-12 anos) e operatório formal (dos 12 anos em diante). Em seus estudos sobre moralidade Piaget não observa um paralelismo rigoroso entre os estágios, desenvolvimento intelectual e o desenvolvimento moral, muito embora o segundo dependa do primeiro o contrário não se segue necessariamente. Por isso ao invés de falar em estágios do desenvolvimento moral, Piaget fala de posições ou momentos a serem vivenciados no desenvolvimento moral, são eles: anomia, heteronomia e autonomia. Para realizar suas investigações Piaget foca nos jogos infantis como a primeira forma de contato com códigos de regras, a partir disso passa a definir a moral com um sistema de regras e afirma que a essência da moralidade está no 32 respeito que os indivíduos adquirem por essas regras. A questão para Piaget não é o porquê a consciência adquire esse respeito, mas sim como ela chega a essa aquisição. Suas pesquisas indicaram que a relação do indivíduo com as regras do jogo se divide em dois fenômenos: a prática da regra e a consciência da regra, ambos, segundo Piaget, seguem um caminho psicogenético e se desenvolvem através de estágios. A prática das regras evolui a partir de quatro estágios: 1) Estágio puramente motor e individual (0-2 anos), nesse estágio prevalece as regras motoras pois as regras sociais ainda não são assimiladas; 2) Estágio egocêntrico (2/3 a 5/6 anos), nesse estágio não se observa a preocupação da criança com a codificação das regras, elas ou jogam para si mesmas ou imitam os outros fazendo uso pessoal das regras recebidas; 3) Estágio da cooperação nascente (7/8 a 11 anos), nesse estágio observa-se a busca pela vitória e aparece a necessidade do controle mútuo e unificação das regras embora com uma tendência a tentar defender os próprios interesses; 4) Estágio de codificação das regras (11/12 anos em diante), nesse estágio se alcança o conhecimento dos códigos de regras e se exige o respeito de todos pelas regras. A consciência das regras apresenta três estágios: 1) no primeiro estágio (0 a 3 anos) a regra ainda não é coercitiva porque é puramente motora sendo interessante porém não obrigatória, 2) no segundo estágio (3/4 a 9/10) a regra é considerada sagrada e imutável, de origem adulta e de essência eterna, sendo qualquer modificação considerada transgressão; 3) no terceiro estágio (11/12 anos em diante) a regra é considerada como sendo uma lei imposta e aceita por consentimento mútuo, cujo respeito é obrigatório. (LEPRE, 2016, p. 21) A relação entre os estágios referentes a prática e a consciência das regras possibilita compreender as três posições ou momentos morais. A anomia (até os 4/5 anos) caracteriza o momento em que a criança ainda não tem consciência das regras e a sua ação é impulsionada para a satisfação de desejos motores, estando ausentes qualquer preocupação com regras coletivas ou atividades em grupo. Na heteronomia (6 a 9 anos) a criança já percebe a existência das regras e apresenta interesse em participar de atividades coletivas, contudo essas regras são vistas pela crianças como entidades absolutas e não meras convenções; para Piaget a heteronomia é a moral do dever, ou seja, as regras são obedecidas por dever porém sem a consciência do que elas significam, assim sendo a prática das regras, nesse momento, é imitativa, ou seja, existe a tendência a obediência de 33 determinadas regras seguindo modelos oferecidos por adultos ou crianças mais velhas, porém com influência do egocentrismo. Uma classe de comportamentos observados nesse momento foi denominada de julgamento por responsabilidade objetiva e se caracteriza por levar mais em conta as consequências materiais da transgressão cometida do que a intenção de quem cometeu, como consequência de tais julgamentos a criança se apresenta como um juiz rígido e absoluto sugerindo punições e sanções expiatórias para os transgressores sem considerar a intencionalidade dos envolvidos. Segundo Lepre (2016, p. 23), “na heteronomia as crianças orientam os seus atos por meio de modelos recebidos, mas assimilam, no sentido piagetiano, esses modelos segundo seu próprio ponto de vista, que é rígido e inflexível, características próprias do egocentrismo infantil”. Na autonomia (10/11 anos em diante) a criança passa a se perceber como criadora de leis e entende que as regras derivam de um acordo mútuo entre as pessoas, ou seja, passa a compreender a visão do adulto pois entende que há regras para se viver em sociedade, mas essas regras e o respeito a elas não são imposições externas, mas partem de seu interior voluntariamente. Segundo Lepre (2016, p. 23), “o sujeito autônomo é aquele que, olhando para si enxerga também o outro, ou seja, descartam-se ideais egocêntricos e triunfam leis universais”. A partir desse momento o indivíduo desenvolve critérios de julgamento por responsabilidade subjetiva, ou seja, é capaz de levar em contas intenções daqueles que cometem transgressões às leis e normas. 2.2 Teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg A teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg surge com seus estudos de doutorado, na década de 50, que tinham como objetivo aplicar a teoria do desenvolvimento do juízo moral da criança de Piaget em adolescentes. Para estudar o desenvolvimento moral na adolescência, decidi usar o método e as suposições gerais de Piaget. Isso significava, primeiro, o foco no julgamento moral e uma definição de julgamento moral em termos de julgamentos de justiça. Como Piaget, eu assumi que as construções morais ativas da criança, ao contrário dos clichês morais passivamente aprendidos do adulto, focalizariam o senso de justiça da criança. (KOHLBERG, 1992, p. 33). Os estudos de Kohlberg centrados em raciocínios sobre justiça fizeram-no assumir a hipótese que o desenvolvimento moral da criança consiste na construção de significados sobre categorias e questões universais, o que o levou a trabalhar com dilemas morais hipotéticos e a produzir uma teoria cognitivo-evolutiva da moralidade. 34 Essas construções de meus sujeitos me convenceram da segunda suposição do caminho cognitivo-evolucionista de Piaget, a assunção de estágios. Se a primeira suposição de Piaget foi a da estrutura cognitiva, a criança como um filósofo que constrói seu mundo, sua segunda suposição foi que essas construções eram qualitativamente únicas e procediam numa sequência de ordem invariante. (Kohlberg, 1992, p. 34). O cognitivismo evolutivo de Kohlberg, inspirado na epistemologia piagetiana, tem como base os seguintes pontos: 1) O desenvolvimento é concebido como transformações básicas de estrutura cognitiva, ou seja, é uma teoria estruturalista, que não podem ser explicadas por meio dos parâmetros da aprendizagem associacionista (reforço, repetição, etc.) mas por parâmetros de totalidades organizativas ou sistemas de relações internas. Suas bases estão no estruturalismo genético proposto e defendido por Piaget. Segundo Colby e Kohlberg (1987), os conceitos não são apreendidos ou utilizados de formas independentes, mas encontram-se “amarrados” por traços estruturais comuns. Nossa ênfase é na forma de pensamento em vez do conteúdo, porque é a forma que exibe regularidade e generabilidade desenvolvimental internamente e através dos indivíduos. Mais ainda, no caso dos comportamentos morais, o significado da crença moral específica de um indivíduo não pode ser entendido sem que se compreenda a concepção de mundo moral mais geral ou o quadro conceitual no qual aquela crença está inserida e do qual ela emerge. (COLBY E KOHLBERG, 1987, p.2). 2) O desenvolvimento das estruturas cognitivas é resultado da interação entre a estrutura do organismo e a estrutura do ambiente, o que garante à teoria o caráter interacionista; 3) As estruturas cognitivas são estruturas de ação, as atividades cognitivas se movem do esquema sensório motor ao esquema simbólico e ao verbal proposicional, a organização dos sistemas é uma organização de ações sobre os objetos. 4) O desenvolvimento das estruturas cognitivas tem como objetivo um maior equilíbrio na interação entre organismo e ambiente, maior equilíbrio de reciprocidade entre a ação do organismo sobre o objeto ou situação percebida e a ação do objeto percebido sobre o organismo. 5) O desenvolvimento afetivo e seu funcionamento e o desenvolvimento cognitivo e seu desenvolvimento não são campos diferentes, mas sim paralelos. Estes são pressupostos básicos e gerais sobre o desenvolvimento cognitivo, ou seja, sobre as formas de pensar os objetos físicos e sociais. O desenvolvimento 35 sociomoral também se apoia nesses pressupostos, mas apresenta, ainda, características próprias que serão discutidas por meio da apresentação da teoria sobre o desenvolvimento do raciocínio moral de Lawrence Kohlberg. A teoria de Kohlberg, assim como a de Piaget, é interacionista, contrapondo- se às teorias inatistas (que entendem o desenvolvimento como algo pré- programado) e ambientalistas (que entendem o desenvolvimento como um produto das pressões do meio). Segundo esse autor, o pressuposto cognitivo-evolutivo é de que a estrutura mental básica é resultado de uma interação entre certas tendências que estruturam o organismo e a estrutura do mundo exterior, mais do que o reflexo de qualquer uma delas diretamente. (KOHLBERG, 1992, p. 54). A teoria dos estágios é um dos pontos centrais da postura cognitivo-evolutiva e apresenta algumas características gerais, entre elas: a) os estágios denotam diferenças qualitativas na maneira de pensar das crianças, em idades diferentes; b) estas diferentes maneiras de pensar seguem uma sequência invariável; c) cada estágio forma um todo estruturado, configurando-se como estados de equilíbrio majorante; d) os estágios são integrações hierárquicas, formando uma ordem de estruturas crescentes, ou seja, vão sempre de um estágio de menor equilíbrio para um de maior equilíbrio. Como os estágios também são construções realizadas por meio da interação com o meio, é possível haver variações quanto à idade em que ocorrem, dependendo dos estímulos vindos do meio; no entanto, sua sequência se manterá invariável. Explica Kohlberg (1992, p. 59), O conceito de estágios implica uma ordem invariante ou sequência de desenvolvimento. Fatores culturais e ambientais ou capacidade mental inata podem fazer com que um grupo de crianças atinja um certo estágio em um tempo muito mais cedo que outras crianças. Sem dúvida, todas as crianças devem passar pela mesma ordem de passos, independentemente do tipo de ambiente de aprendizagem ou da falta de aprendizado. Assim como o desenvolvimento cognitivo, o sociomoral também ocorre por meio de estágios. Os estágios e níveis de raciocínio moral propostos por Kohlberg são de raciocínio de justiça e não de emoções ou ações. Segundo o autor, Eu sempre tentei deixar claro que meus estágios são estágios de raciocínio de justiça, não de emoções, aspirações ou ações. Nosso banco de dados tem sido um conjunto de dilemas hipotéticos levantando conflitos entre os direitos ou reivindicações de pessoas diferentes em situações de dilema. As perguntas padrão que pedimos para verificar o raciocínio de nossos sujeitos têm se concentrado em aspectos de justiça e retidão. (KOHLBERG, 1992, p. 232). 36 Kohlberg afirma que sua definição de moralidade e desenvolvimento moral pressupõe que o centro da moralidade é a justiça ou os princípios de justiça. “Essa centralidade da justiça deriva também do trabalho de Piaget (1994) sobre o desenvolvimento do julgamento moral, no qual ele definiu a moralidade como uma atitude de respeito pelas pessoas e pelas regras, aliando-se, portanto, a Kant.” (BIAGGIO, 2002, p. 37). Segundo Kohlberg (1992) há seis estágios de raciocínio moral que podem ser agrupados em três níveis, são eles: Nível pré-convencional, no qual estão os estágios 1 e 2. Nesse nível, as crianças (até por volta dos 9 anos de idade) decidem o que é certo fazer baseadas somente em interesses próprios. As questões morais são colocadas considerando- se apenas o interesse das pessoas implicadas. As decisões morais são geradas a partir de acontecimentos externos à pessoa, da obediência às regras e à autoridade ou do medo do castigo e da punição. A perspectiva sociomoral é egocêntrica. Nível convencional, no qual estão os estágios 3 e 4. Nesse nível, a ação certa é aquela pautada nas convenções sociais determinadas por pessoas que se apresentem enquanto autoridades ou instituições reconhecidas socialmente. O indivíduo emite juízos tendo como referência as regras do grupo e as expectativas que esse tem sobre ele. Os temas morais se apresentam como um meio para haver adequação social. A perspectiva sociomoral é a do grupo de interesse. Nível pós-convencional, no qual estão os estágios 5 e 6 (menos encontrados por Kohlberg). Nesse nível, a ação certa é aquela guiada por princípios morais universais, pautados na reciprocidade e na igualdade. O pensamento é regido por princípios e não por regras sociais, que só serão aceitas se estiverem fundamentadas em princípios e valores gerais. As decisões morais são geradas a partir de direitos, valores e princípios com que todos concordam para compor uma sociedade destinada a ter práticas justas e benéficas. A perspectiva sociomoral parte de valores e princípios universais. A formulação, conforme (KOHLBERG, 1992, p. 188-189), dos estágios pode ser assim definida: No Estágio 1, o estágio da obediência e do castigo, é considerada correta a obediência literal às regras e à autoridade; o castigo e os danos físicos às pessoas e propriedades são evitados. O que é direito é evitar infringir as regras, obedecer por obedecer e evitar causar danos físicos a pessoas e propriedades. O problema se acaba quando se administra o castigo. As razões para defender esses valores são o 37 desejo de evitar o castigo, as punições e sansões das autoridades. A perspectiva sociomoral é egocêntrica; a pessoa considera somente sua perspectiva, desconsiderando a dos outros, não sendo capaz de relacionar duas perspectivas. As ações são julgadas em termos das consequências e soluções físicas e não em termos dos interesses psicológicos dos outros. A perspectiva da autoridade é confundida com a própria. No Estágio 2, o estágio do objetivo instrumental individual e da troca, o correto é seguir as regras quando for de seu interesse imediato, para satisfazer os interesses e necessidades próprias e deixar que os outros façam o mesmo. O direito é, também, o que é equitativo, isto é, uma troca igual, uma transação, um acordo. As justificativas consistem em satisfazer e servir aos interesses próprios num mundo em que é preciso reconhecer que as outras pessoas, também, têm seus interesses. A perspectiva sociomoral é individualista concreta, separando os interesses e pontos de vista próprios dos interesses e pontos de vista da autoridade e dos outros. A pessoa é consciente de que cada um procura realizar seus próprios interesses e estes podem conflitar entre si. O direito é relativo (no sentido individual concreto). A pessoa integra ou relaciona seus interesses individuais com os da autoridade e dos outros por troca instrumental de serviços, ou da boa vontade, ou pela equidade, dando a cada pessoa a mesma quantidade. No Estágio 3, o estágio das expectativas interpessoais mútuas, dos relacionamentos e da conformidade interpessoal, é considerado correto desempenhar o papel de uma pessoa boa, preocupar-se com as outras pessoas e seus sentimentos, manter-se leal e conservar a confiança dos parceiros e estar motivado a seguir regras e expectativas dos pais, dos amigos, dos superiores. “Ser bom” é importante e significa ter bons motivos, mostrar solicitude com os outros. Também significa preservar os relacionamentos mútuos, manter a confiança, a lealdade, o respeito e a gratidão. As justificativas para agir corretamente são: ter necessidade de ser bom a seus próprios olhos e aos olhos dos outros, importar-se com os outros, porque, ao se colocar no lugar do outro, exige-se de si próprio um bom comportamento. Há um desejo de manter as regras e a autoridade, que apoiam o comportamento bom, estereotipado. A pessoa adota a perspectiva sociomoral, em termos de sentimentos, acordos e expectativas compartilhadas, que adquirem primazia sobre os interesses individuais. A pessoa relaciona pontos de vista através da “Regra de Ouro”, pondo-se no lugar dos outros. 38 No Estágio 4, o estágio da preservação do sistema social e da consciência, o certo é fazer o seu dever na sociedade, apoiar a ordem social e manter o bem-estar da sociedade ou do grupo. Cumprir os deveres com os quais se concordou. As leis devem ser apoiadas, exceto em casos extremos em que entram em conflito com outros deveres e direitos sociais estabelecidos. O direito, também, consiste em contribuir para a sociedade, o grupo ou a instituição. As justificativas para agir assim são: manter em funcionamento a instituição como um todo, o autorrespeito ou a consciência compreendida como o cumprimento das obrigações definidas para si próprio ou a consideração das consequências: “E se todos fizessem o mesmo?”. As perspectivas sociomorais: a pessoa adota o ponto de vista societário do acordo ou motivos interpessoais. A pessoa segue as perspectivas do sistema, que define regras e papéis. As relações são estabelecidas em termos do lugar no sistema. No Estágio 5, o estágio dos direitos originários e do contrato social ou da utilidade, o correto é sustentar os direitos, valores e contratos legais básicos de uma sociedade, mesmo quando entram em conflito com as regras e leis concretas do grupo. É estar consciente do fato de que as pessoas adotam uma variedade de valores e opiniões, que a maioria dos valores e regras é relativa ao seu grupo. Essas regras “relativas”, contudo, devem, em geral, ser apoiadas no interesse da imparcialidade, porque elas são o contrato social. No entanto, alguns valores e direitos não relativos, tais como a vida e a liberdade, têm de ser apoiados em qualquer sociedade independentemente da opinião da maioria. Como justificativas para agir de maneira moralmente correta são apontadas, em geral, a obrigação de obedecer à lei, baseada em um contrato social, para o bem de todos e para proteger seus próprios direitos e os direitos dos outros; as obrigações de família, amizade, confiança e trabalho, que, também, são compromissos ou contratos assumidos livremente e implicam o respeito pelos direitos dos outros. Importa que as leis e deveres sejam baseados num cálculo racional de utilidade geral: “O maior bem para o maior número”. As perspectivas sociomorais adotadas pelas pessoas são do prioritário em face da sociedade, a perspectiva de um indivíduo racional consciente de valores e direitos prioritários em face dos laços e contratos sociais. A pessoa integra perspectivas pelos mecanismos formais do acordo, do contrato, da imparcialidade objetiva e do devido processo. Considera o ponto de vista moral e o ponto de vista legal, reconhece esse conflito e acha difícil integrá-los. No Estágio 6, o estágio de princípios éticos universais, é considerado correto agir por princípios éticos universais, que toda a humanidade deve seguir. No que diz 39 respeito ao que é direito, este estágio é guiado por princípios éticos universais. As leis e acordos sociais particulares são, em geral, válidos, porque se apoiam em tais princípios. Quando as leis violam esses princípios, age-se de acordo com o princípio. Os princípios são princípios universais de justiça: igualdade de direitos humanos e o respeito pela dignidade dos seres humanos enquanto indivíduos. Esses não são meramente valores reconhecidos, mas também são princípios usados para gerar decisões particulares. A justificativa para fazer o que é direito é que a pessoa, em termos racionais, percebeu a validade dos princípios e comprometeu-se com eles. A perspectiva sociomoral adotada é a de um ponto de vista moral, de onde derivam os ajustes sociais dos valores e dos princípios universais. Reconhece-se o respeito fundamental pela vida e pela pessoa humana como fins e não como meios. O conteúdo representa a visão cognitiva do julgamento moral, enquanto as justificativas apresentam os valores e as razões filosóficas da ação e a perspectiva sociomoral se refere ao ponto de vista que a pessoa toma ao definir os fatos sociais e os valores sociomorais ou deveres. Assim, no nível pré-convencional, as expectativas sociais são algo externo ao indivíduo, enquanto no nível convencional a pessoa se identifica com as regras e expectativas sociais, especialmente, das autoridades e de pessoas de referência. Já no nível pós-convencional, o indivíduo diferencia sua pessoa das normas e expectativas dos outros e define seus valores segundo princípios universais. A forma inclui a estrutura do pensamento moral dos estágios e revela o porquê se decide (justificativas), ao passo que o conteúdo inclui os valores, normas específicas aceitas, revela o quê se decide. No processo de educação moral, sempre se deve dar atenção tanto ao conteúdo quanto à forma como se decide, isto é, ao o quê (conteúdo) se decidiu, como ao porquê (justificativa) se decidiu de determinada maneira. Cabe salientar que o raciocínio moral é claramente um raciocínio e, assim sendo, o raciocínio moral avançado se baseia em um raciocínio lógico avançado. Existe um paralelismo entre o estágio lógico de um indivíduo e seu estágio moral. Uma pessoa cujo estágio lógico é operatório-concreto está limitada a níveis morais pré-convencionais (estágios 1 e 2). Dessa forma, apenas pessoas do estágio formal estariam possibilitadas de construírem um raciocínio moral autônomo, do nível pós- convencional (estágios 5 e 6). No entanto, se o desenvolvimento lógico é uma condição necessária ao desenvolvimento moral, não é uma condição suficiente. 40 Vários indivíduos apresentam um estágio lógico mais alto que seu estágio moral, mas nunca um estágio moral mais alto que seu estágio lógico. Segundo Kohlberg (1992), depois dos estágios de desenvolvimento lógico vem os de percepção social que, em parte, são descritos quando são definidos os estágios morais. Esses estágios definem como o indivíduo percebe as outras pessoas, interpreta seus sentimentos e o papel que ocupa na sociedade. Eles estão estreitamente ligados aos estágios morais, porém, são mais amplos, posto que não tratam apenas da justiça e de eleger entre o correto e o incorreto. Fazer um juízo de justiça em certo nível é mais difícil que simplesmente ver o mundo nesse nível. Assim como ocorre com a lógica, o desenvolvimento da percepção (perspectiva social) de um estágio ocorre antes ou é mais fácil que o desenvolvimento do estágio paralelo do juízo moral. 41 3 - A EDUCAÇÃO MORAL EM PIAGET, KOHLBERG E PUIG Neste último capítulo teórico abordaremos a aplicação da psicologia do desenvolvimento moral, apresentada no capítulo anterior, na Educação. Tanto Piaget como Kohlberg se preocuparam em pensar e propor a aplicação de suas teorias na forma de procedimentos e dinâmicas capazes de promover o desenvolvimento do juízo moral assim como em romper com formas tradicionais de educação moral. Aliado a essa perspectiva, apresentaremos a abordagem de Josep Maria Puig, pesquisador contemporâneo do campo da Educação Moral fortemente influenciado pelos referenciais teóricos, tanto da filosofia quanto da psicologia, apresentados nesse trabalho e que serviu de base para a intervenção proposta. 3.1 - Os procedimentos da educação moral segundo Piaget Segundo Piaget (1999) a educação moral e seus procedimentos pode ser classificada a partir dos seguintes pontos de vista: dos fins perseguidos, das técnicas a serem utilizadas e do domínio moral considerado. O autor propõe procedimentos em contraposição aos procedimentos de educação moral tradicional, por isso os fins da educação moral piagetiana visam a formação de personalidades livres e os procedimentos devem favorecer a autonomia da consciência. Sendo a autonomia da consciência a meta a ser alcançada, as técnicas utilizadas devem romper com modelos passivos de ensinamento moral predominantemente oral em favor de uma pedagogia ativa, assim sendo o domínio moral considerado deve ser abordado para além da simples aquisição de virtudes morais intelectuais, mas que se preocupe com a formação do caráter. Para tanto, o autor acredita ser imprescindível uma psicologia das relações das crianças entre si e delas com os adultos. Psicologia essa que leve em consideração que a moralidade não é algo completamente inato - apesar das características psicobiológicas que a fundamentam, como as disposições a tendências afetivas e ativas, as raízes instintivas da sociabilidade e da subordinação e a capacidade de afeição que permitirá a criança amar um ideal que a leve a amar seus pais e posteriormente a contribuir com o bem comum na dimensão social - mas que olhe para as relações interindividuais como aspecto fundamental para a constituição de realidades morais. Assim sendo, para Piaget são as relações constituídas entre a criança e o adulto e entre ela e seus semelhantes que a levarão a tomar consciência do dever e a colocar as realidades normativas, resultado das relações constituídas, que caracterizam a dimensão moral, acima de seus 42 interesses. Por isso, para o autor, não há moral sem sua educação moral, e são exatamente os procedimentos adotados por essa educação moral, em sentido amplo, que moldarão as consciências e determinarão os comportamentos. Ao analisar o comportamento infantil, Piaget identifica dois tipos fundamentais de relações interindividuais responsáveis por estabelecer dois tipos de moral. Tais relações, para possibilitarem a aquisição de noções morais e desenvolvimento da consciência da obrigação, devem estar fundamentadas no sentimento de respeito; uma das características básicas dessa relação é o ato de dar conselhos que o outro leve em consideração através do respeito pela pessoa que os emitiu. Assim sendo, para Piaget o respeito pelas pessoas constitui, e deve constituir, um fato primário do qual derivam as leis morais, ou seja, diferente de Kant que acreditava que o respeito é resultado da lei e de Durkheim que é um reflexo da sociedade, Piaget coloca a importância da relação de indivíduo com indivíduo acima dos ensinamentos morais e anterior a própria criação das leis morais. Atento a essas relações Piaget identifica dois tipos de respeito: o unilateral e o mútuo. O primeiro tipo se caracteriza pela desigualdade entre quem respeita e quem é respeitado, ou quem se faz respeitar e quem respeita, observado na relação entre o adulto e a criança, entre o irmão mais velho e o irmão mais novo, a criança mais velha e a criança mais nova, ou seja, esse tipo de respeito, que caracteriza o primeiro tipo de relação social de uma pessoa, implica numa relação de superioridade de uns e inferiorização do outros através da coação; isto é, o tipo de respeito unilateral se caracteriza pelas relações de coação. O segundo tipo, o respeito mútuo, é característico de relações estabelecidas entre indivíduos que se consideram iguais e por isso se tratam reciprocamente, tal relação Piaget chamou de relações de cooperação. O respeito unilateral juntamente com as relações de coação resulta em um sentimento de dever decorrente da pressão do superior sobre o inferior e fundam uma moral baseada na heteronomia; o respeito mútuo as relações de cooperação geram sentimentos de reciprocidade e comportamentos conscientes e voluntários e por isso fundam uma moral baseada na autonomia. Assim sendo, o objetivo da educação moral de orientação piagetiana é contribuir para o desenvolvimento de uma moral autônoma baseada no respeito mútuo e na cooperação. Segundo Piaget: No que se concerne ao fim da educação moral, podemos, pois, por uma legítima abstração, considerar que é o de constituir personalidades autônomas aptas à cooperação; se desejarmos, ao contrário, fazer da criança um ser submisso durante toda a sua existência à coação exterior, 43 qualquer que seja ela, será suficiente todo o contrário do que dissemos. (PIAGET, 1999, p. 09) Quanto aos procedimentos de educação moral pode-se apontar fundamentalmente dois, o primeiro utilizado pela abordagem tradicional e o segundo proposto por Piaget a partir de suas pesquisas, são eles: os procedimentos verbais e os procedimentos ativos. Os procedimentos verbais estão baseados em discursos morais ou nas “lições de moral”. Para Piaget (1999, p. 15) “do mesmo modo que a escola em geral há séculos pensa ser suficiente falar à criança para instruí-la e formar seu pensamento, os moralistas contam com o discurso para educar a consciência”, ou seja, os procedimentos verbais de educação moral do tipo lição de moral, por, via de regra, serem impostos pelos adultos por meio da coação e do respeito unilateral não são capazes de promover consciência moral uma vez que seus resultados estão implicados diretamente no medo da punição ou no risco da perda do afeto (LEPRE, 2016, p.85). Segundo Piaget os procedimentos mais efetivos para educação moral são aqueles baseados em métodos ativos caracterizados pela participação direta do estudante em experiências morais através do ambiente proporcionado pela escola, do contato com seus iguais e com situações que propiciem o estabelecimento de relações de cooperação e respeito mútuo. A educação moral, para o autor, não deve constituir uma matéria especial de ensino, mas antes ser um aspecto particular da totalidade do sistema, dessa maneira, as crianças e jovens não deveriam ter aulas de educação moral, mas vivenciar a moralidade em todos os aspectos, ambientes e disciplinas escolares (LEPRE, 2016, p. 86). 3.2 – O método de discussão de dilemas morais na educação moral de Blatt e Kohlberg Em 1975, os psicólogos Blatt e Kohlberg propuseram um Método de Discussão de Dilemas que pudesse ser aplicado nas escolas por educadores. Com fundamento em Turiel, Rest e a teoria do desenvolvimento moral em estágios de Kohlberg, Blatt defendeu a hipótese de que se fosse apresentado a crianças de maneira sistemática um raciocínio moral correspondente a uma etapa imediatamente superior a que se encontravam em termos de desenvolvimento moral, estas seriam atraídas por este raciocínio e tenderiam a se apropriar deste, estimulando o desenvolvimento de uma etapa superior de desenvolvimento do juízo 44 moral. Para provar esta hipótese, Blatt elaborou um projeto piloto para estudantes do sexto ano de uma escola dominical judia. Ele pensou que a maneira mais eficaz e menos artificial de expor as crianças ao juízo moral de uma etapa superior a que se encontravam seria realizar uma discussão em grupo sobre dilemas morais, uma vez que os membros do grupo apresentavam diferentes níveis de desenvolvimento moral entre si. Assim, discutindo juntos, eles deveriam escutar as soluções encontradas pelos colegas e tentar convencê-los de seu próprio ponto de vista, o que permitiria a alguns terem acesso a níveis de raciocínio superiores já encontrados em outros membros. Ele começou a estudar os alunos para conhecer as etapas de juízo moral em que se encontravam e passou a se reunir com eles semanalmente, durante três meses. Ele apresentava um dilema moral sem solução ao final (como uma aporia socrática), e pedia ao grupo que propusesse soluções e explicasses aos colegas o porquê de suas soluções serem melhores, no sentido de mais justas. Ele garantia que as próprias crianças guiassem o debate, intervindo apenas para resumir as discussões, clarificar, enriquecer o debate e, ocasionalmente, apresentar seu próprio ponto de vista (POWER; HIGGINGS; KOHLBERG, 1997). Ao final dos três meses, Blatt voltou a examinar os estudantes e descobriu que 64% deles haviam avançado uma etapa completa em seu raciocínio moral. Animado com estes resultados, ele repetiu este experimento em quatro cursos de uma escola pública. Estes estudantes foram divididos em três grupos: um que se reuniu com Blatt para as discussões morais dirigidas por um professor durante dezoito sessões, um grupo que se reuniu em discussões morais dirigidas por pares durante o mesmo período e um grupo controle que não participou de nenhuma discussão. Ao final da pesquisa, o grupo dirigido por um professor demonstrou uma vantagem média de um terço de etapa, e os outros grupos quase não mostraram mudanças. Em um estudo de seguimento deste grupo realizado um ano mais tarde, o grupo dirigido pelo professor manteve sua vantagem sobre os outros, entre uma quarta parte e a metade dos estudantes destes grupos de discussão passaram parcial ou totalmente à etapa superior de desenvolvimento moral, o que não aconteceu com o grupo controle. Este efeito cumulativo da experiência pedagógica de Blatt significou um avanço nos estudos em educação moral cognitivo-evolutiva e ficou conhecido como "efeito Blatt" (POWER; HIGGINGS; KOHLBERG, 1997). O que Blatt (BLATT; KOHLBERG, 1975) criou foi um processo através do qual a teoria de desenvolvimento moral de Kohlberg poderia ser aplicada à prática 45 educacional em sala de aula. Com seu estudo, demonstrou três pontos fundamentais: 1. o desenvolvimento do juízo moral responde à intervenção educacional baseada na discussão de dilemas. O avanço de uma etapa para a seguinte no desenvolvimento do raciocínio moral, que naturalmente poderia levar anos para se desenvolver, poderia se efetuar em um período mais concentrado; 2. o desenvolvimento estimulado não é um efeito temporal de "aprender respostas corretas", mas, como se pôde observar com o estudo de seguimento um ano mais tarde, é tão duradouro quanto o desenvolvimento natural e se estende a novos dilemas tratados em sala de aula; 3. o desenvolvimento estimulado se produz quando a intervenção estabelece as condições que promovem a passagem para outra etapa, entre elas, proporcionar oportunidades de conflito cognitivo, de consciência moral, de assunção de responsabilidades e o acesso a uma forma de raciocínio moral que está acima de sua própria etapa (POWER; HIGGINGS; KOHLBERG, 1997). O objetivo principal da intervenção pedagógica de Blatt era estimular o nível de juízo moral dos estudantes de uma etapa para a seguinte visando promover a educação moral sem usar de doutrinação nem de relativismo. Blatt e Kohlberg (1975) acreditavam que este método de discutir dilemas evitava a doutrinação na educação, uma vez que visava promover o desenvolvimento natural de estruturas universais de tomada de decisão, e não a adesão a um conjunto determinado de crenças e valores religiosos ou morais. Acreditavam ainda que se evitava o relativismo ao postular que os estágios de desenvolvimento moral expresso nos argumentos utilizados nas discussões de dilemas eram ordenados de maneira hierárquica, de forma que um estágio superior é melhor ou mais justo do que o seu precedente. O papel do líder da discussão segue o modelo de Sócrates, que engajava seus discípulos em um diálogo moral no qual pontos de vista conflitantes eram examinados em uma solução proposta. O líder nunca apresenta soluções prontas para serem aceitas na base da autoridade, mas estimula a busca dos alunos pela solução. Este método socrático respeita os estudantes, enquanto intrinsecamente orientados para o questionamento moral, e procura as melhores condições de sala de aula para essa investigação. 3.3 – A educação moral e suas finalidades segundo Puig 46 Além da fundamentação filosófica e da abordagem teórica apresentadas até então, escolhemos como referencial contemporâneo para a presente pesquisa o trabalho de Josep Maria Puig Rovira, professor da Universidade de Barcelona e pesquisador da área de Educação Moral. Segundo o autor a Educação Moral - para além das concepções educativas tradicionais que a associam diretamente a um modelo de imposição heterônoma de regras e princípios, e também para além de concepções pedagógicas que descartam o trabalho com valores na escola por acreditarem impossível ou indesejável - deve ser considerada como um âmbito de reflexão pedagógica, individual e coletiva, que possibilite a elaboração, racional e autônoma, de princípios gerais de valor, ou seja, de princípios capazes de ajudar no desenvolvimento de posicionamento crítico frente as realidades sociais problemáticas enfrentadas cotidianamente. A Educação Moral deve ser transformada numa ferramenta de análise crítica da realidade cotidiana e das normas sociomorais em vigor e ser capaz de contribuir com a idealização e debate de formas mais justas e adequadas de convivência social assim como aproximar os estudantes de um conjunto de comportamentos, condutas e hábitos coerentes com os posicionamentos assumidos e consequentemente formar hábitos de convivência baseados nos valores de justiça, solidariedade, cooperação e cuidado com o outro. Assim sendo, a educação moral não deve ser reduzida a imposição de valores, normas de conduta e comportamentos e nem, tampouco, a aquisição de habilidades utilizadas a partir decisões subjetivas, mas deve ser vista como um campo de reflexões que auxiliem a: ● Detectar e criticar os aspectos injustos da realidade cotidiana e das normas sociais vigentes. ● Construir formas de vida mais just